Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26/19.0T8BGC.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
PATERNIDADE BIOLÓGICA
DIREITO DE AÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
PRAZO DE PROPOSITURA DA AÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
PRINCÍPIO DA FILIAÇÃO
DIREITO PESSOAL
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário :
I – O direito à identidade do indivíduo, enquanto expressão da sua verdade pessoal e da sua integridade moral, consagrado nos artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que se encontra incluído entre os direitos, liberdades e garantias referenciados no artigo 18º do mesmo diploma legal, constituindo condição sine qua non para a afirmação na família e na sociedade, abrange o conhecimento das origens genéticas (paternidade biológica) e o estabelecimento do correspondente vínculo jurídico, que compõem a estrutura essencial subjacente à sua própria historicidade enquanto ser social, inserindo-se no núcleo essencial e íntimo da pessoa e do cidadão.
II – Está, portanto, em causa o reconhecimento do direito absoluto e pessoalíssimo à sua própria identidade através da possibilidade do conhecimento da ascendência e marca genética, que se inscrevem indelevelmente na genealogia do ser humano, com profundas e impressivas projecções no campo social e histórico.
III – O mero decurso do tempo não legitima por si só a recusa do direito fundamental ao conhecimento da verdade biológica de cada pessoa e consequente estabelecimento, no plano da respectiva fixação formal e pública, dos correspondentes vínculos.
IV - Não há cabimento, suporte nem espaço do ponto de vista constitucional, quando está em causa a afirmação de direitos absolutos e pessoalíssimos dos cidadãos, para uma interpretação puramente formalista, condicionadora ou minimalista relativamente ao primado do respeito pelo direito fundamental do indivíduo ao conhecimento das origens genéticas, exigido pelos imperativos conjugados dos artigos 25º, nº 1, e 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que se integra ainda no direito (igualmente) fundamental à constituição de família (a sua verdadeira família) tal como se encontra genericamente consagrado no artigo 36º da Lei Fundamental.
V – Admitindo-se que o legislador ordinário dispõe, em termos gerais e em diversas matérias, de  autonomia para fixar prazos condicionantes do exercício do direito de acção, em prol da segurança jurídica e da necessidade de rápida definição das situações em potencial litígio, acautelando ainda as legítimas expectativas dos interessados, o certo é que esta tem como inultrapassável limite a ofensa a normas ou princípios de natureza constitucional, estruturantes e basilares de todo o nosso edifício legislativo, cessando quando se vislumbra desconformidade entre o poder de delimitar temporalmente o exercício do direito de acção e a concreta e efectiva realização de imperativos primordiais consagrados nos artigos 25º e 26º da Constituição da República Portuguesa, destinados ao reconhecimento de direitos fundamentais absolutos e pessoalíssimos, que devem, atenta a sua especial natureza, poder ser reconhecidos a todo o tempo.
VI - O acto de procriação gera especiais responsabilidades para com o ser gerado e diferentes reflexos no plano social, bem como a necessidade da intervenção tutelar do Estado, colocando o progenitor na situação de dever assumir, a todo o tempo, o integral cumprimento das suas obrigações na relação de filiação, pelo que a protecção da reserva da intimidade da vida privada e familiar dos potenciais investigados e dos seus familiares – por muito respeitável que seja - não pode nunca ser equiparada, ou colocada ao mesmo nível de prevalência jurídica, relativamente ao direito fundamental do investigante ao reconhecimento da sua qualidade de filho, fruto do acto gerador do investigado (a quem é naturalmente imputável).
VII – Há, pois, que colocar esse direito fundamental no lugar cimeiro que lhe é constitucionalmente devido, sobrepondo-o à ordinária fixação de um qualquer prazo de caducidade que extingue a possibilidade de cada um querer saber quem são os seus verdadeiros ascendentes e de afirmar face ao exterior as suas verdadeiras raízes de vida.
VIII – Ainda que resultem repercussões a nível patrimonial da superveniente constituição de uma relação de filiação, vantajosas para o investigante em caso de procedência da acção judicial, não é aceitável retirar dessa circunstância razão bastante para o afastamento do imperativo consagrado nos artigos 25º, nº 1, e 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, coarctando o seu direito a agir judicialmente, desde logo porque tais eventuais vantagens patrimoniais (que podem acontecer ou não) – mormente no plano sucessório e no âmbito do direito a alimentos –, reconhecida a paternidade em que momento da vida do investigante for, são absolutamente naturais, lógicas, fundadas e justas.
IX – A vocação sucessória, designadamente a sucessão legal, não depende de uma integração familiar e comunidade afectiva entre o decujus e o sucessível designado, que pode ser simplesmente omissa (quantos filhos não se interessam minimamente pelos pais, ou se incompatibilizam mesmo com eles, gerando entre si profundas inimizades e rancores, e, não obstante, não faltam à chamada na hora da abertura da sucessão), sendo certo que a sucessão legitimária reveste natureza imperativa, impondo-se e prevalecendo sobre a vontade do autor da sucessão.
X - Estando em causa o exercício de um direito absoluto e pessoalíssimo, se o seu reconhecimento comportar benefícios patrimoniais para o investigante, tal significa tão somente que está a ser recolocada alguma (devida) justiça numa situação de injustificada desigualdade de tratamento entre filhos do mesmo progenitor (assumidos e não assumidos).
XI – O propósito assumido pelo legislador ordinário na Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, de condicionar temporalmente o exercício de um direito fundamental, absoluto e pessoalíssimo (prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação do investigante), sem atender à determinação constitucional que superiormente o vinculava, quando é comummente sabido que são diversos, respeitáveis e inquestionáveis (inclusive no plano psicológico e ético) os motivos de carácter pessoal, privado, íntimo – que só ao próprio dizem respeito - que explicam perfeitamente alguma eventual hesitação, inibição, inércia ou demora na propositura da acção judicial  para obter um reconhecimento essencial para a definição da sua historicidade (e reflexamente a dos seus), impõe o juízo de inconstitucionalidade do disposto nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável às acções de investigação do paternidade por força do artigo 1873º do mesmo diploma legal.
XII – Pelo que se concede a revista, não aplicando o normativo em causa, anulando-se o acórdão recorrido e determinando-se o prosseguimento da acção para a fase instrutória.
Decisão Texto Integral:


 
Processo nº 26/19.0T8BGC.G1.S1

 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.
Instaurou AA acção declarativa, com processo comum, contra BB, CC, DD, EE.
Essencialmente alegou:
A Autora, nascida em .../.../1963, é biologicamente filha de FF e não do marido da mãe, o presumido pai GG, pois que nasceu de relações sexuais de cópula completa que a sua mãe teve no período legal da concepção exclusivamente com FF.
Conclui, pedindo que:
a) se julgue procedente a impugnação da paternidade da Autora, declarando-se que não é filha de GG e, em consequência:
a-1) que se ordene a eliminação desta paternidade constante do assento de nascimento da Autora, bem como a respectiva avoenga paterna, na Conservatória do Registo Civil ...;
b) que se julgue procedente a investigação da paternidade da Autora, reconhecendo e declarando aquela (Autora) filha de FF (…) e, em consequência:
b-1) que se ordene o averbamento no assento de nascimento da Autora, na Conservatória do Registo Civil ..., passando a final a figurar aquela como filha FF, averbando-se também a respectiva avoenga paterna.
Devidamente citadas, vieram as Rés CC, DD, EE contestar, arguindo a excepção de caducidade e abuso de direito e por impugnação.
Devidamente notificada, a Autora apresentou resposta.
Realizou-se Audiência Prévia e foi proferido despacho saneador, o qual julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção, tendo sido proferida sentença, decidindo nos seguintes termos:
Pelo exposto, decide o Tribunal julgar a acção instaurada pela Autora, AA, contra os Réus, BB, na qualidade de herdeira de GG, CC, DD e marido, HH, EE e marido II, as 2ª, e Demandadas na qualidade de Herdeiras/Descendentes de FF, improcedente, por não provada, como tal: I.Absolvendo todos os Réus dos pedidos contra si deduzidos.(…)”.
Apresentado recurso de apelação, o mesmo veio a ser julgado  improcedente pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 13 de Janeiro de 2022.
Veio a A. interpor recurso de revista excepcional, com as seguintes conclusões:
1)-Vem o presente Recurso de Revista Excepcional interposto do Douto Acórdão da Relação de Guimarães, datado de 14 de Janeiro de 2021, notificado à Recorrente em 14/01/2022, que decidiu “Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da  Relação em julgar improcedente o Recurso de apelação interposto pela Autora, confirmando-se a sentença recorrida.”
2)-A questão de direito que se traz a juízo a este Venerando Supremo Tribunal, consiste em saber se o prazo de caducidade para a acção de investigação de paternidade previsto no artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, por força do disposto no artigo 1873.º daquele diploma legal, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, é ou não conforme à CRP e se, à data da instauração da acção, o direito da Recorrente já havia caducado, por verificação do prazo.
3)-A Autora nasceu em .../.../1963.
4)-Quando a Autora atingiu a maioridade, corria o ano de 1981.
5)-Previa a legislação portuguesa que o filho tinha legitimidade para intentar acção de investigação da paternidade, nos termos do artigo 1817.º do Código Civil, nos dois anos após a maioridade ou emancipação.
6)-Tal prazo de dois anos foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral, pelo Acórdão número 23/2006, datado de 10 de Janeiro de 2006, do Plenário do Tribunal Constitucional, por se entender, em suma, que funcionava como uma restrição inadmissível do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família.
7)-Assim, somente no ano 2006 a lei, que sempre limitou o direito à identidade pessoal da Autora, foi considerada inconstitucional.
8)-E note-se que a Autora, em 2006, tinha 43 anos e há muito havia passado a sua maioridade.
9) - O efeito da declaração de inconstitucionalidade de uma norma é, como prescreve o número 1 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, a repristinação da norma revogada pela norma declarada inconstitucional.
10)-Entendeu-se, nessas circunstâncias, que seria de aceitar o princípio da imprescritibilidade de tais acções, que assim se tornariam, ipso facto, cognoscíveis a todo o tempo (cfr. Acórdão do STJ, de 18-01-2008, relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi.pt).
11)-Por força da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, estabeleceu-se uma nova redacção para o artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, passando as acções de investigação de paternidade a poderem ser intentadas durante os 10 anos subsequentes à maioridade ou emancipação.
12)-Ora, em 2009, a Autora já tinha 45 primaveras contadas.
13)-O Acórdão número 24/2012, de 27 de Fevereiro, do Tribunal Constitucional, julgou inconstitucional a norma constante do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redacção do artigo 1817.º, aplicável “ex vi” do disposto no artigo 1872.º do mesmo diploma.
14)-Para além disso, dispõe o artigo 297.º, n.º 1 do Código Civil que “..a lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar…”.
15)-Quer isto dizer que o prazo constante da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que procedeu à alteração do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, passando a fixar em 10 anos o prazo para a propositura da acção de investigação da paternidade, só começa, como não pode deixar de ser, a contar a partir da entrada em vigor dessa nova lei, ou seja, em abstracto, no ano de 2009.
16)-E não pode, o que seria um absurdo, fazer retroagir seus efeitos (como decidiu o Meritíssimo Juiz da 1.ª Instância e sufragado foi pelo Tribunal da Relação), ao ano de 1981, data em que a Autora teria atingido a sua maioridade, e que, em teoria dispunha de 10 anos para intentar a acção de investigação de paternidade, caso fosse possível um regresso ao passado, o que é totalmente inviável e ilógico.
17)-As leis que afectem, como é o caso, negativamente posições jurídicas subjectivas que tenham a natureza de direitos, liberdades e garantias não podem fazer retroagir os seus efeitos.
18)-Afirma o Acórdão Recorrido que “…tendo a Autora investigante atingido a maioridade em 12/05/1981, o prazo de 10 anos legalmente previsto para a interposição da acção, esgotou-se em 12/05/1991.”
19)-A Autora, ora Recorrente, não dispôs nunca do prazo de 10 anos para intentar a acção de investigação de paternidade, porquanto a Lei vigente à data em que atingiu a maioridade foi declarada inconstitucional, produzindo tal declaração efeitos à data da entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, conforme  determina o artigo 282.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
20)-Não se pode dizer que a Recorrente, depois de atingir a sua maioridade, dispôs de um prazo de 10 anos para agir judicialmente, nem se pode entender como poderia a lei nova estabelecer um prazo para esse efeito com data muito anterior e não permitindo aos interessados o exercício desse direito, quer no passado, quer após a entrada em vigor da Lei.
21) - É entendimento da Recorrente que o prazo de 10 anos deve ser contado após a entrada em vigor da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, ou seja, o prazo para o exercício do direito só terminaria em 2 de Abril de 2019, por força do disposto no artigo 297.º do Código Civil.
22)-Em bom rigor, dir-se-á que, a vingar a tese retratada e vertida no Douto Acórdão da Relação, a Autora, ora Recorrente, se viu numa situação em que podia – por força da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, na redacção anterior à conferida pela Lei n.º 14/2009 – a qualquer momento e sem limite de prazo, propor a acção de investigação da sua paternidade, se viu, “ipso facto”, numa outra em que – não obstante se perspectivar como mais vantajosa para os possíveis investigantes – se viu desprovida de qualquer possibilidade de levar a efeito tal desiderato e, a final, vir a constituir esse almejado vínculo (de paternidade).
23)-O regime anterior à Lei 14/2009, de 1 de Abril, foi declarado inconstitucional pelo Acórdão do Plenário n.º 23/2006, de 10 de Janeiro, tendo deixado sem qualquer prazo o direito de propositura da acção de investigação.
24)-Com a entrada em vigor da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, foi imposto um prazo necessariamente mais curto (10 anos), em contraposição com a total ausência de prazo até à entrada em vigor da referida Lei.
25)-Assim, por respeito ao estatuído pelo artigo 297.º do Código Civil, quando a lei antiga não estabelece qualquer prazo para o exercício do direito e ele vem a ser estabelecido por Lei nova, o prazo só se conta (e deve contar) a partir da entra em vigor da nova lei.
 26) – E sendo     assim, como  é,         a          Acção vertente         deve considerar-se tempestivamente intentada, estando os direitos nela em vista fazer valer longe da caducidade.
ALÉM DISSO:
27)-No segundo segmento (“baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular”) do artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, “fixam-se os fundamentos e os limites da acção do Estado.” - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I - Introdução Geral – Preâmbulo – Artigos 1.º a 79.º, Coimbra Editora, 2005, pág. 53 e segs. (anotação II e III ao artigo 1.º)
28)-Princípio da dignidade da pessoa humana que: “Veda a suspensão, mesmo em estado de sítio, em qualquer caso, dos direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal (…) e Explica a garantia da integridade pessoal (…); os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, ao bom nome e reputação, (…) (artigo 26.º, n.º1); a garantia da identidade genética do ser humano, nomeadamente, na criação, no desenvolvimento e na utilização das tecnologias e na experimentação científica (artigo 26.º, n.º2), (…) a regulamentação da procriação assistida (artigo 67.º, n.º2, al. e). (…) Dignidade e autonomia pessoal são incindíveis. (…) A força da autonomia patenteia-se sobretudo no direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º1) (…)”.” idem.
29)-O artigo 2.º da CRP contempla o Princípio do Estado de Direito Democrático e o princípio da tutela efectiva dos direitos e liberdades fundamentais : A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.”
30)-O n.º 2 e o n.º 3 do artigo 3.º da Constituição da República Portuguesa contêm os princípios da constitucionalidade e da legalidade (“O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática. validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição.
31)-Direitos fundamentais que, segundo Jorge Miranda, são “os direitos ou as posições  jurídicas         activas           das     pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição”. - Jorge Miranda, Curso de Direito Constitucional, Normas Constitucionais. Direitos Fundamentais. Actividade Constitucional do Estado. Fiscalização de constitucionalidade. Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa 2020, pág. 51.
32)-Direitos Fundamentais que abrangem quer Direitos, Liberdades e Garantias, que são direitos fundamentais de 1.ª geração e que exigem do Estado abstenção, quer Direitos Económicos, Sociais e Culturais que são Direitos Fundamentais de 2.ª geração e que exigem do Estado uma actividade de intervenção (correspondem ao Estado Social).
33)-De acordo com os n.ºs 1 e 3 do artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.
34)-Assim, o direito à identidade pessoal e o direito ao desenvolvimento da personalidade, são Direitos, Liberdades e Garantias e, como tal, Direitos Fundamentais.
35)-Sendo também direitos fundamentais o direito ao nome, o direito ao conhecimento e ao estabelecimento da maternidade e da paternidade e o direito à  identidade informacional que decorrem implicitamente do direito à identidade pessoal. - Jorge Miranda, Curso de Direito Constitucional, Normas Constitucionais. Direitos Fundamentais. Actividade Constitucional do Estado. Fiscalização de constitucionalidade. Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa 2020, pág. 89.
36)-Com a acção de impugnação de paternidade e de investigação de paternidade, está a Autora/Recorrente (impugnante/investigante) a exercer, entre outros, o direito à sua identidade pessoal, ao desenvolvimento da sua personalidade e à sua verdade biológica, pretendendo posicionar-se, de modo verdadeiramente esclarecido e verdadeiro, no seio familiar e no meio social em que se insere, ou melhor, em que se pretende ver inserida, já que, o fim último de tal acção é a busca da verdade, da sua identidade genética e biológica e, só alcançando essa verdade sobre a sua identidade pessoal (genética, biológica), conseguirá alcançar o seu lugar ou posicionamento de si perante os outros, quer a nível social, quer a nível familiar, pondo fim à turbulência interior que tal incerteza ou indefinição cria, de não saber “de onde vem”, de desconhecer verdadeiramente a sua origem, de não saber a quem e onde pertence.
37)-Sentimento de pertença e de identidade que é intrínseco à dignidade da pessoa humana, e que é de tal modo natural que reiteradamente perguntamos “A que família pertence? Quem são os seus pais? É filho de quem?”, procurando referências, origens, daquela concreta pessoa humana.
38)-Assim, a Constituição garante a dignidade e identidade pessoal e a identidade genética do ser humano (artigo 26.º, n.º 1, CRP), assente na dignidade da pessoa humana e na ideia de que as pessoas humanas são individuais, concretas, irredutíveis e insubstituíveis e, como tal, têm uma identidade pessoal que as distingue das demais.
39)-Para Jorge Miranda e Rui Medeiros, “a identidade pessoal é aquilo que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de  todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoa.” - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I - Introdução Geral – Preâmbulo – Artigos 1.º a 79.º, Coimbra Editora, 2005, pág. 284 e segs. (anotação II e seguintes ao artigo 26.º).
40)-Na acção de impugnação de paternidade e de investigação de paternidade encontramo-nos face a interesses inalienáveis da pessoa, nomeadamente, o direito à identidade pessoal, o direito ao desenvolvimento da personalidade, previstos no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa, o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa, nos quais se inclui o direito a conhecer e a ver reconhecida a sua ascendência biológica.
41)- “Em sentido amplo, o direito à identidade pessoal abrange o direito de cada pessoa a viver em concordância consigo própria, sendo, em última análise, expressão     da     liberdade     de     consciência projetada     exteriormente em determinadas opções de vida.” Idem.
 “Na medida em que a pessoa é condicionada na formação da sua personalidade pelo fator genético, a identidade genética própria é uma das componentes essenciais do direito à identidade pessoal.” Idem.
42)-Assim, integra o núcleo essencial do direito à identidade pessoal: o direito à diferença e à individualidade própria, o direito à identidade genética própria, bem como o direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade e da maternidade, ou seja, o direito à “identidade pessoal inclui os vínculos de filiação”. Idem.
Sucede que,
43)-Ao direito a conhecer e reconhecer as origens genéticas ou, nas palavras de Gomes Canotilho e de Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, pág.462), a “historicidade pessoal”, essencial para a identidade própria e  constitutivo da personalidade de cada indivíduo, acresce o direito a constituir família (artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa) que impõe ao legislador a previsão de meios para o estabelecimento dos vínculos de filiação.
44)-De acordo com Jorge Miranda e Rui Medeiros: “no direito de constitui família, o artigo 36.º, n.º1, abrange, ao lado da família conjugal, a família constituída por paise filhos, podendo extrair-se deste preceito constitucional um direito fundamental, não apenas a procriar, mas também ao conhecimento e reconhecimento da paternidade e da maternidade.” - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I - Introdução Geral – Preâmbulo – Artigos 1.º a 79.º, Coimbra Editora, 2005, pág. 399. (anotação VI, a) ao artigo 36.º).
45)-Relacionado com esta matéria, está o disposto no n.º 4 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa que proíbe a discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, não permitindo que sejam desfavorecidos ao verem limitadas as possibilidades de estabelecimento da sua filiação mediante prova do vínculo biológico.
46)-Aos Direitos Fundamentais, sejam eles Direitos, Liberdades e Garantias ou Direitos Económicos, Sociais e culturais, aplica-se o regime geral constante dos artigos 12.º, 13.º e 16.º da Constituição da República Portuguesa.
47)-Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 12.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), “Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição”, consagrando, assim, o Princípio da Universalidade.
48)-Segundo o artigo 13.º da CRP, que estatui o Princípio da Igualdade “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem,  religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
49)-O princípio da universalidade, “embora incindível do da igualdade, não se confunde com ele. Todos têm os direitos e deveres – princípio da universalidade; todos (…) têm os mesmos direitos e deveres – princípio da igualdade. O princípio da universalidade diz respeito aos destinatários das normas, o princípio da igualdade ao seu conteúdo.   O princípio da universalidade apresenta-se essencialmente quantitativo, o da igualdade essencialmente qualitativo.” – Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I - Introdução Geral – Preâmbulo – Artigos 1.º a 79.º, Coimbra Editora, 2005, pág. 112 (anotação I ao artigo 12.º).
50)-A igualdade proclamada no artigo 13.º da CRP “é a igualdade perante a lei, dita por vezes igualdade jurídico-formal, e ela abrange, naturalmente, quaisquer direitos e deveres existentes na ordem jurídica portuguesa. (…)
O sentido primário da fórmula constitucional é negativo: consiste na vedação de privilégios e de discriminações. Privilégios são situações de vantagem não fundadas e discriminações situações de desvantagem”. - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I – Introdução Geral – Preâmbulo – Artigos 1.º a 79.º, Coimbra Editora, 2005, pág. 120 (anotação I e II ao artigo 13.º).
51)-O artigo 16.º da Constituição da República Portuguesa, no seu n.º1, estabelece que “Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”.
52)-Consagrando, deste modo, o Princípio da Não Tipicidade de Direitos Fundamentais ou a Cláusula Aberta dos Direitos Fundamentais, ou seja, “uma noção material de direitos fundamentais, derivada da própria ideia de dignidade da pessoa humana cuja realização está para além de qualquer catálogo fixo”, sendo  que “o n.º1 vale também no concernente aos direitos económicos, sociais e culturais” - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I Introdução Geral – Preâmbulo – Artigos 1.º a 79.º, Coimbra Editora, 2005, pág. 138 (anotação II ao artigo 16.º).
53)-O regime específico dos Direitos, Liberdades e Garantias está previsto nos artigos 17.º, 18.º e 19.º da Constituição da República Portuguesa.
54)-O artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa ordena que o regime específico dos Direitos, Liberdades e Garantias se aplique aos direitos enunciados no título II da Parte I da CRP e ainda aos direitos fundamentais de natureza análoga.
55)-O artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa CRP prevê em si mesmo diversos princípios do regime específico dos Direitos Liberdades e Garantias.
56)-Da primeira parte do n.º 1 do artigo 18.º da CRP consta o princípio da aplicabilidade directa dos Direitos, Liberdades e Garantias: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis”.
57)-Princípio segundo o qual, os Direitos, Liberdades e Garantias, e apenas estes, podem ser invocados directamente pelos cidadãos particulares e essa aplicabilidade directa resulta independentemente de haver intervenção do legislador ordinário.
58)-Na segunda parte do n.º1 do artigo 18.º da CRP - “ Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias (…) vinculam as entidades públicas e privadas” – está previsto o princípio da vinculação de entidades públicas (seja  qual for a sua forma e seja qual for a sua atuação, e não apenas o Estado) e privadas.
59)-A restrição a um Direito, Liberdade e Garantia retira parte do exercício desse Direito, assim, a restrição é parcial mas tendencialmente definitiva. - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I - Introdução Geral – Preâmbulo – Artigos 1.º a 79.º, Coimbra Editora, 2005, pág. 160 (anotação XIV ao artigo 18.º).
60)-As restrições a Direitos, Liberdades e Garantias têm de ser necessárias para solucionar uma situação de colisão (contrapõem-se um titular com um Direito e um bem social ou estadual), de conflito (contrapõem-se um titular com um Direito e um titular com outro Direito - pode ser o mesmo Direito ou não) ou concorrência.
61)-Não existe um critério de prevalência hierárquica para resolução das situações de colisão ou de conflito pois inexiste na Constituição da República Portuguesa uma hierarquia de direitos, devendo usar-se o critério da proporcionalidade ou da concordância ou ponderação prática, ou seja, realizar a análise da situação concreta para determinar fundamentadamente qual o direito que deve ceder e qual o que deve prevalecer.
62)-A acção de impugnação de paternidade e a acção de investigação de paternidade são instrumentos jurídicos de protecção do direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no artigo 26.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa, do direito fundamental a constituir família, consagrado no artigo 36.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa, do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 26.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa e do direito fundamental ao acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
63) - O direito fundamental à identidade pessoal “tem como dimensão essencial o direito ao conhecimento da progenitura, pois o conhecimento de onde se provém é um elemento imprescindível à plena consciência reflexiva da identidade própria”. – Joaquim de Sousa Ribeiro, in «A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade», RLJ, Ano 147.º, n.º 4009 (Março-Abril 2019), pág. 216.
64)- “De facto, a paternidade representa uma referência essencial da pessoa (de cada pessoa), enquanto suporte extrínseco da sua mesma individualidade (quer ao nível biológico, e aí absolutamente infungível, quer ao nível social) e elemento ou condição determinante da própria capacidade de auto-identificação de cada um como individuo (da própria consciência que cada um tem de si) (…)». – Idem.
65)-O direito ao conhecimento e reconhecimento judicial da paternidade inclui-se também no âmbito de protecção do direito fundamental a constituir família (art. 36.º, n.º1 da CRP) pois, além do conhecimento da ascendência biológica ou das origens genéticas, do lado paterno, pretende-se a constituição de um vínculo jurídico de filiação ou de uma relação jurídica familiar entre investigante e investigado.
66)-Inserindo-se ainda no direito fundamental ao desenvolvimento  da personalidade (art. 26.º, n.º1, da CRP), manifestando-se como “o direito de alguém a tornar-se naquilo que ainda não é: o de passar a ser filho, juridicamente reconhecido como tal” ou “o direito de se autodeterminar no sentido de adquirir o estatuto de filho, no processo de autodefinição individual através da condução da sua vida”, “de determinada pessoa que é o seu pai biológico”. – Idem.
Acresce que:
67)-Por via do artigo 2.º e do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, é assegurado “o respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades  fundamentais ” e o Direito Fundamental de Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional Efectiva.
68)-Porque “quem sabe de Direito, nem de Direito sabe” e porque o Direito se interpreta e aplica consoante a evolução dos tempos, a litígios e a pessoas concretas, convém sair do confinamento e do gabinete para experienciar a realidade tal e qual ela é.
69)-O mesmo é dizer que, estando em causa direitos, liberdades e garantias intimamente ligadas à dignidade da pessoa humana, de natureza pessoalíssima, não basta olhar para os preceitos constitucionais de modo matemático ou mecânico, para os aplicar, há que os analisar e que os contextualizar!
70)-Embora não exista uma hierarquização de Direitos, Liberdades e Garantias, a verdade é que, actualmente, a par do direito à vida, o direito à identidade pessoal e o direito ao desenvolvimento da personalidade sempre assumiu e continua a assumir extrema relevância no sentido da constante e progressiva protecção que lhe tem vindo a ser dada, basta pensar no Regulamento de Protecção de Dados, nas diversas tentativas de alteração de legislação relacionadas com a identidade de género, às alterações à Lei da Procriação Medicamente Assistida e, quanto a  esta, à declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do n.º 1 (…) e do n.º 4 do artigo 15.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, por violação dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade de tais pessoas em consequência de uma restrição desnecessária dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, com o artigo 26.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018.
71)-A Lei n.º 14/2009, com a previsão do prazo de 10 anos a contar da maioridade, alarga o prazo para exercício do direito à identidade pessoal, na sua dimensão de conhecimento e reconhecimento da paternidade, por parte do filho, até aos 28 anos, e até, findo esse prazo, nos três anos posteriores  ao conhecimento de circunstâncias supervenientes, no entanto, apesar da maior maturidade e maior experiência de vida aos 28 (ou mais anos de idade) do que aos 18 anos, a verdade é que o «situar-se autonomamente, sem dependências externas, na esfera relacional, mesmo quando se trata de tomar decisões, como esta, inteiramente fora do âmbito da gestão corrente de negócios», é uma decisão e um exercício que só ao próprio cabe decidir quando o exercer.
72)-Ou sejam, o exercício dos seus direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, na sua dimensão de conhecimento e reconhecimento da paternidade, de conhecimento das suas origens, é uma decisão pessoal, do próprio titular do direito e tal decisão (do titular do direito), porque árdua, é frequentemente condicionada, por uma multiplicidade de factores internos e externos, a oposição dos demais familiares como a mãe ou os irmãos, ou seja, o titular do direito encontrará sempre “obstáculos à plena afirmação da vontade própria”, especialmente quando esta (a sua vontade) seja “oposta à do círculo familiar que o rodeia”.
73)-Não nos esqueçamos que não raras vezes as acções de impugnação e de investigação de paternidade são intentadas pelos filhos após o falecimento da mãe, do pai ou do investigado (pretenso progenitor), também “o número de casos em que a acção é proposta fora do prazo leva à verificação que, no mundo real, esta é uma situação recorrente”.
74)-E tal razão de ser encontra-se no “desenterrar” um passado longínquo, doloroso ou incómodo para o núcleo familiar e no conflito interno e externo que geram, ou seja, na amálgama de sentimentos gerados pelo próprio filho, titular do direito, e/ou gerados por terceiros (como de irmãos, mãe, etc.) em relação àquele, de culpa, de vergonha, de reprovação, de desmerecimento.
75)-Frequentemente esquece-se o âmago da questão: não estão em causa direitos de natureza patrimonial ou do âmbito da gestão corrente de negócios, estão em  causa Direitos, Liberdades e Garantias, ou seja Direitos de natureza pessoal, de natureza não patrimonial, intimamente ligados à dignidade da pessoa humana e à concretização da pessoa ou do indivíduo enquanto tal, cujo exercício, através das açcões de impugnação de paternidade e de reconhecimento de paternidade, geram, além de um litígio que corre termos nas instâncias judiciais, um verdadeiro litígio ou conflito interno no titular do direito (filho/filha).
76)-Como já recorrentemente se frisou nesta Revista, estamos perante Direitos Fundamentais, perante Direitos, Liberdades e Garantias, de natureza não patrimonial, de natureza pessoal ou «pessoalíssima», e não perante direitos ou relações jurídicas de natureza patrimonial
77)-Faz sentido atribuir ao credor numa relação jurídica patrimonial, titular da posição activa, um “ónus de diligência” para a exercitar.
78)-É desprovido de sentido impor tal ónus de diligência ao titular de um Direito, Liberdade e Garantia, ou seja, quando está em causa um direito pessoalíssimo, nuclearmente constitutivo da identidade e da personalidade singular de cada individuo”.
79)-Pois está em causa “um elemento conformador da identidade própria” e, como tal, cabe ao titular, por força do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade e por força do direito fundamental à identidade pessoal, a sua autodefinição, “em todo o devir da sua existência” e “não até um dado momento temporal”. - Joaquim de Sousa Ribeiro, in «A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade», RLJ, Ano 147.º, n.º 4009 (Março-Abril 2019).
80)-É no núcleo da identidade própria/individual e da personalidade que o direito fundamental aqui em causa “atinge a sua mais intensa carga valorativa, contendo a exigência, não só de liberdade comportamental, em função do que se é, no presente, mas também de liberdade de conformação identitária, deixando em aberto a possibilidade de cada um passar a ser o que ainda não é, mas deseja ser.” – Idem.
81)- “É o direito ao “livre desenvolvimento da personalidade” (…), “o direito a ser livre, não apenas de constrições externa, mas também de vinculações limitativas geradas por atitudes passadas. Quando, em contradição, a vontade actual deve, neste domínio, prevalecer sobre a pretérita.” - Idem.
82)-Não se pode retirar a alguém, por via de legislação ordinária e em violação de ditames constitucionais, o direito à sua identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, na dimensão do conhecimento e reconhecimento da paternidade, por via da acção de impugnação e de investigação de paternidade, “pela razão de que, podendo fazê-lo, não exerceu esse direito em determinado prazo”.
83)-Passando a vigorar, no caso concretos destes autos, por força do ónus de diligência estatuído nos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código      Civil,   um       verdadeiro     princípio        de        autorresponsabilidade       da Autora/Recorrente.
84)-Princípio de autorresponsabilidade que é característico da área negocial – não dos Direitos Fundamentais - funcionando como o contraponto da liberdade contratual e que é o princípio através do qual os “sujeitos ficam vinculados, no  presente, por declarações emitidas no passado, mesmo quando, numa reavaliação do seu interesse, delas se quereriam libertar”.
85)-Princípio de autorresponsabilidade que, mesmo no domínio do negócio jurídico, “sofre uma séria restrição, quando um dos contraentes dispõe validamente de um direito da personalidade pois a declaração é sempre revogável, gerando apenas a obrigação de indemnizar os prejuízos causados às legítimas expectativas  da outra parte (artigo 81.º, n.º2 do Código Civil)”, “e é-o, justamente, porque a exigência de cumprimento, em espécie, da prestação prometida, contra a vontade actual do obrigado, violentaria a sua personalidade, tal como esta se afirma no momento do cumprimento.”
86)-Se assim acontece no âmbito negocial ou contratual, estando em causa direitos de personalidade, por maioria de razão, no âmbito dos Direitos, Liberdades e Garantias, o direito à identidade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e o direito a constituir família – na dimensão do conhecimento e reconhecimento da paternidade – “apontam no sentido de que a vontade actual do seu titular, em integrar na sua identidade o vínculo de filiação e de constituir o laço familiar correspondente, não deve ser paralisada” – nos termos e pelos prazos previstos nos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º1, al. c), do Código Civil – “por não ter tomado antes essa iniciativa, podendo fazê-lo.”
87)-Nos termos do disposto no artigo 2.º da CRP, “a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado (…) no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais (…)”.
88)-Ora, os artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil e 2.º e 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1/04, que constituem o figurino legal actual das acções de impugnação de paternidade e de investigação de paternidade, não satisfazem o imperativo de tutela que brota dos Direitos Fundamentais.
89)-Embora os artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1/04, contenham um alargamento do prazo para 10 anos (após a maioridade) e, findo este e caso ocorram circunstâncias supervenientes, atribua ainda um prazo de 3 anos, para o filho intentar as referidas acções, a verdade é que a duração e previsão de tais prazos  é manifestamente insuficiente para o exercício efectivo dos correspondentes direitos por parte da Autora, aliás, na data da entrada em vigor da Lei n.º14/2009, a 2/04/2009, o prazo de 10 anos após a maioridade da Autora já tinha expirado, aliás, tendo atingido a maioridade em 1981, há muito se tinha completado, nomeadamente em 1991, tal prazo para intentar as referidas acções, existindo violação da tutela ou garantia de efetivação dos direitos fundamentais.
90)-A previsão dos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1/04, bem como dos artigos 2.º e 3.º da referida Lei n.º14/2009 (aplicados e interpretados no sentido de que os prazos de caducidade dos artigos 1817.º, n.º1 e n.º3, al. b) e 1842.º, n.º1, al. c), do Código Civil se aplicam retroativamente - a casos passados e não apenas para o futuro - ou seja, se aplicam a situações concretas em que o prazo de 10 anos – que se conta a partir da maioridade do filho - e de 3 anos – a contar do conhecimento de factos ou circunstâncias supervenientes - se tenham iniciado e concluído antes da entrada em vigor da Lei n.º14/2009, ou seja, antes de 02/04/2009, tendo-se por precludido o direito) não satisfazem, aliás, violam o imperativo de tutela consagrado na Constituição da República Portuguesa aos Direitos Fundamentais.
91)-Com a previsão de tais prazos não é assegurada nem a defesa, nem a garantia, nem a tutela efectiva - constitucionalmente previstas e consagradas – dos Direitos Fundamentais da Recorrente, in casu, Direitos, Liberdades e Garantias: Direito à Identidade Pessoal, Direito ao Desenvolvimento da Personalidade, bem como Direito a Constituir Família e Direito ao Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional Efectiva.
92)-Com a previsão dos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1/04, bem como dos artigos 2.º e 3.º da referida Lei n.º14/2009 (estes últimos interpretados e aplicados nos termos acima referidos), há, assim, uma perda de direitos fundamentais ou, caso assim se não entenda, uma diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, a constituir família, que incluem o direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade.
93)-Entende a Recorrente que o regime actualmente em vigor nos artigos 1817.º, n.º1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil e artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1/04, não preestabelece uma garantia de efetivação do direito ao conhecimento e reconhecimento judicial da paternidade.
94)-Os artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1/04, e os artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1/04, não eliminaram, em absoluto, a insuficiência de tutela de que notoriamente padecia o regime anterior (ao da Lei n.º 14/2009).
95)-A imposição do exercício do direito à identidade pessoal, na vertente de conhecimento e reconhecimento da paternidade, nos termos previstos nos supra mencionados artigos do Código Civil e da Lei n.º 14/2009, de 01/04, é violadora, entre outros, dos artigos 2.º, 18.º, 20.º, 26.º, 30.º, 36.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
96)-In casu, não se pode legitimar a perda do direito ao conhecimento e reconhecimento judicial da paternidade pela autorresponsabilidade da aqui Recorrente (filha) em não ter exercitado a acção dentro de determinado prazo.
97)-Não nos esqueçamos que se não aceita que a Recorrente tenha intentado a acção de impugnação e de investigação de paternidade fora de prazo pois, como já se frisou, considera a aqui Recorrente que a Lei n.º14/2009 apenas pode dispor para futuro, ou seja, mesmo que os prazos por esta Lei estabelecidos e constantes da redacção actual dos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil se considerem válidos e as normas que os prevêem se considerem constitucionais – o que se não aceita - sempre os mesmos teriam de iniciar a sua  contagem desde a data da entrada em vigor da Lei n.º14/2009 e não da maioridade da Recorrente), além de que, o prazo de 10 anos, caso se conte a partir da maioridade, já há muito se encontrava para a Autora/Recorrente ultrapassado (maioridade em 1981, termo do prazo de 10 anos em 1991).
98)-Nos termos do disposto nos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, abstendo-se o suposto filho de instaurar a acção no período em que o poderia ter feito, perde o direito a desenvolver a sua personalidade e de conformar a sua identidade no sentido de adquirir o estatuto de filho do seu progenitor biológico.
99)-Ora, “(…) Não se pode justificar o efeito preclusivo pelo facto de o investigante querer agora o que aparentemente não quis no passado, pois a possibilidade de mudança de atitude está ínsita no direito ao livre desenvolvimento da personalidade.”
100)-Sendo, assim, descabidos os juízos de censura que se façam pela passividade manifestada pelo titular do direito quando podia ter instaurado a acção e não instaurou. Aliás, “nem essa passividade (…) é justificativa de um desmerecimento posterior da tutela, com a consequente preclusão do direito à acção que a concretiza.”
101)-O direito que o filho perde, pela vigência dos prazos de caducidade, não é equilibradamente ponderado nem compensado pelos fins prosseguidos com tal perda, inexistindo uma justificada, necessária e em medida não excessiva tutela de interesses contrapostos.
102)-Contexto em que, a fixação de um prazo para interposição da acção de reconhecimento judicial da paternidade faz com que o esgotamento desse prazo seja um verdadeiro facto extintivo dos direitos que a acção exercitaria.
103)-Caso se admita não estar em causa uma perda de direitos da Recorrente, constitucionalmente proibida pelos artigos 2.º, 18.º e 30.º da CRP, entre outros, e se admita a existência de um prazo para exercício do direito de impugnação e de investigação de paternidade ou uma restrição temporal de exercício, sempre o referido prazo ou restrição temporal constituiria uma afetação do núcleo essencial dos direitos fundamentais envolvidos da Recorrente, violadora do artigo 18.º da CRP, e, caso assim se não entendesse e se fosse considerado estarmos perante um condicionamento – o que se não aceita – sempre ocorreria, por via do condicionamento, uma desprotecção excessivamente dos direitos fundamentais da Recorrente, sem que interesses do investigado e dos terceiros em que o reconhecimento se repercute o justifique, verificando-se a violação do princípio da proporcionalidade, o que seguidamente se analisará.
104)-É injustificado e excessivo fazer recair sobre o titular do direito à identidade pessoal e ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, um ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da filiação,atendendo à natureza e grau de merecimento de tutela dos direitos do investigante, quando confrontados com os interesses contrários do investigado e valorados à luz de todos os vectores constitucionais em jogo.
105)-A exposição da vida privada do investigado é inevitável e resulta de factos próprios do suposto pai que podia ter assumido a paternidade e não o fez.
106)-O investigado tem meios ao seu alcance para evitar a instauração da acção, mais tardia ou não, e satisfazer o interesse em por termo à incerteza.
107)-Não faz sentido que o direito do investigado à reserva da vida privada paralise o direito do filho ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, isto é, que se salvaguarde a privacidade, “sossego” e a estabilidade da sua situação pessoal e familiar, à custa do direito do filho a investigar e a fazer reconhecer a filiação.
108)-O decurso de certo período de tempo não pode fazer nascer ou reforçar posições tuteláveis do progenitor a tal ponto que estas passam a exigir a extinção do direito do filho ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, em que é que o exercício tardio da pretensão investigatória fere mais direitos do investigado em termos de justificar que estes atinjam uma dignidade de tutela até aí inexistente.
109)-Como é que a medida do tempo pode ser aqui medida da tutela e factor único de uma alteração qualitativa do sentido da protecção conferida pelo ordenamento, deslocando-a da esfera do filho para a do suposto pai.
110)-O investigado não é titular de direito pessoais que, na sua expressão concreta, possam ser vistos como a contraface simetricamente homóloga, no mesmo plano valorativo, dos direitos do filho, em termos de justificarem a amputação que estes sofrem com a caducidade.
111)-Os direitos pessoais do pai não ganham, com o decurso do tempo, uma tão sólida ou acrescida força de contraposição que passe a justificar-se a sua prevalência. Inversamente, os direitos pessoalíssimos da filha (à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade), não perdem, com o passar do tempo, intensidade de valoração.
112)-É descabido, neste domínio de Direitos, Liberdades e Garantias, a culpabilização da filha/recorrente por não ter diligenciado em exercer mais cedo o seu direito à acção, a passagem do tempo não provoca o esbatimento do grau de merecimento de tutela dos seus direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade e a constituir família.
113)-Realizada a ponderação das posições subjectivas de cada uma das partes, face à sua natureza, à sua valia intrínseca e ao seu grau de merecimento de tutela,  tendo em conta o significado do que um perde e o outro ganha, consoante o sentido da prevalência, verifica-se que com a caducidade prevista nos artigos 1817.º, n.º1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, a Recorrente perdem componentes essenciais da sua individualidade e personalidade e quem é biologicamente pai ganha a não sujeição ao reconhecimento da paternidade e a não imposição do vínculo familiar correspondente.
114)-A desproporção das consequências acima referidas é manifesta e não se altera pelo decurso do tempo, nem justificam que os interesses do investigado  sejam acautelados à custa de um direito pessoalíssimo da filha/recorrente em ver conhecida a paternidade, em ver o seu direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade plenamente exercido.
115)-Também o    argumento    de    que    há    razões   objectivas ou valores constitucionalmente credenciados que fundamentam a limitação temporal do exercício da acção de investigação e reconhecimento da paternidade não colhe.
116)-Há muito se chamava à colação a segurança jurídica no sentido de que a situação de facto gerada pelo não exercício, dentro de certo prazo, do direito à ação justificava a imposição dessa situação como definitiva.
117)-Relacionada com tal argumento estava a perecibilidade das provas, hoje (e há largos anos) completamente ultrapassada pelo valor probatório da perícia pelo ADN.
118)-Ora, a segurança jurídica, como se mencionava no Acórdão n.º 23/2006, “não      deve   sobrevalorizar-se,    no       confronto com bens constitutivos da personalidade, a garantia de “segurança jurídica”, que releva sobretudo no âmbito patrimonial.”.
119) - Mais, a caducidade da acção de impugnação de paternidade e da acção de investigação de paternidade não permite atingir aquele fim pois «a segurança autentica só pode nascer da criação de uma certeza objectiva a esse respeito, através da averiguação adequada», ou seja, «é a investigação da paternidade e não a impossibilidade de a investigar, por caducidade do direito de ação, que, do ponto de vista do interesse público, satisfaz as exigências, também de segurança, que  institutoda        filiação           reclama».      -      Joaquim de Sousa Ribeiro, in «A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade», RLJ, Ano 147.º, n.º 4009 (Março-Abril 2019), “Ao facto jurídico do reconhecimento judicial da paternidade subjaz, como seu substrato, o facto natural de filiação. E este não pode a ordem jurídica eliminar, pelo que, subsistindo, em relação a ele, dúvidas que a caducidade já não permite desfazer, a situação gerada é a de continuidade da incerteza, não de segurança.”,
120)- “É desejável que essa determinação seja estabelecida na fase mais precoce possível da vida do nascido fora do matrimónio. Mas o interesse público em que se estabeleça      o          vínculo de paternidade o mais cedo possível não pode, paradoxalmente, justificar que ele, contra a vontade do filho, acabe por ficar por satisfazer, ultrapassada certa data.” – Idem.
121)-No entanto, do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil resulta que a perfilhação dos filhos maiores ou emancipados só produz efeitos se estes derem o seu assentimento,
122)-Assim, o sistema entende que, atingida a maioridade do filho sem que a filiação esteja estabelecida, o interesse público esmorece e passa a vontade autodeterminada do próprio filho, titular do direito, a prevalecer.
123)-Assim, é desprovida de sentido a invocação da segurança jurídica (em sentido objectivo) para justificar a limitação temporal do exercício do direito, ou seja, para limitar a vontade do seu titular em o exercitar, após os 28 (10 anos a  contar da maioridade) ou mais anos de idade (findo aquele prazo ainda é possível, pode ainda existir o prazo de 3 anos), através da instauração da competente acção.
Segurança jurídica que, não estando expressamente prevista na Constituição da República Portuguesa, se infere do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da CRP) mas que em momento algum poderá justificar a fixação de um prazo de caducidade para a acção de impugnação e investigação de paternidade, em violação da tutela efectiva de direitos fundamentais que o mesmo artigo expressamente consagra.
124)-Isto é, no caso concreto, não está nem poderá estar em causa, no outro prato da balança e a sopesar com o direito fundamental do filho - à sua identidade pessoal, ao desenvolvimento da sua personalidade, ao conhecimento e reconhecimento da paternidade - o bem jurídico da segurança ou certeza jurídica (em sentido objectivo).
125)-In casu, estão sim, num dos pratos da balança, os direitos fundamentais já referidos do filho/investigante e, no outro prato, a fazer o contra balanceamento, o direito fundamental do progenitor à reserva da vida privada, sendo inexplicável que se pretenda fazer avocação do Princípio do Estado de Direito para justificar a violação da tutela de direitos fundamentais que são Direitos, Liberdades e  Garantias de um particular que é a Investigante (filha), em benefício de um outro  particular, que é o investigado ou pretenso progenitor, que se furta à responsabilidade adveniente da progenitura apenas e só pela perduração de uma situação de facto.
126)-Quanto à segurança jurídica na vertente subjectiva, enquanto protecção da confiança daqueles que sejam afectados pelo reconhecimento da paternidade, as expectativas de que o direito à investigação e declaração de paternidade não vai mais ser accionado atendendo ao decurso do tempo, não podem ser tuteladas.
127) - Pois, apenas são tuteladas expectativas jurídicas - de continuidade da situação fáctica – que sejam legítimas, fundadas em razões compatíveis com a teologia normativa do ordenamento.
128)-Não é possível tutelar ilegítimas expectativas de quem, sabendo ser pai biológico do investigante, não assumiu a paternidade, nem de quem, desconhecendo ser pai do investigante, não tinha quaisquer expectativas em relação a tal situação factual e ao exercício ou não exercício do direito ao conhecimento e reconhecimento por parte do filho investigante.
129)-Quanto a eventuais herdeiros do investigado, provando-se o facto biológico da procriação, o conhecimento e reconhecimento de um novo herdeiro (investigante) pode prejudicar os que já o eram em relação à herança sim si, no entanto, “a ponderação dos interesses em confronto”, de ambos os lados (investigante vs demais herdeiros), não se reduz “unicamente à esfera patrimonial, como se estivessem em causa apenas interesses paritários dessa natureza”.
130)-Pois, o direito exercitado pelo filho investigante é, na sua raiz, ou essência, de natureza pessoal, qualitativamente diferente, e de maior e mais forte merecimento de tutela efectiva, não podendo a segurança patrimonial dos herdeiros prevalecer à custa do direito, de natureza eminentemente pessoal, da filha investigante, nascida fora do casamento, a conhecer e ver reconhecida a paternidade.
131)-Na ponderação dos interesses ou direitos dos herdeiros do investigado e dos interesses ou direitos da filha/investigante, em momento algum os primeiros (de natureza patrimonial) podem justificar o desmerecimento da tutela do segundo (de natureza pessoal) que é excluído após o decurso dos prazos previstos nos artigos 1817.º n.º 1 e n.º 3, al. b), e 1842.º, n.º 1, al. c) do Código Civil.
132)-Até porque, como já foi por diversas vezes sublinhado por diversos acórdãos:
“a ordem jurídica não mostra uma preocupação absoluta com a segurança   patrimonial dos herdeiros reconhecidos do progenitor, podendo qualquer herdeiro preterido intentar acção de “petição de herança”, a todo o tempo, com sacrifício de quem tiver recebido os bens (art. 2075.º do Código Civil)”, “O início e a duração do prazo previsto nos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 2 al. c) e 1842, al. c) do Código Civil é indiferente à data do eventual falecimento do pai/do investigado, não estando excluído que os beneficiários de uma aquisição sucessória há muito verificada sejam surpreendidos com a chegada de um novo titular do direito à herança (o filho que, dentro do prazo fixado, obteve o reconhecimento dessa qualidade) pelo que o prazo de caducidade não garante a segurança patrimonial dos herdeiros nem podia garantir as suas expectativas a tais interesses patrimoniais (herança).”
133)-No caso de conflito entre direitos fundamentais ou de colisão entre direito fundamental e um bem jurídico, têm de existir interesses contrapostos com um tal grau de merecimento de tutela que possam levar a admitir a prevalência de uns e a postergação ou cedência de outros, em maior ou menor grau.
134)-Limitar temporalmente o exercício da acção de impugnação e investigação de paternidade, “pode significar, na vida real e no caso concreto, que a filha/recorrente fique condenada, contra vontade, a ter a sua identidade pessoal amputada de um elemento constitutivo e a ter definitivamente prejudicada a plena dignidade da sua auto-representação pessoal e do seu posicionamento social”.
135)-No puro plano da ponderação dos direitos contrapostos de investigante e do investigado ou dos seus herdeiros), a balança deve pender para o lado do primeiro.
136)-A caducidade importa a desprotecção de direitos fundamentais nucleares ou essenciais do suposto filho, que são direitos fundamentais, de natureza pessoalíssima (Direitos. Liberdades e Garantias), de modo suficientemente intensa que só poderia ser legitimada por um dever de não ingerência excessiva em  posições equivalentes, a nível jurídico-constitucional, do investigado (suposto pai) ou dos seus herdeiros.
137)-No entanto, nenhuma das posições habitualmente invocadas – seja do investigado/pretenso progenitor, seja dos seus herdeiros – apresenta tal equivalência ou virtualidade e “nem a erosão do tempo altera (…), neste plano, os dados de ponderação”, ou seja, a intensidade valorativa do direito à identidade pessoal e dos que lhe estão associados não se confronta com interesses cujo merecimento de tutela justifique, em ponderação, o sacrifício daqueles direitos por via da vigência de um prazo de caducidade.
138)-Os artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), todos do Código Civil, estabelecem, de acordo com a jurisprudência, prazos de caducidade da acção de impugnação de paternidade e da acção de investigação de paternidade.
139)-O estabelecimento de um prazo de caducidade, seja de 10 anos, seja de 3 anos, ou qualquer outro, para a propositura da acção de impugnação de paternidade e da acção de investigação de paternidade, constitui uma perda de um Direito Fundamental ou, caso assim se não entenda, constitui uma verdadeira restrição ao direito à identidade pessoal e ao direito a constituir família da Recorrente, restrição que é desnecessária, desproporcional e violadora do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da CRP.
140)-De forma simplista, com a previsão dos referidos prazos (de 10 anos posteriores à maioridade da investigante/impugnante ou de 3 anos, após o decurso do prazo de 10 anos anteriormente referidos, a contar do conhecimento pela investigante de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, para o caso da acção de investigação de paternidade, a contar do conhecimento pela filha/impugnante de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filha do marido da mãe, para o caso da acção de impugnação de paternidade) para a investigante intentar as acções  mencionadas de impugnação e de investigação de paternidade) “deixa-se entrar  pela janela aquilo que não se deixou entrar pela porta”.
 141)-A natureza pessoalíssima dos direitos fundamentais – intimamente relacionada com o princípio da dignidade da pessoa humana - torna-os  indisponíveis e imprescritíveis, sendo também caracterizados pelo “carácter livre” do seu exercício. - Jorge Miranda, Curso de Direito Constitucional, Normas Constitucionais. Direitos Fundamentais. Actividade Constitucional do Estado. Fiscalização de constitucionalidade. Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa 2020, pág. 64.
142)-Ora, os direitos fundamentais são direitos de natureza pessoal e indisponíveis e, como tal, imprescritíveis e “não caducáveis”, ou seja, não sujeitos a um prazo ou restrição temporal para o seu exercício.
143)-Não sendo coerente, a nível sistemático, que se imponha um regime mais gravoso para os direitos fundamentais, in casu, direitos, liberdades e garantias (direito à identidade pessoal; direito ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade) comparativamente com o regime que, em regra (mas não apenas), está relacionado com direitos de natureza patrimonial.
144)-Veja-se que, in casu, se estabelece nos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, prazos de 10 anos e de 3 anos, para o exercício de direitos fundamentais pelo seu titular (investigante), mas o prazo ordinário de prescrição, relacionado com direitos de natureza patrimonial, é de 20 anos (309.º C. Civil).
145)-Assim, tendo a previsão de caducidade patente nos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º1, al. c), todos do Código Civil, por efeito a extinção do direito fundamental da Recorrente, em momento algum se pode qualificar de condicionamento tal previsão aplicada no caso concreto dos presentes autos.
146) - Sucede que, com a previsão constante dos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, na sua redacção actual, não se impõe apenas uma limitação temporal ao exercício dos Direitos Fundamentais da Recorrente, nem se retira apenas parte do exercício do Direito, antes, sim, por via do disposto nos artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º1, al. c), do Código Civil, tendo sido ultrapassados tais prazos de caducidade, ocorre a verdadeira extinção dos Direitos Fundamentais da Recorrente (a ver conhecida e reconhecida a sua paternidade, a sua identidade pessoal).
147)-Não estamos, como se verifica, perante uma verdadeira restrição de Direitos Fundamentais, mas sim perante uma perda de Direitos Fundamentais, perda de Direitos Fundamentais que é inconstitucional porque violadora de todos os princípios constitucionais que enformam o Estado de Direito Democrático e os Direitos Fundamentais, previstos, entre outros, nos artigos 1.º; 2.º; 3.º; 9.º, al. b) e d); 12.º, 13.º, 18.º, 20.º, 30.º, n.º 4 (este último relacionado com a proibição da denominada “morte cívica”, que     durante      muito  tempo se        defendeuacessoriamente à condenação em processo penal) da Constituição da República Portuguesa.
148)-Caso se não entenda que está em causa uma perda de Direitos Fundamentais, sempre a situação concreta se enquadraria numa restrição de  Direitos Fundamentais (e não de condicionamento) pelos motivos já referidos, ou  seja, não há um mero condicionamento do Direito ou do exercício do Direito (no condicionamento condiciona-se o exercício do Direito mas nada se lhe retira), pois a imposição da limitação temporal por via do regime da caducidade gera a extinção ou desaparecimento do Direito Fundamental, ou seja, há a afetação do seu núcleo essencial.
149) - Sendo que, os artigos 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 1842.º, n.º 1, al. c), todos do Código Civil, que prevêem prazos de caducidade, para a propositura da acção de impugnação de paternidade e da acção de investigação de paternidade, são inconstitucionais, como já se alegou e seguidamente se continuará a alegar, pois violam, entre outros, o artigo 18.º, 20.º, 26.º, 36.º da Constituição da República Portuguesa, e constituem uma        restrição desnecessária, injustificada, desproporcional e excessiva, diminuindo a extensão e o alcance do conteúdo, essencial dos direitos fundamentais da recorrente e dos preceitos constitucionais já mencionados.
150)-Mesmo que se entenda que se está perante um condicionamento e não uma restrição, sempre o condicionamento seria desproporcional, atendendo aos fundamentos supra alegados.
 ACRESCE QUE:
151)-Na Lei da Procriação Medicamente assistida (Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho), a tutela do direito à reserva da vida privada do dador, não teve peso de ponderação bastante para ofuscar o direito ao conhecimento das origens genéticas, como componente do direito à identidade pessoal dos que assim foram gerados.
152)-O próprio Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do n.º 1 (…) e do n.º 4 do artigo 15.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, por violação dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade de tais pessoas em consequência de uma restrição desnecessária dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, com o artigo 26.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018.
 153) - É incompreensível que ao direito ao conhecimento e reconhecimento de paternidade se imponha um prazo de caducidade para o seu exercício e se considere que os artigos que impõem tal prazo são constitucionais e que aqueles que foram gerados através de métodos de procriação medicamente assistida tenham direito, a todo o tempo, a conhecer a identidade do dador, ou seja, a exercer o seu direito à identidade pessoal sem limites, ou seja, em ambas as situações está em causa o direito à identidade pessoal!
154)-No entanto, aos primeiros, por via da caducidade, amputa-se e extingue-se o direito à identidade pessoal (conhecimento e reconhecimento da paternidade), e aos segundos reconhece-se, sem limitação temporal, o direito à identidade pessoal (ao conhecimento das origens genéticas), o que sempre constituirá violação do princípio da igualdade e da não discriminação previstos nos artigos 13.º e 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
155)-Em abono do supra alegado, em II e III, indicam-se várias decisões proferidas por este Supremo Tribunal, designadamente: os Acórdãos de 18/01/2011 (Processo 193/2009.1BPTL.G1, 2ª Secção, relatado pelo Conselheiro Pereira da Rocha), 14/05/2019 (Processo 1731/16.9T8CSC.L1.S1, 1ª Secção, relatado pelo Conselheiro Paulo Sá), de 15/02/2018 (Processo 2344/5.8T8BCL.G1.S2, 6ª Secção, relatado pela Conselheira Graça Amaral), de 31/10/2017 (Processo 440/12.2TBBCL.G1.S1, 1ª Secção, relatado pelo Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves), de 14/01/2014, (Processo 155/12.1TBVLCA. P1.S1, 1ª Secção, relatado pelo Conselheiro Martins de Sousa) e ainda de 26/01/2021 (Processo 2151/18.6T8VCT.G1-S1, relatado pela Conselheira Graça Amaral), todos disponíveis em www.dgsi.pt
156)-Por tudo quanto se vem de dizer, deveria a Relação ter decidido que o artigo 1817.º n.º 1 e n.º 2 al. c), aplicável “ex vi” do disposto no artigo 1873.º do Código Civil e 1842.º, al. c) do Código Civil, na medida em que fixam um prazo para o exercício da acção de impugnação e de investigação de paternidade, e 2.º e 3.º da  Lei n.º 14/2009 ser declarados inconstitucionais, desaplicando-os “in casu” e ter julgado a acção tempestiva e procedente.
157)-Ao não o fazer, o Aresto revidendo fez uma errada interpretação e aplicação do Direito, violando as normas vertidas nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 9.º, 12.º, 13.º, 18.º, 20.º, 26.º, 30.º, 26.º, 36.º e 281.º da Constituição da República Portuguesa.
Contra-alegaram os RR,  pugnando pela improcedência da revista.
Remetidos os autos à Formação, nos termos e para os efeitos do artigo 672º, nº 3, do Código de Processo Civil, foi proferido acórdão, datado de 15 de Junho de 2022, que admitiu a revista excepcional com fundamento na verificação das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil.
Consta deste aresto:
“A Autora, aqui Recorrente, faz assentar a sua pretensão recursória, na circunstância genérica de que a questão solvenda, a se, tem uma manifesta relevância jurídica e social.
A relevância jurídica necessária para uma melhor aplicação do direito ocorre quando se trate de questão manifestamente complexa, de difícil resolução, cuja subsunção jurídica imponha um largo debate na doutrina e na jurisprudência com o objectivo de obter um consenso em termos de servir de orientação, quer para as pessoas que possam ter um interesse jurídico ou profissional na resolução de tal questão, a fim de tomarem conhecimento da provável interpretação, que poderão contar, das normas aplicáveis, quer para as instâncias, para uma melhor clarificação da orientação jurisprudencial, bem como a sua eventual natureza inovadora, em termos de se justificar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para evitar polissemias interpretativas.
Por seu turno, entendem-se como sendo de particular relevância social as questões com repercussão, ou, em limite, alarme, e/ou controvérsia, por conexão com valores socioculturais, inquietantes implicações políticas, que ponham em causa a eficácia do direito ou façam duvidar da sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística, ou em que exista um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes.
A ratio essendi em equação nos autos reside na discussão do «direito à identidade pessoal» e o «direito à integridade pessoal» consagrados nos artigos 26°, n°l   e 25°, n°l   da Lei Fundamental, que se encontram ao serviço do núcleo essencial da pessoa humana e da sua vida, englobando o que se denomina os direitos da personalidade, estando o seu conteúdo delimitado. além do mais, pelo direito do individuo à sua historicidade pessoal, implicando necessariamente o direito ao conhecimento da identidade dos seus progenitores, aqui se fundando, logicamente. o direito à investigação da paternidade, além do mais.
Qualquer controvérsia jurisdicional que envolva estes direitos conduz, por si só, à asserção de que se está, indubitavelmente, perante uma questão de grande relevo jurídico, a qual tem envolvido ao longo dos anos, um grande debate doutrinário e jurisprudencial, com a emissão constante de posições nem sempre conciliáveis, tendo em atenção os dispositivos constitucionais aplicáveis.
De outra banda, trata-se de uma problemática que pela sua natureza interfere directamente com valores societários basilares, porquanto diz respeito às relações familiares dos indivíduos e à sua integração no espaço cívico, carenciadas de uma abordagem cuidada e sempre actualizada, atento o seu manifesto interesse, não sendo indiferente qualquer das soluções que se apresentem.
Não obstante se tenha em atenção as constantes tomadas de posição do Tribunal Constitucional em relação à interpretação do disposto no artigo 1817°, n°l do CCivil no sentido da sua constitucionalidade, não podemos igualmente ignorar outras posições ex adverso, sustentadas por este Supremo Tribunal de Justiça, além do mais, o que nos conduz a sustentar uma visão de abertura perante esta questão, a qual está longe de se considerar encerrada, o que faz suscitar a necessidade de intervenção deste órgão”.


II – FACTOS PROVADOS.   
1. A Autora, AA, nasceu no dia .../.../1963, na freguesia ..., concelho ..., tendo sido registada na Conservatória do Registo Civil ..., como sendo filha de GG e de JJ;
2. Os quais haviam casado em primeiras e recíprocas núpcias de ambos em 6 de Julho de 1957.
3. O presumido pai da Autora, KK, faleceu “ab intestato” no dia 26 (vinte e seis) de .../.../2000 (dois mil), sem ascendentes, tendo deixado como seus únicos e universais herdeiros: A) – o cônjuge sobrevivo, JJ e os seguintes filhos: B) – a Autora e impugnante da paternidade, AA, C) - a 1.ª Ré, BB.
4. Por seu turno, a referida JJ faleceu em 6  (seis) de .../.../2004 (dois mil e quatro), em ..., tendo deixado como seus únicos e universais herdeiros a aqui 1.ª Ré, BB e a ora Autora, AA.
5. No dia 12 (doze) de Outubro de 2003 (dois mil e três), na Freguesia ..., faleceu FF.
6. FF faleceu com 72 (setenta e dois) anos, sem  ascendentes, no estado de divorciado, tendo deixado, como únicas e universais herdeiras, suas filhas (reconhecidas), 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés.
7. Atenta a data de nascimento da Autora (.../.../1963), a data legal da sua  concepção ocorreu entre o dia 17 de Julho de 1962 e o dia 13 de Novembro de 62, ou seja, nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam seu nascimento.
8. A Autora atingiu a maioridade em ... de ... de 1981.
9. A Autora declara que em data incerta, mas antes de falecer em .../.../2004, a sua mãe lhe confessou não ser esta filha de GG, mas sim, de FF.
10. A presente acção de impugnação de paternidade relativamente a GG, e de investigação de paternidade relativamente a FF, foi instaurada em 7 de Janeiro de 2019.


III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
(In)constitucionalidade do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redacção da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de caducidade de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.
1 – Considerações prévias.
2 - Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal Constitucional e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
 3 - Do direito ao conhecimento da paternidade biológica, bem como ao estabelecimento do correspondente vínculo jurídico, enquanto elementos fulcrais e decisivos para a afirmação da identidade pessoal e total integração no sistema jurídico e na sociedade em geral, devidamente salvaguardados, enquanto direitos pessoalíssimos, absolutos e fundamentais, nos artigos 26º, nº 1, e 25º, nº 1, e 36º da Constituição da República Portuguesa.
4 - Análise das particularidades referentes à situação sub judice.
Passemos à sua análise:
(In)constitucionalidade do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redacção da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de caducidade de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.
1 – Considerações prévias.
A presente revista excepcional foi admitida pela Formação deste Supremo Tribunal de Justiça assente no pressuposto de que:
Não obstante se tenha em atenção as constantes tomadas de posição do Tribunal Constitucional em relação à interpretação do disposto no artigo 1817°, n° l do CCivil no sentido da sua constitucionalidade, não podemos igualmente ignorar outras posições ex adverso, sustentadas por este Supremo Tribunal de Justiça, além do mais, o que nos conduz a sustentar uma visão de abertura perante esta questão, a qual está longe de se considerar encerrada, o que faz suscitar a necessidade de intervenção deste órgão”.
Tal significa (necessariamente) que na apreciação e julgamento da presente revista é exigido ao Supremo Tribunal de Justiça que não se limite à mera aceitação/adesão passiva e acrítica relativamente ao decidido no acórdão do Tribunal Constitucional (relator João Caupers), tirado em Plenário, datado de 3 de Julho de 2019,  no processo nº 471/2017, publicado in www.tribunalconstitucional.pt., onde se concluiu:
“Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se âs acções de investigação de paternidade, por força do disposto no artigo 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante”.
A discussão acerca da constitucionalidade de normas legais não pode, de forma séria e conscienciosa, considerar-se temporalmente cristalizada ou perpetuamente arrumada e para sempre fechada à capacidade de reponderação do pensamento jurídico, com a decisão colegial do Tribunal Constitucional, tomada em 3 de Julho de 2019, - como afirmou aliás a Formação do Supremo Tribunal de Justiça “esta questão, a qual está longe de se considerar encerrada” -, sendo perfeitamente legítimo o seu natural e salutar requestionamento, que transporta em si, felizmente, a fecundidade transformadora de um novo olhar reflexivo e crítico sobre matéria tão invulgarmente sensível no plano superior dos direitos fundamentais e pessoalíssimos relacionados com a identidade, a personalidade e o posicionamento familiar e social do cidadão.
2 – Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal Constitucional e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Em favor do juízo de inconstitucionalidade da fixação de prazo de caducidade em acções de investigação de paternidade ou maternidade pronunciaram-se os seguintes arestos do Supremo Tribunal de Justiça:
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2012 (relator Serra Batista), proferido no processo nº 1847/08.5TVLSB-A.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, apenas referente à inconstitucionalidade da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, aos processos pendentes (cfr. respectivo artigo 3º), com invocação do acórdão do Tribunal Constitucional nº 24/2012 (relator Cunha Barbosa), datado de 17 de Janeiro de 2021, que julgou inconstitucional a norma constante do artigo 3º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redacção do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código.
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Setembro de 2010 (relator Cardoso de Albuquerque), proferido no processo nº 4/07.2TPEPS.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Novembro de 2011 (relator Martins de Sousa), proferido no processo nº 49/07.2TBRSD.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 2012 (relator Granja da Fonseca), proferido no processo nº 37/07.9TBVNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, apenas referente à inconstitucionalidade da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, aos processos pendentes (cfr. respectivo artigo 3º), com invocação do acórdão do Tribunal Constitucional nº 24/2012 (relator Cunha Barbosa), datado de 17 de Janeiro de 2021;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2021 (relatora Graça Amaral), proferido no processo nº 2151/18.6T8VCT.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Setembro de 2014 (relator Helder Roque), proferido no processo nº 973/11.8TBBCL.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, versando sobre uma situação em que o A. procedeu igualmente à impugnação da paternidade do marido de sua mãe.
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2018 (relatora Graça Amaral), proferido no processo nº 2344/15.8TBCL.G1.S2, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2019 (relator Paulo Sá), proferido no processo nº 1731/16.9T8CSC.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Novembro de 2018 (relator Pedro Lima Gonçalves), proferido no processo nº 1885/16.4T8MTR.E1.S2, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Setembro de 2010 (relator Sebastião Póvoas), proferido no processo nº 495/04.3TBOR.C1.S1;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 2012 (relator Moreira Alves), proferido no processo nº 193/09.1TbPTL.G1.S1.
Em sentido contrário, pugnando pelo juízo de constitucionalidade da fixação de prazo de caducidade em acções de investigação de paternidade ou maternidade  vide:
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Maio de 2015 (relator Abrantes Geraldes), proferido no processo nº 2615/11.2TBBCL.G2.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2012 (relator Pires da Rosa), proferido no processo nº 146/08.7TBSAT.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt, com o voto de vencido de Ana Paula Boularot, ora segunda adjunta;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2019 (relatora Assunção Raimundo), proferido no processo nº 211/17.0T8VLN.G1.S2, publicado in www.dgsi.pt; com o voto de vencido de Ana Paula Boularot, ora segunda adjunta;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Novembro de 2016 (relator Fernandes do Vale), proferido no processo nº 4704/14.2T8VIS.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt, com voto de vencido de Ana Paula Boularot;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2018 (relatora Catarina Serra), proferido no processo nº 389/14.4T8VFP.P2.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Março de 2017 (relator Lopes do Rego), proferido no processo nº 759/14.8TBSTB.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 2018 (relatora Rosa Tching), proferido no processo nº 158/15.4T8TMR.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Fevereiro de 2017 (relator Álvaro Rodrigues), proferido no processo nº 1139/14.3TBPTM.E1.S1;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2020 (relator Pinto de Almeida), proferido no processo nº 2534/17.9T8PRD.P1.S1;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Janeiro de 2020 (relator João Bernardo), proferido no processo nº 3340/17.6T8AVR.P1.S2;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Maio de 2017 (relator Tavares de Paiva), proferido no processo nº 2886/12.7TBBCL.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 2020 (relator Nuno Pinto de Oliveira), proferido no processo nº 257/18.0T8LMG.C1.S1, publicado in ECLI.pt.;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março de 2018 (relator Alexandre Reis), proferido no processo nº 2947/12.2TBVLG.P1.S2, publicado in www.dgsi.pt;
Quanto à jurisprudência mais relevante do Tribunal Constitucional:
No que concerne à jurisprudência constitucional sobre o tema nos ocupa, cumpre referir, entre muitos outros, os seguintes acórdãos:
- o acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 (relator Paulo Mota Pinto), datado de 10 de Janeiro de 2006, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito a investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1, 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
- o acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/2011 (relator Cura Mariano), datado de 22 de Setembro de de 2011, que não julgou inconstitucional a norma do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de inconstitucionalidade, por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.
- o acórdão do Tribunal Constitucional nº 24/2012 (relator Cunha Barbosa), datado de 17 de Janeiro de 2021 que julgou inconstitucional a norma constante do artigo 3º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redacção do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código.
- acórdão do Tribunal Constitucional (relator João Caupers), tirado em Plenário, datado de 3 de Julho de 2019,  no processo nº 471/2017 onde se concluiu: “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se âs acções de investigação de paternidade, por força do disposto no artigo 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante”.
A partir daí formou-se uma corrente jurisprudencial constante que afirma a constitucionalidade do citado prazo de caducidade de dez anos estabelecido no artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo diploma legal às acções de reconhecimento de paternidade.
Jurisprudência relevante do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pronunciou-se sobre a compatibilidade dos prazos de caducidade previstos no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil português, aplicável às acções de investigação de paternidade por via do art. 1873.º, com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no acórdão de 3 de Outubro de 2017, no caso Silva e Mondim Correia v. Portugal (queixas n.ºs 72105/14 e 20415/15, disponível em no link: https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-177229).
Nesse acórdão concluiu-se que não se verifica qualquer violação da CEDH, em especial do artigo 8.º, por parte da legislação nacional.
O TEDH entendeu, assim, que embora o direito ao respeito da vida privada e familiar, previsto no artigo 8.º, n.º 1, da Convenção, implique o direito ao conhecimento da filiação biológica, o estabelecimento de prazos preclusivos para a instauração de acções de investigação da paternidade biológica não viola a Convenção, desde que tais prazos possibilitem um justo equilíbrio entre, por um lado, aquele direito à identidade pessoal e, por outro lado, o interesse em evitar um injustificado prolongamento da indefinição da situação familiar e em assegurar a segurança jurídica e o respeito pela vida privada do investigado e da sua família mais próxima, atendendo às consequências pessoais e patrimoniais do reconhecimento da paternidade.
Cumpre notar que o que foi ponderado pelo TEDH foi saber se os concretos prazos de caducidade legalmente fixados possibilitam o exercício real daquele direito ao conhecimento da filiação biológica, não constituindo um ónus excessivo que, na prática, impeça aquele exercício, tendo concluído que no caso da legislação portuguesa tal não sucede.
Cumpre ressalvar, todavia, que o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, preceito legal base à luz do qual foi analisada a pretensão submetida ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), tem a seguinte redacção:
Direito ao respeito pela vida privada e familiar.
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e da liberdade de terceiros”.
 Ou seja, este normativo, desde logo pela sua concreta redacção, reveste natureza e alcance completamente diversos daqueles que resultam das normas dos artigos 25º, nº 1, 26º, nº 1 e 36º da Constituição da República Portuguesa, não podendo de modo algum ser equiparadas as respectivas previsões normativas, o que retira naturalmente força argumentativa à invocação dos acórdãos emanadas do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos quanto à matéria jurídica em causa.
A sua específica perspectiva não parte de uma verdadeira, directa e completa exegese do imperativo expresso na Constituição de República Portuguesa acerca do direito ao reconhecimento da identidade pessoal de cada um e ao livre desenvolvimento da sua personalidade, pelo que não pode deixar de ser relativizada - e mesmo desvalorizada – quando avocada para a discussão jurídica que ora nos ocupa.
(Sobre este ponto, vide o claro e elucidativo voto de vencida da Conselheira Maria Clara Sottomayor aposto no acórdão do Tribunal Constitucional nº 471/2017, de 3 de Julho de 2019, onde refere de forma totalmente certeira e incisiva:
“(...) a Convenção Europeia dos Direitos Fundamentais, diferentemente da Constituição, não reconhece expressamente o direito à identidade pessoal, que resulta apenas de uma interpretação ampla ou actualista do artigo 8º da CEDH, que consagra o direito à protecção da vida privada e familiar. Sendo assim, compreende-se que a jurisprudência do TEDH analise esta questão como um conflito entre direitos do mesmo valor, sem atribuir um especial peso à identidade pessoal do investigante, diluída no direito à vida privada e familiar, e de alguma forma vista como simétrica ou equivalente à privacidade do investigado e da sua família.”).
O TEDH pronunciou-se também neste sentido nos seguintes arestos:
a) Acórdão de 3 de Abril de 2014 proferido no caso Konstantinidis c. Grécia (queixa n.º 58809/09) cujo texto integral, está disponível no seguinte link:
https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-142079
b) Acórdão de 6 de Julho de 2010, proferido no caso Backlund c. Finlândia (queixa n.º 36498/05), cujo texto integral está disponível no seguinte link:
https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-99784
c) Acórdão de 6 de Julho de 2010, proferido no caso Gronmark c. Finlândia (queixa n.º 17038/04) cujo texto integral, em língua inglesa, está disponível no seguinte link:
https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-99828
d) Acórdão de 20 de Dezembro de 2007, proferido no caso Phinikaridou c. Chipre (queixa n.º 23890/02), cujo texto integral, está disponível no seguinte link:
https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-84106.
3 - Do direito ao conhecimento da paternidade biológica, bem como ao estabelecimento do correspondente vínculo jurídico, enquanto elementos fulcrais e decisivos para a afirmação da identidade pessoal e total integração no sistema jurídico e na sociedade em geral, devidamente salvaguardados, enquanto direitos pessoalíssimos, absolutos e fundamentais, nos artigos 26º, nº 1, e 25º, nº 1, e 36º da Constituição da República Portuguesa.
Estabelece o artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa:
“A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.
Prevê, por seu turno, o artigo 25º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa:
“A integridade moral e física das pessoas é inviolável”.
Entre os direitos consagrados nas normas constitucionais transcritas, alcandorados ao patamar dos direitos fundamentais e absolutos que ao legislador ordinário compete especialmente promover e tutelar (e nunca diminuir, comprimir ou desvalorizar) figura, em lugar de especial destaque, o direito à identidade do indivíduo, enquanto expressão da sua verdade pessoal e integridade moral, condição sine qua non para a sua afirmação na família e na sociedade.
Estes mesmos direitos, incluídos entre os direitos, liberdades e garantias referenciados no artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, abrangem o conhecimento das origens genéticas de cada pessoa (paternidade biológica) e o estabelecimento do correspondente vínculo jurídico, que compõem, no fundo, a estrutura essencial subjacente à sua própria historicidade enquanto ser social – integrando o âmago do seu percurso de vida, assente basilarmente nas referências perenes que lhe permitem a reconstituição, na integralidade, das suas vivências (quem é e de onde veio), traduzindo ainda o legado pessoal, irrepetível e imutável, que deixará às gerações que lhe sucederem -, tudo isto se inserindo plenamente no núcleo essencial e íntimo da pessoa/cidadão.
Está em causa, portanto, o direito à sua própria identidade através da possibilidade do conhecimento da ascendência e marca genética, o que se inscreve indelevelmente na genealogia do ser humano, com profundas e impressivas projecções no campo social e histórico.
Logo, não há como não atentar – daí extraindo todas as consequências jurídicas - no carácter inequivocamente absoluto e inalienável deste direito pessoalíssimo.
Incumbe, nesse contexto, ao Estado português, através do concreto ordenamento jurídico definido pelo legislador ordinário e por força do referido imperativo de cariz constitucional, proteger especialmente a efectivação em plenitude desse reconhecimento, enquanto instrumento determinante para a afirmação do posicionamento do indivíduo na família e na sociedade, devendo o sistema legislado reunir, sem peias, obstáculos ou entraves desproporcionais ou excessivos, todos os meios aptos a proporcionar e assegurar os pressupostos de facto e de direito necessários à sua plena e total realização.
Refere Paulo Otero, in “Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser Humano”, Almedina, Setembro de 1999, a páginas 73 a 75:
“(...) o direito à historicidade pessoal compreende, além do referido direito a saber a forma como foi gerado, o concreto direito de cada ser humano a conhecer a identidade dos seus progenitores (...) enquanto expressão do próprio direito à identidade pessoal, senão mesmo por exigência decorrente do respeito pela respectiva personalidade, todo o ser humano tem o direito a saber quem são os seus pais biológicos (...) o direito à historicidade pessoal, enquanto expressão do direito à identidade pessoal, envolve a proibição de privação deliberada de família. Trata-se, aliás, de uma proibição que resulta também da tutela constitucional conferida à maternidade e à paternidade que, além de valores sociais eminentes que o Estado tem de garantir, são factores de efectivação do direito ao desenvolvimento integral da personalidade (...)”.
Concretamente sobre a questão que nos ocupa escrevem Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira in “Curso de Direito da Família”, Volume II “Direito da Filiação”, Tomo I, “Estabelecimento da Filiação. Adopção”. Coimbra Editora, 2006, a páginas 252 a 253:
“(...) creio que os progressos técnicos e os movimentos sociais de valorização das origens e de responsabilidade individual estão contra a limitação de investigar que resulta do prazo de caducidade. Em face do quadro dos direitos constitucionais implicados e de uma valoração particular dos interesses gerais defendidos pela caducidade, julgo que a limitação de agir que resulta do prazo estabelecido pela lei vigente significa uma restrição não justificada, desproporcionada, do direito do filho. Julgo, em suma, que se tornou sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabecidos nos artigos 1817º e 1873º do Código Civil”.
Perspectivando a questão por um outro prisma, que conduz igualmente ao inevitável afastamento da existência de prazo (qualquer que seja) de caducidade a opor ao investigante, vide Guilherme de Oliveira, in “Lex Familiae. Revista Portuguesa de Direito da Família, Coimbra Editora”, páginas 107 a 115, onde o insigne autor funda agora o seu raciocínio no dever jurídico do suposto progenitor de perfilhar para assumir a sua responsabilidade pelo filho, lembrando ainda, com toda a pertinência, que nos termos do artigo 1854º do Código Civil, “a perfilhação pode ser feita a todo o tempo”.
Conclui neste mesmo contexto que:
“(...) nada pode fazer caducar a responsabilidade individual pela procriação; o reconhecimento público do parentesco pode chegar a todo o tempo, seja de modo voluntário seja de modo judicialmente imposto, numa acção de investigação”
Assim sendo, cumpre concluir que o mero decurso do tempo não legitima por si só a recusa do direito fundamental da pessoa ao conhecimento da sua verdade biológica e consequente fixação, formal e pública, dos correspondentes vínculos.
 Escreveu, com total pertinência, o Prof. Manuel Costa Andrade no voto de vencido que fez juntar no acórdão, em Plenário, do Tribunal Constitucional nº 394/2019:
“(...) a identidade pessoal, valor pessoalíssimo de eminente dignidade que pontifica no horizonte teleológico do direito ao reconhecimento da paternidade, não vê a sua densidade e peso axiológicos progressivamente esbatidos e reduzidos pelo decurso do tempo”.
A este mesmo respeito, enfatizou-se, com particular acuidade, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2021 (relatora Graça Amaral), proferido no processo nº 2151/18.6T8VCT.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt:
“Não podemos deixar de considerar que qualquer limitação temporal neste âmbito, ainda que se considere de prazo razoável, constitui uma compressão da revelação da verdade biológica, que é o princípio alicerçante do regime da filiação e, nesse sentido, os direitos de identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (onde se inclui o direito a conhecer e ver reconhecida a ascendência biológica e a marca genética de cada pessoa), reconhecidos constitucionalmente enquanto direitos fundamentais, não podem deixar de ganhar uma dimensão que não se compagina com a fixação de qualquer prazo condicionante da instauração de acção de paternidade ou maternidade”.
Ou seja, não há cabimento, suporte nem espaço do ponto de vista constitucional, quando está em causa a afirmação de direitos absolutos e pessoalíssimos dos cidadãos, para uma interpretação puramente formalista, condicionadora ou minimalista em relação ao primado do respeito pelo direito fundamental do indivíduo ao conhecimento das origens genéticas, exigido pelos imperativos conjugados dos artigos 25º, nº 1, e 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que se integra ainda no direito (igualmente) fundamental à constituição de família (a sua verdadeira família) tal como se encontra genericamente consagrado no artigo 36º da Lei Fundamental.
Refere Joaquim de Sousa Ribeiro, no voto de vencido que apôs no acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/2011 (relator Cura Mariano), proferido no processo nº 497/10, publicado in www.tribunal constitucional.pt:
“O homem é um ser em devir, estando a possibilidade de autoconformação, a todo o momento, da sua esfera de vida pessoal e da personalidade própria absolutamente coberta pelo direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26º, nº 1). Este direito importa a faculdade de formação e expressão da vontade daquilo que se é ou se quer ser, no presente, sem constrições limitativas decorrentes de vivência passada. Nesta matéria, tratando-se de bens atinentes ao núcleo da personalidade, uma atitude pretérita não deve prevalecer sobre a vontade actual, por respeito àquele direito fundamental. (...) a simples inércia ou passividade, durante certo período temporal, em tomar a iniciativa de investigação de paternidade não deve ser destrutiva da legitimidade de o fazer quando, no seu critério actual do próprio, tal corresponde ao seu interesse na constituição plena da sua identidade pessoal. Tanto mais que o querer exercer, apenas numa fase mais tardia da vida, um direito de investigação que anteriormente foi negligenciado não é susceptível de censura por uma valoração externa, segundo padrões de conduta normalizada, tão complexa e singularizada é a teia de determinantes da decisão e forte a carga emocional que, muitas vezes, a caracteriza. Sem esquecer, no mesmo sentido, que a afirmação desse interesse, numa fase etária mais avançada, pode ser legitimamente influenciada pela consideração (só então possível) do interesse de outros (e, eventualmente, por pressão destes), igualmente afectados pelo desconhecimento da ascendência do investigante (os seus descendentes, muito em particular)”.
E, no fundo, é este precisamente o ponto fulcral e decisivo que impõe o juízo de inconstitucionalidade da norma do Código Civil em apreço: o propósito indevidamente assumido pelo legislador ordinário de condicionar temporalmente o exercício de um direito fundamental, absoluto e pessoalíssimo (prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação do investigante), sem atender à determinação constitucional que superiormente o vinculava, quando é comummente sabido que são diversos, respeitáveis e inquestionáveis (inclusive no plano psicológico e ético) os motivos de carácter pessoal, privado, íntimo – que só ao próprio dizem respeito - que explicam perfeitamente alguma eventual hesitação, inibição, inércia ou demora na propositura da acção judicial correspondente e destinada a obter um reconhecimento que é essencial para a definição da sua historicidade (e reflexamente a dos seus).
E não se diga que se trata de um problema que compete unicamente ao  legislador ordinário, a quem é atribuída pela Constituição autonomia praticamente ilimitada, podendo livremente escolher o prazo de caducidade que muito bem entender (que pode eventualmente vir a ser alterado por influência das vozes críticas que se façam ouvir), sujeito apenas a um difuso controlo de proporcionalidade à luz do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa (que conduziu aliás à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do prazo de dois anos após a maioridade inicialmente estabelecido, através do acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 (relator Paulo Mota Pinto), datado de 10 de Janeiro de 2006).
Ao invés, esta questão jurídica basilar coloca-se num plano insofismavelmente mais elevado de efectiva obediência e estrito cumprimento de um imperativo constitucional com o qual o mesmo legislador ordinário se deve conformar, sob pena do inerente juízo de constitucionalidade (que aqui se discute precisamente).
Comungando da necessidade de defender o juízo de inconstitucionalidade da fixação de prazo de caducidade constante do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável às acções de investigação do paternidade por força do artigo 1873º do mesmo diploma legal, vide outrossim Jorge Duarte Pinheiro in “O Direito da Família Contemporâneo”, AAFDL, 2015, 4ª edição, onde o autor afirma:
“A caducidade da investigação da paternidade ou maternidade obsta ao exercício de direitos familiares, de direitos emergentes de ligação familiar, como o direito a alimentos de fonte legal (a que corresponde, no lado passivo, o dever paternal de sustento ou assistência), tão cuidadosamente protegido pelo legislador. Ou seja, a consagração de um prazo de caducidade repugna constitucionalmente”.
A identidade pessoal constitui, pois, um insubstituível elemento caracterizador de cada ser humano, fazendo a diferença em relação a todos os outros, e abrange indiscutivelmente o direito fundamental ao reconhecimento da maternidade e/ou da paternidade.
Conforme referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, 2ª edição, 2010, a página 609, com absoluta clareza:
“O direito à identidade pessoal postula um princípio de verdade pessoal. Ninguém deve ser obrigado a viver em discordância com aquilo que pessoal e identitariamente é”.
Há, pois, que colocar este direito fundamental e absoluto no lugar cimeiro que lhe é constitucionalmente devido, sobrepondo-o à ordinária fixação de um qualquer prazo de caducidade que extingue a possibilidade inalienável de cada um querer saber quem são os seus verdadeiros ascendentes e de afirmar exteriormente as suas verdadeiras raízes de vida.
 No último acórdão do Tribunal Constitucional, tirado em plenário, sobre o juízo de constitucionalidade em discussão adoptou-se, no essencial e em síntese, o seguinte argumentário pretensamente justificativo do juízo de constitucionalidade da norma em causa:
1º - O Tribunal Constitucional afirma, desde a primeira hora, reconhecer que o investigante, ao interpor a acção judicial correspondente, está a exercer um direito fundamental (ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade biológica), que se pode extrair, seja do direito à integridade pessoal, em particular à integridade moral (artigo 25º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), seja do direito à identidade pessoal, afirmando não o pretender desconsiderar ou minimizar no plano valorativo.
Porém, acaba o acórdão do Tribunal Constitucional nº 471/2017, aprovado em Plenário, por deslocar instrumentalmente a problematização do tema para o âmbito genérico do direito de acção, previsto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, apelando então para o conceito de normas condicionadoras desse direito de acção, por contraposição às normas restritivas que, segundo afirma, “definem os pressupostos e condições do seu exercício”, não “encurtando ou estreitando o conteúdo e alcance do direito fundamental”, e que, todavia, ficam sujeitas ao padrão de controlo material ou substantivo de proporcionalidade imposto pelo artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.
Concluiu-se, dessa forma, que “o estabelecimento de prazos de caducidade não devem excluir-se mesmo quando os direitos substantivos que se pretendem judicialmente garantir assumam a natureza de direitos fundamentais”.
Daí sustentar-se, repetidamente, a autonomia do legislador ordinário na concreta conformação normativa do dever estadual de protecção jurisdicional dos direitos fundamentais, embora se afirme o controlo da adequação e suficiência de tais prazos, de forma a não limitarem excessivamente a afirmação da pretensão substantiva por eles condicionada.
2º - No entender do Tribunal Constitucional, a Constituição da República Portuguesa não impõe a maximização da protecção do direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, enquanto componente essencial dos direitos à identidade pessoal e a constituir família.
Assente nesse pressuposto básico, conclui que o prazo definido no artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, não impede o interessado, dispondo de um tempo de reflexão razoável, de esclarecer as suas dúvidas quanto ao pretenso pai e, se for caso disso, ver judicialmente reconhecida a sua ascendência biológica e estabelecido o vínculo de filiação.
3º - Acrescenta o Tribunal Constitucional que o prazo de caducidade em causa acautela que o esclarecimento e definição de um vínculo tão importante como a filiação, do ponto de vista social e jurídico, evitando que fique indefinidamente dependente da exclusiva vontade de um único interessado, salvaguardando, em contrapartida, a reserva da intimidade da vida privada e familiar dos potenciais investigados e seus familiares.
Neste contexto, considera que o tratamento que a Lei Fundamental dá ao vínculo jurídico da filiação, uma vez constituído, mostra que a preocupação fundamental do poder constituinte subjacente à consagração dessa obrigação do Estado se projecte nas etapas iniciais do desenvolvimento da pessoa humana. Atento o conceito aberto e funcional de família que a Constituição acolhe, a haver alguma obrigação constitucional sobre o exercício no tempo do direito de acção de investigação de paternidade, que é precisamente o meio de constituição de vínculos jurídicos familiares, ela vai no sentido de impor ao Estado o dever de assegurar a possibilidade da sua instauração nas fases da vida que mais reclamam a definição jurídica de filiação. A Constituição estabelece, nesta matéria, um limite mínimo de protecção jurisdicional que temporalmente coincide com as primeiras fases da vida do titular do direito, a da infância e juventude, não havendo sinais normativos que possam ser interpretados como denotando uma intencionalidade vinculativa de extensão ou maximização dessa protecção por toda a vida.
4º - Neste sentido, o Tribunal Constitucional afirma que a norma do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, estimulando o exercício do direito de acção no prazo de caducidade aí estabelecido, viabiliza a constituição da relação jurídica de filiação a tempo de assegurar ao filho a efectiva satisfação dos bens jurídicos pessoais tutelados pelos direitos que para si dela emergem.
5º - Por outro lado, defende que, na hipótese de o investigado não ser o pai biológico do investigante a pertinência constitucional da norma do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, avaliada à luz dos direitos fundamentais e da identidade da família, impõe-se com particular evidência.
6º - Conclui o Tribunal Constituição, em síntese, que fixar-se o termo final do prazo de caducidade garante que as acções de investigação da paternidade serão instauradas na infância ou juventude dos filhos, assegurando a inclusão identitária do próprio filho na esfera de vivência pessoal e familiar do pai, permitindo que o vínculo genético se possa ainda converter numa relação de proximidade histórico-existencial e de apoio recíproco, como é próprio das relações familiares. Com a passagem do tempo o direito (do investigante) vai adquirindo novas cambiantes, e numa fase adulta (do investigante) assume uma dimensão essencialmente patrimonial (uma vez que nesta fase não é materialmente possível dar satisfação aos bens juridicos tutelados por aquele direito que, por isso, viram o seu conteúdo original irremediavelmente comprometido, não por força de qualquer norma, mas por efeito da mera passagem do tempo.
O que dizer?
A melhor resposta a este argumentário (decalcado em grande parte no explanado no acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/2011 (relator Cura Mariano), datado de 22 de Setembro de 2011) reside na súmula, perfeita e certeira, tocante e incisiva, realizada pelo Professor Costa Andrade, no seu voto de vencido aposto no mesmo acórdão, onde pode ler-se:
“Numa brevíssima síntese conclusiva, enquanto o filho investigante joga no caso os valores atinentes à essência e existência, os terceiros atingidos jogam apenas contingentes das suas circunstâncias”.
E esta é a ideia-chave, absolutamente nuclear na sua profundidade essencial e decisiva, que a Constituição da República Portuguesa superiormente consagrou e que o Tribunal Constitucional, no seu acórdão em Plenário, e salvo o muito e sempre devido respeito, não terá logrado equacionar, nem atribuir o relevo que lhe competia.
Vejamos ponto por ponto:
1º - É indiscutível que o legislador ordinário dispõe, em termos gerais e em diversas matérias, de autonomia para fixar prazos condicionantes do exercício do direito de acção, em prol da segurança jurídica e da necessidade de rápida definição das situações em potencial litígio, acautelando ainda as legítimas expectativas dos interessados.
Porém, essa autonomia tem como inultrapassável limite a ofensa a normas ou princípios de natureza constitucional, estruturantes e basilares de todo o nosso edifício legislativo.
A dita competência do legislador ordinário cessa necessariamente quando se vislumbra a desconformidade entre o poder de delimitar temporalmente o exercício do direito de acção e a concreta e efectiva realização de imperativos primordiais consagrados nos artigos 25º e 26º da Constituição da República Portuguesa, destinados ao reconhecimento de direitos fundamentais absolutos e pessoalíssimos, que devem, atenta a sua natureza, poder ser reconhecidos a todo o tempo.
Note-se que se discute o direito de todos ao conhecimento das suas origens genéticas, sociais, geográficas e culturais, desvelando a sua singular e irrepetível historicidade, bem como o seu real posicionamento na família e na sociedade, com reflexos nas gerações vindouras, e que tem, pela própria natureza das coisas, que acompanhar o respectivo titular durante toda a sua vida, conforme salienta insistentemente a doutrina moderna mais credenciada que se debruça e escreve, com rigor e profundidade, sobre o tema.
A este propósito, bem enfatiza Rafael Luís Vale e Reis, in “O Direito ao Conhecimento das Origens Genéticas”, Coimbra Editora, 2008, a página 205, “o artificialismo em que recaía a distinção entre normas restritivas dos direitos fundamentais e as meramente condicionadoras do respectivo exercício”, precipitando-se o mesmo autor ao referir, na altura, que o “Tribunal Constitucional tinha deixado cair tal diferenciação”
2º - Discorda-se, portanto, da pretensa autonomia atribuída ao legislador ordinário – alegadamente em conformidade com o texto constitucional – para decidir, de forma abstracta e generalizadora, em toda e qualquer situação, sobre qual seria o tempo de reflexão adequado e necessário para o investigante instaurar a acção de reconhecimento da paternidade biológica.
A panóplia de variadas motivações subjacentes à hesitação ou inibição pessoal na interposição da acção de investigação não pode obviamente ser simplisticamente reunida e sumariamente agregada no limite final (regra) para o denominado “tempo de reflexão” (dez anos após a maioridade), porventura numa fase da vida em que hodiernamente não pode ter-se sequer como perfeitamente assegurada ou claramente consolidada a maturidade do indivíduo; a sua consciencialização quanto ao posicionamento a tomar quanto a este tipo de matérias tão pessoais e delicadas, e muito menos assumida, na maior parte dos casos, a força psicológica imprescindível ao desencadeamento deste processo, particularmente sensível e naturalmente doloroso para todos os intervenientes ou afectados.
Assim sendo, o tempo necessário para a introspecção e reflexão subjacentes a essa intenção de agir judicialmente só pode obviamente competir ao próprio, atentos os factores condicionantes do seu percurso de vida e respectivas circunstâncias que, caso a caso, o explicam (conforme muito bem aludiu a Conselheira Clara Sottomayor no voto de vencido que fez juntar ao acórdão do Tribunal Constitucional nº 417/2017, de 3 de Julho de 2019).
3º – Afigura-se-nos que não pode suscitar controvérsia séria ou interrogação aceitável a circunstância da interposição da acção de investigação de paternidade, e todas as consequências práticas advenientes da sua eventual procedência, dependerem unicamente da vontade do investigante.
Não poderia ser, aliás, de outro modo.
Tratando-se do exercício de um direito fundamental, absoluto e pessoalíssimo, a sua iniciativa compete, evidentemente, ao seu titular e não a outrem (que nada tem rigorosamente a ver com a motivação, pessoal e intransmissível, que se encontra inerente a vontade de instaurar a acção judicial ou não).
Afirmar que “(...) cumpre acautelar e evitar que o esclarecimento e definição de um vínculo tão importante como a filiação, do ponto de vista social e jurídico, fique indefinidamente dependente da exclusiva vontade de um único interessado, salvaguardando, em contrapartida, a reserva da intimidade da vida privada e familiar dos potenciais investigados e seus familiares” é, salvo o devido respeito, colocar ao mesmo nível posições, pretensões e interesses a que correspondem forçosamente graduações axiológicas, em termos constitucionais, completamente diversas.
O acto de procriação gera especiais responsabilidades para com o ser gerado e diferentes reflexos no plano social e no domínio respeitante à necessidade de intervenção tutelar do Estado, colocando o progenitor na situação de dever assumir, a todo o tempo, o integral cumprimento das suas obrigações na relação de filiação, as quais não têm termo certo.
O pai é pai para toda a vida, tal como o filho (relativamente a ele).
Logo, a protecção da reserva da intimidade da vida privada e familiar dos potenciais investigados e dos seus familiares – por muito respeitável que seja - não pode nunca ser equiparada, ou colocada ao mesmo nível de prevalência jurídica, relativamente ao direito fundamental do investigante ao reconhecimento da sua qualidade de filho, fruto do acto gerador do investigado (a quem é naturalmente imputável).
Parece-nos óbvio.
A concepção conservadora que subjaz a tal equiparação não encontra efectivo apoio e correspondência nos valores de uma sociedade contemporânea livre, aberta, democrática e substantivamente igualitária.
Conforme escreve Paula Távora Vítor, in “A propósito da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril: Breves considerações”, publicado in “Lex Familiae. Revista Portuguesa de Direito da Família”, nº 11, Coimbra Editora, a página 91:
“(...) são cada vez mais débeis os argumentos esgrimidos como justificação do instituto da caducidade face aos valores sociais dominantes (assimilados constitucionalmente) e respectiva articulação prática numa sociedade aberta. Os princípios ligados à verdade biológica postulando o direito de cada indivíduo ao conhecimento da respectiva ascendência afirma-se hoje de forma impressiva, sobrepujando sem dúvida os que respeitam à segurança, estes, e mormente no que toca à investigação de paternidade, vistos apenas como protectores do investigado e desprovidos de razão (...)”.
4 – Discordamos profundamente do argumento de que “(...) o tratamento que a Lei Fundamental dá ao vínculo jurídico da filiação, uma vez constituído, mostra que a preocupação fundamental do poder constituinte subjacente à consagração dessa obrigação do Estado se projecte nas etapas iniciais do desenvolvimento da pessoa humana” apresentado como justificativo ou demonstrativo de que a mesma Lei Fundamental (Constituição da República Portuguesa) descura, desvaloriza ou faz esmorecer a necessidade de tutela do direito à constituição do vínculo da filiação quando o interessado perfaz a idade correspondente a dez anos após a maioridade ou emancipação (e daí em diante), pouco importando (na prática)  se ulteriormente (durante a maior parte do seu horizonte de existência, note-se) pretende, ou não, reconstituir a sua história de vida em conformidade com a sua verdade pessoal, procurando as suas origens genéticas e à sua verdadeira posição na família e na sociedade.
 Ou seja, a protecção que o Estado concede privilegiadamente – e muito bem - nas etapas iniciais do desenvolvimento da pessoa humana, criando especiais condições de responsabilização no âmbito da relação de filiação e de apoio numa altura da vida em, pela sua menoridade ou juventude, o indivíduo não dispõe naturalmente de capacidade para se auto-sustentar, não pode ser utilizada como pretexto para o implícito desvalor do sistema constitucional quanto à importância a conferir à constituição da relação de filiação noutras fases da vida, perspectivadas enquanto direito do interessado a estabelecer os vínculos familiares que sabe – e se propõe provar (inclusivamente recorrendo a meios científicos) – serem verdadeiros.
Dito de outro modo, a intensificação do cuidado de tulela do Estado na primeiras etapas da vida de um cidadão, marcadas pela sua especial vulnerabilidade, fragilidade e dependência, evidenciadas do ponto de vista da sua protecção constitucional, não pode nunca ser utilizada como argumento para desobrigar o legislador ordinário, com base na Lei Fundamental, de promover os meios necessários a proporcionar a afirmação do direito ao conhecimento das suas origens e à ulterior constituição da relação de filiação.
5º – A pretensa defesa ou preocupação com a defesa da tranquilidade da família do investigado, no sentido de não ser incomodada ou perturbada, com a interposição da acção de investigação quando aquele não é afinal o pai biológico do investigante, parte de uma premissa hipotética ou a imaginária – a que de o investigado não é o pai biológico do investigante – que apenas poderá ser dilucidada se for permitido ao interessado mover a referida acção judicial.
Isto é, a mera conjectura de que o investigado, réu na acção, pode afinal não ser o pai biológico do investigante, não constitui argumento sério para fechar todas as portas à possibilidade, na fase adulta e mais avançada da vida do autor, de vir a esclarecer-se na acção própria - e com recurso a meios de prova científicos, absolutamente fiáveis e fidedignos – se há ou não motivo para a constituição da pedida relação de filiação.
Não nos esqueçamos de que, de um lado, temos o exercício de um direito fundamental e absoluto ao conhecimento das origens genéticas de um cidadão que pretende saber da sua história e do seu real posicionamento na família e na sociedade; do outro, o mero incómodo ou desconforto da família do investigado que assenta apenas na vaga pressuposição de que afinal poderá (ou poderia) não existir motivo para vir a sentir-se incomodada.
6º – Constitui uma visão redutora e sem a necessária correspondência com a realidade a afirmação de que, sendo a acção de investigação instaurada após o período de juventude do investigante, então, por não ser possível reconstituir “a inclusão identitária do próprio filho na esfera de vivência pessoal e familiar do pai, permitindo que o vínculo genético se possa ainda converter numa relação de proximidade histórico-existencial e de apoio recíproco, como é próprio das relações familiares”, tudo seria, no fundo, perdoe-se a expressão, uma questão de dinheiro, ou conforme é enfaticamente referido no acórdão do Tribunal Constitucional nº 394/2019: “(...) com a a passagem do tempo o direito (do investigante) vai adquirindo novas cambiantes, e numa fase adulta (do investigante) assume uma dimensão essencialmente patrimonial (uma vez que nesta fase não é materialmente possível dar satisfação aos bens jurídicos tutelados por aquele direito que, por isso, viram o seu conteúdo original irremediavelmente comprometido, não por força de qualquer norma, mas por efeito da mera passagem do tempo)”.
Ora, ainda que resultem repercussões a nível patrimonial, fruto da superveniente constituição de uma relação de filiação, vantajosas para o investigante em caso de procedência da acção judicial, não é aceitável fazer dessa contingente circunstância razão bastante para o afastamento do imperativo consagrado nos artigos 25º, nº 1, e 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, coarctando o seu direito a agir judicialmente.
Desde logo, porque tais eventuais vantagens patrimoniais, que podem acontecer ou não – mormente no plano sucessório e no âmbito do direito a alimentos –, uma vez reconhecida a paternidade, seja em que momento for da vida do investigante, são absolutamente naturais, lógicas, fundadas e justas.
Como é sabido, a vocação sucessória, designadamente a sucessão legal, não depende de uma integração familiar e de uma comunidade afectiva entre o decujus e o sucessível designado, que pode ser simplesmente omissa (quantos filhos não se interessam minimamente pelos pais, ou se incompatibilizam mesmo com eles, gerando entre si profundas inimizades e rancores, e não obstante não faltam à chamada na hora da abertura da sucessão), lembrando-se inclusive que a sucessão legitimária reveste natureza imperativa, impondo-se e prevalecendo sobre a vontade do autor da sucessão (cfr. artigo 2027º do Código Civil).
De resto, o próprio artigo 2075º, nº 2, do Código Civil, estabelece a possibilidade de qualquer interessado intentar a todo o tempo a acção de petição de herança, sem prejuízo da aplicação das regras da usucapião e da caducidade do direito a aceitar a herança, nos termos do artigo 2059º do mesmo diploma legal, demonstrando-se assim que os sucessores do decujus podem vir a ser confrontados, sem qualquer limite temporal, com o exercício dos direitos sucessórios de um novo interessado que demonstre a sua legitimidade substantiva para o efeito.
Por outro lado, a essencialidade desta discussão jurídica, perspectivada em termos de uma sociedade contemporânea, só pode mesmo levar a colocar definitivamente de lado - no arquivo, bem fundo, das coisas antiquadas e sem préstimo -, o anacrónico (e hoje risível) argumentário dos “caça-heranças”, e a ideia, totalmente ultrapassada do “envelhecimento das provas”.
Nada disso pertence aos dias de hoje, como todos sabemos
Estando em causa o exercício de um direito absoluto e pessoalíssimo, se o seu reconhecimento comportar benefícios patrimoniais para o investigante, tal significa tão somente que está a ser recolocada alguma (devida) justiça numa situação de injustificada desigualdade de tratamento entre filhos do mesmo progenitor (assumidos e não assumidos).
Apenas isso.
De resto, sobre a questão do direito à obtenção do estatuto patrimonial do reconhecido pai, mormente tendo em conta os efeitos sucessórios ao mesmo associados, vide o importante acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Novembro de 2015 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 253/11.9TBVZL.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, no qual se discutia a possibilidade da aí A., que instaurou a acção para reconhecimento de paternidade dentro do prazo legal, estar a incorrer numa situação de abuso de direito devido à circunstância de, segundo os RR., prosseguir como desiderato primeiro o de obter estatuto patrimonial, não lhe devendo por isso ser concedidos efeitos patrimoniais ou sucessórios decorrentes da sua qualidade de filha.
Nesse aresto enfatizou-se claramente que o direito a constituir uma família fora do casamento, ou não constituir qualquer família, fora ou através do casamento, é um direito fundamental dos cidadãos, expressão do seu direito à liberdade e à sua autodeterminação.
Logo, sendo concedido a todos os indivíduos no plano dos seus direitos constitucionais o poder de exigir o conhecimento das suas raízes, não é possível admitir a existência de qualquer situação abusiva quando tal direito é concretamente exercido.
Precisamente no mesmo sentido, vide igualmente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 2021 (relator Pinto de Almeida), proferido no processo nº 293/08.5TBVLC.P2.S1, publicado in www.dgsi.pt.
Em sentido adverso, vide os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Abril de 2013 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 187/09.7TBPFR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, com voto de vencido de Salazar Casanova, e de 18 de Fevereiro de 2015 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 4293/10.7TBSTS.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, com declaração de voto discordante da fundamentação do aresto por parte de Ana Paula Boularot.
O carácter socialmente retrógrado da previsão do instituto da caducidade impeditiva do direito ao conhecimento da verdade biológica do sistema jurídica, tal como se encontra instituído no artigo 1817º, nº 1, aplicável às acções de investigação do paternidade por força do artigo 1873º do mesmo diploma legal, está aliás muito bem espelhado, em termos de direito comparado, pela circunstância de só encontrar paralelo, nas ordens jurídicas mais próximas, na lei francesa e na lei suíça, sendo rejeitado na lei espanhola, italiana, brasileira, alemã, austríaca, holandesa, no Código Civil da Catalunha, e em legislações que tiveram como base o modelo do Código Civil Português de 1966, como a de Cabo Verde, Angola, e Macau (que, não obstante, prevê a possibilidade do estabelecimento do vínculo de paternidade produzir apenas efeitos pessoais, excluindo os patrimoniais, no respectivo artigo 1656º, nº 1).
Sempre se acrescentará que muito dificilmente se compreende poder ser conforme à Constituição da República Portuguesa a fixação de um prazo de caducidade de dez anos após a maioridade (pressupondo que antes disso o interessado não disporá de quaisquer condições objectivas para o fazer), sob pena de extinção definitiva do direito a interpor acção judicial com vista à afirmação de um direito fundamental e pessoalíssimo (o interessado deixa de vez, ao longo da maior parte da sua vida, de poder ver reconhecida a verdade pessoal que lhe assiste e daí retirar as inerentes consequências jurídicas), quando o prazo geral de prescrição, no plano estritamente patrimonial da mera e mundana discussão sobre créditos e débitos entre privados, é apenas e só o dobro daquele (vinte anos nos termos do artigo 309º do Código Civil)...
Acresce ainda que a recusa da inconstitucionalidade do artigo 1817º, nº 1, aplicável às acções de investigação do paternidade por força do artigo 1873º do mesmo diploma legal, nos termos referidos, servirá, na prática, e não obstante a previsão do artigo 1603º do Código Civil, para concorrer para a eventual existência de impedimentos matrimoniais ocultos que os artigos 1602º e 1631º, alínea a), do Código Civil, visam, por motivos de compreensível interesse público, impedir absolutamente.
Ou seja, não deixando a lei que se proponham a todo o tempo as acção de reconhecimento de paternidade e maternidade que poderiam ter lugar, os próprios descendentes dos possíveis investigados e investigantes deixam de ter, também eles, a oportunidade de saber qual a sua verdadeira história de vida, não sendo impossível que venham a ocorrer enlaces matrimoniais que de outra forma, por evidentes razões de interesse público e pessoal, não teriam lugar.
Em paralelo, o Tribunal Constitucional tomou posição recentemente favorável ao direito ao conhecimento da identidade pessoal e reconhecimento das origens genéticas, sem a colocação de qualquer prazo limitador ou condicionador, no seu acórdão de 225/2018 (relator Pedro Machete), datado de 24 de Abril de 2018, proferido no processo nº 95/2017, que julgou a inconstitucionalidade do artigo 15º, nº 1 e 4, da Lei de Procriação Medicamente Assistida (Lei nº 32/2006, de 26 de Julho), por estabelecer como regra, ainda que não absoluta, o anonimato dos dadores, no caso de procriação heteróloga, e, bem assim, o anonimato das gestantes de substituição, obrigando à alteração que veio a ser adoptada na Lei nº 48/2019, de 8 de Julho.
É ainda curioso que nesse mesmo acórdão do Tribunal Constitucional se tenha feito directa remissão para o anterior acórdão do mesmo Tribunal nº 23/2006 (relator Paulo Mota Pinto), datado de 10 de Janeiro de 2006, que declarou com força obrigatória geral, a fixação do prazo de dois anos consignado no artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, no qual se apoiou, transcrevendo-se um excerto onde se alude a que:
Deve, pois, dar-se por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade”.
E acrescentou-se, mais à frente, a seguinte passagem, na qual, mutatis mutandis, nos revemos inteiramente:
“Na verdade, de um tempo em que o segredo sobre as origens se considerava justificado e até desejável, passou-se para um quadro conceptual que promove a transparência nas relações humanas, incluindo as relações familiares. Por toda a Europa se assiste a um progressivo reconhecimento, em termos amplos, do direito a aceder aos dados sobre a sua própria origem, incluindo a identidade dos dadores, como decorrência necessária da protecção constitucional conferida ao direito à identidade e historicidade pessoal”.
Não nos parece assim de todo aceitável, por tudo isto, que a Constituição da República Portuguesa, defensora do direito à verdade pessoal que a cada indivíduo compete, enquanto forma de realização, em plenitude, da sua integridade moral, passe ao lado, indiferente, insensível e alheia a tais matérias respeitantes no fundo à própria dignidade da pessoa humana, base essencial da República Portuguesa soberana, nos precisos termos do artigo 1º da Lei Fundamental.
4 – Análise das particularidades referentes à situação sub judice.
Os autos dão notícia da seguinte factualidade essencial:
- A A. AA nasceu em .../.../1963.
- O presumido pai da A., KK, faleceu em .../.../2000.
- O investigado FF faleceu faleceu no dia .../.../2003.
- A mãe da A. faleceu em .../.../2004.
- A A. instaurou a presente acção em 7 de Janeiro de 2019, quando contava já 55 anos.
Sustenta a A. que o prazo de dez anos fixado do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, aplicável às acções de investigação do paternidade por força do artigo 1873º do mesmo diploma legal, – não sendo declarado inconstitucional – deverá contar-se a partir da entrada em vigor da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, e não da data da maioridade da investigante.
Isto na medida em que, após o acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 (relator Paulo Mota Pinto), datado de 10 de Janeiro de 2006, que declarou com força obrigatória geral, a fixação do prazo de dois anos consignado no artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, e até à entrada em vigor da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, deixou de existir qualquer prazo de caducidade que condicionasse a instauração da acção judicial para reconhecimento da paternidade.
Logo, a A. poderia escolher livremente o momento para agir judicialmente, nessa altura, sem limite de prazo.
Com a ulterior fixação do mencionado prazo de dez anos após a maioridade, por via da entrada em vigor da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, a A. passou a ficar automaticamente privada de instaurar tal acção, uma vez que contava então 46 anos de idade.
Por aplicação da regra prevista no artigo 297º, nº 1, do Código Civil, o prazo deveria contar-se desde a entrada em vigor da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, o que significa que a presente acção tinha entrado em juízo tempestivamente.
Apreciando:  
Se não for de considerar inconstitucional o disposto no nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável às acções de investigação do paternidade por força do artigo 1873º do mesmo diploma legal, é claro e inequívoco que, ao fixar-se a data da contagem do prazo de dez anos a partir da maioridade do investigante, a mesma não pode reportar-se a outro momento temporal (mormente a entrada em vigor do diploma que estabeleceu o prazo de caducidade), conforme resulta liminarmente da aplicação das regras gerais da hermenêutica jurídica.
Não há lugar à aplicação, nesta circunstâncias, do disposto no artigo 297º, nº 1, do Código Civil, na medida em que não está aqui em causa o confronto entre dois prazos (de maior ou menor duração), sendo que o artigo 1817º, do Código Civil, aplicável às acções de investigação de paternidade por força do disposto no artigo 1873º do mesmo diploma legal, estabelece um momento temporal certo – variável de pessoa para pessoa – a partir do qual se conta o prazo de caducidade do direito a instaurar a respectiva acção judicial.
Por outro lado, a presente acção não se encontrava pendente aquando da entrada em vigor da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, pela que não aproveita à A. a doutrina acolhida no acórdão do Tribunal Constitucional nº 24/2012 (relator Cunha Barbosa), datado de 17 de Janeiro de 2021 que julgou inconstitucional a norma constante do artigo 3º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na medida em que mandava aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redacção do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código. 
Todavia, a questão jurídica suscitada pela A. demonstra à evidência – se ainda necessário fosse – o profundo desconforto e a insanável confusão lógica gerada pela solução encontrada (que, como se disse, não atende aos direitos pessoalíssimos e fundamentais a que a nossa Constituição superiormente consagra, vinculando imperativamente o legislador ordinário).
Com efeito, havendo sido legislado no ano de 2009, ex novo, o prazo de caducidade de dez anos (o anterior prazo de dois anos era materialmente inconstitucional e, como tal, não pode ser considerado para efeito algum), o mesmo legislador ordinário entendeu fixar originariamente tal prazo em termos tais que, para alguns dos seus destinatários, o mesmo ficou imediatamente esgotado no exacto momento da entrada em vigor do respectivo diploma legal.
Tal anómalo e irrefletido propósito afectou, de forma profundamente injusta, aqueles que nasceram nas décadas de 1960 – como a ora A. - e 1970, período da nossa história colectiva em que toda comunidade nacional foi, em geral, vítima de um ordenamento jurídico marcadamente autoritário, não democrático e profundamente discriminatório, que penalizava cruelmente os então denominados filhos ilegítimos.
Ora, os cidadãos nascidos nessas décadas (anos 60 e 70) viram esse mesmo prazo de dez anos, tão generosamente concedido pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, e que conseguiu passar incólume, consecutivamente e até hoje, nas diversas decisões do Tribunal Constitucional, esfumar-se à nascença  entre os anos de 1988 a 1997 e 1998 a 2007, respectivamente, ou seja, mesmo antes da entrada em vigor dita Lei, o que não pode deixar de ser paradoxal.
Esta circunstância que tem a ver, no fundo, com a criticável intenção do legislador ordinário, ao arrepio do texto constitucional, de condicionar, restringindo, o direito fundamento ao reconhecimento da paternidade ou maternidade, gera estas perplexidades insanáveis para as quais não existe, por muitas voltas que se dê, explicação racional e aceitável.
Perante tudo isto, mais não resta do que declarar a mais do que justificada inconstitucionalidade do disposto no artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, aplicável às acções de investigação do paternidade por força do artigo 1873º do mesmo diploma legal, não aplicando esse normativo.
Pelo que se anula o acórdão recorrido e ordena-se o prosseguimento dos autos para a fase de instrução.
 
IV – DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) conceder a revista, declarando a inconstitucionalidade do disposto no nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável às acções de investigação do paternidade por força do artigo 1873º do mesmo diploma legal, (prazo de caducidade para a instauração da acção de reconhecimento de paternidade), não aplicando esse normativo, anulando o acórdão recorrido e ordenando o prosseguimento da acção para a respectiva fase de instrução.
Custas pelos recorridos.

             

Lisboa, 9 de Novembro de 2022.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Resende

Ana Paula Boularot


V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.