Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
50/21.3JELSB.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PENA DE EXPULSÃO
MEDIDA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
CRIMINALIDADE ALTAMENTE ORGANIZADA
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O acórdão recorrido acentua, e bem, nos fatores relativos à execução do facto, para determinação da pena, o peso muito relevante do tipo e quantidade do produto estupefaciente transportado pelo arguido (92 placas de cocaína, com o peso liquido de 93.012,85g), a sua atuação conjunta com outros indivíduos para, numa operação de âmbito internacional, com meios sofisticados, por via marítima, introduzirem, a partir da América do Sul, uma larga quantidade de cocaína na Europa e o dolo direto e intenso com que atuou, para lograr obter para si um lucro económico (cerca de €12 000,00), à custa da saúde pública e de todo um outro conjunto de bens jurídicos pessoais, dos virtuais consumidores e da vida em so­ciedade.
II - O STJ subscreve também a valoração do acórdão recorrido sobre a importância dos “correios de droga”, trazendo à colação os acórdãos deste STJ, de 09-04-2015, de 06-02-2013 e de 15-01-20141, bem como a posição do arguido (…)- “correio de droga” - como peça fundamental na execução do ilícito e na cadeia delitiva, cuja responsabilidade criminal não pode ser desvalorizada, como pretende o ora recorrente ao apresentar-se como «um mero “correio de droga”.
Efetivamente, como o STJ vem afirmando, repetidamente e desde há muito tempo, os “correios de droga” são uma peça fundamental no tráfico de estupefacientes concorrendo, de modo direto, para a sua disseminação, pelo que não merecem um tratamento penal de favor.
III - Perante as fortes exigências de prevenção geral e especial e a elevada culpa do arguido, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22-01, com referência à Tabela I-B anexa ao citado diploma, o STJ conclui que a pena de 7 anos de prisão fixada pelo tribunal a quo, respeita as finalidades da punição, sem ultrapassar a medida da culpa, em integral obediência ao disposto nos arts. 18.º, n.º 2, da CRP e 40.º e 71.º do CP.

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Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 50/21.3JELSB.S1

Recurso Penal

Acordam, em Audiência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, do Juízo Central Criminal ... - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca …, foi submetido a julgamento, sob acusação do Ministério Público, o arguido AA, devidamente identificado nos autos, imputando-se-lhes a prática, em autoria material, de um crime tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, com referência à Tabela I-B anexa a este diploma, mais requerendo o Ministério Público que fosse imposta ao arguido a pena acessória de expulsão do território nacional, p. e p. pelo art. 34º, nº 1, do mesmo diploma legal, por referência ao disposto nos arts. 151º, nº 1 e 135º da Lei 23/2007, de 4 de julho.

2. Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Coletivo, por acórdão proferido a   18 de janeiro de 2022, julgou a acusação procedente, por provada e, em consequência, decidiu, designadamente, condenar o arguido AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º, nº 1 do DL 15/93, de 22/01, na pena de sete anos de prisão e, ao abrigo do disposto pelo art. 34.º, n.º 1 do DL 15/93, de 22/01 e do art. 151.º, n.º 1, da Lei 23/07, de 4/7, condenar o mesmo arguido na pena acessória de expulsão, pelo período de cinco anos, a executar nos termos do disposto no nº 4 do art. 151.º da Lei 23/07, de 4/7.

3. Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso para o “Tribunal da Relação ...” o arguido AA, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):

1. O recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na modalidade de um mero ´correio de droga´.

2. No caso vertente resulta provado que o recorrente se encontra inserido social e familiarmente.

3. Os factos encontram-se circunscritos a um reduzido espaço temporal.

4. Os factos dados como provados e as conclusões permitem efetuar um juízo de prognose favorável quanto ao recorrente.

5. Um tal quadro, na sua globalidade, aponta decididamente para uma situação de eventual diminuição da ilicitude, sendo que os factos se encontram limitados num reduzido espaço temporal.

6. Importa não esquecer a forte presença e prova de inserção social e familiar, bem como de hábitos de trabalho.

7. A pena sofrida para o comportamento global do recorrente, é eventualmente desproporcionada e desconforme com a jurisprudência e peca por excessiva.

8. O recorrente confessou os factos e colaborou com a justiça, é um ´mero correio de droga.

9. Deveria ter sido optada pela aplicação ao recorrente de pena de prisão próxima do limite mínimo legalmente considerado, uma vez que o recorrente nunca tocou na droga e não tem antecedentes criminais.

10. Com a escolha e determinação da pena no sentido referido, estariam alcançadas as finalidades da pena ao caso em apreço, bem como a prevenção geral e especial aqui exigida.

11. A fixar-se um juízo de censura jurídico-legal haverá que ser ponderado o futuro do agente numa perspetiva de contribuição para a sua recuperação como individuo dentro dos cânones da sociedade.

12. Abonaram ainda a favor do recorrente o bom comportamento prisional, inserção familiar.

13. A escolha e determinação da pena no sentido referido, estariam alcançadas as finalidades da pena ao caso em apreço, bem como a prevenção geral e especial aqui exigida.

Normas violadas:

Artigo 21º nº. 1 do DL 15/93, de 22/01 porquanto ao contrário do que sucedeu, o tribunal deveria ter condenado o recorrente em pena de prisão próxima do limite mínimo legalmente considerado.

Nestes termos, deve o presente recurso obter provimento, por provado, condenando-se o arguido em pena de prisão próxima no mínimo legalmente previsto.

           

4. Por despacho de 24-2-2022, a Ex.ma Juíza de Direito decidiu, nomeadamente, que “considerando que o recorrente não coloca em causa a apreciação da matéria de facto, o recurso será apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto pelas disposições conjugadas dos arts. 427º, 428º e 432º, nº 1, al. c) todos do Código de Processo Penal”.

5. O Ministério Público no Juízo Central Criminal ... respondeu ao recurso, pugnando pela sua rejeição e confirmação em todas as suas vertentes.

6. A Ex.ma Procurador-Geral-Adjunta, neste Supremo Tribunal, emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder, mantendo-se a decisão recorrida.

7. Cumprido o disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não houve resposta.

8. Colhidos os vistos, foram os autos presentes à Conferência.

II Fundamentação

9. Com relevo para a decisão do recurso, consigna-se no acórdão recorrido (transcrição):

Factos provados:

1 - Em data não apurada, anterior a 27/01/2021, o arguido foi contactado por indivíduos cujas identidades se desconhecem, que lhe propuseram que transportasse consigo cocaína a bordo de um navio, da ... para a Europa, a troco do recebimento de 50 milhões de pesos … (cerca de €12.000).

2 - Ainda de acordo com esse projecto, o arguido devia lançar o produto estupefaciente ao mar, em coordenadas previamente indicadas, a fim de ser recolhido por outra embarcação e transportado para terra.

3 - O arguido aderiu a esse plano.

4 - Na prossecução desse projecto, no dia 28/01/2021, em …, na ..., o arguido embarcou num bote, juntamente com indivíduos cujas identidades se desconhecem.

5 - E rumou até junto do navio cargueiro A.…, com pavilhão de … e registos … e …, que ali estava ancorado.

6 - Então, de forma em concreto não apurada, o arguido logrou ingressar nessa embarcação.

7 - Nesse navio, por forma também não apurada, foram introduzidas quatro mochilas de cor preta que continham 92 placas de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 93.012,85g.

8 - Essas mochilas foram colocadas no compartimento da bomba de água dos tanques de balastro (pump room), o qual foi fechado com um cadeado

9 - Por seu turno, o arguido escondeu-se no interior do acesso ao guindaste nº 1, a estibordo do navio, junto à proa.

10 - Ao arguido foi entregue diverso material para realizar a viagem para a Europa e atirar a cocaína ao mar, designadamente, uma bomba de ar, uma corda de nylon, um alicate de corte, um telefone satélite, um telemóvel e diversos alimentos.

11 - Na mesma data, pelas 11h50m, o A.… zarpou com destino à Europa.

12 - No dia 12/02/2021, cerca das 15h30m, o aludido navio navegava nas coordenadas Lat. 42º.00N – Long. 011º.10 W, em águas territoriais portuguesas.

13 - Nessa altura a embarcação foi abordada pela Marinha Portuguesa.

14 - E o navio dirigido para o Porto de …, onde ancorou no dia 13/02/2020, pelas 10h00.

15 - Nassa data, pelas 11h30m, o arguido foi encontrado escondido no interior do referido acesso ao guindaste n.º 1.

16 - O arguido encontrava-se indocumentado e tinha consigo um telefone satélite, um carregador solar para esse telefone, um telemóvel e um carregador para o mesmo, da marca …, uma bomba de ar, uma corda de nylon, um alicate de corte e diversos géneros alimentícios (conservas, chocolates e bolachas).

17 - Cerca das 12:00 horas foram encontradas, a meia nau do navio, a bombordo, na aludida pump room, fechada com um cadeado, as quatro mochilas referidas no ponto 7), envoltas em cordas de nylon e, cada uma delas, envolta numa câmara de ar.

18 - Os telefones mencionados no ponto 16) serviam para o arguido contactar com as pessoas que lhe entregaram a cocaína.

19 - O arguido nasceu na … e é cidadão desse Estado.

20 - O arguido não tem familiares, amigos ou emprego em Portugal, onde apenas se deslocou para efectuar o transporte de estupefacientes.

21 - O arguido agiu com o propósito concretizado de receber e transportar o supracitado produto estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conhecia, da ... para a Europa, com o fito de o entregar a terceiros, a troco de uma quantia monetária.

22 - O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo a sua conduta era proibida e punida por lei.

23 - O arguido, natural de …, …, é o mais de velho de fratria de dois.

24 - Fruto de relação entre casal de humilde condição socioeconómica, os pais separam-se após o seu nascimento, tendo o arguido ficado entregue aos cuidados da progenitora, que veio, entretanto, a manter nova relação conjugal, da qual nasceu a irmã mais nova do arguido, com vinte e dois anos de idade.

25 - O arguido estabeleceu um relacionamento próximo com o padrasto que, juntamente com a mãe, lhe forneceram um modelo educacional normativo, não obstante a humilde situação socioeconómica da família.

26 - A família, residente num meio sócio comunitário desfavorecido e conotado com problemáticas de carência económica, subsistia com recurso às actividades laborais do padrasto, proprietário de um pequeno estabelecimento comercial de …, e da mãe, vendedora de artigos de …, junto das praias da cidade.

27 - No plano escolar o arguido ingressou no sistema de ensino primário em idade regulamentar, após ter frequentado uma creche.

28 - Manteve aproveitamento escolar e concluiu o 12º ano de escolaridade aos dezassete anos.

29 - Após deixar a escola iniciou actividade laboral numa oficina de …, onde trabalhou, sem vínculo, cerca de um ano e meio.

30 - Posteriormente, trabalhou num cais/doca de embarcações navais, inicialmente como … (competindo-lhe …), e depois como ….

31 - Emigrou para a ... por volta dos 21 ou 22 anos de idade.

32 - Inicialmente vivenciou dificuldades a nível económico, tendo pernoitado nas ruas e espaços devolutos durante vários meses.

33 - Nesse período subsistiu predominantemente com recurso a trabalhos esporádicos de … e … para um particular, proprietário de uma loja de ....

34 - Mais tarde, foi admitido como empregado de loja/estafeta, actividade que manteve durante cerca de dois anos, tendo sido dispensado do posto de trabalho na sequência do encerramento do negócio.

35 - Veio então a dedicar-se ao …, em veículos motorizados, actividade que desenvolveu por conta própria e informalmente, tendo para o efeito adquirido dois veículos motorizados.

36 - Durante esse período residiu em quartos arrendados, em hospedarias e pensões.

37 - Abandonou essa actividade depois de ter sido admitido como …, numa empresa de …, onde trabalhou até Agosto de 2020, altura em que a actividade foi suspensa por determinação das autoridades de saúde e politicas, na sequência das restrições impostas em razão da pandemia COVID 19.

38 - Manteve situação de desempregado desde então, somente interrompida com trabalhos esporádicos na venda …, em ….

39 - Em território … permaneceu em situação irregular, nunca tendo diligenciado no sentido de obter autorização de residência no país.

40 - Manteve uma relação de namoro com conterrânea entre os dezoito e os vinte e um anos, que terminou na sequência da sua deslocação para a ..., e da qual nasceram dois filhos, ambos entregues aos cuidados maternos desde o nascimento e com os quais o arguido não mantém relação próxima.

41 - Mantém, desde há cerca de dois anos e meio, uma relação de união de facto com uma cidadã …, da qual nasceu um filho, com oito meses, o que sucedeu quando o arguido já estava detido à ordem destes autos.

42 - Na ... residia com a companheira em habitação arrendada, situada em …, subsistindo o agregado com recurso à actividade desenvolvida irregularmente pelo arguido, na venda … em … e pela companheira, trabalhando como … num ….

43 - A companheira veio a abandonar a antiga morada onde residia com o arguido tendo-se mudado, juntamente com o filho do casal, para casa da sua mãe, na mesma cidade de ….

44 - O arguido está preso preventivamente à ordem dos presentes autos desde 15/2/21.

45 - Em meio prisional tem mantido um comportamento normativo e adequado às regras instituídas, não se verificando sanções disciplinares, e, desde 13/4/21, que mantém integração laboral trabalhando na cozinha do estabelecimento prisional.

46 - Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.

47 - Confessou a prática dos factos e declarou-se arrependido por assim ter procedido.

10. Âmbito do recurso

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.[1]

Face às conclusões da motivação do recorrente AA a questão a decidir respeita à dosimetria da pena aplicada, que este considera excessiva.

11. Apreciando.

11.1. Previamente ao conhecimento do objeto do recurso, impõe-se fazer uma breve consideração sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça para o conhecimento do recurso, na medida em que o arguido dirigiu o mesmo ao Tribunal da Relação ..., mas a Ex.ma Juíza determinou a sua remessa ao Supremo Tribunal de Justiça por o considerar competente para o conhecimento do recurso interposto pelo arguido.

O direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal, tendo passado a constar expressamente, na 4.ª revisão constitucional (1997), do art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República, com o aditamento do inciso «incluindo o recurso».
O que esta norma constitucional não consagra é a garantia de um duplo grau de recurso ou de um triplo grau de jurisdição, em relação a quaisquer decisões condenatórias.
O atual Código de Processo Penal, na sua versão originária, estabelecendo como pedra de toque para a determinação da competência do tribunal de recurso a natureza do tribunal recorrido, atribuía a competência ao Tribunal da Relação para conhecer das decisões de tribunais singulares e a competência ao Supremo Tribunal de Justiça para conhecer das decisões de conhecer das decisões dos tribunais coletivos e do júri.  
Perante as críticas desta solução legislativa, no que respeita ao recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça para conhecer das decisões dos tribunais coletivos e do júri, na medida em que eliminaria a garantia de recurso relativamente à reapreciação da matéria de facto por um tribunal de recurso, foram introduzidas alterações no regime dos recursos pela  Lei n.º 59/98 de 25 de agosto e pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, estabeleceram-se novas vias de recurso para a Relação e para o STJ.
A Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, alterou o texto da alínea c), n.º 1, do art.432.º do C.P.P. e aditou-lhe n.º 2.
O art. 432.º do Código de Processo Penal, que estabelece taxativamente os casos em que tem lugar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, passou a estabelecer, designadamente:
«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
 (…)
      c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;
(…)
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º.».[2]

A revisão do Código Penal de 2007, em função do estabelecido no n.º 2 do artigo 432.º do CPP, evidencia claramente a obrigatoriedade do recurso per saltum, desde que o recorrente tenha em vista a reapreciação de pena aplicada em medida superior a 5 anos de prisão e vise exclusivamente a reapreciação da matéria de direito.
A Relação só tem competência para o conhecimento do recurso de pena aplicada em medida superior a 5 anos de prisão se o recorrente, ao provocar a reapreciação do caso penal, quiser abranger a própria matéria de facto.

No caso em apreciação, o objeto do recurso é um acórdão condenatório, proferido por um tribunal coletivo, em que foi aplicada ao recorrente uma pena de 7 anos de prisão – e a essa dimensão se deve atender para definir a competência material –, pelo que, estando em equação uma deliberação final de um tribunal coletivo, visando o recurso apenas o reexame de matéria de direito (circunscrita à redução da medida da pena aplicada), cabe efetivamente ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer do recurso.

Conclui-se assim que, neste caso, o recurso interposto pelo arguido é direto, per saltum, sendo o Supremo Tribunal de Justiça o competente para o conhecer, nos termos do art. 432.º, n.ºs 1, alínea c) e 2, do Código de Processo Penal.

11.2. O arguido AA defende que é excessiva a pena de 7 anos de prisão que lhe foi aplicada pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do DL nº 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I-B anexa ao citado diploma, pelo que peticiona outra, próxima do mínimo legalmente previsto, considerando que com ela estariam alcançadas as finalidades da pena.

Para redução da pena concreta que lhe foi aplicada apela, em síntese, às seguintes circunstâncias: (i) a matéria de facto apurada, na sua globalidade, aponta para uma situação de ilicitude mediana, atenta a data dos factos, o reduzido período temporal a que os mesmos respeitam e a idade do arguido; (ii) encontra-se inserido social e familiarmente; (iii) confessou os factos, colaborou com a justiça, é um mero correio de droga, não tem antecedentes criminais e tem bom comportamento prisional.   

Vejamos.

O recorrente não questiona que com a sua conduta, descrita nos factos dados como provados, praticou, em autoria material, um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do DL nº 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I-B anexa ao citado diploma, com pena de 4 a 12 de prisão.

O tráfico de estupefacientes põe em causa uma plura­lidade de bens jurídicos, mas protege primordialmente a saúde pública e, em segundo plano, bens jurídicos pessoais, como a vida, a integridade física e a liber­dade dos virtuais consumidores; ademais, afeta a vida em so­ciedade, pelos comprovados efeitos criminógenos e dificulta a inserção social dos consumidores.[3]

Considerando essa ressonância ética e as modalidades de ação descritas no art. 21.º, n.º 1,  do DL n.º 15/93, o crime de tráfico de estupefacientes tem sido classificado pela jurisprudência, quanto à forma como o bem jurídico é posto em causa pela atuação do agente, como um crime de perigo abstrato, pois que o legislador não exige, para a respetiva consumação, a efetiva lesão dos bens jurídicos tutelados e entende-se que das atividades ali descritas há já um perigo de lesão daquele bem jurídico múltiplo, que se reconduz à saúde pública.

Para determinação da medida concreta da pena deste, como dos restantes tipos penais, dispõe o art. 71.º, n.º 1 do Código Penal que esta é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.

Não se esgotando o facto punível com a ação ilícita-típica, necessário se torna sempre que a conduta seja culposa, “isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”[4]

O juízo de censura, ou desaprovação, é suscetível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas.

O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete para a realização in casu das finalidades da pena, que de acordo com o art. 40.º, n.º 1, do Código Penal, são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.

Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).

A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico-penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.

É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção geral positiva dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial.

Entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida de tutela dos bens jurídicos, podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo estes que vão determinar, em último termo a medida da pena.

Nesta tarefa, importa atender aos fatores de medida da pena, que na linguagem do art. 71.º, n.º 2 do Código Penal «…depuserem a favor do agente ou contra ele», considerando, designadamente, as suas várias alíneas.

As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º 2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento de Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art. 72.º-1; são numa palavra, fatores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”.

Para o mesmo autor, esses fatores podem dividir-se em “Fatores relativos à execução do facto”, “Fatores relativos à personalidade do agente” e “Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”.

Como expende Maria João Antunes, podem ser agrupados nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art. 71.º, do Código Penal, os “fatores relativos à execução do facto”; nas alíneas d) e f), os “fatores relativos à personalidade do agente”; e na alínea e), os “fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”. [5]

Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção. A culpa tem, pois, aqui, uma função limitadora do intervencionismo estatal.

11.3. Retomando o caso concreto.

No que respeita aos “Fatores relativos à execução do facto”, num sentido global e complexo, anota o acórdão recorrido, “… a muito elevada ilicitude dos factos, tendo em conta que a conduta do arguido se traduziu no transporte intercontinental, por via marítima, de estupefaciente proveniente da …, viajando clandestinamente num navio de carga onde foram colocadas quatro mochilas contendo estupefacientes, que o arguido deveria lançar ao mar de modo a serem posteriormente recolhidas e introduzido o estupefaciente na Europa.

A intensidade do dolo, o arguido agiu com dolo direto.

A motivação que presidiu à sua atuação, de natureza económica. Já que, pelo transporte da cocaína, iria receber cerca de doze mil euros.

O modo de execução do crime, introduzindo-se e permanecendo clandestinamente num cargueiro, durante 16 dias, demonstrando grande persistência nos seus propósitos.

Os meios especialmente sofisticados utilizados para lograr alcançar o seu propósito, destacando-se o telefone satélite munido de um carregador solar e a bomba de ar, que se destinava a ser utilizada para encher as câmaras de ar que estavam colocadas em cada uma das mochilas, assim logrando que flutuassem e os aparelhos de GPS colocados em duas das aludidas mochilas, que permitiriam aos donos do estupefaciente localizá-lo com facilidade. Meios normalmente utilizados por grupos organizados dedicados ao tráfico de estupefacientes em larga escala.

A qualidade da substância transportada, cocaína, considerada “droga dura” com elevado grau de perigosidade social e para a saúde. Trata-se de um produto com muito elevado poder aditivo, que induz, pela premência em angariar meios para a sua aquisição, à prática de outros tipos de crimes.

A quantidade de estupefaciente transportada pelo arguido, muitíssimo elevada, 93.012,85 gramas, sendo ainda possível concluir, ao nível das consequências da sua conduta, que se o estupefaciente fosse entregue e, posteriormente, comercializado, revestiria impacto muito significativo no mercado onde viesse a ser consumido e geraria elevados proventos a quem a viesse a distribuir e vender, estando em causa uma operação de transporte de elevada escala.”.[6]

O acórdão recorrido acentua, e bem, nos fatores relativos à execução do facto, para determinação da pena, o peso muito relevante do tipo e quantidade do produto estupefaciente transportado pelo arguido (92 placas de cocaína, com o peso liquido de 93.012,85g), a sua atuação conjunta com outros indivíduos para, numa operação de âmbito internacional, com meios sofisticados, por via marítima, introduzirem, a partir da …,  uma larga quantidade de cocaína na Europa e o dolo direto e intenso com que atuou, para lograr obter para si um lucro económico (cerca de €12 000,00), à custa da saúde pública e de todo um outro conjunto de bens jurídicos pessoais, dos virtuais consumidores e da vida em so­ciedade.

O Supremo Tribunal de Justiça subscreve também a valoração do acórdão recorrido sobre a importância dos “correios de droga”, trazendo à colação os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 9/4/2015, de 6/2/2013 e de 15/1/2014[7], bem como a posição do arguido AA - “correio de droga” - como peça fundamental na execução do ilícito e na cadeia delitiva, cuja responsabilidade criminal não pode ser desvalorizada, como pretende o ora recorrente ao apresentar-se como «um mero “correio de droga”».

Efetivamente, como o Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando, repetidamente e desde há muito tempo, os “correios de droga” são uma peça fundamental no tráfico de estupefacientes concorrendo, de modo direto, para a sua disseminação, pelo que não merecem um tratamento penal de favor.

Conforme realça o acórdão deste Supremo Tribunal de 11-4-2012: “(…) não é possível ignorar o papel essencial dos mesmos «correios» na conformação dos circuitos de tráfico, permitindo a disseminação de um produto que produz as consequências mais nocivas em termos sociais. Sendo pessoas fragilizadas em termos económicos, os mesmos «correios» têm, todavia, a consciência de serem os instrumentos de um mal.”.[8]       

No que respeita aos «Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto», depõe a favor do arguido, a ausência de antecedentes criminais, que à data dos factos tinha 26 anos de idade.

A confissão integral e sem reservas dos factos provados pouco ou nenhum relevo teve para a descoberta da verdade, uma vez que o arguido foi detido em flagrante delito.

No entender de Eduardo Correia, esta circunstância atenuante não tem relevância quando o arguido é detido em flagrante delito e, duma maneira geral, em todos os casos em que se torna claro que a prova está feita por outros meios.[9]

Deu-se como provado que “declarou-se arrependido” - o que é diverso, em termos de relevância, de dar-se como provado o arrependimento sincero do arguido, demonstrado em atos, como acontece quando o agente contribuiu decisivamente para a identificação dos elementos da organização dedicada ao tráfico internacional de produtos estupefacientes que lhe entregaram o estupefaciente para o transportar.

O comportamento prisional que mantém é adequado à instituição, sem registo de sanções disciplinares, ou seja, o que é de esperar de quem se mantém privado de liberdade em Estabelecimento Prisional.

Nos “Fatores relativos à personalidade do agente”, a que aludem as alíneas d) e f), n.º 2 do art. 71.º do Código Penal, assumem preponderância a média condição social do arguido, que concluiu o 12.º ano de escolaridade e alguma instabilidade a nível profissional e familiar, tendo um filho que nasceu quando já estava detido e dois outros de uma relação anterior, entregues aos cuidados maternos desde o nascimento e com os quais não mantém relação próxima. A situação económica do arguido é fraca, subsistindo nos últimos tempos da venda ambulante em mercados locais de peixe, em território colombiano.

Com respeito às exigências de prevenção geral, reafirmamos aqui que o tráfico de estupefacientes, em especial de cocaína, é dos crimes que mais preocupa e alarma a nossa sociedade pelos seus nefastos efeitos e que mais repulsa causa quando praticado como meio de obtenção de proveitos à custa da saúde e liberdade dos consumidores, com fortes reflexos na coesão familiar e da comunidade em geral.

As elevadas penas previstas para o crime de tráfico de estupefacientes, próximas das aplicáveis ao crime de homicídio, evidenciam a intensa ressonância ética daquele tipo penal inscrita na consciência da comunidade. Como a integração do tipo fundamental de tráfico de estupefacientes na definição de criminalidade altamente organizada (art.1º al.ª m) do C.P.P.) evidencia uma necessidade de proceder a um combate acrescido a esta atividade criminosa.

Muito elevadas são, assim, as exigências de prevenção geral no crime de tráfico de estupefacientes, pela forte ressonância negativa na consciência social das atividades que os consubstanciam, em particular quando está em causa o tráfico de produtos estupefacientes com forte nocividade, como é o caso da cocaína, e em quantidade muito significativa, pelo que se justifica reforçar a ideia da validade dos bens jurídicos inerentes à norma violada.

Considerando, particularmente, a natureza e quantidade do produto estupefaciente que o arguido transportou e deteve no âmbito de tráfico internacional organizado, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, temos como prementes as razões de prevenção especial, como forma de reinserção social, obstando a que no futuro volte a praticar crimes desta elevada gravidade.

Por fim, também a culpa do arguido é muito elevada face às circunstâncias em que o tráfico foi executado, com dolo direto e intenso, e total indiferença para os malefícios que do tráfico da cocaína adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e da sociedade em geral.

Em suma, perante as fortes exigências de prevenção geral e especial e a elevada culpa do arguido , pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do DL nº 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I-B anexa ao citado diploma, o Supremo Tribunal de Justiça conclui que a pena de 7 anos de prisão fixada pelo Tribunal a quo, respeita as finalidades da punição, sem ultrapassar a medida da culpa, em integral obediência ao disposto nos artigos 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e 40.º e 71.º do Código Penal.

Assim, não pecando por excesso a pena de 7 anos de prisão – abaixo do limite médio do tipo penal e bem longe dos 12 anos de prisão como limite máximo –, improcede a presente questão e, consequentemente, o recurso.

III - Decisão

           

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acorda o Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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(Certifica-se que o acórdão foi  processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.). 

                                                                                             

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Lisboa, 5 de maio de 2022

Orlando Gonçalves (Relator)

Adelaide Sequeira (Adjunta)

Eduardo Loureiro (Presidente)

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[1] Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 (BMJ n.º 458º, pág. 98) e de 24-3-1999 (CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.)
[2] A alteração da redação da alínea c), n.º 1, do art. 432.º do C.P.P., levada a cabo pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, através do aditamento «…ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», não interferem na presente decisão.
[3] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 10/10/2018, proc.º n.º 5/16.0GAAMT.S1 e de 7/7/2021, proc. n.º 57/20.8SWLSB.S1, in www.dgsi.pt

[4] Cf. Fig. Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230.
[5] Cf. “Consequências Jurídicas do Crime”, Lições para os alunos da FDC, Coimbra, 2010-2011.
[6] Sublinhados nossos.
[7] Todos publicados in www.dgsi.pt.
[8] Cf. Proc. n.º 21/11.8JELSB.S1, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido ainda, entre outros, o acórdão de 24/3/2022, proc. n.º134/21.8JELSB.L1.S1, relatado pelo presente relator.
[9] Cfr, “Direito Criminal”, Vol. II, Almedina, edição de 1971, pág. 387.