Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
189/22.8TSVLC.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: OFENSA DO CASO JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
IDENTIDADE SUBJETIVA
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
IDENTIDADE DE FACTOS
LIMITES DO CASO JULGADO
QUESTÃO PREJUDICIAL
PRESSUPOSTOS
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 07/04/2024
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO
Sumário :
I. A função negativa do caso julgado é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artigo 580.º n.ºs 1 e 2 do CPC), implicando a tríplice identidade a que se reporta o artigo 581.º, n.º 1 do CPC, a saber: dos sujeitos (quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica), do pedido (quando em ambas as causas se visa obter o mesmo efeito jurídico) e da causa de pedir (quando a pretensão deduzida em ambas procede do mesmo facto jurídico). Já a autoridade do caso julgado, por via da qual é exercida a sua função positiva, pode funcionar independentemente da verificação da aludida tríplice identidade, formando-se perante a concreta decisão que foi proferida, assim pressupondo a decisão de determinada questão que não poderá voltar a ser discutida.

II. Não existe violação do caso julgado (vertente negativa), quando as ações têm por objeto diferentes pedidos e causas de pedir.

III. E também não se verifica violação da autoridade do caso julgado (vertente positiva) quando, na 1ª ação transitada em julgado, não se decidiu, nem se apreciou, qualquer questão que constitua “antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado”.

IV. Nada impede que a Relação possa alterar determinado ponto da decisão da matéria de facto não impugnado pelas partes quando repute necessária essa alteração com vista à sua retificação ou a um melhor esclarecimento ou explicitação da decisão, designadamente em face ou em consonância com a restante factualidade e/ou com a alegação da parte, sem, contudo, lhe alterar o seu sentido essencial.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

A A., Uniagri-União de Cooperativas Agrícolas do Noroeste Português, UCRL, a 08.07.2022, instaurou ação comum contra a Ré, Uniagri II – Indústria Agroalimentar, SA, pedindo, a título principal, que a sociedade Ré seja condenada a:

a) - Ceder à Autora dentro da cabine elétrica que integra as suas instalações, o espaço físico necessário e adequado por forma a permitir que esta nele proceda à instalação de um transformador para seu abastecimento exclusivo;

b) - Delimitar o mesmo numa planta e remetê-la à Autora para que esta possa elaborar e apresentar às entidades licenciadoras o projeto de instalação do seu transformador;

c) - A, no prazo de 30 dias, apresentar junto das entidades licenciadoras o projeto de alterações do Posto de Transformação decorrente da cedência daquele espaço;

d) -A delimitar e enviar à Autora planta onde conste o traçado do percurso que esta deve utilizar para aceder livremente e sem restrições à referida cabine.

e) - Pagar à Autora a quantia de 26.411,50€ correspondente à diferença de tarifas que paga à EDP em regime de baixa tensão especial e a que a Autora pagaria se a energia lhe fosse fornecida em média tensão;

f) - A quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente ao prejuízo que a Autora suportará desde 01.04.2022 até à data em que tiver o seu posto de transformação;

Subsidiariamente,

g) - Seja a Ré condenada a suportar o custo da edificação de um Posto de Transformação no prédio da Autora incluído o projeto, baixada subterrânea, posto de seccionamento, posto de transformação, ligações ao quadro geral e outras eventuais adaptações da instalação no imóvel, licenciamento, cuja liquidação pede para ser relegada para liquidação em execução de sentença.

Para tanto, invocou em síntese ter sido outorgado um contrato mediante o qual acordaram que a Autora cedia à Ré um transformador de 800 KW desde que a Ré cedesse à Autora o espaço no edifício onde se situa o posto de transformação, sito num prédio da Ré, necessário para ali ser instalado um transformador de 250 KW para abastecimento exclusivo da Autora, bem como facultar-lhe o acesso ao posto de transformação; sendo que sempre a partir daquele e antes da constituição da Ré que determinou a passagem da titularidade do imóvel no qual se situa o mesmo posto, vinha sendo realizado o fornecimento de energia às instalações da A. Mais aduz o incumprimento pela Ré da obrigação assim assumida e líquida os prejuízos causados.

A Ré contestou, reconduzindo-se à impossibilidade não culposa de cumprimento da obrigação confessadamente assumida, em termos distintos, todavia, da caracterizada pela Autora e à consequente extinção da obrigação em cuja condenação consiste o objeto da ação.

Quanto aos alegados prejuízos invocados pela Autora, defende que não praticou qualquer facto ilícito, pelo que não pode ser condenada em qualquer pagamento.

Teve lugar audiência prévia, na qual se ficou à ação o valor de 26.411,50 €, foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e indicados os temas da prova.

Realizado o julgamento, a 09.05.2023 foi proferida sentença, a qual julgou a ação totalmente improcedente porque não provada e, em consequência absolveu a Ré, Uniagri II – Indústria Agroalimentar, SA, dos pedidos formulados pela Autora.

Inconformada, a A., aos 28.06.2023, interpôs recurso de apelação da referida sentença, tendo sido, aos 08.02.2024, proferido acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto que decidiu nos seguintes termos:

a) Conceder parcial provimento ao recurso no que importa ao julgamento da matéria de facto, alterando-se em conformidade com o que antecede;

b) Negar provimento à apelação, no mais, mantendo a absolvição da Ré dos pedidos principal e subsidiário deduzidos.”

Inconformada, a A., aos 18.03.2024, veio interpor recurso de revista do mencionado acórdão, invocando o disposto no art. 629º, nº 2, al. a), do CPC e a violação do caso julgado formado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.10.2022, confirmado pelo Acórdão do STJ de 16.11.2023, proferidos no Processo 567/20.7T8VFR (567/20.7T8VFR.P1.S1 e 567/20.7T8VFR.P1, respetivamente), tendo formulado as seguintes conclusões:

“1. A Recorrida, na contestação da ação do processo a que se refere o Acórdão fundamento, aduziu as exceções de caducidade, prescrição, prescrição do enriquecimento sem causa e abuso de direito, mas não alegou nem invocou a exceção da impossibilidade da prestação por facto que não lhe é imputável e consequente da extinção da sua obrigação. Argumento que colheu a adesão da Sentença e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferidos nos autos e determinou a absolvição da Recorrente dos pedidos.

2. Tal impossibilidade definitiva e não culposa da prestação configura uma exceção perentórias, conducente à improcedência definitiva da ação, porque o direito do autor não existe nem pode já existir.

3. A exceção de caso julgado e autoridade do caso julgado são do conhecimento oficioso e obstam à sua invocação numa nova ação.

4. Como resulta do disposto nos art.564.º, c), e 573.º do CPC, o demandado tem o ónus de apresentar numa ação pendente todos os fundamentos da uma decisão que é incompatível com aquela que é pedida pelo autor.

Consequentemente, quando não alegados, ficam precludidos todas as exceções perentórias que poderiam ter conduzido a uma decisão incompatível com a que é requerida pelo autor (Antunes Varela, M. Teixeira de Sousa).

5. O acordo firmado entre as partes numa e noutra ação é o mesmo: a fim de aproveitarem as estruturas já implantadas e em pleno funcionamento quando a Recorrida foi constituída, Recorrente e Recorrida acordaram, em 30 de Agosto de 2002, autonomizar os consumos de energia de cada uma delas, a partir da referida cabine cedendo, para tanto, a Recorrente à Recorrida o seu transformador de 800 KW e esta àquela o espaço necessário, dentro da referida cabine, para a aquela aí instalar um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento. (factos provados 3, 4, 8, 9, 11 e 13 do Acórdão fundamento e factos provados 7, 8, 9, 10, 12 e 13, do Acórdão recorrido)

6. Afirma-se uma evidente conexão entre objeto de ambas as ações (cfr. Acórdão fundamento e recorrido), quer quantos aos sujeitos, quer quanto ao factos provados e seus pressupostos – acordo, de 30 de agosto de 2002, destinado a autonomizar os consumos de energia de cada uma delas.

7. A Recorrida-Ré não alegou na contestação da ação que se referem os Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (16/11/2023) e Relação do Porto (11/02/2022), a impossibilidade de cumprimento por facto não imputável à mesma (art.790.º CC). Encontra-se, assim, precludido o direito de a Recorrida-Ré invocar esta exceção perentória na presente causa, por força da autoridade do caso julgado formado pela primeira ação, exceção do conhecimento oficioso – arts.564.º, c), 573.º, 571.º/2, in fine, 576.º/3.º, 579.º, 580.º, 617.º, 621.º do CPC.

8. O Acórdão recorrido violou estes comados, pelo que deve o acórdão ser revogado e, em consequência, ser anulada a Sentença do Tribunal da 1.ª Instância, apreciando-se os pedidos da Recorrente.

9. É consensual que, num e noutro processo, a relação jurídica da qual resultaram direitos e obrigações para as partes – a questão nuclear ou essencial e que se manifesta na estrita dependência entre os dois acórdãos –, é o acordo celebrado em 30/08/2002, cujo único objetivo foi o da autonomização dos consumos das duas partes, como revelam os factos

provados numa e noutra ação e suas implicações na apreciação que deles é feita pelas duas decisões.

10. O Acórdão recorrido julgou provado que: “Autora e Ré acordaram em proceder à “partilha” do posto de transformação, a fim de poderem vir a ser abastecidas de energia eléctrica através de facturas a emitir de forma autónoma pelos consumos realizados por cada uma aproveitando as infraestruturas existentes e em pleno funcionamento.” – Fundamento de facto 10 do Acórdão recorrido.

11. “Até à materialização dessa partilha, manter-se-ia em vigor o contrato de fornecimento de energia celebrado entre a EDP e a Autora, que por isso continuaria a pagar a totalidade da energia consumida por ambas as entidades, reembolsando a Ré a Autora do valor dos seus próprios consumos, apurados pela diferença entre o total dos consumos constantes das facturas emitidas pela EDP e os consumos da Autora registados a partir de contador próprio existente no átrio do seu edifício, a que os gestores da Ré tinham livre acesso, por nele residirem, como acontecera desde que a Ré iniciou o exercício da sua actividade em 05/03/2001.” – Fundamento de facto 11 do Acórdão recorrido.

12. “Em assembleia geral dos seus accionistas, realizada a 26/07/2002, a sociedade Ré deliberou por unanimidade aceitar a proposta da Autora de lhe ceder gratuitamente o transformador de 800 KW desde que aquela cedesse à Autora o espaço no edifício onde se situa o PT necessário para a Autora aí instalar um transformador para o seu abastecimento exclusivo, bem como lhe facultar o acesso ao transformador.” – Fundamento de facto 12 do Acórdão recorrido.

13. “Na sequência desta deliberação Autora e Ré celebraram em 30/08/2002 o “Acordo estabelecido entre a Uniagri UCRL e a Uniagri II S.A. consequente da venda da totalidade da participação social da primeira na segunda” tendo convencionado, além do mais que e no que aqui interessa:

“(…) Cabine Eléctrica e respectivos transformadores:

3.ª A UNIAGRI UCRL declara que cede gratuitamente à UNIAGRI II SA um dos seus transformadores que actualmente ainda se encontram instalados no prédio da UNIAGRI II SA o que esta aceita.

4.º A UNIAGRI II SA declara que cede à UNIAGRI UCRL o espaço necessário à instalação dentro da área da cabine eléctrica de um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento facultando-lhe ainda o acesso livre e sem restrições à referida cabine. (…)”. – Fundamento de facto 13 do Acórdão recorrido.

14. “A materialização da partilha do espaço na cabine pré-existente implicava a coexistência naquela de dois transformadores independentes, sendo um de 800 KVA para alimentar a Ré [já existente e cedido pela Autora à Ré no acordo] e outro de 250 KVA [a colocar] para alimentar a Autora, pelo que a sociedade Autora, mandou elaborar o projecto de alterações consequente da cedência de espaço na cabine para instalação de um transformador para uso exclusivo da Autora e para retirada dos dois transformadores de 1.000 KVA, que se mantiveram propriedade da Autora.”– fundamento de facto 15 do Acórdão recorrido.

15. Acórdão fundamento foi julgado provado que: “A fim de aproveitarem estas estruturas já implantadas e em pleno funcionamento quando a ré foi constituída, autora e ré acordaram, em 30 de agosto de 2002, autonomizar os consumos de energia de cada uma delas, a partir da referida cabine cedendo, para tanto, a autora à ré o seu transformador de 800 KW e esta àquela o espaço necessário, dentro da referida cabine, para a autora aí instalar um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento.”– fundamento de facto 11 do Acórdão fundamento.

16. “As entidades licenciadoras aprovaram a separação física do posto de transformação, com vista à autonomização das duas entidades consumidoras.” – fundamento de facto 11 do Acórdão fundamento.

17. Autora e ré acordaram ainda, na mesma data, que, até à concretização da autonomização dos respetivos consumos, manter-se-iam as mesmas condições e procedimentos que se vinham praticando desde 4 de março de 2001, data em que a ré iniciou a sua atividade, mantendo-se o contrato de fornecimento de energia celebrado entre a EDP e a autora, com o n.º B.......01, a quem, como até então, continuariam a ser faturados os consumos de ambas.” – fundamento de facto 12 do Acórdão fundamento.

18. “A ré usou o transformador de 800 kw, mas protelou a cedência do espaço dentro da cabine elétrica para que a autora aí instalasse o transformador adequado às suas necessidades, impedindo a autonomização dos consumos.” – fundamento de facto 21 do Acórdão fundamento.

19. Esta conclusão é encontrada na fundamentação jurídica do Acórdão do Tribunal da relação do Porto: “Atente-se que esta consequência jurídica [nulidade] não é excessiva relativamente ao terceiro que beneficia da cedência de energia por parte do cliente final nem o penaliza injustificadamente pois que é do conhecimento comum que o mercado da energia elétrica obedece a regras estritas e no caso em apreço, foi pela impossibilidade de observância imediata dessas regras que se continuou a usar o contrato de fornecimento de que a autora era beneficiária para ceder onerosamente à ré energia elétrica (vejam-se os factos provados em 3.3.1.11 a 3.3.1.14) e, no caso concreto, deve ainda relevar-se que ré

usou o transformador de 800 kw que lhe foi cedido pela autora, mas protelou a cedência do espaço dentro da cabine elétrica para que a autora aí instalasse o transformador adequado às suas necessidades, impedindo a autonomização dos consumos (ponto 3.3.1.21 dos factos provados)” [factos provados 21. do Acórdão do STJ]

20. A conclusão que se extrai dos Acórdãos do STJ do 16/11/2023 e Relação do Porto de 10/02/2022, transitados em julgados, é a da exequibilidade ou viabilidade das prestações do contrato celebrado em 30/08/2002 na parte que envolve a divisão física do posto de transformação aprovada pelas entidades licenciadoras, separação necessária para a autonomização dos consumos das partes e não o seu oposto, ou seja, a impossibilidade objetiva do cumprimento não imputável à Recorrida. Questão jurídica que reuniu o consenso dos atores neste processo – Recorrente e Recorrida – e do Tribunal.

21. A partilha ou separação física da cabine é possível e foi autorizada pelas autoridades administrativa.

22. O Acórdão recorrido violou, assim, a autoridade do caso julgado como antecedente lógico e necessário à sua parte dispositiva (art.619.º e 621.º do CPC).

23. “A Autora requereu a notificação judicial avulsa da sociedade Ré em que pedia que esta “a) No prazo de três dias informar se mantém ou não a disposição de dividir o Posto de Transformação, nos termos acordados e licenciados; b) Em caso de resposta afirmativa, anunciar à requerente, as condições de realização das obras, tudo de molde a que a efectiva separação se conclua nos quarenta dias seguintes à notificação (…)”, tendo a notificação sido concretizada em 21/12/2004.” – fundamento de facto 30 do Acórdão da RP de 8/02/2024. Em resposta essa notificação,

24. “A Ré enviou carta à Autora, datada de 28.12.2004, que esta recebeu, do seguinte teor: ainda não foi levada a efeito qualquer obra ou diligência sobre o assunto da notificação, porque ainda não foi concretizada a reunião entre os técnicos das duas empresas, conforme acordado na reunião havida na D.R. Norte, em 25.2.2023 e vem referido na carta que esta entidade remeteu à UCRL, em 28.5.03 (...) – Fundamento de facto 28 do Acórdão recorrido.

25. Esta factualidade contraria a decisão proferida e a fundamentação jurídica ínsita à mesma: “A Ré está impossibilitada de cumprir a obrigação como assumida (mera cedência do espaço), uma vez que a Direcção Geral de Energia não permite o uso em simultâneo por entidades diferentes da cabine exigindo, na prática, a realização das obras necessárias à transformação da cabine em três espaços autónomos e independentes.

26. A conclusão extraída pelo Acórdão recorrido contradiz as premissas de facto julgadas provadas (cfr. facto provado 10) A prestação a que a Recorrida se comprometeu foi a de permitir que a Recorrente utilizasse um espaço dentro do seu PT. Foi esta a vontade manifestada, bem como é esta a vertida no texto do acordo, como vem retratada no Acórdão fundamento e no Acórdão do Tribunal da Relação que o antecedeu.

27. Em nenhum passo da factualidade provada se retira que a Ré-Recorrida tenha questionado ou aduzido como obstáculo ao cumprimento do vínculo contratual assumido – autonomizar os consumos de energia de Autora e Ré – a necessidade de serem promovidas obras para o cumprimento do acordo.

Inversamente, a Recorrida, assume que “[a]inda não foi levada a efeito qualquer obra ou diligência sobre o assunto da notificação”, demonstrativo da interpretação da vontade manifestada pela Recorrida e a apreciação do modo como esse objeto do negócio foi por si compreendido.

28. A realização integral da prestação carece de execução de trabalhos de separação física do posto de transformação, em conformidade com o disposto nos arts.236.º/1 e 2, 239.º e 762.º do CC. E sendo as coisas assim, não é cabido invocar os arts.790.º, 795.º do CC, deveres laterais ou a boa fé (art.762.º do CC) para fundamentar a impossibilidade do cumprimento por parte da Recorrida. A possibilidade do cumprimento da obrigação afirma-se em toda a sua extensão, como peticionado pela Recorrente.

29. Ocorre, portanto, violação do caso jugado estabelecido pelos apontados fundamentos de facto, cuja estabilidade prevalece sobre o fundamente jurídico do Acórdão recorrido (arts.619.º, 620.º e 635.º/5, do CPC), ou subsidiariamente nulidade (art.615.º/1, c), do CPC), que se invoca, por os fundamentos estarem em oposição com a decisão.

30. A posição jurídica da Recorrente não pode ser agradava pelo recurso interposto – art.635.º/5, do CPC.

31. Não foi o que, no juízo da Recorrente, sucedeu, uma vez que o Acórdão recorrido, ex officio, alterou o facto não provado por outro diverso e com o conteúdo desfavorável à Recorrente. Com efeito, o facto não provado d): A sociedade Ré teve conhecimento da elaboração e posterior entrega na EDP por parte do técnico da Autora de dois projectos autónomos para dois postos de transformação.” modificado pelo Acórdão, passando a ter a seguinte redação:

32. “d) Os projectos apresentados conforme matéria assente em 16) a 18) espelhavam a solução técnica acordada, com o qual o representante da R. e o seu engenheiro técnico concordaram na reunião realizada em 25/02/2003 com técnicos da DREN, na sede desta.

33. Não se se pode considerar não provado que os projetos submetidos não mereceram a concordância do representante da Recorrida e o seu engenheiro técnico na reunião realizada em 25/02/2003, por essa prova ter sido produzida e não se achar impugnada.

34. Como decorre do facto provado 26: “A DREN enviou carta à Ré posterior a 18.06.2004, que esta recebeu, do seguinte teor: de acordo com a reunião havida em 25-02-2023, em que ficou acordada, com a anuência do V/representante, a separação física do P.T. com vista à autonomização das duas entidades consumidoras, parece-nos, a recepção dos projectos acima referidos, ser o corolário lógico para a resolução do assunto”.

35. O Acórdão recorrido violou o caso julgado (art.635.º/5, do CPC), pelo que deve ser revogada alteração efetuada ao ponto d) e ser mantida a decisão da 1.ª Instância. Subsidiariamente,

36. Caso se entenda ser o Supremo Tribunal de Justiça competente para julgar a ação – art.682./1 e 2, do CPC

37. Não oferece dúvida que, pelo acordo firmado, a Recorrida obrigou-se a realizar a prestação ou prestações necessárias para a concretização dessa instalação, momento em que a obrigação se extingue (arts.762.º/1 e 406.º do CC).

38. Sobre a interpretação da declaração negocial, a doutrina sinaliza que: “[a] primeira regra de interpretação é tão obvia que não está sequer expressa na lei, e é a seguinte: sempre que haja consenso das partes, ou de declarante e declaratário, sobre o sentido da declaração, deve ser de acordo com ele que esta deve ser interpretada. O primeiro critério é o da vontade real comum, do sentido subjetivo comum.” (Pedro Pais de Vasconcelos).

39. A segunda regra, contida no artigo 236.º/1, do CC, é a de declaração valer com o sentido que lhe daria um declaratário normal – razoável, medianamente esclarecido, diligente de boa fé – pautada: i) pelo princípio da primazia do fim do negócio; fazendo prevalecer o sentido que lhe seja mais conforme; iii) o princípio da interpretação sistemática e contextua; iv) o princípio da coerência, privilegiado a interpretação que evite contradições do texto a interpretar, visto com um todo; v) o princípio do favor negotii, se estiverem em confronto sentidos diferentes. Faz-se apelo ainda ao contexto negocial em que a declaração aparece, antecedentes e elementos preparatórios, à finalidade do negócio e ao modo como o negócio vem sendo executado (Evaristo Mendes /Fernando Sá)

40. O acordo em apreciação nos autos, contemplando a divisão física do posto de transformação, inscreve-se em todos os critérios interpretativos fornecidos pelo 236.º Código Civil e apontam no único sentido: autonomização dos consumos das duas partes, a qual envolvida a separação física do posto de transformação; e que resulta: da sua preparação, na assembleia dos acionistas da Recorrida de 27/07/2002 (12 dos factos provados), da sua formalização pelo acordo de 30/08/2002, e do início da sua execução, reunião havida na sede da DREN em 25/02/2003 (15-A, dos factos provados), quer da reunião entre os técnicos (23 dos factos provados), e por fim, no reconhecimento pela Recorrida da execução de obras e outras diligências (28 dos factos provados).

41. Da factualidade provada não se capta a ausência de conhecimento da necessidade da partilha ou separação física do PT para autonomização dos consumos de Recorrente e Recorrida, sendo essa a vontade manifestada pelas partes através do acordo subscrito, bem como em momento temporal subsequente.

42. De entre os diversos comportamentos concludentes que aqui podem ser relevantes, destaca-se, antes de mais, a execução do negócio (Paulo Mota Pinto). Destaca-se, nesse sentido, a participação da Recorrida em reunião na sede da entidade licenciadora em 25/02/2003 e na resposta à notificação judicial da Recorrida de 21/12/2004, onde – em 28/12/2004 – assume que as obras e outras diligências ainda não foram promovidas “porque ainda não foi concretizada a reunião entre os técnicos das duas empresas conforme reunião havida na D R Norte, em 23/02/2003”.

43. Bem como na posição das entidades públicas licenciadoras envolvidas na execução do acordo – por o mesmo carecer da sua aprovação –, ao não manifestaram dificuldade em captar o objeto do negócio e de o aprovar (26 dos factos provados).

44. O sentido da declaração negocial da Recorrida está patenteado, e por mais do que uma vez, nos comportamentos da Recorrida subsequentes – e concludentes – à celebração do acordo de autonomização dos consumos, no sentido de não manifestar surpresa na necessidade de divisão física do posto de transformação.

45. Mesmo admitindo que o acordo é omisso nalgum aspeto, vale o disposto no o art.239.º do CC. O critério fixado pelo Código Civil é o de atender à vontade presumível dos declarantes, preenchida de acordo com o superior critério da boa fé.

46. Releva, assim, a tutela da confiança das partes na concretização do negócio e sua lógica imanente, entenda-se, autonomização dos consumos, conforme ditarem as regras de interesse público necessariamente envolvidas e que as partes não ignoravam: aprovação da separação física ou partilha do PT pela Administração Pública.

47. Na reconstrução da vontade hipotética (objetiva) das partes, haverá que ponderar critérios de racionalidade económica, do maior aproveitamento de custos e da redução destes” (Menezes Cordeiro).

48. E foi a economia de custos que presidiu ao negócio em apreço, como decorre dos factos provados: “Autora e Ré acordaram em proceder à “partilha” do posto de transformação, a fim de poderem vir a ser abastecidas de energia eléctrica através de facturas a emitir de forma autónoma pelos consumos realizados por cada uma aproveitando as infraestruturas existentes e em pleno funcionamento.”

49. A partes não ignoravam – nem podiam ignorar – que iriam incorrer em custos, mas o negócio realizado era o menos oneroso, por envolver o aproveitamento das infraestruturas existentes e em pleno funcionamento; sendo certo que teriam necessariamente de cumprir as exigências técnicas das entidades licenciadoras para o efeito se proceder à divisão do PT, conforme as regras de direito público aplicáveis.

50. Nunca as duas partes poderiam ser abastecidas de energia a partir da mesma cabine elétrica com a possibilidade de uma delas ter acesso ao transformador da outra ou de não existir a possibilidade de por exemplo ser interrompido o fornecimento a uma sem ser a outra – donde resulta clara a necessidade de divisão física.

51. Nas relações de crédito, por força do próprio texto do n.º 2 do artigo 762.º, o princípio tanto se aplica ao devedor (no cumprimento da obrigação), como ao credor (no exercício do direito correlativo). O devedor não pode cingir-se a uma observância puramente literal das cláusulas do contrato. Mais do que o respeito farisaico da fórmula na qual a obrigação ficou condensada, interessa a colaboração leal na satisfação na satisfação na necessidade a que a obrigação se encontra adstrita. Por isso ele deve ater-se, não só à letra, mas principalmente ao espírito da relação obrigacional.

52. São particularmente cabidas, a este propósito, a reunião havia em 23/02/2003 (subsequente à celebração do contrato, de 30/08/2002), e a aceitação pela Recorrida da necessidade dessa divisão em 28/12/2004, como acima demonstrado. É, pois, evidente o incumprimento contratual e reiterado da Recorrida, em violação dos arts.406.º, 762.º do CC.

53. Ao contrário da fundamentação jurídica constante do Acórdão, considera a Recorrente não se verificar impossibilidade superveniente da prestação (art.790.º/1, do CC), – o objeto do acordo - autonomização dos consumos de energia das duas entidades obriga à divisão física da cabine elétrica o que foi aprovado pelas entidades licenciadoras.

54. O contrato não é portador de impossibilidade jurídica contrária à lei ou vontade das partes (art.790.º/1, do CC), tendo as entidades licenciadoras aprovado a separação física do posto de transformação, com vista à autonomização das duas entidades consumidoras.

55. Para que a obrigação se extinga [por impossibilidade como previsto no art.790.º/1, do CC], é necessário, segundo a letra e o espírito da lei, que a prestação se tenha tornado verdadeiramente impossível, seja por determinação da lei, seja por força da natureza (caso fortuito ou de força maior) ou por ação do homem. Não basta que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil par o devedor…” (Antunes Varela, Almeida Costa).

56. O regime da impossibilidade da prestação (art.790.º/1, do CC), pressupõe que esta tem de ser superveniente, ocorrer após a constituição da dívida ou obrigação, ser objetiva dizer respeito à prestação em si independentemente da pessoa que a realiza. A impossibilidade da prestação tem igualmente de ser absoluta, no sentido de que a prestação se torne efetivamente irrealizável, não bastando uma impossibilidade relativa, correspondente à maior dificuldade de realização da prestação. Finalmente, para provocar a extinção da obrigação, a impossibilidade tem de ser definitiva. (Menezes Leitão).

57. As prestações consequentes da aprovação da autonomização dos consumos por parte das entidades licenciadoras, bem como as cláusulas acordadas pelas partes com esse objetivo são exequíveis, legais e possíveis.

58. Apesar das interpelações judicias efetuadas pela Recorrente à recorrida, para a materialização do acordado entre as partes em 2002. (23, 25, 27, 28, 29, 30, 31 e 33, dos factos provados): a prestação é legalmente possível, contudo, existe uma mora do devedor-Recorrida (artigos 804.º e 805.º do CC).

59. A Autora necessita e sempre teve necessidade de ser abastecida de energia elétrica para desenvolver a sua atividade. (34 dos factos provados); A partir de 15.01.2005 a Autora passou a consumir energia em baixa tensão especial fornecida através da baixada provisória identificada no ponto anterior, por não dispor de posto de transformação próprio. (36 dos factos provados); Se entre janeiro de 2005 e 03 de março de 2022 a Autora tivesse sido fornecida de energia elétrica em média tensão teria pago menos 26.411,50 €. (37 dos factos provados)

60. A potência máxima que a EDP pode fornecer à Autora em regime de baixa tensão especial é de 41KW o que é insuficiente para o normal exercício da atividade da Autora impossibilitando que os dois elevadores do edifício funcionem em simultâneo. (38 dos factos provados)

61. A mora, consubstanciada no atraso da realização da prestação, “traz consigo o dever de reparação dos prejuízos causados ao credor (n.º 1 do art.804.º)

62. Os prejuízos – danos emergentes – sentidos pela Recorrente até à propositura da ação em juízo traduzem-se em 26.411,50€ (arts.804.º, 562.º e ss do CC), que se pedem, a que acrescem os subsequentes, a liquidar em execução de sentença, como peticionado.

Nestes termos, e por violação dos arts. 564.º, c), 573.º, 571.º/2, in fine, 576.º/3.º, 578.º, 579.º, 580.º, 619.º, 620.º, 635.º/5, do CPC, arts.236.º e 239.º, 406.º, 762.º, 790.º/1, 804.º, 562.º e ss e 817.º do CC,

a) Deve o douto Acórdão ser revogado, bem como Sentença e ser apreciada a pretensão indemnizatória da Recorrente; ou

subsidiariamente, ser a Recorrida condenada a:

b) Ceder à Recorrente dentro da cabine elétrica que integra as suas instalações, o espaço físico necessário e adequado por forma a permitir que esta nele proceda à instalação de um transformador para seu abastecimento exclusivo;

c) Delimitar o mesmo numa planta e remetê-la à Recorrente para que esta possa elaborar e apresentar às entidades licenciadoras o projeto de instalação do seu transformador;

d) A, no prazo de 30 dias, apresentar junto das entidades licenciadoras o projeto de alterações do Posto de Transformação decorrente daquela cedência daquele espaço;

e) A delimitar e enviar à Autora planta onde conste o traçado do percurso que esta deve utilizar para aceder livremente e sem restrições à referida cabine. E ser ainda condenada:

f) Pagar à Recorrente a quantia de 26.411,50€;

g) A quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente ao prejuízo que a Recorrente suportará desde a citação até à data em que tiver o seu posto de transformação operacional.”

Juntou certidão dos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação do Porto de 10.10.2022 e pelo Supremo Tribunal de Justiça 16.11.2023 proferidos no Processo 567/20.7T8VFR (567/20.7T8VFR.P1 e 567/20.7T8VFR.P1.S1, respetivamente),

A Recorrida contra-alegou invocando a inadmissibilidade do recurso de revista por não existir a invocada violação de caso julgado e, bem assim, no mais, pela improcedência do recurso.

Foi, por despacho da ora relatora, determinado o cumprimento do disposto no art. 654º, nº 2, ex vi do art. 655º, nº 2, ambos do CPC. no art. 655º, nº 2, do CPC, na sequência do que veio a Recorrente reafirmar a violação do caso julgado em termos essencialmente idênticos aos já constantes das suas alegações.

Deu-se cumprimento ao disposto no art. 657º, nº 2, 2ª parte, do CPC.

***

II. Do objeto do recurso de revista

Salvas as matérias de conhecimento oficioso, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, ex vi do art. 679º, todos do CPC).

Assim, são as seguintes as questões suscitadas pela Recorrente:

a. Da violação do caso julgado formado pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação aos 10.10.2022, confirmado pelo Acórdão do STJ de 16.11.2023, transitado em julgado a 30.11.2023, no Processo 567/20.7T8VFR.P1 e 567/20.7T8VFR.P1.S1, respetivamente e, em eventual caso afirmativo, das consequências daí decorrentes;

b. No pressuposto da possibilidade do Supremo Tribunal de Justiça conhecer do mérito dos pedidos (conclusões 36ª e segs): da revogação do acórdão recorrido (por, segundo a Recorrente, não se verificar a impossibilidade objetiva do cumprimento da obrigação e por o incumprimento decorrer de comportamento culposo da Recorrida).

***

III. Da admissibilidade (ou não) do recurso de revista

O valor da presente ação, de €26.411,50, é inferior ao da alçada do Tribunal da Relação (de €30.000,00), pelo que, nos termos do art. 629º, nº 1, do CPC, o recurso de revista não seria admissível.

Por outro lado, o acórdão recorrido confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância, pelo que se verifica dupla conformidade entre ambas as decisões (em síntese, ambas as instâncias absolveram a Ré dos pedidos, entendendo que a prestação da Ré, de ceder o espaço para instalação, pela A., de um outro transformador, se extinguiu por impossibilidade objetiva não culposa de cumprimento da prestação por aquela).

Não obstante, dispõe o art. 629º, nº 2, al. a), do CPC que “2. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) Com fundamento (…), ou na ofensa de caso julgado” e, o art. 671º, nº 3, que a dupla conforme não prejudica os casos em que o recurso seja sempre admissível, ou seja, não prejudica o conhecimento da revista na situação de existência de violação de caso julgado prevista no citado art. 629º, nº 2, al. a).

Tendo em conta que, no caso, o fundamento do recurso radica na invocação, pela Recorrente, da ofensa de caso julgado, impõe-se apreciar da existência, ou não, de tal ofensa.

É, todavia, de salientar que o objeto do conhecimento, por este Supremo, se cinge apenas à questão que integra o mencionado fundamento e, em eventual caso afirmativo, das consequências daí recorrentes, e não já a qualquer outra que extravase tal delimitação.

***

IV. Fundamentação de facto

Porque relevante à apreciação da questão da violação, ou não, do caso julgado, consigna-se a decisão da matéria de facto constante do Acórdão ora recorrido, bem como do Acórdão da Relação do Porto de 10.10.2022 (confirmado pelo Acórdão do STJ de 16.11.2023), proferido no citado Proc. 567/20.7T8VFR.P1.

A. Decisão da matéria de facto constante do Acórdão recorrido [transcreve-se o teor da matéria de facto consignada no acórdão recorrido, assinalando-se a negrito as alterações introduzidas pelo mesmo e, abaixo, entre parenteses, o teor dos factos que haviam sido dados como provados pela 1ª instância]:

Factos Provados:

“1. A Autora é uma União de Cooperativas que se dedica ao exercício de actividades associativas e prestação de serviços de alojamento.

2. A Ré é uma sociedade que se dedica ao abate de gado, preparação, transformação e armazenagem de carne.

3. Por escritura pública outorgada em 12/09/2000 no Cartório Notarial de ..., a Autora constituiu, em conjunto com outros agentes económicos, a sociedade “UNIAGRI II – Indústria Agro-alimentar, S.A.” – a aqui Ré, tendo por objecto o abate, preparação, transformação e armazenagem de carne, transformação de produtos de origem animal, produção de alimentos para animais de companhia e comercialização destes produtos ou outros produtos alimentares.

4. O capital desta sociedade foi, em cerca de 97%, constituído por bens móveis e imóveis que então integravam o património da Autora.

5. Móveis e imóveis que naquele acto foram transmitidos para a sociedade “UNIAGRI II – Indústria Agro-alimentar, S.A.”.

6. Posteriormente a Autora vendeu aos outros accionistas da Ré as acções que ainda detinha nesta sociedade.

7. O conjunto dos imóveis e edifícios que pertenciam à Autora e passaram para a titularidade da Ré era abastecido de energia eléctrica a partir de um Posto de Transformação, constituído por três (3) transformadores, sendo um de 800 KW e dois de 1000 KW com um total de 2.800 (KW), e respectivos quadros eléctricos.

8. O posto de transformação era alimentado pela energia eléctrica conduzida a partir de uma baixada situada em terreno que é propriedade da Autora, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., sob o n.º ..80/....11.

9. O posto de transformação (PT) está instalado numa cabine que ocupa uma pequena parte de um imóvel que faz parte do complexo fabril que passou para a propriedade da Ré, descrito em seu nome na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., com o n.º 77/..., composto por complexo fabril destinado a abate e transformação de carnes e subprodutos com secções auxiliares.

10. Autora e Ré acordaram em proceder à “partilha” do posto de transformação, a fim de poderem vir a ser abastecidas de energia eléctrica através de facturas a emitir de forma autónoma pelos consumos realizados por cada uma aproveitando as infraestruturas existentes e em pleno funcionamento.

11. Até à materialização dessa partilha, manter-se-ia em vigor o contrato de fornecimento de energia celebrado entre a EDP e a Autora, que por isso continuaria a pagar a totalidade da energia consumida por ambas as entidades, reembolsando a Ré a Autora do valor dos seus próprios consumos, apurados pela diferença entre o total dos consumos constantes das facturas emitidas pela EDP e os consumos da Autora registados a partir de contador próprio existente no átrio do seu edifício, a que os gestores da Ré tinham livre acesso, por nele residirem, como acontecera desde que a Ré iniciou o exercício da sua actividade em 05/03/2001.

12. Em assembleia geral dos seus accionistas, realizada a 26/07/2002, a sociedade Ré deliberou por unanimidade aceitar a proposta da Autora de lhe ceder gratuitamente o transformador de 800 KW desde que aquela cedesse à Autora o espaço no edifício onde se situa o PT necessário para a Autora aí instalar um transformador para o seu abastecimento exclusivo, bem como lhe facultar o acesso ao transformador.

13. Na sequência desta deliberação Autora e Ré celebraram em 30/08/2002 o “Acordo estabelecido entre a Uniagri UCRL e a Uniagri II S.A. consequente da venda da totalidade da participação social da primeira na segunda” tendo convencionado, além do mais que e no que aqui interessa: “(…) Cabine Eléctrica e respectivos transformadores

Terceira

A UNIAGRI UCRL declara que cede gratuitamente à UNIAGRI II SA um dos seus transformadores que actualmente ainda se encontram instalados no prédio da UNIAGRI II SA o que esta aceita.

Quarta

A UNIAGRI II SA declara que cede à UNIAGRI UCRL o espaço necessário à instalação dentro da área da cabine eléctrica de um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento facultando-lhe ainda o acesso livre e sem restrições à referida cabine.

Quinta

Mais declara a UNIAGRI II S A que os demais transformadores aí instalados poderão ser daí retirados pela UNIAGRI UCRL sua proprietária no mesmo prazo e condições ajustados nas cláusulas sétima, oitava e nova.

Sexta

Ambas as outorgantes declaram que reciprocamente aceitam manter todas as passagens existentes entre os seus referidos prédios sitos em ... designadamente para passagem de cabos eléctricos, telefónicos, condutas de águas de consumo, pluviais e residuais e ainda o acesso de veículos às instalações de ambas sempre que tal se justifique e sempre em respeito pelas boas regras de cortesia e vizinhança.

Sétima

A UNIAGRI II S A declara que autoriza a manutenção nas suas instalações de todos os bens pertencentes à UNIAGRI UCRL que ainda não foram levantados por esta, gratuitamente e por um prazo de seis meses contados a partir da presente data.

Oitava

A UNIAGRI II S A declara ainda que autoriza desde já a UNIAGRI UCRL a entrar livremente e sem quaisquer restrições com os meios e os equipamentos necessários nas suas instalações para proceder ao levantamento e retirada dos referidos bens.

Nona

A UNIAGRI II S A declara ainda que aceita a prorrogação desse prazo, se por qualquer motivo designadamente condições climatéricas não tiver sido possível retirar todos os bens no indicado prazo de seis meses. (…)”.

14. No contexto deste acordo, em 25/02/2003 os representantes e os técnicos de Autora e Ré reuniram-se na sede da Direção Regional de Energia do Norte (DREN) no Porto para discutirem os aspectos técnicos a cumprir para a acordada partilha do espaço da cabine onde se encontravam os transformadores. [Alterado pelo Tribunal da Relação]

[14. Na sequência deste acordo, em 25/02/2003 os representantes e os técnicos de Autora e Ré reuniram-se na sede da Direção Regional de Energia do Norte (DREN) no Porto para discutirem os aspectos técnicos a cumprir para a acordada partilha do espaço da cabine onde se encontravam os transformadores.]

15. A materialização da partilha do espaço na cabine pré-existente implicava a coexistência naquela de dois transformadores com funcionamento independente, sendo um de 800 KVA para alimentar a Ré [já existente e cedido pela Autora à Ré no acordo] e outro de 250 KVA [a colocar] para alimentar a Autora, pelo que a sociedade Autora mandou elaborar projecto de alterações para instalação de um transformador para uso exclusivo da Autora. [Alterado pelo Tribunal da Relação]

[15. A materialização da partilha do espaço na cabine pré-existente implicava a coexistência naquela de dois transformadores independentes, sendo um de 800 KVA para alimentar a Ré [já existente e cedido pela Autora à Ré no acordo] e outro de 250 KVA [a colocar] para alimentar a Autora, pelo que a sociedade Autora, mandou elaborar o projecto de alterações consequente da cedência de espaço na cabine para instalação de um transformador para uso exclusivo da Autora e para retirada dos dois transformadores de 1.000 KVA, que se mantiveram propriedade da Autora.]

15-A. Ao menos na ocasião referida em 14 a DREN deu nota de que a autorização para a materialização da partilha implicava a separação/autonomização física dos espaços onde ficaria cada posto de transformação: relativo a um transformador de 800 KVA a partir do qual era abastecida a Ré, e outro de 250 KVA a partir do qual seria abastecida a Autora.- [Aditado pelo Tribunal da Relação]

16. Para o efeito, foi inicialmente apresentado às entidades competentes – EDP e DREN – pelo técnico da Autora um único projecto de alterações para partilha da cabine do PT pré-existente.

17. A Direção Regional de Energia do Norte (DREN) exigiu a apresentação de dois projectos, um por cada uma das interessadas na alteração, o que o técnico da Autora fez, quer no que tange ao apresentado em nome da Autora, quer no que importa ao entregue em nome da Ré. [Alterado pelo Tribunal da Relação]

[17. Porém, a Direção Regional de Energia do Norte (DREN) não aceitou a partilha ampla da cabine e exigiu a apresentação de dois projectos que implicassem a separação/autonomização física dos espaços onde ficaria cada posto de transformação: relativo a um transformador de 800 KVA a partir do qual era abastecida a Ré, e outro de 250 KVA a partir do qual seria abastecida a Autora, o que o técnico da Autora fez.]

18. A autonomização/separação física dos espaços de cada posto de transformação, conforme projecto(s) elaborados, apresentados e analisados, previa a divisão física da cabine localizada no prédio da Ré em 3 secções autónomas: uma para o posto de transformação de 800KVA pré existente com o respectivo quadro eléctrico; uma para o posto de transformação de 250 KVA a instalar com o respectivo quadro eléctrico; e uma para o posto de seccionamento de acesso à EDP. [Alterado pelo Tribunal da Relação]

[18. Assim, os dois projectos, em cumprimento das exigências da DREN, previam a divisão física da cabine localizada no prédio da Ré em 3 secções autónomas: uma para o posto de transformação de 800KVA pré existente com o respectivo quadro eléctrico; uma para o posto de transformação de 250 KVA a instalar com o respectivo quadro eléctrico; e uma para o posto de seccionamento de acesso à EDP.]

19. O posto de seccionamento destinava-se à instalação dos seccionadores de corte e protecção e, ainda, à instalação de equipamento de contagem para cada transformador.

20. Os projectos mereceram parecer favorável da EDP.

21. A DREN enviou carta à Autora do seguinte teor:

ASSUNTO: APROVAÇÃO DE PROJECTO

P.T. 1 tipo CABINE de 250 KVA; Inst. De Utiliz. Em B.T. em ..., concelho de ....

Para os devidos efeitos, informo V. Exa. de que, com base no disposto no Decreto-Lei nº 517/80 de 31 de Outubro e por despacho 06-05-2004, foi o projecto da instalação eléctrica mencionada em epígrafe considerado APROVADO. (…).”.

22. A DREN enviou carta à sociedade Ré do seguinte teor:

ASSUNTO: APROVAÇÃO DE PROJECTO

P.T. 1 tipo CABINE de 800 KVA; Inst. De Utiliz. Em B.T. em ..., concelho de ....

Para os devidos efeitos, informo V. Exa. De que, com base no disposto no Decreto-Lei nº 517/80 de 31 de Outubro e por despacho 06-05-2004, foi o projecto da instalação eléctrica mencionada em epígrafe considerado APROVADO. (…).”.

23. Na sequência da aprovação dos referidos projectos, os técnicos da Autora e da Ré reuniram em 19/05/2004 para analisarem a execução das alterações a efectuar na cabine onde estão instalados os 3 transformadores, sendo que o técnico da Ré acabou por referir ao técnico da Autora que a melhor solução seria que a UNIAGRI UCRL instalasse um novo PT fora da cabine, nas suas próprias instalações.

24. A Ré enviou carta à Direcção Regional do Norte, datada de 18 de Junho de 2004 do seguinte teor: “Assunto: Projecto das Instalações Eléctricas

Exmo Sr. Director,

Recebemos da Direcção Regional do Norte do Ministério da Economia que V. Exa superiormente dirige, um dossier contendo um projecto, supostamente de alteração do Posto de Transformação, das nossas instalações.

Esse projecto foi-nos remetido, devidamente visado por V. Exas., como tendo sido apresentado para aprovação em nome da UNIAGRI II, S.A..

Que tenhamos conhecimento, ninguém da Administração da nossa empresa contratou qualquer técnico, para a elaboração do referido projecto.

Assim sendo, e porque poderá estar a acontecer algum lapso a que somos alheios, muito agradecemos a V. Exa., que se possível nos informe a requerimento de quem foi apresentado nos V. Serviços o referido projecto, já que nós nunca solicitamos e muito menos assinamos ou mandatamos alguém para assinar, qualquer requerimento nesse sentido.

25. A Ré nada fez no sentido de promover a implementação dos projectos com a manutenção de um posto de transformação e a implantação de um novo posto de transformação (PT) na cabine existente no prédio da Ré.

26. A DREN enviou carta à Ré posterior a 18.06.2004, que esta recebeu, do seguinte teor:

ASSUNTO: P.T. 1, tipo cabine, de 800 KVA; Instalação de Utilização em B.T., em ..., concelho de ....

Referindo-nos à carta de V. Exas. datada de 18 de Junho de 2004, cumpre-nos informar que o referido projecto foi-nos enviado, de acordo com a tramitação imposta pela legislação em vigor, pela EDP Distribuição – Energia, S.A., acompanhado por carta datada de 19-02-2004, com a indicação de ser o requerente a UNIAGRI II S.A..

De acordo com a reunião havida em 25-02-2023, em que ficou acordada, com a anuência do V/representante, a separação física do P.T. com vista à autonomização das duas entidades consumidoras, parece-nos, a recepção dos projectos acima referidos, ser o corolário lógico para a resolução do assunto.

Face ao teor da V/carta, que estranhamos, reverte toda a situação ao início, pelo que não nos restará outra solução que não seja a da aplicação da lei, nomeadamente no que diz respeito à cedência de energia a terceiros.

Ficamos a aguardar que nos seja comunicado o que sobre o assunto se vos oferecer. (…).”.

27. A Autora enviou carta à Ré datada de 02.08.2004, que esta recebeu em que dizia:

ASSUNTO: SEPARAÇÃO FÍSICA DO PT – AUTONOMIZAÇÃO DAS 2 ENTIDADES CONSUMIDORAS

Como V. Exas. bem sabem temos estado a suportar os custos de energia consumidos por V. Exas., desde Outubro de 2002, o que atinge já muitas dezenas de milhar de euros.

E, isto porque só após a separação física do PT se poderão autonomizar as 2 entidades consumidoras – UNIAGRI UCRL e UNIAGRI II S A – e consequentemente passar a ser emitida a cada uma dessas entidades a correspondente factura. (…)

Pelo exposto solicitamos a V. Exas. que nos esclareçam sobre qual o real sentido daquela V. carta, no que se refere à V. disponibilidade para se iniciarem no imediato as obras de separação física do PT. (…).

28. A Ré enviou carta à Autora, datada de 28.12.2004, que esta recebeu, do seguinte teor:

Exmos. Senhores,

Ainda não foi levada a efeito qualquer obra ou diligência sobre o assunto da notificação, porque ainda não foi concretizada a reunião entre os técnicos das duas empresas, conforme acordado na reunião havida na D.R. Norte, em 25.2.2023 e vem referido na carta que esta entidade remeteu à UCRL, em 28.5.03, apesar de o técnico da Uniagri II, S.A. sempre estar disponível para tal reunião, aguardando apenas o contacto do seu colega. Assim, apenas continua a aguardar o resultado da reunião a haver entre os dois engenheiros, que têm de encontrar a solução técnica para o caso”.

29. Em resposta à carta constante do ponto anterior, a Autora enviou carta à Ré, datada de 25.01.2005, que esta recebeu, em que defendia que a “os técnicos de ambas partes há muito que se reuniram e a solução técnica encontrada para a divisão do posto de transformação, satisfaz e cumpre as deliberações tomadas por ambas as empesas e preenche os requisitos legais e técnicos impostos pelos Serviços de Energia da Direcção Regional do Norte do Ministério da Economia (SEDRN) e pela EDP, pelo que, os competentes técnicos daquelas Entidades Licenciadoras a aprovaram.

30. A Autora requereu a notificação judicial avulsa da sociedade Ré em que pedia que esta “a) No prazo de três dias informar se mantém ou não a disposição de dividir o Posto de Transformação, nos termos acordados e licenciados; b) Em caso de resposta afirmativa, anunciar à requerente, as condições de realização das obras, tudo de molde a que a efectiva separação se conclua nos quarenta dias seguintes à notificação (…)”, tendo a notificação sido concretizada em 21/12/2004.

31. A sociedade Ré, também, foi citada em 7/11/2005, para a acção que a Autora lhe moveu e a que foi atribuído o n.º 708/05.4... do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., onde esta peticionou ser a Ré:

a) Condenada a reconhecer a propriedade da Autora sobre os transformadores, baixada e cabos que conduzem a energia elétrica desde a baixada do Posto de alta tensão até ao PT e desde este até à unidade fabril da Autora;

b) Condenada a efetuar em conjunto com a Autora, no prazo máximo de um mês, nos moldes constantes do projeto aprovado pelas entidades competentes (DREN e EDP), suportando metade dos respetivos custos;

c) Subsidiariamente, e caso não se faça dentro daquele prazo, condenada a permitir que a Autora execute tal obra, com direito a ser reembolsada por ela de metade dos respetivos custos;”.

32. A acção identificada no ponto anterior veio a ser julgada extinta por deserção em 9/05/2011, após vários anos em que se manteve suspensa numa tentativa de Autora e Ré chegarem a acordo tendo a Ré apresentado propostas alternativas ao acordo inicial.

33. Em 20 de Fevereiro de 2020, a Autora requereu a notificação judicial avulsa da sociedade Ré a que foi atribuído o n.º 34/20.9... do Juízo de Competência Genérica de ..., em que pedia que a sociedade Ré “no prazo de 5 dias, lhe ceder o espaço necessário à instalação dentro da área da referida cabine, de um transformador que satisfaça as necessidades de funcionamento da Requente, e facultar-lhe ainda o acesso livre e sem restrições à referida cabine.”, tendo a citação sido concretizada em 28.02.2020.

34. A Autora necessita e sempre teve necessidade de ser abastecida de energia eléctrica para desenvolver a sua actividade.

35. A Autora enviou uma carta à EDP, datada de 21.02.2005, do seguinte teor:

Assunto: Suspensão do nosso contrato n.º ... ... ... .93 e celebração de contrato c/ a UNIGRI II S.A, até à conclusão das obras de divisão do nosso “PT” de 2800KVA, de acordo com projecto aprovado.

Exmos. Senhores

Em execução de deliberações e acordos firmados pelos órgãos competentes das duas sociedades, UNIAGRI UCRL (união de cooperativas) e UNIAGRI II SA (sociedade anónima), foi aprovado (pelos Serviços de Energia da Direcção Regional do Norte do Ministério da Economia e pela EDP), um projecto de divisão e separação física do “PT” licenciado em nome desta união de cooperativas, para se autonomizarem a partir dele, os consumos de energia referentes àquelas duas entidades.

Acabamos agora de confirmar que, contrariando essas deliberações e acordos existentes, aquela sociedade anónima há muito que averbou “em seu nome exclusivo” junto dos Serviços de Energia da Direcção Regional do Norte o PT em causa.

No desconhecimento desta situação e no pressuposto que, até à conclusão das referidas obras de divisão, o “PT” só podia continuar licenciado em nome desta União de Cooperativas “que dele nunca abdicou”, mantivemos o contrato de fornecimento de energia.

A partir de 15.01.2005, e para se poder dar início às obras, a UNIAGRI UCRL passou a ser abastecida, não pelo referido “PT” mas em exclusivo, por uma baixada própria de obras.

Nestas condições, vimos informar V. Exas. que, até à conclusão das referidas obras, autorizamos que, simultaneamente com a suspensão do nosso contrato de fornecimento de energia, a EDP celebre com a UNIAGRI II, S.A. um outro contrato, com utilização da baixada, quadros, cabos e transformadores que, entretanto, continuam a pertencer-nos.

36. A partir de 15.01.2005 a Autora passou a consumir energia em baixa tensão especial fornecida através da baixada provisória identificada no ponto anterior, por não dispor de posto de transformação próprio.

37. Se entre Janeiro de 2005 e 03 de Março de 2022 a Autora tivesse sido fornecida de energia eléctrica em média tensão teria pagado menos 26.411,50 €.

38. A potência máxima que a EDP pode fornecer à Autora em regime de baixa tensão especial é de 41KW o que é insuficiente para o normal exercício da actividade da Autora impossibilitando que os dois elevadores do edifício funcionem em simultâneo.

39. A Autora enviou carta à sociedade Ré datada de 13/06/2022, que esta recebeu, em que a interpelou para, no prazo de oito dias, lhe pagar 26.411,50 €.

40. Em resposta à interpelação, a sociedade Ré enviou uma carta à Autora, datada de 17 de Junho de 2022, que esta recebeu, do seguinte teor:

Assunto: Resposta à vossa carta de interpelação para pagamento do montante de € 26.411,50.

Exmos. Srs.

Acusamos a recepção da Vossa carta datada de 13/06/2022.

Em resposta, cumpre dizer que não reconhecemos que a Uniagri II Indústria Agroalimentar, S.A. seja devedora de qualquer quantia à Uniagri – União de Cooperativas Agrícolas Noroeste Português, UCRL, como consta da Vossa interpelação que, aliás reputamos de ininteligível, quanto à sua fundamentação.

Com os melhores cumprimentos,”.

*

Mais se altera o facto não provado sob d) nos seguintes termos:

d) Os projectos apresentados conforme matéria assente em 16) a 18) espelhavam a solução técnica acordada, com o qual o representante da R. e o seu engenheiro técnico concordaram na reunião realizada em 25/02/2003 com técnicos da DREN, na sede desta.

[d)-A sociedade Ré teve conhecimento da elaboração e posterior entrega na EDP por parte do técnico da Autora de dois projectos autónomos para dois postos de transformação.]”

*

B. Matéria de facto resultante da certidão dos Acórdãos da Relação do Porto de 10.10.2022 e do Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.2023, proferidos nos Processos 567/20.7T8VFR.P1 e 567/20.7T8VFR.P1, este transitado em julgado em 30.11.2023.

Com as alegações do recurso de revista, a Recorrente juntou aos autos certidão das mencionadas decisões, das quais resulta o seguinte:

1. A A., Uniagri-União de Cooperativas Agrícolas do Noroeste Português, UCRL, havia instaurado contra a Ré, Uniagri II – Indústria Agroalimentar, SA, a ação com processo comum nº 567/20.7T8VFR, em que pedia a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €120.889.05, correspondente à parte da ré nos consumos de energia fornecida pela EDP de 07.09.2002 a 07.03.2005, de que esta não reembolsou a A., acrescida de juros de mora, alegando para tanto e em síntese que: após a constituição da ré pela autora, as partes acordaram que até à concretização da autonomização dos respetivos consumos manter-se-iam as mesmas condições e procedimentos que se vinham praticando desde 04 de março de 2001,data em que a ré iniciou a sua atividade, ou seja, que o contrato de fornecimento de energia elétrica manter-se-ia titulado pela autora, sendo a esta faturados os consumos de ambas e a ré continuaria a reembolsar a autora dos valores correspondentes aos seus consumos de energia elétrica, apurados pela diferença entre a contagem total obtida pela EDP no registo do contador instalado na cabine, que a ré controlava; a autora passou a debitar mensalmente à ré valores correspondentes aos seus consumos, tendo a ré pago mensalmente à autora, até ao momento em que a ré deixou de proceder aos reembolsos invocando uma reserva contabilística sobre o modo por que deviam os pagamentos ser sustentados, continuando contudo a ré a consumir a energia elétrica inerente ao funcionamento da sua atividade, mas deixando de pagar à autora a parte correspondente aos gastos de energia por si efetuados, no período de 7-09.2002 a 07-03-2005, sendo esses consumos no valor de €120.889,05.

2. A Ré contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação, tendo, por exceção, invocado a caducidade e a prescrição do direito de a autora exigir o pagamento dos custos da energia elétrica, bem como o abuso de direito.

3. Realizada a audiência final (a 30.09.2021), aos 01.10.2021, foi proferido o seguinte despacho:

“No âmbito do presente processo, discute-se um contrato que pode ser qualificado como contrato inominado de cessão de energia elétrica.

E, considerando-se que não tem a necessária autorização pelas entidades administrativas competentes, tal contrato será nulo, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso, devendo o Tribunal extrair as devidas consequências.

É certo que, na resposta à contestação, a autora veio levantar a questão da eventual nulidade do contrato e peticionar, a título subsidiário, as consequências derivadas, e a Ré respondeu a tal alteração da causa de pedir e pedido. Todavia, tais alterações da causa de pedir e do pedido foram indeferidas, por decisão transitada em julgado.

Assim sendo, por forma a evitar decisões surpresa e à luz do disposto no art. 3º, nº 3, do CPC, notifique as partes para, em dez dias, querendo, se pronunciarem acerca do eventual conhecimento oficioso da nulidade do contrato invocado, com a extração das consequências daí derivadas”.

4. A ré pronunciou-se nos seguintes termos:

“i) Deve o Tribunal considerar não ter sido celebrado qualquer contrato de cedência de energia e, caso assim não entenda, que tal contrato é válido;

ii) Caso assim não entenda, deve o Tribunal declarar que a falta de autorização por parte da EDP não é causa de nulidade do negócio, atentas as cominações previstas no artigo 177º do despacho normativo em causa nos autos ou, por fim, e caso também assim não entenda,

iii) deverá considerar-se que o regime da prescrição se sobrepõe ao regime da nulidade, não produzindo esta última os seus efeitos.”

5. Por seu turno, a autora pronunciou-se no sentido da procedência da suscitada nulidade, requerendo, em consequência, que seja “a Ré condenada a restituir à Autora a quantia de 120.889,05€ por força da nulidade do contrato celebrado entre ambas, acrescida de juros de mora (…)”.

6. Aos 29.10.2021 foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:

“A) Declara-se nulo o contrato inominado de cedência de energia eléctrica celebrado entre as partes e descrito nas alíenas M) a O) da matéria provada;

B) Condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia de €120.889,05 (…), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento;

C) Absolve-se a ré do demais peticionado.”

7. A Ré e a Autora apelaram da referida sentença (esta subordinadamente), tendo sido, a 10.10.2022, proferido pelo Tribunal da Relação acórdão no qual se julgaram improcedentes ambos os recursos.

8. A Ré (“Uniagri II”) interpôs recurso de revista excecional, ao abrigo do art. 672º, nº 1, o qual foi julgado improcedente por Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.2023.

9. No Acórdão mencionado em 8, foram elencadas, como questões a apreciar:

“III- QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER

Efeitos da declaração de nulidade do negócio, nos termos dos artigos 286º e 289º do código Civil. (Im)possibilidade de o devedor invocar, em seu favor, o instituto da prescrição extintiva previsto no artigo 310º, alínea g), do Código Civil. Hipótese de avocação da figura do abuso de direito na modalidade de supressio, nos termos do artigo 334º do Código Civil.”

10. É a seguinte a decisão da matéria de facto provada no Processo 567/20.7T8VFR.P1 [na medida em que possa ter relevância para o recurso de revista ora em apreço]:



(…)










(…)

(…)


***

IV. Da violação (ou não) do caso julgado

1. A sustentar a violação do caso julgado invoca a Recorrente, em síntese, que:

i) A questão da impossibilidade definitiva e não culposa da prestação deveria ter sido, e não foi, invocada na ação que correu termos entre as partes sob o nº 567/20.7T8VFR (na qual vieram a ser proferidos pelo Tribunal da Relação do Porto e por este Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos de, respetivamente, 10.10.2022 e de 16.11.2023) , e em que era demandada a ora Ré, ação essa na qual se discutiu o acordo celebrado entre as partes também agora em causa nos autos, acordo esse que assentava nos mesmos pressupostos – autonomização dos consumos de energia de cada uma das partes -, pelo que se verifica a violação do caso julgado, na vertente da preclusão da invocação, na presente ação, do mencionado meio de defesa, com o que foram violados os arts. 564º, al. c), 573º, 571º, nº 2, 576º, nº 3, 579º, 580º, 617º e 621º do CPC;

ii) Violação, pelo acórdão recorrido, da autoridade do caso julgado como antecedente lógico e necessário à parte dispositiva dos acórdãos (da Relação e do STJ) proferidos no Proc. 567/20;

iii) Da violação do caso julgado formado pelos fundamentos de facto;

iv) Alteração, pelo acórdão recorrido, em sentido desfavorável à recorrente, da al. d) dos factos não provados, o que viola o disposto no art. 635º, nº 5, do CPC.

Por sua vez, pugnando pela inexistência do invocado caso julgado, diz a Recorrida que:

- No âmbito do processo 567/20.7T8VFR a A./ Recorrente peticionou que a Ré/Recorrida fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 120.889,05€, correspondente à sua parte nos consumos de energia fornecida pela EDP entre 07/09/2002 e 7/0/2005 de que não reembolsou a Autora, tendo sido isso, apenas, o que aí foi discutido, sendo certo que a A. alegou em tal ação, como fundamento da sua pretensão, o regime que as partes teriam acordado até à concretização da autonomização dos consumos;

- Como segundo argumento alega a Recorrente que as duas decisões decidem diferentemente sobre a suscetibilidade de autorização pelas autoridades administrativas da partilha do espaço no posto de transformação, não havendo também qualquer contradição uma vez que a primeira das decisões não se debruça sequer sobre o assunto.

- À exceção da identidade dos sujeitos, que se verifica, não se encontram todavia verificados os demais requisitos do caso julgado: a identidade de pedido, que manifestamente não se verifica, e a identidade de causa de pedir, que também não se verifica atendendo a que na primeira ação a causa de pedir era o acordo entre as partes a vigorar enquanto a separação não se concretizasse e, na segunda, é o acordo relativamente à concretização da própria separação.

1.1. É de esclarecer que, aquando da interposição nos presentes autos, a 28.06.2023, do recurso de apelação, já havia sido, a 10.10.2022, proferido o Acórdão da Relação no Processo 567/20. Ainda que este, a essa data, não tivesse transitado em julgado (dado o recurso de revista excecional dele interposto, que veio a ser decidido a 16.11.2023), a Recorrente, nas alegações da apelação não aludiu, sequer, ao Processo 567/20, muito menos invocou a violação do caso julgado que poderia, segundo agora defende na revista, existir caso o STJ viesse a confirmar (como veio) o Acórdão da Relação proferido em tal processo.

Não obstante e como referido, aquando da interposição nos presentes autos do recurso de apelação, o Acórdão da Relação proferido nesse Processo 567/20 ainda não tinha transitado em julgado, nada impedindo a invocação, no presente recurso de revista, da alegada violação do caso julgado.

2. Começar-se-á por circunscrever, de forma sintética, o que está em causa em ambos os Processos:

As necessidades de abastecimento de energia elétrica das partes vinham tendo lugar através de um tansformador de 800 kw pertencente à A., e em nome de quem havia sido celebrado o contrato de fornecimento de energia elétrica com a EDP, transformador esse instalado em prédio da Ré, tendo as partes celebrado um acordo no qual, em síntese, se previa: a autonomização desse fornecimento, para o que a Ré cederia à A. determinado espaço para esta instalar um transformador de 25kw; até essa autonomização, o abastecimento da Ré seria efetuado através daquele transformador (de 800 kw), pagando a A. à EDP a totalidade da energia fornecida (à A. e à Ré), mas sendo depois reembolsada pela Ré do custo da energia correspondente ao consumo desta.

Na ação nº 567/20.7T8VFR, intentada pela A. contra a Ré, pedia aquela a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €120.889.05, acrescida de juros de mora, correspondente à parte (da Ré) nos consumos de energia fornecida pela EDP de 07.09.2002 a 07.03.2005, de que não reembolsou a A.

Na mencionada ação foi, em síntese, proferido acórdão (que confirmou a sentença), transitado em julgado, que considerou e decidiu: que o mencionado acordo, na parte em que previa o fornecimento de energia elétrica pela A. à Ré (através do transformador de 800 kw) consubstancia um contrato inominado de cessão de energia elétrica, que é nulo (por falta da necessária autorização pelas entidades administrativas competentes); condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de €120.889,05 (correspondente à energia consumida pela Ré, mas paga pela A. e de que esta não havia sido reembolsada), acrescida de juros de mora.

Na presente ação, a A. pediu, em síntese, que seja a Ré condenada a ceder-lhe, dentro da cabine elétrica, o espaço físico necessário e adequado por forma a permitir que a A. nele proceda à instalação de um transformador para seu abastecimento exclusivo ou, subsidiariamente, a suportar o custo da edificação de um Posto de Transformação destinado a tal fim; e, em ambas as situações, a pagar-lhe a quantia de 26.411,50€ correspondente à diferença de tarifas que paga à EDP em regime de baixa tensão especial (que teve que passar a utilizar) e a que pagaria se a energia lhe fosse fornecida em média tensão.

O Acórdão ora recorrido, confirmando a sentença proferida em 1ª instância, entendeu, em síntese, que a prestação a que a Ré se vinculou foi a da cedência de um espaço dentro da cabine elétrica e que essa obrigação se extinguiu por impossibilidade objetiva e não culposa do seu cumprimento por parte da Ré 1 .

Vem, agora, a A., ao abrigo do disposto no art. 629º, nº 2, al. a), do CPC, recorrer de revista do mencionado acórdão, invocando a violação do caso julgado formado pela decisão, entretanto transitada em julgado, proferida no mencionado Processo 567/20.7T8VFR.

3. De harmonia com o art. 619º, nº 1, relativo ao caso julgado material, do CPC/2013: “1. Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º.”

Por sua vez, nos termos dos arts. 580º e 581ª:

- Art. 580: “ 1 - As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado. 2 - Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. (…)”.

- Art. 581º: “1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. 2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. 3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. 4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

E, o art. 621º, que se reporta ao alcance do caso julgado, determina que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.”

De forma sintética, quanto ao caso julgado e autoridade do caso julgado, como é sabido, visam, essencialmente, “obstar à contradição prática” entre duas decisões – “decisões contraditórias concretamente incompatíveis” –, ou seja, que o tribunal decida de modo diverso sobre o direito ou questão concreta já definida por decisão anterior, evitando colocar o tribunal na situação de se contradizer, com a consequente impossibilidade de cumprimento de duas decisões contraditórias (ou de reafirmar o que já havia sido decidido), princípio esse que, como é assinalado pela doutrina e jurisprudência, se desenvolve numa dupla vertente: uma vertente negativa (exceção do caso julgado) e uma vertente positiva (autoridade do caso julgado).

A função negativa do caso julgado é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artigo 580.º n.ºs 1 e 2 do CPC), implicando a tríplice identidade a que se reporta o artigo 581.º, n.º 1 do CPC, a saber: dos sujeitos (quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica), do pedido (quando em ambas as causas se visa obter o mesmo efeito jurídico) e da causa de pedir (quando a pretensão deduzida em ambas procede do mesmo facto jurídico). Já a autoridade do caso julgado, por via da qual é exercida a sua função positiva, pode funcionar independentemente da verificação da aludida tríplice identidade, formando-se perante a concreta decisão que foi proferida, assim pressupondo a decisão de determinada questão que não poderá voltar a ser discutida.

O caso julgado e a sua autoridade, atenta a teoria da substanciação, deve ser aferida em função não apenas da concreta pretensão formulada, mas em função também da causa de pedir, que a delimita 2.

Como se diz no Acórdão do STJ de 05.12.2017, Proc. 1565/.8T8VFR-A.P1.S1, in www.dgsi.pt:

“(…), a identidade de pedido é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos (ainda que implícitos), do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objeto do direito reclamado.

E, assim, ocorrerá identidade de pedido se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional (implícita ou explícita) pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a ação, se pretende obter.

Por último, a identidade de causa de pedir verifica-se quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico concreto, simples ou complexo, de que emerge o direito do autor e fundamenta legalmente a sua pretensão, constituindo um elemento definidor do objeto da acção.”

E, conforme o art. 621º do CPC , “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga...”, mas só em exata correspondência com o seu conteúdo, não impedindo o preceito que, em novo processo, se discuta e dirima aquilo que a decisão não definiu [e que não tinha que definir].

Diz Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Março/Julho de 1996, Lex, pp. 338, que “[o] caso julgado da decisão possui também um valor enunciativo; essa eficácia de caso julgado exclui implicitamente toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada. Excluída está, desde logo, a situação contraditória (…). Além disso está também excluído todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que se encontra numa relação de exclusão com o que foi definido na decisão transitada. (…)”.

Como vem sendo entendido, deve recorrer-se à parte motivadora da sentença quando tal se mostre necessário para reconstruir e fixar o real conteúdo da decisão, isto é, para interpretar e determinar o verdadeiro sentido e o exato conteúdo da sentença em causa 3.

Quanto aos limites do caso julgado, já a doutrina e jurisprudência não se mostram uniformes 4, do que se dá conta no Acórdão do STJ de 05.12.2017, Proc. 1565/.8T8VFR-A.P1.S1, in www.dgsi.pt, em que se refere que, de acordo com uma tese mais restritiva, ele abrange a “decisão contida na parte final da sentença, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na pretensão reconvencional e limitada através da respetiva causa de pedir ("conceção restrita do caso julgado")”. Porém, aí se diz também, que: “Porém, “[a]tualmente, a posição jurisprudencial predominante reconhece, na esteira da doutrina defendida por VAZ SERRA (cfr. R.L.J. ano 110º, p. 232) - embora sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objetivos da sentença / a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão ("tese ampla") -, que, apesar da eficácia do caso julgado material incidir nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, a mesma alcança também a decisão daquelas questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado (isto é, os fundamentos e as questões incidentais ou de defesa que entronquem na decisão do pleito enquanto limites objetivos dessa decisão), em homenagem à economia processual e à estabilidade e certeza das relações jurídicas ("tese eclética")», aresto esse de cujo sumário consta que: “V - Objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado.

Quanto aos fundamentos de facto de uma decisão, em regra não estão abrangidos pelo caso julgado, não valendo por si mesmos, i.é., quando desligados da respetiva decisão, apenas valendo “enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta” - Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Março/Julho de 1996, p. 341.

Assim também Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, p. 697, “[o]s factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final”.

De acordo com J.P. Remédios Marques, in Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª Edição (2011), Coimbra Editora, p.689, apenas em situações marginais é que “os fundamentos de facto insítos na sentença final, só por si, podem adquirir, valor de caso julgado”, o que ocorrerá quando se verifica uma relação de prejudicialidade relativamente à decisão subsequente, autonomizando aquelas “que criam uma relação de prejudicialidade entre a decisão transitada e o objecto da acção posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação de uma acção posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objecto da primeira acção (…)5 .

No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit, p. 341 e segs.: “(…), isto é, também se verificam situações em que os fundamentos de facto, considerados em si mesmos (e, portanto, desligados da respectiva decisão), adquirem valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e um outro objecto (ou entre o efeito produzido e um outro efeito)”, destacando nessas conexões, designadamente: as situações de prejudicialidade (“quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação de um outro objeto de uma acção posterior”), mas não já quanto à decisão sobre um objeto dependente, que não constitui caso julgado quanto ao respetivo objeto prejudicial; certos fundamentos nas relações sinalagmáticas (exemplificando com as seguintes situações: se, num contrato de compra e venda, o comprador pede a entrega da coisa, a validade do contrato não pode ser questionada em posterior ação em que o vendedor peça o pagamento do preço; se o réu invoca a nulidade do contrato alegado pelo autor, não pode, depois, com fundamento nesse mesmo contrato, pedir a condenação do autor na prestação sinalagmática; se numa ação se definiu que o contrato-promessa é nulo, o réu dessa ação não pode, em ação posterior, requerer a execução específica do mesmo). Mais diz que, na hipótese de o caso julgado incidir sobre uma ação em que é formulado apenas um pedido parcial: “se a acção foi considerada procedente, a protecção dos interesses do demandado justifica que o caso julgado só abranja a parte apreciada, nada ficando decidido (em termos de procedência ou improcedência) quanto ao restante; - se a acão foi julgada improcedente, essa improcedência estende-se, com fundamento numa relação de prejudicialidade, à parte restante. A opção do autor pela formulação de um pedido parcial e a inconveniência de tal escolha justificam estas soluções”.

Por fim, a propósito dos efeitos que emanam de uma sentença transitada em julgado referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol I, pp. 800,801, em anotação ao art. 619º, que a apreciação de tais efeitos tem sido feita em torno dos meios de defesa que foram ou poderiam ter sido invocados pelo réu, valendo para esse efeito a norma preclusiva do art. 573º, nº 2, do CPC, citando os Acórdãos do STJ de 10.10.2012, Proc. 1999/21 e de 29.05.2014, Proc. 1722/12 e da RG de 28.01.21, Proc. 29/12, in www.dgsi.pt.

E José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 4ª Edição, Almedina, em anotação ao art. 629º, p. 749: “ com o caso julgado condenatório precludem definitivamente todos os meios de defesa invocáveis contra a pretensão deduzida, absorvendo-se neste efeito preclusivo extraprocessual a preclusão intraprocessual produzida quando, na contestação, não são invocadas as exceções que não sejam de conhecimento oficioso”.

4. Volvendo ao caso em apreço, facilmente se constata que, entre a ação dos presentes autos e a do Proc. 567/20, não se verifica a exceção do caso julgado, nem a violação da autoridade do caso julgado decorrente da decisão, transitada em julgado, proferida em tal processo, nem se verifica, também, a invocada preclusão de a Ré invocar, e de o Tribunal recorrido conhecer, da impossibilidade do acordo celebrado entre a Autora e a Ré na parte em que convencionaram: «proceder à “partilha” do posto de transformação a fim de virem a ser abastecidas de energia elétrica através de facturas a emitir de forma autónoma pelos consumos realizados por cada uma aproveitando as infraestruturas existentes e em pleno funcionamento” (nº 10 dos factos provados); ceder à A. “o espaço no edifício onde se situa o PT necessário para a autora aí instalar um transformador para o seu abastecimento exclusivo (…)” (nº 12 dos factos provados); e clª 4ª do Acordo mencionado no nº 13 dos factos provados, na parte em que acordam que a Ré (“Uniagri II”) cede à A. (“Uniagri”) o espaço necessário à instalação dentro da área da cabine elétrica de um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento.

A coincidência entre as ações fica-se pela identidade das partes e pela identidade dos factos provados referidos nos nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13. Porém, e ainda que entroncando num acordo “global” celebrado na mesma data, a identidade das ações aí se esgota, não existindo identidade de pedidos, nem de causa de pedir, nem sendo a decisão proferida pelo acórdão recorrido contraditória ou incompatível com a proferida no Proc. 567/20, nem esta constitui causa prejudicial ou necessária daquela, sendo o objeto das ações, definido pelo pedido e pela causa de pedir, perfeitamente distintos.

Com efeito:

O mencionado acordo é constituído por duas “partes” distintas: uma, em que se pretendia a autonomização dos consumos, para o que a Ré cederia à A. determinado espaço para o efeito; outra, e até que essa autonomização se verificasse, o pagamento do consumo (a partir desse mesmo transformador), seria repartido entre ambas as partes de acordo com os consumos de cada uma (a A. pagava a totalidade do consumo à EDP, mas depois seria reembolsada do consumo efetuado pela Ré).

Ora, o objeto (pedido e causa de pedir) de ambas as ações reporta-se precisamente a essas duas diferentes “partes” do acordo:

Na ação 567/20, o que foi pedido pela A. foi a condenação da ré a pagar-lhe a sua (da Ré) parte dos consumos, assentando a causa de pedir no acordo que previa o reembolso, pela Ré, dos mesmos e que se encontravam em dívida (sendo que a autonomização dos consumos ainda não se tinha verificado).

Nos presentes autos, como resulta do pedido formulado (indicado no relatório do presente acórdão), a presente ação tem por objeto a cedência do espaço, a prática dos atos necessários à autonomização dos consumos e o pagamento de uma indeminização pelos prejuízos sofridos pela A. pelas tarifas que teve que passar a pagar à EDP pela utilização de um regime de baixa tensão e que não pagaria se esta lhe fosse fornecida em média tensão, o que não se confunde, nem depende do objeto da ação 567/20 e do que aí foi decidido.

Por outro lado:

Na ação 567/20, entendeu-se no Acórdão da RP de 10.10.2022, que transitou em julgado, e em síntese que:

A cedência pela Ré à A. da energia elétrica (a partir do transformador de 800 kw referido em ambas as decisões da matéria de facto) consubstancia um contrato inominado de cedência de energia elétrica, através do qual, mediante o pagamento do respetivo custo, a Ré utilizava energia elétrica que era fornecida pela EDP à A. e que esse acordo, sem autorização da EDP ou das autoridades administrativas competentes, violou o disposto no art. 105º, nº 1, do Anexo II do despacho nº 16288-A/98, publicado na segunda série do DR nº 213, de 15.09.1998, padecendo de nulidade por incidir sobre objeto juridicamente impossível e por violar norma imperativa (art. 280º, nº 1, do Código Civil), acrescentando-se que:

“Na realidade, quando, com carácter imperativo, se prescreve que a energia elétrica apenas pode ser cedida gratuita ou onerosamente pelo cliente final a terceiro, mediante acordo do distribuidor vinculado ou, na falta deste, mediante autorização da autoridade administrativa competente, estabelecem-se condições estritas para que legalmente possa ser cedida a terceiro energia elétrica pelo cliente final.

Por isso, a nosso ver, em tal situação ocorre uma impossibilidade jurídica de cedência desse bem fora de tais condições e uma violação dessa regra imperativa, determinantes da nulidade do negócio mediante o qual o cliente final se obriga a ceder energia elétrica a terceiro sem observância das aludidas condições legais.

Atente-se que esta consequência jurídica não é excessiva relativamente ao terceiro que beneficia da cedência de energia por parte do cliente final nem o penaliza injustificadamente pois que é do conhecimento comum que o mercado de energia elétrica obedece a regras estritas e no caso em apreço, foi pela impossibilidade de observância imediata dessas regras que se continuou a usar o contrato de fornecimento de que a autora era beneficiária para ceder onerosamente à ré energia elétrica (vejam-se os factos provados em 3.3. 1.11 a 3.3.1.14) e, no caso concreto, deve ainda relevar-se que ré usou o transformador de 800kw que lhe foi cedido pela autora, mas protelou a cedência do espaço dentro da cabine elétrica para que a autora aí instalasse o transformador adequado às suas necessidades, impedindo a autonomização dos consumos (ponto 3.3.1.21) dos factos provados).”

Nos presentes autos, no acórdão recorrido, para além de considerações várias de ordem geral e de natureza jurídica, designadamente quanto à interpretação da vontade negocial e quanto ao cumprimento das obrigações, ao dever exigível a esse cumprimento e à impossibilidade do cumprimento, concluiu no sentido da impossibilidade não culposa do cumprimento por parte da Ré (cedência do espaço contratualizado), resultando do que dele consta que nada se decidiu ou apreciou que tivesse por objeto o que foi tratado no Proc. 567/20. O que, nos autos, se apreciou ou tratou foi do acordo na parte relativa à autonomização do fornecimento de energia, concretamente quanto à cedência, pela Ré, do espaço que as partes haviam acordado (e que o acórdão recorrido considerou ser o espaço dentro da cabine elétrica), em nada sendo a questão ora em apreço afetada, muito menos contrariada, pelo objeto do Proc. 567/20 e pelo que neste foi decidido, não tendo a decisão deste constante autoridade do caso julgado, na sua vertente positiva, que se imponha e /ou que impeça a discussão da possibilidade ou impossibilidade da cedência do espaço acordado.

É certo que no citado Proc. 567/20, a final da argumentação aduzida no Acórdão da Relação nele proferido, se disse (excerto que a Recorrente invoca) que “deve ainda relevar-se que ré usou o transformador de 800kw que lhe foi cedido pela autora, mas protelou a cedência do espaço dentro da cabine elétrica para que a autora aí instalasse o transformador adequado às suas necessidades, impedindo a autonomização dos consumos (ponto 3.3.1.21) dos factos provados).” Não obstante, tal afirmação, ou qualquer outra do mencionado acórdão, não tem, ao contrário do pretendido pela Recorrente, a autoridade do caso julgado, na sua vertente positiva, no sentido de que nele teria sido decidida a possibilidade do cumprimento da prestação pela Ré.

Como decorre do que se disse, a possibilidade ou impossibilidade de cedência do espaço, não era questão que constituísse o objeto da ação 567/20, que nele estivesse em discussão ou que devesse ter estado em discussão (já que não foi suscitada), questão que aliás não foi apreciada, tendo o acórdão nele proferido limitado-se à afirmação de que a cedência do espaço dentro da cabine elétrica foi protelada pela Ré. Nada se apreciou e, muito menos se decidiu, quanto à forma e possibilidade, designadamente face à EDP e às regras relativas à instalação e fornecimento de energia elétrica, de concretização da autonomização de consumos.

Tal afirmação, pelo citado acórdão, mais não consubstancia do que um argumento, simplesmente adjuvante, da premissa – nulidade do contrato de cedência de energia elétrica por violação de norma imperativa - esta sim a essencial, determinante da solução consagrada nesse aresto (assim acolhendo posição que a também aí A. havia defendido subsidiariamente). E a autoridade do caso julgado não é extensiva à argumentação, sendo-o, na interpretação mais lata do Acórdão do STJ de 05.12.2017, apenas “à decisão das questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado”.

Assim, ainda que se entendesse, tal como no acima citado Acórdão do STJ de 05.12.2017, que a eficácia do caso julgado material estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado”, no caso em apreço o excerto, acima transcrito e invocado pela Recorrente, do acórdão da Relação de 10.10.2022 não consubstancia antecedente lógico indispensável do que nesse acórdão foi decidido.

4.1. Nas conclusões 23ª a 28ª, a Recorrente alega que os nºs 30 e 28 dos factos provados: “25. Esta factualidade contraria a decisão proferida e a fundamentação jurídica ínsita à mesma: “A Ré está impossibilitada de cumprir a obrigação como assumida (mera cedência do espaço), uma vez que a Direcção Geral de Energia não permite o uso em simultâneo por entidades diferentes da cabine exigindo, na prática, a realização das obras necessárias à transformação da cabine em três espaços autónomos e independentes.”, que “26. A conclusão extraída pelo Acórdão recorrido contradiz as premissas de facto julgadas provadas (cfr. facto provado 10) (…)”, que ocorreu erro de julgamento por se retirar que é possível o cumprimento da obrigação, o que determina a violação do caso julgado formado pelos fundamentos de facto, “que prevalece sobre o fundamento jurídico” – arts. 619º, 620º e 635º, nº 5 ou, subsidiariamente, nulidade do acórdão, prevista no art. 615º, nº 1, al. c), do CPC, por os fundamentos estarem em oposição com a decisão.

No âmbito deste recurso de revista não cabe apreciar do (eventual) erro de julgamento, mas sim e apenas da violação, ou não, do caso julgado e, em eventual caso afirmativo, daí retirar as consequências necessárias.

A Recorrente parece entender que a decisão recorrida violaria o caso julgado relativo à decisão da matéria de facto.

Se a Recorrente se reporta, como parece, à “discrepância” entre a matéria de facto provada nos presentes autos e o enquadramento jurídico feito pelo acórdão recorrido (no sentido de que, daquela, deveria ter sido retirada outra consequência jurídica), estaríamos perante eventual erro de julgamento, o que não constitui fundamento da admissibilidade do recurso de revista ao abrigo do art. 629º, nº 2, al. a), do CPC, e não cabe no seu âmbito, o mesmo se dizendo quanto à nulidade, invocada subsidiariamente, do acórdão prevista art. 615º, nº 1, al. c), do CPC).

E o mesmo se diga caso, porventura, a Recorrente se reporte à fundamentação de facto da decisão proferida no Proc. 567/20, para além de que a autoridade do caso julgado não é extensível aos seus fundamentos de facto, não se estando perante qualquer situação das que, excecionalmente, poderia justificar essa extensão. A decisão proferida em tal processo não é prejudicial ao caso em apreço nos autos, nem aliás nunca tal foi invocado, nem defendido pela Recorrente tal como configurou o objeto da presente ação.

Diga-se ainda que não estão, nos autos, em causa as consequências da nulidade do acordo de cedência, pela A. à Ré, de energia elétrica, determinada na ação 567/20 (designadamente quanto à “contraprestação” da Ré de cedência do espaço para instalação de um transformador para utilização pela A.), ação essa que não foi sequer invocada nos presentes autos (apenas o tendo sido no recurso de revista para efeitos da invocação da alegada violação do caso julgado). O que, nos presentes autos, esteve em discussão foi apenas a possibilidade, ou não, de a Ré cumprir a prestação de cedência do espaço a que se havia vinculado, tendo o acórdão recorrido decidido no sentido da impossibilidade objetiva e não culposa desse cumprimento. Aliás e se, porventura, entendida a obrigação da Ré de cedência do espaço como “contraprestação” da obrigação da A. (de cedência de energia elétrica), nem os efeitos da nulidade do acordo de cedência de energia elétrica seriam suscetíveis de reverter em favor da A.

4.2. Quanto à preclusão do conhecimento, nos autos, da impossibilidade de cumprimento da prestação por tal, constituindo exceção perentória, não ter sido invocada pela Recorrida na ação 567/20:

Se é certo que, nos termos do art. 573º, nº 1, do CPC, toda a defesa deve ser deduzida na contestação e que a Ré, na ação 567/20, não invocou a impossibilidade não culposa do cumprimento da prestação, certo é, também e como decorre do que já se foi dizendo, que não tinha que o fazer.

Com efeito, o que estava em discussão nesse processo era tão-só o pagamento/reembolso, pela Ré à A., da energia elétrica que aquela consumiu (de 07.09.2002 a 07.03.2005), mas que foi por esta paga, e não já a questão da cedência do espaço e a concretização da autonomização dos consumos, pelo que não se vê que a impossibilidade de cumprimento da prestação (cedência do espaço) pela Ré constituísse facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da A. ao pagamento, pela Ré, dos consumos da responsabilidade desta que devesse ser por ela (Ré) invocado nos termos do art. 342º, nº 2, do CC e 573º, nº 1, do CPC.

5. Por fim, diz a Recorrente que o acórdão recorrido alterou, em sentido que lhe foi desfavorável, a al. d) dos factos não provados, o qual não havia sido impugnado no recurso de apelação, o que violaria os efeitos do julgado conforme disposto no art. 635º, nº 5, do CPC.

A Recorrente não explica por que razão, ou em que medida, a alteração introduzida à al. d) dos factos não provados lhe seria desfavorável.

De todo o modo:

Da alínea d) dos factos dados como não provados na sentença da 1ª instância constava o seguinte: “d)- A sociedade Ré teve conhecimento da elaboração e posterior entrega na EDP por parte do técnico da Autora de dois projectos autónomos para dois postos de transformação”, o qual foi aí justificado da seguinte forma:

“No que se reporta ao facto não provado sob a al. d):

Este facto foi dado como não provado por insuficiência de prova sobre o mesmo. De facto, a testemunha AA declarou que o técnico da Autora elaborou e entregou na EDP um projecto mas não apresentou qualquer facto que levasse a concluir que a sociedade Ré era conhecedora.”

O Tribunal da Relação alterou a mencionada alínea, que passou a ter a seguinte redação: “d) Os projectos apresentados conforme matéria assente em 16) a 18) espelhavam a solução técnica acordada, com o qual o representante da R. e o seu engenheiro técnico concordaram na reunião realizada em 25/02/2003 com técnicos da DREN, na sede desta.

No acórdão recorrido, para além do mais que dele consta, foi referido o seguinte 6:

“(…), sempre na situação decidenda não está em causa se não uma confirmação do juízo probatório da 1ª instância, como resulta da consideração agora do facto não provado sob d) (que se reconduz ao aduzido sob 23º da petição inicial) e da respectiva fundamentação.

Ora, aduzia a A. que a solução de partilha ou divisão do PT encontrada, nos moldes dos pedidos apresentados junto da DREN, foi consensual, sendo que os projectos apresentados espelhavam a solução técnica acordada, com o qual o representante da R. e o seu engenheiro técnico concordaram na reunião realizada em 25/02/2003 com técnicos da DREN, na sede desta… É o que não foi havido como provado na sentença, antes se inferindo da totalidade do julgamento de facto, que se houve tal matéria por indemonstrada e correctamente…

A sentença, como qualquer acto jurídico não negocial, ex vi do art. 295º do CC está sujeita a interpretação, de acordo com as regras gerais aplicáveis aos negócios jurídicos.

Ora, a articulação da matéria de facto demonstrada, na redação que mereceu, a análise da motivação e a ponderação ademais do facto não provado sob d), são demonstrativos da não aquisição probatória em 1ª instância de que a Ré tenha acordado ou anuído à separação física nos moldes que, instruídos e requeridos pela Autora apenas, vieram a ser deferidos pela DREN…

E não se convoque, como faz a recorrente, com o relevo indiciário da comunicação pela DREN assente sob 26 dos factos assentes… Com efeito, o segmento ali inscrito, “com a anuência do V/representante, a separação física do P.T. com vista à autonomização das duas entidades consumidoras” não tem o significado probatório de demonstrar que a anuência do representante da Ré o foi para os termos do projecto executado e apresentado apenas pela Autora… Na verdade, perfeitamente compatível aquele segmento e o ajuizado “corolário lógico” com a mera aceitação de uma separação física em moldes não imediatamente definidos/apresentados… De resto, evidencia a matéria provada também que a Ré pôs em causa os poderes de vinculação do técnico que encarregou de acompanhar junto da DREN o processo de execução do acordo inicial…

Tudo para concluir, como o fez o tribunal recorrido, pela falta de indiciação bastante ou suficiente de que os projectos deferidos ou aprovados tenham sido resultado de uma concretização reciprocamente assumida do acordo primeiro.

Impõe-se já uma reformulação/alteração da matéria de facto em correspondência com o erro e decorrente insuficiência detectados, muito embora sem o conteúdo (e decisivamente sem o sentido ou significado, desejavelmente a expurgar da matéria de facto) pretendido bem assim pela recorrente”, passando a indicar os pontos da matéria de facto com as alterações introduzidas.

A fundamentar a alegada violação do disposto no art. 635º, nº 5, do CPC, diz a Recorrente que:

“Não se pode considerar não provado que os projetos submetidos não mereceram a concordância do representante da Recorrida e o seu engenheiro técnico na reunião realizada em 25/02/2003, por essa prova ter sido produzida e não se achar impugnada.

Consta do facto provado 26:

“ A DREN enviou carta à Ré posterior a 18.06.2004, que esta recebeu, do seguinte teor:

ASSUNTO: P.T. 1, tipo cabine, de 800 KVA; Instalação de Utilização em B.T., em ..., concelho de ....

Referindo-nos à carta de V. Exas. datada de 18 de Junho de 2004, cumpre-nos informar que o referido projecto foi-nos enviado, de acordo com a tramitação imposta pela legislação em vigor, pela EDP Distribuição – Energia, S.A., acompanhado por carta datada de 19-02-2004, com a indicação de ser o requerente a UNIAGRI II S.A..

De acordo com a reunião havida em 25-02-2023, em que ficou acordada, com a anuência do V/representante, a separação física do P.T. com vista à autonomização das duas entidades consumidoras, parece-nos, a recepção dos projectos acima referidos, ser o corolário lógico para a resolução do assunto.”

O Acórdão recorrido conheceu oficiosamente de questão em termos desfavoráveis à Recorrente, em violação do caso julgado (art.635.º/5, do CPC), pelo que deve ser revogada alteração efetuada ao ponto d) e ser mantida a decisão da 1.ª Instância.”

A discordância da Recorrente assenta, ou parece assentar, na circunstância de, em seu entender, do nº 26 dos factos provados se extrair que a sociedade Ré e/ ou o seu representante seriam conhecedores das soluções apresentadas. Ora, relembra-se que o que está em causa, e é fundamento do recurso de revista, não é o eventual erro da decisão da matéria de facto, mas sim a violação do caso julgado, para além de que o Supremo Tribunal de Justiça não conhece em sede de matéria de facto (arts. 682º, nº 2, e 662º, nº 4, do CPC), salvo nas situações excecionais previstas no art. 674º, nº 3, do mesmo, nas quais não se enquadra o caso em apreço.

Mas avançando.

Dispõe o art. 635º, nº 5, do CPC, que “5. Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.7

A decisão da matéria de facto é passível de impugnação perante a Relação, competindo, na verdade, à parte, a sua impugnação se dela discordar – art. 640º do CPC -, pelo que, como regra geral e atento o princípio do dispositivo, designadamente em matéria recursória, não pode a Relação, por sua iniciativa, alterar a decisão da matéria de facto que não seja objeto de impugnação pelas partes.

Tal regra comporta todavia as exceções previstas no art. 660º, nº 2, al. c), do CPC e que são de conhecimento oficioso: quando a Relação repute a decisão da matéria de facto como deficiente, obscura ou contraditória, ou quando considere indispensável a sua ampliação8. Também em caso de alteração da decisão da matéria de facto decorrente de anulação ou ampliação, deverá o tribunal alterar outra, ainda que não impugnada, por forma a evitar contradições – cfr. nº 3, als. b) e c), do citado art. 660º. E, o mesmo, se a necessidade de tal alteração decorrer de alteração operada por via da impugnação de outra aduzida pela parte.

E “permitindo a lei o mais, permite também o menos”. Ou seja, quer com isso dizer-se que nada impede que a Relação, oficiosamente, altere a redação de determinado ponto da matéria de facto quando repute necessária essa alteração com vista à sua retificação ou a um melhor esclarecimento ou explicitação da decisão, designadamente em face ou em consonância com a restante factualidade e/ou com a alegação da parte, sem, contudo, lhe alterar o seu sentido essencial (não poderá, por exemplo e fora das situações em que tal lhe seja permitido, dar como não provado um facto que foi dado como provado ou o inverso).

No caso, a alteração da redação, pela Relação, da al. d) dos factos não provados mais não consubstancia do que uma melhor explicitação do que já constava da al. d) dos factos não provados que surge na decorrência da impugnação aduzida pela Recorrente quanto aos nºs 16 e 17 dos factos provados, da reapreciação que a Relação fez quanto aos mesmos e das alterações que introduziu à matéria de facto provada e tendo, também, em conta a fundamentação aduzida pela 1ª instância e a posição que era defendida pela Recorrente e, sendo certo, também, que a alteração, no essencial, não contradiz, nem se afasta do que havia sido dado como não provado pela 1ª instância. Com efeito, o essencial do facto dado como não provado pela 1ª instância na al. d) tinha por objeto o não conhecimento pela Ré dos dois projetos autónomos apresentados na EDP, o que no essencial se mantém na redação dada pela Relação, da qual resulta que o representante da Ré não tinha conhecimento dos projetos apresentados (e mostrando-se irrelevante o conhecimento ou acordo por parte do engenheiro técnico da Ré).

Improcede, assim e também nesta parte, a invocada violação do caso julgado.

5. Ou seja, e concluindo, não se verifica a invocada violação, pelo acórdão recorrido, do caso julgado formado pela decisão, transitada em julgado, proferida no Processo 567/20.7T8VFR e, por consequência, não se verifica o pressuposto de admissibilidade do recurso de revista previsto no art. 629º, nº 2, al. a), do CPC.


***

V. Decisão

Em face do exposto, não se admite o recurso de revista, interposto pela Autora ao abrigo do disposto no art. 629º, nº 2, al. a), do CPC, por não verificação da invocada violação do caso julgado.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 04.07.2024

Paula Leal de Carvalho (relatora)

Isabel Salgado

Ana Paula Lobo

________




1. Em tal Acórdão referiu-se, para além do mais, o seguinte:

  «A vontade das partes no negócio celebrado tal como expressa no texto apenas vai referida à cedência, dentro da cabine elétrica da Recorrida, do espaço necessário à instalação de um transformador “independente”.

  (…)

  Ora, quando se atente na prestação a que a Ré se obrigou, a de ceder o espaço necessário à instalação dentro da cabine eléctrica de um transformador que satisfaça as necessidades de funcionamento da Autora, esta mostra-se efectivamente impossível, por insusceptibilidade de autorização pelas autoridades administrativas de uma tal “partilha”.

  (…)

  Na situação decidenda, a exposição que antecede serve a demonstração da verificação, como adquirida na decisão recorrida, de uma situação de impossibilidade objectiva não imputável de cumprimento.

  Ocorre, assim, como se decidiu, uma impossibilidade objectiva da prestação, por causa legal, prevista no artigo 790º, n.º 1, do CC, impossibilidade essa geradora de extinção da obrigação da sociedade Ré.

  (…)

  (…), com o que se concorda absolutamente com o julgamento de improcedência total da acção, no que tange aos pedidos principal, de cumprimento de obrigação extinta e indemnização e de subsidiário, de execução de prestação indemnizatória substitutiva da principal, por extinção desta.”↩︎

2. Cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 692 e segs.

3. Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª Edição, pp. 754/755 e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pp. 696/697 e Acórdãos do STJ de 12.03.2014, Processo 177/03.3TTFAR.E1.S1 e de 01.07.2021, Proc. 726/15.4T8PTM.E1.S1, in www.dgsi.pt .

4. Cfr., sobre o tema, designadamente:

- Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 695 e segs, que entendem que, sem prejuízo do recurso aos fundamentos da sentença para fixação do sentido e alcance da decisão final, os fundamentos (de facto e de direito), não são abrangidos pela eficácia do caso julgado.

- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Março/Julho de 1996, Lex, pp. 338 e segs, adotando uma conceção mais “ampla” do caso julgado: “Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, conquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.” Já quanto aos fundamentos de facto, fora das situações de prejudicialidade e sem prejuízo do seu valor interpretativo, considera que o caso julgado a eles não se estende (pp. 340,341).

- J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa á Luz do Código Revisto, 3ª Edição, Coimbra Editora, pp. 687 e ss.

5. Assim também António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol I., 3ª Edição, Almedina, p. 127.

6. O sublinhado consta da decisão recorrida.

7. De acordo com o Acórdão do STJ de 04.10.2018, Proc. 588/12.3TBPVL.G2.S1, in www.dgsi.pt, assim sucede com a decisão da matéria de facto que não tenha sido impugnada, aresto também citado por António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª Edição, Almedina, p. 138, nota 243 ao art. 635º do CPC.

8. Devendo a Relação, se os meios de prova lhe estiverem acessíveis, proceder à apreciação e introdução na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas – cfr. António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª Edição, Almedina, p. 358.