Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1585/21.3T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: DECISÃO PENAL ABSOLUTÓRIA
MATÉRIA DE FACTO
CASO JULGADO PENAL
OPONIBILIDADE
ABANDONO DE SINISTRADO
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
DOLO
NEGLIGÊNCIA
OMISSÃO
OMISSÃO DE AUXÍLIO
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Tendo-se provado que, no processo crime em que foi arguida, foi a ré absolvida com base na inexistência de prova de culpa da sua conduta (princípio in dubio pro reo) e não por se ter provado que não praticou os inerentes factos de que foi acusada, não se encontra verificado o pressuposto previsto no art. 624.º, n.º 1, do CPC para atribuição de eficácia extraprocessual à decisão probatória contida na sentença proferida no processo-crime.

II. O conceito de abandono de sinistrado pressupõe necessariamente, para efeitos de tornar operativo o direito de regresso da seguradora (art. 27.º, n.º 1, al. d), do DL n.º 291/2007, de 21.08), que tenha existido dolo do condutor na conduta omissiva, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência.

III. No caso dos autos, é manifesto que ocorreu abandono doloso do sinistrado por parte da ré, a qual, por causa dessa sua conduta, foi condenada pelo crime de omissão de auxílio previsto no art. 200.º do CP, que, como se verifica pelo respectivo tipo legal, só pode ser punido a título de dolo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 120.000,00, acrescida de juros desde a citação até total e efectivo pagamento.

Alegou que, na sequência de acidente de viação causado pela ré com veículo seguro na autora e do qual veio a resultar a morte de pessoa que identifica, veio a pagar aquele montante a título de indemnização aos herdeiros da vítima, e que, no âmbito de tal acidente, ocorreu abandono de sinistrado por parte da ré, o que lhe confere o direito de regresso previsto na alínea d) do n.º 1 do art. 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel).

Entre outros documentos, juntou certidão da sentença, transitada em julgado em 18-11-2019, proferida no processo comum singular n.º 252/17.7..., do Juízo de Competência Genérica de ..., que condenou a ré, nele arguida, como autora de um crime de omissão de auxílio previsto no art. 200.º, n.º 1, do Código Penal (com pena de 100 dias de multa à taxa diária de 10 euros) e absolveu a mesma de um crime de homicídio por negligência.

A ré deduziu contestação e nela defendeu a improcedência da acção, tendo para tal impugnado que o acidente tenha ocorrido por culpa sua e que tenha havido da sua parte abandono doloso do sinistrado. A final, pediu a condenação da autora como litigante de má-fé.

A autora, na sequência de despacho que ordenou a sua notificação para se pronunciar sobre o pedido da sua condenação como litigante de má-fé, veio pugnar pela improcedência do mesmo.

Veio a ser proferida sentença que decidiu pela improcedência da acção, absolvendo a ré do pedido.

Desta decisão interpôs a autora recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 08-01-2024 foi o recurso julgado procedente, tendo sido alterada a decisão da matéria de facto e, a final, tendo sido a ré sido condenada a pagar à autora a quantia de € 120.000,00, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até total pagamento.

2. Inconformada com tal decisão, vem a autora interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«1. A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário, é o que prescreve o artigo 624º, nº 1, do CPC.

2. Trata-se, como resulta da parte final do preceito, de uma presunção iuris tantum. Isto significa que, apesar de o tribunal criminal ter considerado não provados certos factos, se admite que estes factos possam vir a ser provados numa posterior ação civil, mesmo que esta decorra entre as mesmas partes.

3. No artigo 624º, do CPC, não está em causa a eficácia ou autoridade do caso julgado penal absolutório, mas apenas a eficácia probatória extraprocessual, do resultado positivo do julgamento de facto realizado no processo-crime.

4. A presunção legal ali prevista incide apenas sobre a decisão de facto positiva proferida em ação penal, não abrange a valoração normativa dos factos, os juízos de direito que sobre os mesmos ali são formulados.

5. Ainda que o art. 624º se refira apenas aos factos integrantes da prática de um crime, integram-se na ratio legis da presunção legal por aquela norma prevista a prova positiva de factos favoráveis ao arguido que, sem que se confundam com aqueles, tendem à sua descaracterização como fundamento de responsabilização penal.

6. Admitimos que o que está em causa no artigo 624º, nº 1, do CPC, não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado.

7. Mas essa definição é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da inexistência dos factos imputados ao arguido.

8. A sentença absolutória sempre representará um elemento de prova a ser valorado, com respeito pelos princípios da presunção da inocência e da segurança jurídica.

9. A presunção estabelecida pelo artigo 624º, nº 1, do CPC, pode ser ilidida mediante prova do contrário.

10. Esta presunção legal confere ao seu beneficiário a dispensa de prova sobre o facto que resulta da presunção, competindo à parte contrária ilidir a presunção.

11. O artigo 624.º do Código de Processo Civil consagra uma presunção iuris tantum, conferindo ao beneficiário da presunção a dispensa da prova do facto que resulta da presunção – artigo 350.º, n.o 1 do Código Civil – o que pressupõe que sobre o mesmo recairia à partida o ónus da prova do facto, mas que por força da verificação dos pressupostos previstos no aludido artigo 624.º, escusa de provar o facto legalmente presumido, competindo à parte contrária ilidir a presunção.

12. Sucede que, não foi produzida qualquer contraprova, capaz de afastar a presunção.

13. Senão vejamos a prova carreada pela Autora, que foi a seguinte: Apólice de seguro; Participação de acidente de viação elaborado pela GNR e relatório fotográfico; Auto de Notícia; certidão da decisão proferida no processo 252/17.7..., com o relatório de autópsia e sentença ali proferida já transitada em julgado; carta dirigida pela A. à R.; acta de avaliação de danos e prejuízos elaborada pela A.;

14. Que mais não são que documentos que já constavam dos autos, mormente a participação de acidente de viação elaborada pela GNR, acompanhado de relatório fotográfico, bem como, o relatório da autópsia – são todos elementos que serviram de base à formulação da convicção plasmada na sentença penal, que teve estabilidade e não houve sequer recurso para eventual alteração da factualidade assente.

15. A Apólice de Seguro, a carta dirigida pela A à R. e a acta de avaliação de danos e prejuízos elaborada pela A., mais não são que elementos para demonstrar os valores pagos pela A., e que agora são exigidos à R.- mas nunca capazes de demonstrar que a Recorrente deu causa ao acidente. (sublinhado nosso), e não assim tout court, pretender desta forma a alteração em causa!

16. E não havendo qualquer alteração factual ou facto novo, em obediência ao princípio rebus sic stantibus, também não pode ser alterada!

17. No que concerne à prova testemunhal, dos depoimentos prestados resultou o seguinte:

18. BB, militar da GNR, confirmou a elaboração da participação de acidente de viação junta aos autos e o relatório de averiguação.

19. Quando chegou ao local, segundo se recorda, estavam lá várias pessoas, viram um espelho retrovisor caído e detritos plásticos. Disse que ninguém lhe transmitiu a identificação do veículo automóvel causador do sinistro, que não se encontrava no local.

20. Esclareceu que ainda no local, umas testemunhas regressaram dizendo que tinham visto um Mercedes estacionado numa casa perto do local do sinistro, Mercedes ao qual faltava o espelho retrovisor, pelo que decidiu deslocar-se à tal casa e pedido para falar com a condutora do Mercedes, apresentando-se a R., tendo inquirido a R. nessas circunstâncias, disse que a R. se apresentou ensonada e a cheirar a álcool, mas não efetuaram o teste de despistagem, pois podia ter estado e beber em casa.

21. Confirmou a configuração do local onde o sinistrado foi encontrado, dizendo que a vítima estava caída na valeta para escoamento de águas, no sentido V..../A..... Depois de vítima ter sido socorrida, foram alertados por testemunhas que lhe disseram que viram uma viatura, à qual faltava o espelho retrovisor direito, estacionada numa casa ali próxima.

22. Inquiriram a dona da viatura, a ora R., que lhe disse que se recordava de ter batido em qualquer coisa, razão pela qual voltou atrás, mas não viu nada e dirigiu-se a casa. Verificou que no veículo Mercedes havia uns vestígios no guarda-lamas e lhe faltava o retrovisor e que o retrovisor caído ao lado do sinistrado pertencia a um Mercedes.

23. Mais disse, que a vítima ainda estava consciente quando chegaram ao local.

24. CC, militar da GNR que acompanhou a testemunha anterior, e confirmou o depoimento desta na íntegra. Disse que no local onde o sinistrado estava caído encontraram um retrovisor e peças plásticas caídas com autocolantes da Mercedes. Algumas testemunhas no local, depois de se retirarem, regressaram pouco tempo depois a relatar que viram um Mercedes estacionado com aquelas características, ou seja, sem o espelho retrovisor. Esclareceu que a R. quando inquirida, disse-lhes que se apercebeu que bateu em qualquer coisa, que voltou para trás, mas não viu nada e foi para casa. Confirmou que não encontraram qualquer testemunha ocular.

25. Disse ainda que o Mercedes da R. apresentava danos na parte direita lateral frente e não tinha espelho do lado direito. Falaram com a R. na casa onde esta estava a dormir, pertença duma amiga da R., que a R. se apresentou confusa, a arrastar as palavras, e que foi acordada repentinamente. Disse que quando chegaram ao local a vítima estava consciente, em sofrimento.

26. A testemunha DD, respondeu de forma espontânea e revelou ter conhecimento direto dos factos a que respondeu. Disse que na madrugada do ocorrido seguia ao volante do seu automóvel, acompanhada do namorado e de um amigo, circulando no sentido V..../A...., quando se apercebeu de um vulto deitado no chão. Voltou para trás para confirmar, abeiraram se do vulto, que revelou ser um homem, que estava consciente, e que só dizia “Caí, caí”, expressão que repetiu várias vezes.

27. Mais acrescentou que viram um espelho retrovisor caído no chão, perto da cabeça do sinistrado e chamaram a GNR.

28. Depois de dispensados no local pela GNR foram embora, e quando iam para casa viram um Mercedes amassado e ao qual faltava o espelho retrovisor e acharam que podia ser o carro envolvido no acidente, pelo que voltaram atrás a dar conta desta informação à GNR. Disse ainda que ouviu dizer que o sinistrado não via muito bem.

29. Isto mesmo foi confirmado pelas testemunhas EE e FF que acompanhavam a testemunha DD de carro. FF afirmou que conhecia a vítima de vista, do café, e que sabe que via muito mal.

30. A testemunha GG, profissional de seguros da A., fez a gestão administrativa do processo para a A.: asseverou que em 25/7/2018 a A. pagou a quantia de € 120.000,00 aos herdeiros do sinistrado, quantia obtida por acordo. Confirmou que a A. interpelou a R. para reembolsar aquele montante, por carta que lhe enviou em 13/3/20.

31. Quanto ao depoente HH, profissional de seguros da A.: disse que à data do acidente era o perito liquidatário, efectuou o acordo entre a A. e a representante dos herdeiros do sinistrado, tendo acordado no pagamento de € 120.000, que ocorreu em Julho de 2018, confirmando que é a sua assinatura a constante no Doc. “Acta de Avaliação”.

32. Portanto, com exceção das testemunhas GG, II e HH, profissionais no ramo dos seguros, as testemunhas BB, CC, DD, EE e FF, neste processo só vieram corroborar a prova que serviu de base à decisão absolutória penal.

33. Para além disso o Tribunal a quo não se baseou na prova carreada pela Autora, incapaz de fazer prova do contrário para demonstrar e provar, mas, antes sim, com o raciocínio de que e, citando o Tribunal de que se recorre: “Uma vez que o peão caminhava pelo lado direito da estrada atento o sentido de circulação da ré, que tal circulação se processava numa reta com uma largura de estrada de 6,10 metros e que estava bom tempo (não estaria pois a chover a chover e/ou a fazer nevoeiro), conclui-se desde logo que, considerando uma condução da ré com a normal e exigível atenção para com a estrela e com as luzes do seu veículo ligadas (pois era de noite), tal peão, porque caminhava pelo mesmo lado da estrada por onde seguia (o direito, como se exige no art. 13º nº 1 do Código Estrada), não poderia deixar de estar no seu campo natural de visão” e com afirmações como “era exigível à Ré uma particular atenção ao espaço à sua frente alcançado com as luzes do veículo que conduzia (…)”, “não se tendo apurado qualquer conduta do peão que pudesse ter contribuído para que o embate nele ocorresse (…) tal embate só pode ter-se ficado a dever à violação por parte da Ré daquelas obrigações (…) pois se assim não fosse aquela ter-se-ia atempadamente desviado daquele peão e nele não teria embatido” – perante a fundamentação do douto acórdão, questão que se coloca é a de saber, como pode o tribunal a quo dar como provados um embate, quando a sentença penal não considerou que o embate existiu – estamos diante de factos não provados na sentença penal, com eficácia absolutória, que constituem presunção ilidível, podendo ser afastado mediante prova em contrário, e não apenas e tão só mediante interpretação contrária à sentença penal e cível! O que consubstancia uma violação de lei, adjetiva e substantiva, nomeadamente os artigos 624º, nº 1, do CPC e 350º, nº 2, do Código Civil.

34. É inegável que as provas podem ser livremente apreciadas, mas não se podem olvidar os princípios e regras de prova estabelecidos.

35. O Tribunal a quo formou a sua convicção com base em juízos naturais, ultrapassando presunções legalmente estabelecidas, derivadas da sentença penal absolutória.

36. Pelo que, não podia o tribunal de que se recorre assacar responsabilidades pelo embate à Recorrente.

37. Não se demonstrou que a Ré abandonou dolosamente o sinistrado, pondo-se em fuga, e ao não resultar provado que a R. se apercebeu do atropelamento/queda, que embateu no malogrado sinistrado e que, ainda assim, deixou o sinistrado à sua mercê, não lhe prestando assistência. Ao invés, o que se apurou é que a R. se apercebeu de um qualquer barulho, que atribui tal barulho à queda do retrovisor que já estava meio solto por ter batido com o carro no portão de casa dos seus pais, que ainda assim voltou para trás para perceber o que se teria passado e que não se apercebeu da existência do sinistrado nem encontrou o retrovisor, retomando o destino em direção a casa (a casa da amiga JJ onde ia dormir). Não se provou que estivéssemos perante um caso de alcoolemia, nem que tenham sido violadas as regras estradais, (e alia a infeliz vítima que circula nas circunstâncias apuradas) neste sentido vide a fundamentação do acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª instância (negrito nosso).

E, consequentemente,

38. Não estando demonstrada que a Ré/recorrente deu causa ao acidente, não pode haver lugar ao peticionado direito de regresso.

39. Porque conforme prescreve o artigo 27º, nº 1, do DL nº 291/2007, de 21 de agosto, vigente à data do sinistro, na parte que aqui se considera relativa ao direito de regresso da seguradora, que satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso “contra o condutor, quando este haja dado lugar ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.

40. Portanto, o destinatário do exercício do direito de regresso está restrito à prova de que o condutor tenha dado causa ao acidente, o que não se demonstrou.

41. Neste sentido, escreve o tribunal de que se recorre, na parte em que diz: “(…) Passemos ao tratamento da alínea d) do nº1, do artigo 27º do DL 291/2007 de 21/8 (Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), para que o direito de regresso opere da seguradora por abandono do sinistrado se verifique é indispensável (e acompanhamos aqui o raciocínio do expendido no Tribunal da Relação de Lisboa de 21/1/2021, proferido no proc. 4729/19.1T8FNC.L1-6 e disponível em www.dgsi.pt) que o condutor que tenha dado causa ao acidente – em qualquer uma das modalidades de responsabilidade civil por factos ilícitos ou objetiva – ou seja, que se verifiquem os pressupostos para que exista a obrigação por parte da seguradora de satisfazer uma indemnização ao lesado, e ainda que o condutor tenha atuado censuravelmente na prática do ato (abandono do sinistrado) em que a seguradora alicerça diretamente o respetivo direito (neste sentido, vide o Acórdão do STJ de 2/7/2015, de Uniformização de Jurisprudência, proferido no processo nº 620/212.0T2AND.C1.S1 e publicado do DR, Iª Série, de 18/9/2015, onde já tal raciocínio se faz).”

42. Portanto, estamos diante de dois requisitos cumulativos, não se verificando que a condutora deu causa ao acidente pelas razões que atrás aduzidos, não podemos, consequentemente, considerar que estão preenchidos os requisitos para o invocado direito de regresso.

43. Salvo melhor entendimento, somos em crer que o Tribunal a quo, utiliza como argumentos para imputar à Ré/recorrente a responsabilidade do embate, a pretexto do incumprimento de regras estradais, estamos diante de uma clara violação do princípio ne bis in idem que embora não sistematicamente regulado no atual CPP, afirma-se à luz dos preceitos conjugados dos artigos 29º, nº 5 e 18º, nº 1, da CRP, devendo ser entendidos como garantia para o arguido de não ser submetido duas vezes a um julgamento pelos mesmos “factos” e anda de mãos dadas com as razões que subjazem à eficácia do caso julgado de uma decisão anteriormente produzida, que se harmonizam, inteiramente, com o processo penal, em cuja especificidade tem todo a cabimento a imposição de efetivar a certeza do direito e a prevenção do risco de decisão inútil, impedindo que se reproduza ou contradiga uma decisão já tornada definitiva, e, por essa via, garantir também o prestigio dos tribunais, valores que colhem o seu fundamento nos princípios da confiança, da certeza e da seguranças jurídicas, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2º também da CRP, não podemos admitir que a Ré/Recorrente seja julgada duas vezes pelos mesmos factos.».

A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

3. Vem provado o seguinte (mantendo-se a ordenação e respectiva formulação linguística):

1 – A Autora é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objeto a atividade seguradora.

2 – No exercício da sua atividade e por força do contrato de seguro celebrado com a sociedade G.......... ........... .., titulado pela apólice n.º .......21, a Autora aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel de marca Mercedes, modelo ... com a matrícula ..NX.., dentro dos limites legais e contratuais.

3 – Tal contrato de seguro encontrava-se em vigor à data do acidente em que o referido veículo esteve envolvido em ... de ... de 2017.

4 – No dia ... de ... de 2017, pelas 05h00m, na Estrada Nacional N.º ... ao km ..., na localidade de ..., concelho de ..., distrito de ..., ocorreu um acidente de viação.

5 – No âmbito do qual foi interveniente o veículo automóvel seguro pela Autora e conduzido pela Ré, veículo automóvel de marca Mercedes, modelo ... com a matrícula ..NX...

6 – Era de noite, estava bom tempo e piso encontrava-se seco.

7 – No local, a faixa de rodagem é constituída por duas vias de trânsito, uma para cada sentido, sendo as mesmas separadas por linha longitudinal descontínua.

8 – O pavimento é em asfalto betuminoso, e encontrava-se em bom estado de conservação.

9 – O local é uma reta, com boa visibilidade e com cerca de 300 metros; nele existia iluminação pública, mas, pelo menos à data da averiguação do sinistro, o candeeiro nas imediações não funcionava ou estava fundido.

10 – A faixa de rodagem tem a largura de 6,10 metros.

11 – Tendo em conta o sentido de marcha V..../A...., é ladeada do lado direito por berma pavimentada com 1,40 metros de largura, seguida de valeta e habitações/vegetação, a qual é separada da faixa de rodagem por linha longitudinal contínua.

12 – No local, a velocidade está limitada a 50kms/h, conforme sinalização existente.

13 – Conduzia a Ré o veículo seguro no local e hora supra identificados supra, a uma velocidade que não se conseguiu precisar.

14 – Na mesma hora e local em que circulava a Ré com o veículo seguro, caminhava o peão KK pelo lado direito, atento o sentido de circulação tomado pela Ré.

15 – Ao assim circular, a Ré embateu com a frente direita do veículo, nomeadamente guarda-lamas e retrovisor direito, no KK, provocando a projeção deste e consequente queda no solo, concretamente na valeta, onde permaneceu.

16 – Com o embate, o retrovisor direito partiu e foi projetado a poucos metros do local onde a vítima ficou imobilizada; tal embate provocou ainda amolgadela do guarda-lamas da frente direito e porta do lado direito frente.

17 – Contudo, e apesar do embate na vítima, a Ré não parou para verificar o que tinha sucedido, tendo prosseguido a sua marcha sem cuidar de prestar qualquer tipo de assistência ao KK.

18 – A Ré atropelou a vítima e, após o embate, de forma deliberada, não parou e fugiu do local do acidente, abandonando-a à sua mercê.

19 – O alerta para a vítima caída na berma foi dado por volta das 05:30/05:35, ainda noite, por um grupo de amigos que àquela hora circulavam no local, no sentido de V..../A...., nomeadamente pela Sra. DD e seus amigos EE e FF, que ao avistarem um vulto humano caído na valeta de imediato contactaram os bombeiros.

20 – Por volta das 05h35, os bombeiros alertaram a Guarda Nacional Republicana, que de imediato se deslocou ao local.

21 – Chegados ao local, onde estava também uma viatura da S........ ......, cujo condutor estaria a prestar auxílio ao sinistrado, o qual estava na berma, onde foi encontrado com os pés no sentido de V.... e a cabeça no sentido de A..., ainda consciente.

22 – Perto do sinistrado estava um espelho retrovisor.

23 – Chegados os Bombeiros, estes prestaram de imediato os primeiros socorros à vítima, tendo procedido aspiração do sangue da boca da mesma, tendo-lhe metido uma máscara de oxigénio, à sua imobilização a nível cervical, tendo sido colocado num plano rígido, e transportado na maca para o interior da ambulância, socorros esses prestados sempre em contacto com os médicos do INEM.

24 – Chegados os médicos do INEM, pelas 07h10, a vítima passou a ser assistida por estes, tendo sido transportada para o Hospital ..., em ....

25 – Onde veio a falecer, em consequência do sinistro, às 08h15 do mesmo dia.

26 – Conforme consta da Participação de Acidente de Viação, elaborada pela Guarda Nacional Republicana, com o número 0123/2017, nomeadamente da descrição do acidente, resulta o seguinte:

“O acidente não foi presenciado pelo participante:

Pelas 05h35, foi a patrulha alertada pelos Bombeiros de ... para um indivíduo caído, na berma, com indícios de ter sido atropelado, no local além da vítima, existia um espelho retrovisor que indiciava tratar-se de um atropelamento seguido de Fuga.

No local encontravam-se as testemunhas que deram o Alerta.

Depois de efectuadas todos os procedimentos no sentido de socorrer a vítima pelos Bombeiros de ... e INEM, e a vítima ter sido transportada ao Hospital ... em ....

Quando nos deslocávamos para a residência da vítima, no sentido de informar a Família e proceder a sua identificação, uma vez que o mesmo não se fazia acompanhar de qualquer documento, ao passar na localidade de ... verificámos a existência de um veículo, sem retrovisor direito e com amolgadelas na sua frente lateral direita.

Tocámos a campainha da residência, onde o veículo estava parado/estacionado, e ao perguntar se era a proprietária do veículo, a mesma disse que não, mas a proprietária estava a residir temporariamente na sua residência enquanto os pais tinham ido de férias.

Foi nesse sentido chamada, identificada e tomadas as suas declarações tendo esta declarado “Circulava no sentido A..., entretanto atravessou um peão. Passei 2 vezes não vi o que realmente se passou”.

27 – Foram verificados pelos Agentes da Guarda Nacional Republicana vestígios no local, nomeadamente retrovisor direito e plásticos partidos.

28 – Foi levantado Auto de Notícia, e participado o mesmo a juízo, identificado pelo NUIPC 252/17.7..., no qual consta como suspeita a aqui Ré, por prática de crime atropelamento com fuga/omissão de auxílio.

29 – Da descrição dos factos e informações complementares resulta o seguinte:

No dia ... de ... de 2017, quando me encontrava de patrulha as ocorrências, no período 00-08, patrulha constituída pelo participante e pelo Guarda ... CC, foi solicitada a nossa comparência, na Estrada Nacional ... entre ... e a ..., porque na berma encontrava-se um indivíduo caído na valeta.

Chegados ao local, encontravam-se a Bombeiros Voluntários de ..., acabados de chegar, bem como testemunha, pessoa identificada no rosto do auto e que deu o alerta, acompanhada por EE, seu companheiro e FF, e ainda uma Viatura da S........ ......, cujo motorista não foi possível identificar virtude 1ª prioridade ser auxiliar bombeiros a prestar primeiros socorros a vítima.

A vítima, apresentava Politraumatismos mas ainda consciente conseguiu dizer o seu nome e onde morava.

Como apresentava uma fractura na perna direita, os bombeiros meteram uma tala na perna em referência, procederam a aspiração de sangue na boca, e de seguida meteram-lhe máscara de oxigénio.

Efetuadas todas as imobilizações necessárias a nível de cervical o mesmo foi colocado em plano rígido e posteriormente colocado na maca, e transportado para o interior da ambulância.

Sempre em contacto com os médicos do INEM, a equipa chegou ao local pelas 07h10, passando a partir daquele momento ser assistido pelos mesmos.

Nesse sentido, depois destes chegarem, procedeu-se a recolha das medidas necessárias para elaboração participação de acidente bem como recolha de vestígios no local, nomeadamente retrovisor e plásticos com etiquetas, suspeitando-se logo tratar-se de um veículo de marca Mercedes.

Só nesta altura é que a denunciante dos factos se quis ausentar do local, pelo que se aperceberam das nossas suspeitas. Arrancaram e regressaram alguns minutos depois, dizendo que na Travessa das alminhas encontrava-se um Mercedes de cor preta, sem retrovisor do lado direito e com amolgadela no guarda-lamas.

De imediato nos deslocamos a referida rua, e verificamos o veículo.

Foi fotografada conforme relatório em anexo. Efectuaram-se comunicações via rádio com o comando para mais informações sobre o veículo, até que se tocou no nº ... da referida Rua, aparecendo a proprietária da casa.

Disse que a viatura não era dela mas que a Condutora da mesma estava a passar uns dias na sua residência, enquanto os pais tinham ido de férias e que esta tinha chegado a casa cerca das 05h00.

Foi acordar a senhora, e quando esta chegou junto da patrulha, ainda bastante “desnorteada”, e com discurso “desconexo” confirmou que chegou a casa cerca das 05h00 da manhã. Que ao passar no local onde teria ocorrido o sinistro, bateu em alguma coisa, que ainda deu a volta e voltou a passar duas vezes mas como não viu nada nem ninguém fora casa e deitou-se.

Eram 07h30 e ainda apresentava um odor a álcool, no entanto não foi efectuado qualquer teste.

Foi identificada completamente para efeitos de Participação acidente e informada que iria ser elaborado auto de Notícia para Tribunal por OMISSÃO DE AUXÍLIO, pois tinha atropelado um peão além de não ter prestado o auxílio necessário não providenciou ou alertou alguém para o fazer.

Entretanto procedeu-se a informação da Família do sinistro e recolhida a identificação da vítima, ainda que verbalmente pois não sabia dos documentos do mesmo.

Em ... cerca das 11h00, teve o participante conhecimento através de familiares que a vítima KK não tinha sobrevivido aos ferimentos que havia sofrido.

Mais informo que não se procedeu ao levantamento de qualquer auto de contra ordenação até ao momento, pondo a consideração de Vª Ex.ª tal procedimento”.

30 – Participado a Juízo, concluído o inquérito, foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra a arguida, a aqui Ré, pela prática de um crime de homicídio negligente e um crime de omissão de auxílio.

31 – Efetuado o respetivo julgamento, foi proferida sentença, a qual transitou em julgado no dia 18 Novembro de 2019, e da qual resulta o seguinte:

“[…] … a vítima veia a falecer em consequência do embate descrito nos factos provados. Mas não faleceu de imediato, uma vez que quando foi encontrado ainda se mostrava consciente…[…]em consequência do embate descrito nos factos provados, o corpo da vítima foi projetado para a valeta do lado por onde circulava apeado e sofreu lesões que viriam a causar a sua morte, não muito tempo depois. A arguida apercebeu-se dessa circunstância. Não curou, todavia, a arguida de promover o socorro da vítima, nomeadamente alertando as autoridades competentes da existência da situação em causa.

Factos provados:

- os acima já transcritos e referidos sob os nºs 1 a 21 da sentença penal, que aqui não se referem de novo para evitar a sua pura repetição.

[…]

Por todo o exposto julgo parcialmente procedente por provada acusação pública e, em consequência, […]

II. Condeno AA pela prática de um crime de omissão de auxílio do artigo 200º, n.º 1 do Código Pena, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de 10,00€ (dez euros).

32 – No seguimento do sinistro, e porque a apólice se encontrava válida à data do mesmo, a Autora assumiu todas as despesas inerentes ao sinistro provocado pelo veículo seguro e respetivo abandono do sinistrado, causal do seu decesso.

33 – Tal acarretou para a Autora o dispêndio do montante de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros).

34 – Montante esse que se consubstanciou no pagamento da indemnização aos herdeiros da vítima, e cujo pagamento comportou os seguintes valores a título de:

- Direito à vida – indemnização no valor de € 40.000,00;

- Dano moral da vítima – indemnização no valor de € 4.000,00;

- Dano moral herdeiros (11) – indemnização no valor de € 75.000,00;

- Despesas diversas – indemnização no valor de € 1.000,00;

35 – Com a finalidade de ser reembolsada, a Autora enviou na data de ... de ... de 2020 carta para a Ré imputando-lhe a exclusiva responsabilidade da produção do sinistro por abandono do sinistrado e interpelando-a para reembolsar as despesas que a Autora teve de suportar.

36 – Da aludida quantia a Ré nada pagou à Autora.

37 – Como consequência dos seus ferimentos, veio a vítima a sucumbir, no próprio dia, dos mesmos.

38 – Na sentença penal anteriormente referida, foi dado como não provado que: “5. A arguida circulava a velocidade suficiente e adequada a causa perigo para a vida e para a integridade física de quem circulasse apeado na berma que ocupou, pelo menos parcialmente; 6. O embate e suas consequências advieram da falta de cuidado e de atenção e bem assim da desrespeitosa condução da arguida às disposições normativo-estradai, que lhe impunham a necessidade de conservar da berma onde circulava o ofendido uma distância que permitisse evitar acidentes, a necessidade de não transpor a linha longitudinal que separa a faixa de rodagem e a necessidade de prestar total atenção aos obstáculos que surgiam durante o percurso e de os contornar; 7. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida podia e devia ter-se apercebido da presença do ofendido naquela berma 8. A arguida teria evitado o embate e as lesões que provocaram a morte de KK.

39 – Resulta do ponto 23 dos factos provados da sentença proferida no processo crime referido que a vítima apresentava leucoma central em ambas as íris.

40 – Mais resulta daquela sentença, a fls. 5 da mesma:

A pessoa que encontraram mostrava-se capaz de falar pelo que lhe perguntaram o que tinha acontecido, tendo este [a vítima] respondido que tinha caído”.

41 – A testemunha DD disse em tribunal que conseguiu interagir com o sinistrado, tendo este dito que caiu.

Factos dados como não provados:

a) – que a ré circulava a velocidade superior a 50kms/h;

b) – por motivo que não consegue descrever, nem explicar, a ré apercebe-se, sem saber concretizar em que quilómetro da estrada nacional, de um forte barulho no seu carro;

c) – desta feita, afrouxou a viatura e verificou ao seu redor se tinha embatido ou não em alguém ou em algum objeto;

d) – concluiu que o seu retrovisor havia caído no chão, mas não percebeu porquê.

4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões

• Erro de julgamento do acórdão recorrido ao contrariar a presunção legal consagrada no n.º 1 do art. 624.º do CPC, em face da absolvição da ré da prática de um crime de homicídio por negligência por falta de prova da negligência;

• Erro de julgamento do acórdão recorrido ao dar como verificados os pressupostos para o exercício do direito de regresso da autora seguradora por abandono de sinistrado (art. 27.º, n.º 1, alínea d), parte final, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto).

5. Primeira questão: erro de julgamento do acórdão recorrido ao contrariar a presunção legal consagrada no n.º 1 do art. 624.º do CPC, em face da absolvição da ré da prática de um crime de homicídio por negligência por falta de prova da negligência

Na presente acção, a autora seguradora pretende exercer sobre a ré o direito de regresso previsto na parte final da alínea d) do n.º 1 do art. 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, alegando que a demandada causou acidente de viação conduzindo veículo automóvel cuja responsabilidade civil havia sido transferida para a demandante e abandonou o sinistrado, que veio a falecer.

No âmbito da apreciação da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, deduzida pela autora no recurso de apelação, o Tribunal da Relação alterou a factualidade considerada assente pela 1.ª instância por referência à matéria de facto tida por provada no âmbito da acção penal, que correu termos sob o Processo n.º 252/17.7..., do Juízo de Competência Genérica de ..., e na qual a ré, nesses autos arguida, foi condenada como autora de um crime de omissão de auxílio, previsto no n.º 1 do art. 200.º do Código Penal.

Consideremos a fundamentação da decisão de facto do acórdão recorrido, na parte relevante:

«Neste conspecto, ganha relevo decisivo a factualidade dada como provada na sentença penal transitada em julgado e proferida no processo comum singular nº 252/17.7..., do Juízo de Competência Genérica de ..., que, por causa do acidente de viação dos autos, condenou a aqui ré, ali arguida, como autora de um crime de omissão de auxílio do art. 200º nº1 do C. Penal, e cuja certidão foi junta pela autora com a petição inicial.

Dispõe-se no art. 623º do CPC que “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração” (sublinhados nossos).

Decorre de tal preceito que a possibilidade de ilidir a presunção ali prevista – de verificação dos factos em que se tenha baseado a decisão condenatória penal transitada em julgado – é restrita a terceiros em relação ao processo penal onde tal decisão foi proferida, mas, e em contrário do entendimento sufragado na decisão recorrida, tal possibilidade nunca é concedida à pessoa que figurou no respetivo processo como arguido, sendo quanto a si inilidível, pois, como neste sentido referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, 4ª edição, Almedina, pág. 763, em anotação ao art. 623º), “enquanto o arguido condenado teve oportunidade de exercer o direito de defesa, os terceiros foram alheios ao contraditório no processo penal” [no mesmo sentido, entre variados outros, vide, por exemplo, o Acórdão do STJ de 13/1/2010 (proferido no proc. nº1164/07 e por referência ao art. 674-A do CPC de 1961, cuja redação era exatamente a mesma do art. 623º do atual CPC; este aresto é até referenciado pelos autores que se vieram de referir na anotação que fazem ao art. 623º), o Acórdão desta mesma Relação do Porto de 11/9/2023 (proferido no proc. nº1836/18.9T8PRT.P1), o Acórdão da Relação de Coimbra de 16/12/2015 (proferido no proc. nº3039/12.0TBVIS.C1), os Acórdãos da Relação de Lisboa de 18/1/2018 e de 22/10/2019 (proferidos, respetivamente, no proc. nº24857/13.6T2SNT.L1-6 e no proc. nº5970/17.7T8ALM.L1-7), os Acórdãos da Relação de Guimarães de 17/5/2018 e de 4/11/2021 (proferidos, respetivamente, no proc. nº1644/15.1T8CHV.G2 e nº5193/19.0T8BRG-A.G1) e o Acórdão da Relação de Évora de 9/2/2023 (proferido no proc. nº803/19.2T8EVR.E1); todos estes arestos estão disponíveis em www.dgsi.pt].

Deste modo, e como se diz no Acórdão da Relação de Guimarães de 17/5/2018 referenciado supra, quanto ao arguido, os factos assentes na sentença penal condenatória transitada em julgado consideram-se definitivamente provados, fazendo prova plena contra o mesmo, não podendo ser por ele discutidos em posterior ação cível em que se discutam relações jurídicas dependentes da ou relacionadas com a prática da infração penal.

Tal é o que ocorre na presente ação, em que ocupa a posição de ré a arguida no processo acima identificado e que nele foi condenada como autora de crime de omissão de auxílio por causa do acidente dos autos, cumprindo referir, seguindo o Acórdão da Relação de Lisboa de 18/1/2018 referenciado acima e proferido para caso idêntico, que tal posição de ré não é alterada pelo facto de a autora não ter tido intervenção no processo-crime: efetivamente, a única consequência que daí resulta é a faculdade que a esta é conferida de, na sua qualidade de terceiro, querendo, poder produzir prova para ilidir a presunção da existência dos factos fixados no processo penal, sendo certo que, nos presentes autos, a autora não pretendeu ilidir a presunção, tendo, pelo contrário, aceite os referidos factos, invocando-os no essencial e formulando o seu pedido com base nos mesmos.

Nesta conformidade, os factos provados naquele processo crime, no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição ali efetuada e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam à forma do crime – nos quais se integram todos os factos provados ali referidos referentes ao circunstancialismo de tempo, lugar e modo do acidente e conduta da ali arguida e aqui ré –, devem ser considerados provados nesta ação cível.». [negritos nossos]

No âmbito da fundamentação da decisão de direito, o Tribunal da Relação, trazendo à colação o regime do art. 624.º, n.º 1, do CPC, pronunciou-se nos termos seguintes:

«Comecemos então por apurar da responsabilidade na eclosão do acidente.

Desde já se precisa que o facto de a arguida, no âmbito do processo crime referido sob os nºs 30 e 31 da matéria de facto provada (processo comum singular nº 252/17.7..., do Juízo de Competência Genérica de ...), ter sido absolvida do crime de homicídio por negligência de que também estava acusada (como se vê da certidão da respetiva sentença, junta com a petição inicial, e já por nós referido logo no relatório desta peça) e constar de tal sentença (como fundamento para a absolvição pelo mesmo) os factos não provados referidos sob o nº38 da factualidade provada nestes autos, não limita qualquer apreciação que aqui se faça sobre a responsabilidade na eclosão do acidente, pois, como se prevê no art. 624º nº1 do CPC, “A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe são imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário” (o sublinhado é nosso).

Assim, caso se considere que nesta ação cível há prova para concluir pela responsabilidade da ré na eclosão do acidente em qualquer das modalidades acima referidas [responsabilidade por facto ilícito ou responsabilidade objectiva], aqueles factos dados como não provados na sentença penal que se referiram tal não inibem.

Neste conspecto, analisemos então a factualidade referida supra.

Como resulta apurado, a ré conduzia o veículo automóvel pela hora e local referidos sob o nº4 dos factos provados, sendo que tal local se situa numa reta com cerca de 300 metros, a faixa de rodagem tem a largura de 6,10 metros e é constituída por duas vias de trânsito, o pavimento em asfalto encontrava-se em bom estado de conservação e a velocidade está ali limitada a 50 km/h, conforme sinalização ali existente (nºs 7, 8, 9, 10 e 12 dosa factos provados).

Seguia a velocidade não concretamente apurada e era de noite, estava bom tempo e o piso da estrada encontrava-se seco (nºs 13 e 6 dos factos provados).

Na mesma hora e local, caminhava o peão KK pelo lado direito, atento o sentido de circulação tomado pela ré (nº14 dos factos provados).

Quando circulava nos termos referidos, a ré embateu com a frente direita do veículo, nomeadamente guarda-lamas e retrovisor direito, no KK, provocando a projeção deste e consequente queda no solo (nº15 dos factos provados).

Como consequência direta e necessária do referido embate, KK sofreu lesões traumáticas meningo-encefálicas, toráco-abdominais, da bacia e dos membros superior direito e inferior direito, que determinaram a sua morte, ocorrida no Centro Hospitalar de ..., às 8h15 do dia ... de ... de 2017 (nº31 dos factos provados, por referência aos factos provados na sentença penal).

Uma vez que o peão caminhava pelo lado direito da estrada atento o sentido de circulação da ré, que tal circulação se processava numa reta com uma largura de estrada de 6,10 metros e que estava bom tempo (não estaria pois a chover e/ou a fazer nevoeiro), conclui-se desde logo que, considerando uma condução da ré com a normal e exigível atenção para com a estrada e com as luzes do seu veículo ligadas (pois era de noite), tal peão, porque caminhava pelo mesmo lado da estrada por onde seguia (o direito, como se exige no art. 13º nº1 do Código da Estrada), não poderia deixar de estar no seu natural campo de visão.

Por outro lado, além daquela obrigação de circular com atenção à estrada, e uma vez que era de noite, era ainda exigível à ré uma particular atenção ao espaço à sua frente alcançado com as luzes do veículo que conduzia – de 100 metros com as luzes de máximos e de 30 metros com as luzes de médios (art. 60º nº1 do Código da Estrada) –, e que regulasse a sua velocidade, como se prevê no art. 24º nº1 do Código da Estrada, de modo a que “atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, (…), às condições meteorológicas ou ambientais, (…) e a quaisquer outras circunstâncias relevantes” pudesse “em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.

Ora, estando o peão numa reta, do mesmo lado da estrada em que seguia o veículo conduzido pela ré e, como referido, necessariamente no campo de visão desta, e não se tendo apurado qualquer conduta de tal peão que pudesse ter contribuído para que o embate nele ocorresse (por, exemplo, travessia súbita da via aquando da passagem do veículo ou qualquer movimento inusitado ou repentino que tivesse feito ou tivesse sido forçado a fazer), tal embate só pode ter-se ficado a dever à violação por parte da ré daquelas obrigações – nomeadamente de atenção à via e seus utilizadores e à sua conduta de não ter conseguido parar no espaço livre e visível à sua frente, o qual era, pelo menos, o de que as suas luzes, só por si, alcançavam –, pois se assim não fosse aquela ter-se-ia atempadamente desviado daquele peão e nele não teria embatido.

Note-se ainda que, como resulta provado sob os nºs 6 e 31 dos factos provados (neste último por referência ao facto provado sob o nº14 da sentença penal), no local, não obstante o piso da estrada se encontrar seco, não foi sequer registado qualquer rasto de travagem do veículo conduzido pela ré.

Como tal, face aos dados que se referiram e interpretaram, é de concluir pela exclusiva responsabilidade da ré na eclosão do acidente.». [negritos nossos]

É esta conclusão que suscita a discordância da recorrente que, depois de discorrer acerca da natureza da presunção legal prevista no n.º 1 do art. 624.º do CPC, alega não ter sido produzida qualquer contraprova capaz de afastar esta presunção.

Afirma a recorrente que “o Tribunal ‘a quo’ formou a sua convicção com base em juízos naturais, ultrapassando presunções legalmente estabelecidas, derivadas da sentença penal absolutória”, concluindo pela violação das normas do art. 624.º, n.º 1, do CPC, e do art. 350.º, n.º 2, do Código Civil.

Vejamos.

5.1. Em primeiro lugar, importa salientar que o tribunal recorrido não alterou a matéria de facto adquirida em sentido diverso ao estabelecido na causa penal. Aquilo que fez foi, em sede de julgamento de direito, extrair da factualidade adquirida na causa uma conclusão jurídica acerca da responsabilidade exclusiva da ré pela ocorrência do acidente.

Por outro lado, ainda que o tribunal recorrido tivesse modificado a matéria de facto relativa às circunstâncias em que o acidente se deu (e que se prendem directamente com a contribuição negligente da ré para a sua ocorrência) em sentido diverso ao considerado no âmbito da prévia acção penal, tal não lhe estaria vedado.

Senão vejamos.

Dispõe o art. 624.º do CPC que:

“1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.

2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.”.

No plano geral, “o regime de limites objetivos do caso julgado exclui a importação sem mais e de modo vinculado de uma decisão probatória” (Rui Pinto, «Valor extraprocessual da prova penal na demanda cível. Algumas linhas gerais de solução», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pág. 1167).

O regime do art. 624.º do CPC, assim como o regime do antecedente art. 623.º (cuja interpretação tal como realizada, correctamente, pelo acórdão recorrido, não vem posta em causa), configuram excepções àquela regra da não eficácia extraprocessual de uma decisão probatória, atribuindo às sentenças penais absolutórias e condenatórias força probatória plena quanto a certos factos, em função da outorga de um valor de presunção legal ilidível (cfr. Rui Pinto, ob. cit., pág. 1171).

Ora, ainda que se acompanhe Lopes do Rego no entendimento de que a norma sob escrutínio se mostra aplicável a todas as causas conexas ou dependentes da acção criminal, não se limitando aos casos em que houve intervenção da contraparte cível no processo penal prévio (Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 565), importa ter presente que, tal como vem sendo, de modo consistente, afirmado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal:

“[A] previsão do art. 624º, nº1, do CPC, não é integrada pela absolvição no processo penal por falta de prova dos factos imputados ao arguido, isto é, quando a absolvição se tiver fundado no princípio in dubio pro reo, mas sim quando a mesma se dá pela prova (positiva) de facto de que, na acção civil, ele teria de outro modo o ónus” (acórdão de 29-01-2019, proc. n.º 951/06.9TBCLD.C1.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt).

No mesmo sentido, para além dos acórdãos de 10-02-2004 (proc. n.º 04A4284), disponível em www.dgsi, de 23-09-2008 proc. n.º 1711/08), de 15-01-2013 (proc. n.º 2206/06.0TBAMT.P1.S1), de 22-05-2013 (proc. n.º 2024/05.2TBAGD.C1.S1), de 10-12-2013 (proc. n.º 123/05.0TBMDB.P1.S1) e de 13-11-2014 (proc. n.º 1138/11.4TVLSB.L1.S1), estes últimos não publicados, se pronunciou o acórdão de 09-07-2015 (proc. n.º 166/1999.P1.S1), não publicado, ao afirmar:

Segundo o art. 624.º, n.º 1, do NCPC (correspondente ao art. 674.º-B do CPC anterior), não é qualquer decisão penal absolutória que constitui presunção da inexistência dos factos imputados ao arguido: esta só se verificará se a absolvição tiver por fundamento a prova de que não praticou os factos, não sendo suficiente a mera falta de prova da acusação.”.

Na verdade, e conforme assinalado no sumário do acórdão de 17-06-2004 (proc. n.º 04B1967), disponível em www.dgsi.pt (referindo-se ao art. 674.º-B do CPC de 1961, que corresponde ao atual art. 624.º do CPC):

“1. Do art. 674º-B do C. Proc. Civil resulta que quando a absolvição em processo penal se não tiver fundado no princípio in dubio pro reo, mas sim em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados, fica, na falta de prova em contrário, assente que o arguido actuou com a diligência devida, cabendo ao autor no processo civil demonstrar que assim não foi, isto é, que o arguido absolvido actuou por forma culposa, prova que, no entanto, não pode ser feita através do apelo a qualquer presunção de culpa estabelecida na lei civil.

2. Por isso, a previsão do artigo 674º-B do C. Proc. Civil apenas integra a absolvição pela prova positiva de factos de que, na acção civil, o arguido teria, de outro modo, o ónus, não abrangendo a absolvição no processo penal por falta de prova dos factos imputados ao arguido.

3. Assim, se a absolvição do arguido na sentença penal não resultou da prova de que não praticou os factos que lhe eram imputados na acusação, antes se fundou na falta de prova desses mesmos factos (princípio in dubio pro reo) não ocorre a situação prevista no art. 674º-B do C. Proc. Civil, não constituindo essa sentença qualquer presunção, designadamente não tendo qualquer valor fora desse processo.”.

No mesmo sentido se pronuncia a doutrina especializada.

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, pág. 765) salientam que:

“Na generalidade dos casos, a prova da inexistência dum facto não altera a distribuição do ónus da prova: não provado o facto em processo penal (por exemplo: a ofensa corporal não teve lugar; o réu não praticou o homicídio; a colisão dos veículos não ocorreu), não se constitui a presunção do art. 624 e o autor da ação civil continua onerado, tal como se não tivesse havido sentença penal, com a prova dos factos constitutivos do seu direito (…) Pode, porém, a absolvição basear-se na prova de factos impeditivos do efeito dos factos constitutivos que, de outro modo, levariam à condenação. Passa então a caber ao autor da ação civil o ónus de provar o contrário.”.

Também Maria José Capelo (A Sentença entre a Autoridade e a Prova – Em busca de traços distintivos no caso julgado civil, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 209) realça que “o artigo 674.º-B [artigo 624.º do NCPC] cura da eficácia da decisão penal absolutória nas acções civis conexas com ela. A inocência do arguido, emergente de uma sentença absolutória onde se decidiu que aquele não praticou os factos que lhe foram imputados, é considerada elemento bastante para prevalecer sobre quaisquer outras presunções de culpa fixadas na lei civil. Está, por conseguinte, excluída da previsão deste artigo aquela situação em que a absolvição penal decorre da falta de provas dos factos imputados ao arguido (princípio in dubio pro reo). O que restringe o âmbito de aplicação, revelando-se uma opção razoável e cautelosa.”. [negrito nosso]

Também Rui Pinto assinala (ob. cit., págs. 1173-1174) que “no caso da sentença penal absolutória importa distinguir se a absolvição foi fundada em prova positiva ou em prova negativa: o preceito apenas se aplica à absolvição fundada na prova positiva. Se a absolvição penal tiver por fundamento a falta de prova dos factos imputados ao arguido — a chamada absolvição pela prova negativa com base no princípio in dubio pro reo) — o arguido não foi "absolvido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados", como exige o art. 674.º-B. Pelo contrário, “nesta situação a absolvição se baseia na falta de prova dos factos imputados ao arguido, não dispensando, por isso, aquele que invoca os factos em que se alicerçou a acusação no processo-crime do ónus de os demonstrar na acção civil se deles quiser tirar proveito.” (RL 1-Jul-2010/4817/049YXLSB.L1-6).”.

Para a explanação da origem, evolução histórica e sentido interpretativo do regime consagrado actualmente nos arts. 623.º e 624.º do CPC, ver o acórdão recentemente proferido na presente Secção do Supremo Tribunal de Justiça (acórdão de 28-05-2024, proc. n.º 72/23.0T8FAR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

5.2. No caso sub judice, lida a sentença proferida no âmbito do processo penal e integrante da certidão junta aos autos com a petição inicial, constata-se que os factos relevantes para a análise que se empreende, elencados no ponto 38 da matéria de facto assente no presente pleito (e que apresentam a seguinte redacção 5. A arguida circulava a velocidade suficiente e adequada a causa perigo para a vida e para a integridade física de quem circulasse apeado na berma que ocupou, pelo menos parcialmente; 6. O embate e suas consequências advieram da falta de cuidado e de atenção e bem assim da desrespeitosa condução da arguida às disposições normativo-estradais, que lhe impunham a necessidade de conservar da berma onde circulava o ofendido uma distância que permitisse evitar acidentes, a necessidade de não transpor a linha longitudinal que separa a faixa de rodagem e a necessidade de prestar total atenção aos obstáculos que surgiam durante o percurso e de os contornar; 7. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida podia e devia ter-se apercebido da presença do ofendido naquela berma 8. A arguida teria evitado o embate e as lesões que provocaram a morte de KK) foram considerados não provados, ante a escassez de prova da sua realidade, por apelo ao princípio in dubio pro reo.

Quer dizer que, no âmbito do processo-crime, se provou que a ré embateu com a frente direita do veículo, nomeadamente com o guarda-lamas e o retrovisor direito, no sinistrado KK, provocando a projecção deste e consequente queda no solo. O que não se provou foi que a lesante tivesse praticado tais factos culposamente, com violação dos deveres de cuidado que lhe incumbiam. Numa outra formulação: a arguida, ora ré, foi absolvida com base na inexistência de prova de culpa da sua conduta, e não por se ter provado que não praticou os inerentes factos de que foi acusada (ou que os praticou de forma que afastasse positivamente um juízo de censura).

Significa isto que, na linha da mencionada jurisprudência que a este respeito se tem firmado neste Supremo Tribunal, há que concluir que não se encontra verificado o pressuposto, contido no art. 624.º, n.º 1, do CPC, da atribuição de eficácia extraprocessual à decisão probatória contida na sentença crime, estabelecida através de uma presunção ilidível, quanto aos factos cuja não demonstração redundou na absolvição da ré da prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art. 137.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. Nesta matéria deverão, pois, vigorar integralmente, no presente pleito, as regras gerais sobre o ónus da prova em processo cível.

Improcede, assim, este fundamento do recurso.

5.3. De qualquer modo, sempre se diga, a título de argumentação subsidiária, que, ainda que fosse aplicável ao caso o disposto no n.º 1 do art. 624.º do CPC e se considerasse existir presunção legal ilidível da inexistência dos factos que nuclearmente se prendem com a conduta negligente da ora ré na eclosão do acidente, sempre se teria de entender, na linha do propugnado pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 15-01-2013 (proc. n.º 2206/06.0TBAMT.P1.S1, não publicado) – bem como pelo acórdão de 28-05-2024, supra referido – que nada obstava a que o tribunal recorrido lançasse mão de presunções naturais para concluir pela culpa da condutora do veículo. Isto porque o n.º 2 do art. 624.º do CPC apenas veda a ilisão da presunção prevista no n.º 1 da mesma norma através de presunções de culpa previstas na lei civil, de que são exemplos as consagradas nos arts. 503.º, n.º 3, 492.º e 493.º do Código Civil. Ora, as presunções naturais, não tipificadas, apresentam uma natureza distinta das presunções legais, não devendo considerar-se abrangidas pelo âmbito da mencionada restrição da ilisão. Como, a este respeito, sublinha Luís Pires de Sousa (Prova por Presunção no Direito Civil, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, pág. 199), o n.º 2 do art. 624.º do CPC não obsta a que, na acção civil, se recorra a todos os meios legais de prova, inclusivamente a presunções judiciais como forma de firmar os factos: “o que não pode é o autor beneficiar de presunções legais de culpa, realidade diversa daquela.”.

Uma palavra final para sublinhar que a invocação da violação do princípio ne bis in idem, princípio de direito constitucional penal que postula que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” (art. 29.º, n.º 5, da Constituição) e que visa garantir a paz jurídica do indivíduo, salvaguardando-o do exercício repetido do poder punitivo do Estado, surge, nesta sede - em que os factos integradores da prática de um crime são apreciados sob o ponto de vista estritamente civil - como manifestamente infundada.

Não se vislumbra, de igual forma, qualquer infracção ao princípio do Estado de Direito (art. 2.º da Constituição) e ao princípio da intangibilidade do caso julgado àquele inerente, justamente porque são diversos os planos – cível e criminal – de análise da conduta da lesante, os quais desencadeiam consequências que, por apresentarem distinta natureza, são de aplicação cumulativa sem que daí resulte qualquer desvio ao princípio da certeza jurídica.

6. Erro de julgamento do acórdão recorrido ao dar como verificados os pressupostos para o exercício do direito de regresso da autora seguradora por abandono de sinistrado (art. 27.º, n.º 1, alínea d), parte final, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto)

Numa diversa linha de argumentação, a recorrente pretende afastar o direito de regresso da autora, com o fundamento de que não se demonstrou que tenha dado causa ao acidente, pressuposto que afirma ser cumulativo ao “abandono” do sinistrado previsto na norma do art. 27.º, n.º 1, alínea d), parte final, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

Analisemos.

A circunstância de ter existido transferência da responsabilidade civil do segurado para a entidade seguradora, por via do contrato de seguro obrigatório referente à circulação de veículos automóveis, não significa que, a final, seja esta a suportar os custos da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo lesado.

Com efeito, se é a seguradora quem, em primeira linha, responde por tais danos, perfilam-se circunstâncias, elencadas no n.º 1 do art. 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, “que legitimam à empresa de seguros exercer direito de regresso contra o seu segurado, de forma a recuperar as quantias pagas ao lesado, que são tidas como mero adiantamento.” (José França Pitão, Seguro Automóvel Obrigatório Anotado, Quid iuris, Lisboa, 2019, pág. 109).

Ora, ao contrário do que sugere a recorrente (numa argumentação confusa, já que alude ao fundamento do direito de regresso constante do art. 27.º, n.º 1, alínea c), do DL n.º 291/2007, relativo à condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida), para que se tenha por preenchido o conceito de abandono enquanto facto constitutivo do direito de regresso da seguradora não é necessário que o condutor tenha dado causa ao acidente. O acidente poderá até ser causado por terceiro ou pelo próprio lesado, sendo que, do ponto de vista naturalístico e conceptual, o abandono é um facto necessariamente posterior à eclosão do acidente, independente da sua dinâmica.

Como se afirma na fundamentação do AUJ n.º 11/2015 (publicado no Diário da República, I Série, 183, de 18.09.2015, págs. 8360 - 8375):

“A problemática do abandono de sinistrado e seus efeitos assume plena autonomia relativamente ao plano das causas e culpas na produção do acidente, na medida em que o dever de auxílio ao sinistrado não depende da existência de culpa do condutor do veículo na eclosão do acidente, ou seja, de o acidente e as lesões dele resultantes lhe deverem ser imputadas em sede de responsabilidade civil: ainda que o acidente se tenha devido, por exemplo, a culpa exclusiva da vítima, nem por isso deixa o condutor do veículo que nele interveio de estar vinculado a um dever de prestação de auxílio – abandonando o sinistrado se (apesar de não ser responsável civil pelo acidente em si mesmo) deixou de prestar a devida assistência à vítima.”.

De todo o modo, sempre se acrescente que, na situação vertente, face à matéria de facto constante dos pontos 13 a 16 (“13 – Conduzia a Ré o veículo seguro no local e hora supra identificados supra, a uma velocidade que não se conseguiu precisar; 14 – Na mesma hora e local em que circulava a Ré com o veículo seguro, caminhava o peão KK pelo lado direito, atento o sentido de circulação tomado pela Ré.; 15 – Ao assim circular, a Ré embateu com a frente direita do veículo, nomeadamente guarda-lamas e retrovisor direito, no KK, provocando a projeção deste e consequente queda no solo, concretamente na valeta, onde permaneceu; 16 – Com o embate, o retrovisor direito partiu e foi projetado a poucos metros do local onde a vítima ficou imobilizada; tal embate provocou ainda amolgadela do guarda-lamas da frente direito e porta do lado direito frente.”) é indubitável que a ré deu causa ao acidente, verificando-se os requisitos da responsabilidade objectiva (art. 503.º, n.º 1, do CC) determinativos do surgimento da obrigação por parte da seguradora de satisfazer uma indemnização ao lesado.

Regressando à delimitação do conceito de abandono de sinistrado, há que realçar que o mesmo pressupõe necessariamente, para efeitos de tornar operativo o direito de regresso da seguradora, que tenha existido dolo do condutor na conduta omissiva, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência.

A respeito da delimitação do conceito de abandono torna-se oportuna a referência às impressivas palavras do já citado AUJ n.º 11/2015, que, analisando a norma da alínea c) do art. 19.º, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro (que se mostra equiparável, para os presentes efeitos, ao actual art. 27.º, n.º 1, alínea d), parte final, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto), salientou o seguinte:

Importa começar por definir, em termos factuais precisos, este conceito legal de abandono de sinistrado, perspectivado como facto constitutivo do direito de regresso da seguradora – que as leis que sucessivamente têm regido o seguro obrigatório automóvel importaram da norma penal que constava do velho art. 60º do C. Estrada de 1954 – eliminada de todo no C. Estrada de 1994 e substituída entretanto pela ampla e genérica tipificação (actualmente no art. 200º do C. Penal) do crime de omissão de auxílio. Aderindo inteiramente ao decidido pelo STJ, por exemplo, nos acs. de 4/4/95 (in BMJ446, 239) e de 13/2/96 (BMJ454, 726), considera-se que este conceito pressupõe necessariamente o dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência: a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência. Não está, assim, preenchido o facto (constitutivo do direito de regresso) abandono de sinistrado quando o condutor não se apercebe efectivamente do acidente em que interveio, podendo e devendo, todavia, ter-se apercebido, por exemplo, do atropelamento da vítima se agisse com a diligência devida – actuando, deste modo, com culpa, mas não dolosamente, na omissão de prestação do auxílio devido ao sinistrado.”.

É, este, aliás o sentido que, numa perspectiva diacrónica concordante, tem sido atribuído pela jurisprudência deste Supremo Tribunal ao conceito de abandono de sinistrado, enquanto pressuposto do direito de regresso da seguradora contra o condutor (cfr. os acórdãos de 04-04-1995 (proc. n.º 8680, publicado no BMJ, n.º 446, Maio 1995, págs. 239-244), de 13-02-1996 (proc. n.º 87874, publicado no BMJ, n.º 454, Março 1996, págs. 726-730) e, mais recentemente, de 09-01-2024 (proc. n.º 8585/20.9T8PRT.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt).

Compreende-se que assim seja, até porque a delimitação do abandono no campo juscivilístico do direito dos seguros não poderá dissociar-se da evolução que, nesta matéria, foi operada pela lei penal, que deixou de punir a omissão negligente de prestação de socorro. De acordo com a resenha a este propósito efectuada pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 28-02-2002 (proc. n.º 02A192, disponível em www.dgsi.pt):

“O art.º 19º alínea c) do D.L. nº 522/85 (vulgo, lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) atribuiu direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização, contra o condutor não habilitado legalmente ou que agiu sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado. Reproduziu aqui o que constatava da alínea c) do art.º 19º do anterior D.L. nº 408/79, de 25/09, que instituiu o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. O art.º 60º do C. Estrada punia, quanto aos condutores, no nº1 o crime doloso de abandono de sinistrado e, no nº3, a falta negligente de prestação de socorros. O C. da Estrada de 1994 omitiu aqueles ilícitos penais. Porém, o Código Penal de 1982 e posteriormente o de 1995 - art.ºs 219º, nº2, e 200º, nº2, respectivamente - passaram a punir a omissão de auxílio por quem deu causa à situação de necessidade desse auxílio. A alínea c) do art.º 19º em causa remeteu para a previsão dolosa do abandono de sinistrado, sucedendo aliás que deixou de ser punida a omissão negligente de prestação de socorros Ac. do S.T.J. de 4/04/1995, BMJ 446 p. 239, e CJ III, 2, p.151, e de 13/02/19996, BMJ 454 página 726.”.

No caso, diversamente do que sustenta a recorrente, e como se afirma no acórdão recorrido:

“Face à factualidade provada sob os nºs 17, 18 e 31 (neste último por referência aos factos provados sob o nº16 da sentença penal), é manifesto que ocorreu abandono doloso do sinistrado por parte da ré. Tanto assim que a mesma, por causa dessa sua conduta, veio a ser condenada pelo crime de omissão de auxílio previsto no art. 200º do C. Penal, o qual, como aliás se vê do respetivo tipo legal, só pode ser punido a título de dolo.”. [negrito nosso]

Encontrando-se reunidos os pressupostos de que depende o invocado direito de regresso da seguradora autora, improcede igualmente este fundamento recursório.

7. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

Lisboa, 18 de Junho de 2024

Maria da Graça Trigo (relatora)

Emídio Santos

Catarina Serra