Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
93/23.2T8TMC.G1-B.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPARCIALIDADE
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CERTIDÃO
RECURSO
DEFERIMENTO
Data do Acordão: 03/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/RECUSA
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I. A lei faz depender a deferimento da escusa da existência de motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, conceitos que terão de ser integrados casuisticamente, a partir de regras de razoabilidade e do senso comum e, portanto, tendo em conta a perspectiva do homem médio, do cidadão comum representativo do sentir da comunidade.

II. Tendo a Sra. Juíza Desembargadora requerente, como afirmou no seu requerimento, formado já a sua convicção quanto à participação do arguido no crime de tráfico e outras actividades ilícitas, objecto dos autos, fruto do relato de um outro recurso do mesmo complexo processual, e tendo o recurso que agora lhe foi distribuído, por objecto, o despacho de não pronúncia do mesmo arguido, é razoável admitir que, na perspectiva do homem médio, o condicionamento resultante da convicção já alcançada é adequado a afectar a sua imparcialidade, estando, pois, verificados os pressupostos da escusa, previstos no art. 43º, nºs 1 e 4, do C. Processo Penal.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I

A Exma. Juíza Desembargadora da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, Dra. AA, vem, ao abrigo do disposto nos arts. 43º e seguintes do C. Processo Penal, formular pedido de escusa a fim de não intervir, como relatora, no processo nº 93/23.2...

Funda a pretensão, em síntese, nas seguintes razões:

- No processo nº 18/20.7... o Ministério Público acusou os arguidos BB e CC da prática, em co-autoria, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C, anexas, vindo o arguido BB a requerer a abertura da instrução;

- Proferida decisão instrutória de não pronúncia, dela recorreu o Ministério Público, o que determinou a separação de processos relativamente ao arguido BB, tendo sido extraída certidão, que deu origem ao processo nº 93/23.2...;

- A Relação de Guimarães, por acórdão de 14 de Novembro de 2023 [apenso A], declarou irregular a decisão instrutória de não pronúncia e ordenou a baixa dos autos à 1ª instância, a fim de ser proferida nova decisão relativa ao arguido BB, que elenque os factos indiciados e não indiciados e a respectiva análise crítica da prova, e extraia, depois, as necessárias consequências jurídicas;

- A requerente foi relatora do acórdão de 17 de Abril de 2023 da Relação de Guimarães, proferido no apenso L do processo nº 18/20.7..., que conheceu do recurso interposto pelo arguido BB, onde este pretendia a alteração da sua situação coactiva, onde o colectivo de Juízes Desembargadores expôs a seguinte linha de argumentação:

«No relatório pericial de 11-11-2022 apenas consta a não detecção da substância activa.

Desse relatório não é possível retirar de que substância efectivamente se trata, sendo que a PJ apenas identifica a substância apreendida ao arguido como sendo açúcar em 25-01-2023.

É por o relatório da PJ de 11-11-2022 não ser claro e de não se saber como e em que condições o produto chegou à PJ que se solicitou informação adicional no sentido de perceber, afinal, do que se tratava a substância apreendida.

Ora, o arguido, a partir sensivelmente de finais de Outubro de 2022 – até esse momento sempre assumiu o produto que lhe foi apreendido como sendo cocaína – começou a assumir uma postura processual de vítima, de ter sido preso preventivamente de forma ilegal porque o único elemento objectivo que o ligava ao tráfico de estupefacientes de que vinha indiciado era o produto que lhe foi apreendido e como esse produto é açúcar nada mais há no processo que o possa ligar à prática de qualquer crime.

Tendo o seu ilustre mandatário, num fax datado de 19-12-2022, mas enviado em 18-12-2022, chegado a escrever para o processo o seguinte:

“Não imagina Vª Exª qual é a reacção possível de um advogado, quando um cliente que não sabe ler nem escrever, lhe comunica que, tendo-lhe asseverado, sempre, que NÃO TINHA CONSIGO PRODUTOS ESTUPEFACIENTES, quando foi detido….”

Porque a postura do arguido tem variado ao longo do processo há que repor a verdade processual. Assim:

Em primeiro lugar, não é verdade que o arguido sempre assumiu que “não tinha consigo produtos estupefacientes quando foi detido.”

Podendo o arguido prestar declarações no seu primeiro interrogatório judicial, o mesmo optou pelo silêncio, tendo apenas esclarecido a sua situação socio-económico-familiar.

Ora, se é verdade que o arguido não era obrigado a prestar declarações não é menos verdade que no caso em apreço o arguido só tinha a beneficiar se tivesse esclarecido o Tribunal a quo de que a prata que lhe foi apreendida de dentro do seu porta-luvas continha açúcar e não cocaína.

O silêncio que é garantido ao arguido é um direito que visa impedi-lo de se auto-incriminar.

No caso em apreço, era absolutamente fundamental que o arguido esclarecesse o Tribunal de que não tinha droga mas açúcar.

Ao se remeter ao silêncio aceitou que o produto que lhe foi apreendido era, de facto, cocaína.

E tanto aceitou que se tratava de droga e não de açúcar que, no recurso que interpôs do despacho proferido em 03-06-2022, que lhe aplicou a prisão preventiva, assumiu “preto no branco” que era consumidor do “produto apreendido” chegando ao ponto de pedir uma perícia para confirmar o grau de pureza.

E tanto assumiu a sua culpa na detenção de droga que pediu lhe fosse aplicada uma medida de coacção ou de apresentações periódicas ou, na pior das hipóteses, a prisão domiciliária.

Ou seja, o arguido não pede a alteração da medida de coacção com base no facto do produto apreendido não ser droga, cuja característica estupefaciente nem sequer questiona, antes, pelo contrário, pede a realização de perícia para confirmar o grau de natureza para ver se consegue ao menos reconduzir o crime para o tráfico menor.

Mas, a assumpção pelo arguido da natureza estupefaciente do produto que lhe foi apreendido não se fica pela primeira instância.

Em sede de providência de habeas corpus, dirigido ao STJ, a arguido volta a assumir ser consumidor do “produto apreendido” e apenas suscita a providência por entender que o inquérito já tinha ultrapassado os prazos legais e não porque o produto que lhe foi apreendido não fosse droga mas, antes, açúcar.

O arguido apenas muda a sua postura processual, assumindo-se como vítima, e contradizendo tudo que até então havia declarado em requerimentos escritos, quando se apercebe que a primeira perícia da PJ, junta em 11-11-2022, declarou não detectar a substância activa.

Mas, nem mesmo aí o arguido adiantou que o que tinha era açúcar.

Apenas dispara para o inquérito dizendo que o teste rápido tinha sido falsificado e que não se mostra demonstrado nos autos que possuía droga.

Mas, se o produto apreendido sempre fora açúcar porque motivo o arguido não o declarou desde o início, em sede de primeiro interrogatório e nos inúmeros escritos que dirigiu aos autos, e porque motivo assumiu a natureza estupefaciente do pó encontrado numa prata escondida no porta-luvas, quer no recurso que interpôs em Julho de 2022 quer na providência de habeas corpus que é dirigido ao mais alto Tribunal da Nação?

A resposta afigura-se-nos óbvia e de elementar bom senso: porque o arguido efectivamente desconhecia que o produto que lhe foi apreendido era açúcar, aceitando que pudesse ser cocaína.

E é aqui que queremos chegar: o arguido admitiu em sede de primeiro interrogatório que era toxicodependente, bem como admite que conhece – diz ser o único dos outros arguidos que conhece mas a verdade é que diz que conhece – o co-arguido CC em relação a quem foram encontrados avultados valores – € 7.000,00 e produto estupefaciente – sendo de notar que é muito estranho o arguido, que reside em Espanha, ir ter ao encontro do co-arguido CC em Portugal, num ponto de encontro que não é morada de nenhum dos dois.

Se o arguido aceita ser toxicodependente nada mais natural de que possuir droga na sequência de uma transacção que pudesse acabar de ter tido com o co-arguido CC tal como a GNR acabaria por interceptar.

Aliás, não é por mero acaso que a GNR se encontrava no local, tendo sido alertada pelas escutas telefónicas que revelaram o encontro.

A GNR está, assim, à espera de apanhar os arguidos, o que efectivamente ocorreu, daí a detenção em 31-05-2022, e a apreensão do produto localizado no interior do porta-luvas.

Por outro lado, não se compreende porque motivo o arguido guardaria açúcar dentro de um papel prata dentro do guarda-luvas.

Sendo o arguido diabético, como afirma e como parece resultar de um relatório médico espanhol junto aos autos, então o mais lógico seria ter o açúcar guardado num recipiente próprio, ou em pacotinhos, onde pudesse aceder durante a condução.

Mas mais importante ainda é o facto de, sendo o arguido diabético, porque motivo não diz logo às respectivas autoridades (GNR) e, em especial, ao Tribunal que o conteúdo da prata era açúcar de que necessitava ter consigo em caso de emergência?

Ao invés nada diz em sede de primeiro interrogatório e assume que o produto que lhe apreenderam era, de facto, cocaína, que confessa consumir, e em relação ao qual até pede para confirmarem o grau de pureza na esperança de poder justificar a posse da droga para consumo próprio.

Constata-se, assim, que o arguido litiga com manifesto abuso de direito através de figura venire contra factum proprium.»;

- Por ter relatado o acórdão de 17 de Abril de 2023, proferido no apenso L do processo nº 18/20.7..., a requerente declarou-se impedida, como relatora, no processo nº 93/23.2... [estes autos], ao abrigo do disposto no art. 40º, nº 1, d) do C. Processo Penal;

- Porém, tendo sido suscitado um conflito negativo, o Exmo. Presidente da Relação de Guimarães, por despacho proferido no apenso A do processo nº 93/23.2... [estes autos], decidiu não estar verificado o fundamento de impedimento invocado, e atribuiu o processo á requerente;

- De acordo com o disposto no art. 43º, nºs 1, 2 e 4, do C. Processo Penal, o intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando existir o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, apto a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade, constituindo fundamento de recusa, a sua intervenção noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo, fora dos casos do artigo 40º, podendo pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir;

- É entendimento da requerente que já possui uma convicção firme acerca do recurso a que ora é chamada a relatar, uma vez que, por força do seu contacto com o procº nº 18/20.7..., formou um juízo seguro referente à intervenção do arguido BB nos factos que levaram os restantes arguidos a julgamento pelo crime de tráfico de estupefacientes;

- Esta sua prévia convicção, resultante apenas da sua intervenção em processo directamente relacionado com o processo nº 93/23.2... [estes autos], pode fazer crer aos intervenientes processuais, designadamente, ao arguido BB, que a requerente já não logrará ser imparcial, apesar de a decisão que proferiu no processo nº 18/20.7... ter assentado no rigoroso cumprimento das suas funções e absoluta isenção;

- Considerando que o processo nº 93/23.2... [estes autos] resulta do processo nº 18/20.7... tendo, portanto, o mesmo contexto factual, pode aceitar-se que a requerente interveio em fase anterior do processo, em molde semelhante aos impedimentos previstos no art. 40º do C. Processo Penal;

- O pedido é tempestivo, porque formulado antes da conferência.

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Atenta a prova documental junta pela requerente, não se afigurou necessário ordenar outras diligências de prova.

Colhidos os vistos, remeteram-se os autos à conferência.

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Cumpre decidir.

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II

Factos relevantes

1. No processo nº 18/20.7... o Ministério Público acusou [em 30 de Novembro de 2022] os arguidos BB e CC, além de outros, da prática, em co-autoria, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C, anexas;

2. O arguido BB requereu a abertura da instrução, e no termo desta faze processual, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia do arguido;

3. O Ministério Público interpôs recurso da decisão instrutória de não pronúncia em 18 de maio de 2023, o que determinou a separação de processos relativamente ao arguido BB, tendo sido extraída certidão, que deu origem ao processo nº 93/23.2... [estas autos];

4. No Tribunal da Relação de Guimarães, o recurso interposto no processo nº 93/23.2... [estas autos] pelo Ministério Público, foi distribuído à Sra. Juíza Desembargadora requerente, como relatora;

5. A Sra. Juíza Desembargadora requerente, por despacho de 10 de Janeiro de 2025, declarou-se impedida para dele conhecer, com fundamento no disposto no art. 40º, nº 1, d), do C. Processo Penal, e determinou que os autos fossem redistribuídos;

6. Tendo o Sr. Juiz Desembargador relator, sorteado na nova distribuição, por despacho de 20 de Janeiro de 2025, declarado a sua incompetência e suscitado o ‘conflito negativo de distribuição’, veio este a ser decidido por despacho do Exmo. Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31 de Janeiro de 2025, no sentido de atribuir o processo de recuso penal à Sra. Juíza Desembargadora requerente;

6. No âmbito do processo nº 18/20.7... [então, na fase de inquérito], o arguido BB, tendo tido conhecimento de que, em 11 de Novembro de 2022 havia sido junto aos autos relatório pericial do LPC da Polícia Judiciária [exame nº ...17], do qual constava que a substância que lhe havia sido apreendida [até então, supostamente, cocaína], não tinha correspondência com substância activa prevista no Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, requereu em 11 de Dezembro de 2022 a alteração do estatuto coactivo a que se encontrava sujeito [prisão preventiva], pretensão que foi indeferida por despacho de 15 de Dezembro de 2022, com fundamento em não decorrer do requerimento apresentado qualquer circunstancialismo superveniente, capaz de invalidar o juízo feito no despacho de 2 de Dezembro de 2022, que reexaminou o regime coactivo dos arguidos sujeitos a prisão preventiva;

7. O arguido BB recorreu do despacho de 15 de Dezembro de 2022 para o Tribunal da Relação de Guimarães, em 26 de Dezembro de 2022;

8. Em 25 de Janeiro de 2023 foi junto aos autos novo relatório pericial do LPC da Polícia Judiciária, especificando que a substância apreendida ao arguido BB era açúcar, o que determinou que, por despacho de 27 de Janeiro de 2023, o arguido fosse restituído à liberdade, sujeito à medida de coacção de apresentações periódicas;

9. O recurso referido em 7 – apenso L do processo nº 18/20.7... – veio a ser decidido por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de Abril de 2023 [com o processo já na fase de instrução], relatado pela Sra. Juíza Desembargadora requerente, julgando-o não provido e confirmando o despacho recorrido.

10. Fruto da sua qualidade de relatora do acórdão de 17 de Abril de 2023 do Tribunal da Relação de Guimarães, entende a Sra. Juíza Desembargadora requerente que, pela análise extensa e detalhada no acórdão feita, quanto aos indícios existentes que apontam para a participação do arguido no crime objecto do processo, já possui uma convicção firme acerca do recurso que agora lhe foi distribuído como relatora, da decisão instrutória de não pronúncia do arguido, tendo já formado um juízo seguro referente à intervenção do arguido BB nos factos que levaram os restantes arguidos a julgamento pelo crime de tráfico de estupefacientes.

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O direito

1. Nos termos do disposto no art. 44º do C. Processo Penal, a formulação do pedido de escusa é admissível até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório, só o sendo posteriormente, e apenas até à sentença ou até à decisão instrutória, quando os factos que o fundamentam sejam supervenientes ou de conhecimento posterior ao início da audiência ou do debate.

O pedido de escusa é tempestivo, uma vez que foi deduzido pela Sra. Juíza Desembargadora antes do marco fixado na lei para tal efeito.

Dispõe o art. 45º, nº 1, a), do C. Processo Penal que o pedido de escusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior.

Estando em causa o pedido de escusa de uma Sra. Juíza Desembargadora, mostra-se o mesmo correctamente apresentado perante o Supremo Tribunal de Justiça.

Nada obsta, portanto, ao conhecimento do mérito do incidente.

2. Cabe aos tribunais, enquanto órgãos de soberania, administrar a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa), função em que são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art. 203º).

O princípio constitucional da independência dos tribunais impõe a independência dos juízes e a sua imparcialidade, qualidades igualmente garantidas pela Lei Fundamental (art. 216º), e asseguradas pela lei ordinária (art. 4º da Lei da Organização do Sistema Judiciário). Com efeito, o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como, a decisão das causas em prazo razoável e mediante processo equitativo, que a Constituição da República garante a todos os cidadãos no seu art. 20º, nºs 1 e 4, têm como pressuposto a imparcialidade de quem julga pois, sem ela, é impossível a realização do direito no caso concreto.

Visando assegurar a efectiva imparcialidade do julgador, o C. Processo Penal regula, no Livro I, Título I, Capítulo VI, o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.

Relativamente às suspeições, portanto, às recusas e escusas, estabelece o art. 43º:

1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”.

2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.

3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.”.

Recusa e escusa são figuras processuais que comungam o mesmo objecto, o de obstar a que um juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, distinguindo-as a diferente legitimidade para a respectiva dedução [a recusa pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (art. 43º, nº 3, do C. Processo Penal), enquanto a escusa só pode ser pedida pelo próprio juiz (nº 4 do mesmo artigo)].

A imparcialidade, enquanto atributo do juiz, pode ser analisada numa perspectiva subjectiva e numa perspectiva objectiva.

Na perspectiva subjectiva, ela respeita à posição pessoal do juiz sobre qualquer circunstância que possa favorecer ou desfavorecer qualquer interessado na decisão. Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque, o teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa (Comentário do Código de Processo Penal, Volume I, 5ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, pág. 151). Esta imparcialidade presume-se, pelo que, só a existência de provas da parcialidade, podem afastar a presunção.

Na perspectiva objectiva, relevam as aparências – circunstâncias de carácter orgânico e funcional, ou circunstâncias externas – que, sob o ponto de vista do cidadão comum, e não tanto do destinatário directo da decisão, possam afectar a imagem do juiz e, nessa medida, suscitar dúvidas sobre a sua imparcialidade.

Em suma, a dúvida sobre a imparcialidade do juiz resulta, assim, de uma especial relação sua com algum dos sujeitos processuais, ou com o processo.

O motivo sério e grave referido no nº 1, do art. 43º, do C. Processo Penal, tem de resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem objectivamente adequados a fazer nascer e suportar a dúvida sobre a imparcialidade do juiz.

A concordância prática entre o princípio do juiz natural e a suspeita fundamentadora da escusa exige uma especial gravidade desta, suportada em factos objectivos, por forma a que o afastamento do juiz não resulte de motivos menores.

Com efeito, o princípio do juiz natural, constitucionalmente previsto no art. 32º, nº 9 da Lei Fundamental, constitui uma das garantias de defesa em processo penal visando, ao proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso concreto, assegurar a imparcialidade e isenção da decisão a proferir.

Por isso, vem a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça adoptando um critério exigente para a avaliação da seriedade e gravidade do motivo que suporta a suspeição, critério que, partindo do caso concreto, deve ser conjugado com as regras da experiência e do senso comum, conforme o juízo do bonus pater familiae (acórdãos deste Supremo Tribunal de 19 de Abril de 2023, processo nº 37/23.1JAFAR-A.E1-A.S1 e de 26 de Outubro de 2022, processo nº 193/20.0GBABF.E1-A.S1, ambos in www.dgsi.pt).

3. Não perdendo de vista que o deferimento de qualquer escusa constitui, sempre, uma derrogação do princípio do juiz natural, bem como, o mencionado critério interpretativo, atentemos agora nos factos invocados pela Sra. Juíza Desembargadora requerente, fundamentadores do pedido.

No caso em análise, estamos perante um recurso interposto de um despacho de não pronúncia, relativamente a um arguido que se encontrava acusado da prática, em co-autoria, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, a ser decidido por um Colectivo da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, integrado pela Sra. Juíza Desembargadora requerente na qualidade de relatora.

A Sra. Juíza Desembargadora requerente, num outro recurso do mesmo arguido, e no qual foi relatora, integrado no processo nº 18/20.7... – processo que deu origem aos presentes autos, por certidão, pelas razões referidas no ponto 3 dos factos relevantes –, recurso que tinha por objecto a pretensão do recorrente em ver alterado o regime coactivo a que estava sujeito por, em seu entender, terem enfraquecido os indícios probatórios, face ao resultado de um exame do LPC da Polícia Judiciária relativo à natureza da substância que lhe havia sido apreendida – como consta do ponto 6 dos factos relevantes –, procedeu, no exercício das referidas funções, a uma análise detalhada dos indícios existentes nos autos relativamente ao arguido, na qual não deixou de ponderar também os resultados dos relatórios periciais do LPC da Polícia Judiciária.

Acontece que é a própria Sra. Juíza Desembargadora requerente quem afirma, no requerimento apresentado, que devido ao trabalho que desenvolveu no relato do acórdão de 17 de Abril de 2023, proferido no 18/20.7..., e nenhuma razão objectiva existe para duvidarmos de tal afirmação, já possui uma convicção firme acerca do recurso que agora lhe foi distribuído como relatora, da decisão instrutória de não pronúncia do arguido, tendo já formado um juízo seguro referente à intervenção do arguido BB nos factos que levaram os restantes arguidos a julgamento pelo crime de tráfico de estupefacientes.

Pois bem.

Como vimos, a lei faz depender a deferimento da escusa da existência de motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

Porque não define os conceitos de seriedade e gravidade do motivo da escusa, terão os mesmos que ser densificados, também já o dissemos, em cada caso, a partir de regras de razoabilidade e do senso comum e, portanto, tendo em conta a perspectiva do homem médio, do cidadão comum representativo do sentir da comunidade.

Ora, se a Sra. Juíza Desembargadora requerente já formou um juízo seguro portanto, já formou a sua convicção, sobre a participação do arguido BB no crime de tráfico e outras actividades ilícitas, objecto dos autos, e se o objecto do recurso que lhe foi distribuído, como relatora, no processo nº 93/23.2... [estes autos] é o despacho de não pronúncia do mesmo arguido, é mais do que razoável admitir que, na perspectiva do homem médio, o condicionamento resultante da convicção já formada é apto a condicionar a sua capacidade de distanciamento na ponderação a efectuar na decisão do recurso.

Em suma, perante o descrito circunstancialismo, é razoável aceitar que para um cidadão de formação média da comunidade onde se insere a Sra. Juíza Desembargadora requerente, possa estar afectada a sua imparcialidade, qualidade que deve ser mantida por quem tem a função de julgar, havendo que evitar que sobre a sua posição na decisão do recurso venha a recair qualquer dúvida.

Assim, pelas sobreditas razões, estando verificados os pressupostos da escusa, previstos no art. 43º, nºs 1 e 4, do C. Processo Penal, deve a mesma ser concedida.

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III

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em deferir o pedido de escusa formulado pela Exma. Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação de Guimarães, Dra. AA, relativamente ao recurso interposto da decisão instrutória de não pronúncia do arguido BB, no âmbito do processo nº 93/23.2...

Incidente sem tributação.

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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).

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Lisboa, 6 de Março de 2025

Vasques Osório (Relator)

José Piedade (1º Adjunto)

Jorge Jacob (2º Adjunto)