Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2999/08.0TBLLE.E2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
REGISTO PREDIAL
PRÉDIO
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
POSSE
PRESUNÇÕES LEGAIS
MATÉRIA DE FACTO
FACTOS CONCLUSIVOS
JUÍZO DE VALOR
Data do Acordão: 01/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. A presunção da titularidade do direito de propriedade constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo, pois o registo predial não é, em regra, constitutivo e não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio.
II. Do art.º 1268.º do CC resulta que, para que não funcione a presunção derivada da posse, será necessário que exista a favor de outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse, isto é, havendo conflito de presunções, uma derivada do registo, isto é, do artigo 7.º do Código do Registo Predial e a outra emergente da posse, ou seja, do artigo 1268.º, n.º1, do Código Civil, prevalece esta última, designada por presunção da propriedade, que só cede em confronto com a presunção derivada do registo anterior ao do início da posse.

III. Em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjetivação, mas pode conter pode conter referência quer a situações jurídicas consolidadas, desde que não hajam sido postas em causa, quer a termos jurídicos portadores de alcance semântico socialmente consensual (portadores de uma significação na linguagem corrente) desde que não sejam objeto de disputa entre as partes e não requeiram um esforço de interpretação jurídica, devendo ser tomados na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum.

IV. Quando o contexto retratado sob os enunciados de facto integra o essencial do objeto de disputa entre as partes sobre o qual recaiu o esforço de (diversa) interpretação jurídica efetuado quer na 1.ª instância, quer no Acórdão da Relação, não pode ser utilizado na enunciação dos factos, que devem ser considerados como não escritos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


           

I. Relatório


1. Bear Canyon Limited Liability Company intentou a presente ação sob a forma de processo comum contra Imocom Palácio Valverde – Gestão e Investimentos Imobiliários, S.A., entretanto declarada insolvente e devidamente representada pelo Administrador de Insolvência, pedindo que a Ré seja condenada a:

A) reconhecer o seu direito de propriedade sobre os seguintes imóveis: o prédio rústico sito em ...., freguesia ...., concelho ...., composto por terra de cultura com amendoeiras, alfarrobeiras e figueiras, com a área de 5 485 m2, descrito na Conservatória de Registo Predial de .... sob o n.º …./… e inscrito na matriz sob o artigo …; e, o prédio rústico sito em..., freguesia ..., concelho ..., composto por terra de areia com árvores, com a área de 5 000 m2, descrito na Conservatória de Registo Predial de .... sob o n.º …/… e inscrito na matriz sob o artigo …;

B) reconhecer que se apropriou, em benefício próprio, de uma parcela dos seus terrenos; e;

C) repor as referidas propriedades da Autora nos seus exatos termos, limites e confrontações que se verificavam anteriormente à execução das obras de construção do empreendimento turístico da ré (obras essas da exclusiva responsabilidade desta) livre de quaisquer ónus que limitem o exercício do seu direito de propriedade.

2. Citada, a Ré deduziu pedido de intervenção acessória provocada da sociedade M.R.M. Boelaars Holding, B.V., sociedade que lhe vendera os terrenos onde seria construído um hotel, a qual veio a ser admitida.

3. A Autora deduziu um articulado superveniente, o qual veio a ser admitido, onde pede ainda o nivelamento dos terrenos e do caminho público através da reposição das terras escavadas pela Ré.

4. Foi proferida sentença, transitada em julgado, a julgar procedente a exceção de ilegitimidade processual passiva da Ré/insolvente, por preterição de litisconsórcio necessário, absolvendo-se a Ré Imocom da instância.

5. Foi instaurado o competente incidente de intervenção provocada do Município ...., o qual veio a ser admitido, por despacho transitado em julgado.

6. Citado, o Município … deduziu contestação pugnando pela improcedência da ação.

7. Em resposta, a Autora manteve os pedidos formulados, acrescentando agora a al. c), dirigindo-os também ao interveniente.

8. Foi proferida sentença, sendo o dispositivo do seguinte teor:

“A) Julgar improcedentes as exceções arguidas pelo interveniente MUNICÍPIO … na sua contestação;

B) Condenar a ré “IMOCOM PALÁCIO VALVERDE – GESTÃO E INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A.”, entretanto declarada insolvente e devidamente representada pelo Sr. Administrador de Insolvência e o interveniente MUNICÍPIO … a reconhecerem o direito de propriedade da autora “BEAR CANYON LIMITED LIABILITY COMPANY” sobre os seguintes imóveis: o prédio rústico sito em …, freguesia de …., concelho de …, composto por terra de cultura com amendoeiras, alfarrobeiras e figueiras, com a área de 5 485 m2, descrito na Conservatória de Registo Predial de … sob o n.º …./… e inscrito na matriz sob o artigo …; e, o prédio rústico sito em …, freguesia de …, concelho de …, composto por terra de areia com árvores, com a área de 5 000 m2, descrito na Conservatória de Registo Predial de …. sob o n.º…./... e inscrito na matriz sob o artigo ...;

C) Condenar a ré a reconhecer que se apropriou, em benefício próprio, de uma parcela dos seus terrenos, com uma área não inferior a 203,06 m2, posteriormente cedida ao interveniente; e,

D) Condenar a ré e o interveniente à restituição à autora da aludida parcela de terreno, considerando a cedência ineficaz perante a autora;

E) Condenar a ré a repor as referidas propriedades da autora nos seus exatos termos, limites e confrontações que se verificavam anteriormente à execução das obras de construção do empreendimento turístico da ré (obras essas da exclusiva responsabilidade desta) livre de quaisquer ónus que limitem o exercício do seu direito de propriedade, com nivelamento dos terrenos e do caminho público através da reposição das terras escavadas pela ré”.

9. Inconformados com esta decisão, a Ré e o interveniente interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora.

10. O Tribunal da Relação de Évora veio julgar “procedente o recurso em função do que se revoga a sentença recorrida e absolve-se a recorrente dos pedidos contra si formulados”.

11. Inconformada com tal decisão, veio a Autora interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

II (A) CONHECIMENTO DE MATÉRIA NOVA EM SEDE DE RECURSO

1.ª No seu recurso de apelação a Ré Imocom veio pela primeira vez, num processo que se arrastava já há mais de 11 anos, invocar um novo argumento nunca antes suscitado ou discutido em primeira instância e que não foi, por isso, conhecido pelo Tribunal de primeira instância.

2.ª A Ré/Recorrente está sujeita aos princípios da concentração da defesa e da preclusão previstos no art. 573.º CPC.

3.ª Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso.

4.ª E não consistindo a presunção constante do art. 1.268.º Cód. Civil em matéria de conhecimento oficioso, está necessariamente arredada de ser apreciada pelo Tribunal ad quem uma vez que nunca foi previamente submetida ao exame do Tribunal a quo.

5.ª Pelo que, salvo o devido respeito por mais douta opinião, não deveria a douta Relação ter sequer conhecido desse argumento.

II(B) – DA PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE DECORRENTE DO REGISTO E DA ILISÃO DA PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE A FAVOR DA RÉ DECORRENTE DA POSSE (ÍLICITA) DESTA

6.ª O douto Tribunal de primeira instância deu como provada a aquisição pela Autora dos terrenos identificados nos pontos 3. e 9. a 11. dos factos provados, estando essa aquisição devidamente registada nas finanças e na Conservatória do Registo Predial (pontos 4. a 6. e 12. a 14. dos factos provados).

7.ª Tendo ficado igualmente provado que esses terrenos têm a área de 4.983m2 (ponto 7 dos factos provados) e 4.297m2 (ponto 15. dos factos provados).

8.ª Por sua vez, ficou provado que o terreno da Ré tem apenas 61.206m2 (facto provado 39. com a retificação introduzida pelo Acórdão da Relação …) e não os 62.835m2 que a Ré invocava.

9.ª Ou seja, ficou provada não só a propriedade sobre os terrenos da Autora, como também a área exacta de cada um destes, bem como a área real do terreno da Ré.

10.ª Tendo ainda ficado provado que imediatamente antes das obras iniciadas pela Ré, os marcos que delimitavam os terrenos da Autora estavam devidamente colocados e assinalados (pontos 31. a 34. dos factos provados).

11.ª E que apenas com o início dessas obras veio a Ré a ocupar uma área de 203,06m2 dos terrenos da Autora (pontos 19., 26. a 28. e 35. dos factos provados).

12.ª Assim, ao contrário do que se refere no douto Acórdão recorrido, existe matéria de facto suficiente para, em conjunto com a presunção de propriedade derivada do registo (art. 7.º Cód. Reg. Predial), reconhecer-se a propriedade sobre os terrenos a favor da Autora.

13.ª Ora, beneficiando a Autora da presunção de propriedade conferida pelo registo (art. 7.º Cód. Reg. Predial), competia à Ré ilidir tal presunção, provando que a parcela de terreno reivindicada não estava de facto originariamente inserida nos terrenos da Autora, o que a Ré não logrou fazer.

14.ªPelo contrário, provou-se antes que essa faixa de terreno estava de facto integrada nos terrenos da Autora e que apenas imediatamente antes do início das obras do hotel veio a ser ilicitamente ocupada pela Ré (factos provados 19. e 26. a 28.).

15.ª Estes factos que foram confirmados pela Relação de Évora demonstram, inequivocamente, que a Ré ocupou ilicitamente parte dos terrenos da Autora, pelo que, não só a Ré não conseguiu ilidir a presunção de propriedade (resultante do registo) a favor da Autora, como viu também ilidida a presunção do art. 1.268.º Cód. Civil que invoca a seu favor.

16.ª A manter-se o Acórdão recorrido isso resultaria em legitimar-se a conduta da Ré, quando se provou:

- O trato sucessivo da aquisição da propriedade pela Autora;

- Essa aquisição foi levada a registo;

- A existência de marcos a delimitar essa propriedade antes do início das obras (pontos 31. e 32. dos factos provados); e

- Ainda se provou que foi a Ré quem, no ano de 2007, invadiu e ilicitamente esbulhou parte dos terrenos da Autora.

17.ª Salvo o devido respeito (que é muito), o Direito e a Justiça não podem permitir que se mantenha tão “iníqua” decisão.

II(C) – INOPERAÇÃO DA PRESUNÇÃO DO ART.1.268.º CC INVOCADA PELA RÉ

18.ª Ainda sobre a presunção do art. 1.268.º Cód. Civil que supostamente beneficiaria a Ré, referia-se que quanto ao terreno descrito no n.º 3 dos factos provados (localizado mais a Sul) o mesmo foi adquirido pela Autora no ano de 1997, encontrando-se tal aquisição a favor da Autora devidamente registada desde esse ano junto da Conservatória do Registo Predial e das Finanças (factos provados n.ºs 3 a 5).

19.ª A Ré Imocom ocupou os terrenos da Autora em meados de Junho de 2007 (facto provado n.º 27) pelo que a "posse" da Ré sobre esse terreno é muito posterior ao registo da propriedade a favor da Autora., prevalecendo a presunção do art. 7.º Cód. Reg. Predial (cfr. art. 1.268.º n.º 1 Cód. Civil).

20.ª Já o segundo terreno da Autora localizado mais a Norte (descrito no facto provado n.º 9) apenas foi adquirido pela Autora em Dezembro de 2007 (na sequência de um contrato-promessa de Julho desse ano) e registada na Conservatória do Registo Predial em 04/1/2008 (factos provados n.ºs 9 a 12).

21.ª Contudo, como bem se refere na Sentença recorrida, "logrou provar-se a legalidade da cadeia de transmissões dos anteriores proprietários do bem para a autora".

22.ª De acordo com a certidão do registo predial junta como Doc. 6 da P.I., a Autora adquiriu esse imóvel dos seus anteriores proprietários, com registos de aquisição que remontam a 1986, estando o respectivo trato sucessivo das aquisições até à aquisição da Autora devidamente comprovado no referido registo predial.

23.ª Dispõe o art. 1.268.º, n.º 1 do Cód. Civil que "O possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse".

24.ª E conforme se deixou exposto acima, existe um registo anterior da propriedade que remonta a 1986.

25.ª Registo esse que, ao abrigo do trato sucessivo, igualmente beneficia a Autora.

26.ª Note-se, também, que a posse se transfere com a propriedade (art. 1.264.º Cód. Civil).

27.ª E o possuidor apenas perde a posse por um acto de posse (esbulho) de terceiro, após um ano de duração da nova posse (art. 1.267.º, n.º 1, al. d) Cód. Civil).

28.ª O que quer dizer que, no momento em que o terreno foi vendido à Autora, os anteriores proprietários não tinham ainda perdido a posse em virtude do acto de esbulho da Ré (pois o acto de esbulho é de "meados de Julho de 2007" e a venda é de Dezembro de 2007).

29.ª Pelo que, a Autora sucedeu nessa posse que lhe foi transmitida pelos anteriores proprietários.

30.ª Além disso, estando em causa uma invasão de propriedade com escavações e outros actos de violência sobre a coisa da Autora, considera-se que a posse foi tomada por um acto de esbulho violento.

31.ª Actos esses de violência sobre a coisa que apenas terminaram "em data posterior a 07 de Outubro de 2010" (facto provado n.º 40).

32.ª E havendo violência, a nova posse apenas tem início quando a violência cessa (art. 1267.º, n.º 2 Cód. Civil).

33.ª Assim, a posse da Ré Imocom apenas se iniciou efectivamente depois de 7 de Outubro de 2010.

34.ª Sendo, na realidade, a posse e o registo da propriedade a favor da Autora anteriores à posse da Ré Imocom, prevalecendo sobre esta.

35.ª Também por essa razão fica devidamente provada a propriedade dos terrenos e da parcela reivindicada a favor da Autora.

36.ª Aliás, a propriedade dos terrenos em si mesma nunca foi contestada pela Autora (tendo esses factos sido logo vertidos para a matéria assente, por acordo das partes, em sede de despacho saneador).

37.ª O que era verdadeiramente controverso era a delimitação de tais terrenos, recusando a Ré a reconhecer que tinha invadido e ocupado a área delimitada como fazendo parte dos terrenos da Autora.

38.ª Tendo a Autora logrado fazer prova inequívoca sobre as exactas áreas e delimitações de tais terrenos.

II(D) – SUBSIDIARIAMENTE, DO CONHECIMENTO DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DEDUZIDA PELA AUTORA NAS SUAS CONTRA-ALEGAÇÕES DE APELAÇÃO

39.ª A delimitação da área reivindicada encontra-se definida nos n.ºs 19., 28., 29., 34., 35., 39. e 40. dos factos provados.

40.ª Estando também claramente definida nos desenhos elaborados pelos Senhores Peritos e constantes de fls. 879 e 880 dos autos.

41.ª Subsidiariamente (e sem conceder), tal como se referiu já nas contra-alegações de apelação (ver conclusões lxvi. a lxxvi. dessas contra-alegações), para a hipótese de se entender que os factos provados não são suficientes para delimitar, com precisão, os terrenos da Autora e, consequentemente, a área destes que foi ocupada pela Ré Imocom e que deverá ser restituída, nos termos do art. 682.º, n.º 3 CPC se requer que o processo desça à Relação para apreciação da impugnação da resposta de não provados dada aos factos descritos sob as alíneas a) a g) dos factos não provados da douta Sentença.

42.ª O douto Tribunal a quo deu as confrontações alegadas pela Autora como não provadas, uma vez que estas apenas constariam da descrição do registo predial e por os peritos terem determinado que os marcos existentes e a realidade das confrontações e delimitações é, na verdade, outra.

43.ª Ora, salvo o devido respeito, não se pode aceitar que a resposta à matéria de facto se cinja a "sim, provado" ou "não provado".

44.ª Mesmo que se entenda (no que não se concede) que essa matéria de facto extravasa o âmbito das alíneas a) a g) dos factos não provados, são os factos em causa instrumentais ou complementares e resultaram inequivocamente da prova pericial produzida nos autos, pelo que, também por essa razão, devem ser dados como provados nos termos do art. 5.º, n.º 2, als. a) e b) CPC.

45.ª Assim, perante a alegação pela Autora de que as confrontações dos terrenos seriam umas, se ficou provado que essas confrontações não são afinal correctas, mas da prova produzida resultou ainda assim provado quais são as reais confrontações e delimitações, não pode o Tribunal apenas responder como "não provado" aos temas da prova (anteriores artigos da Base Instrutória) que versam sobre essas mesmas confrontações.

46.ª Ora, os peritos, num trabalho minucioso que durou vários anos conseguiram, finalmente, delimitar com exactidão as confrontações dos terrenos da Autora, conforme consta dos relatórios de fls. 858 e segs. e fls. 983 e segs. dos autos.

47.ª Em particular, nas fls. 991 (e respectiva imagem 8) e fls. 1.010 dos autos (que corresponde ao segundo daqueles relatórios periciais) dá-se por perfeitamente delimitadas as estremas e delimitações dos terrenos da Autora, tendo por base os marcos físicos ainda existentes e cuja localização é aceite pelas partes no processo (marcos M1, M2, M3 e M4 a Poente do terreno da Ré) - ver também factos provados n.ºs 31 a 33 sobre a localização dos marcos.

48.ª Deve, assim, ser dado como provado que os terrenos da Autora têm as seguintes confrontações e delimitações:

- Terreno identificado no n.º 3 dos factos provados:

o Do marco M1 (localizado a Sudoeste junto à estrada que liga a Quinta ...... a Vale .....) ao marco M2 localizado directamente a Norte deste – 86,76 m;

o Do referido marco M1 ao marco MR2 localizado directamente a Este/Nascente deste (igualmente a Sul junto à estrada que liga a Quinta ..... a Vale .....) – 61,24 m;

o Do marco M2 (que separa os dois terrenos da Autora a Oeste/Poente) ao marco MR1 directamente a Nascente/Este deste – 50,98 m; e

o Do marco MR1 (que separa os dois terrenos da Autora a Este/Nascente) ao marco MR2 directamente a Sul deste – 111,75 m.

- Terreno identificado no n.º 9 dos factos provados:

o Do marco M2 (que separa os dois terrenos da Autora a Oeste/Poente) ao marco M3 (directamente a Norte deste) – 46,80 m;

o Do marco M3 ao marco M4 directamente a Norte deste (e que delimita o topo Noroeste do terreno em causa) – 34,39 m;

o Do marco M4 (estrema Noroeste) ao marco M5 (estrema Nordeste) – 48,13 m; e

o Do marco M5 (estrema Nordeste) ao marco MR1 (que separa os dois terrenos da Autora a Este/Nascente) – 85,46 m.

49.ª Tendo-se delimitado, com a precisão acima referida, os terrenos da Autora, restará à Ré respeitar essas mesmas delimitações, devolvendo e repondo na sua configuração original a parcela de terreno que ilicitamente ocupou e que se encontra dentro dos terrenos da Autora.

E conclui pela procedência do recurso e pela revogação do acórdão recorrido.

12. A Ré Imocom Palácio Valverde – Gestão e Investimentos Turísticos, S.A. contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista, requerendo, ainda, a ampliação do objeto do recurso (subsidiariamente, interpondo recurso subordinado, quanto ao julgamento da matéria de facto) formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª O Tribunal a quo dirimiu, com acerto e denodo, o presente litígio de Direitos Reais.

2.ª Nada de iníquo se surpreende num Acórdão que indeferiu a pretensão de uma offshore se locupletar de terrenos que sabe não lhe pertencerem, perigando a recuperação e a satisfação dos credores (Estado, trabalhadores, etc…) de uma sociedade insolvente, sob a ameaça de que a Recorrida teria de destruir património edificado (embora sem situar o objeto da destruição pretendido, que até aventa incluir infraestruturas comunitárias, como uma estrada e passeio municipais…).

3.ª Não cabe ao Tribunal ad quem proceder à retificação de erros materiais que não hajam sido arguidos previamente ante o Tribunal a quo – cfr. artigos 614.º/2 e 666.º/2 do CPC.

4.ª O Tribunal a quo entendeu que a A. não provou a titularidade do direito de propriedade sobre a “parcela” em querela – primeiro elemento da causa de pedir da «ação de reivindicação» –, absolvendo a R. do pedido.

5.ª Para tanto, o Tribunal da Relação preconizou - com mérito - que a A./Recorrente deveria ter invocado e provado uma causa de aquisição originária da propriedade sobre a “porção” de terra reclamada (porquanto em crise não está um imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial, mas apenas, reforça-se, uma porção de terreno).

6.ª O que a A., manifestamente, não fez!

7.ª Este juízo, que se afigura correto, não vem questionado pela A. no seu recurso de revista já que esta não nega que não tenha provado atos de posse sobre o “talhão” – razão pela qual o recurso de revista improcede de plano (cfr. artigo 635.º/4 e5 CPC). Note-se, aliás, que a aquisição do “segundo” prédio pela Recorrente ocorre durante as obras realizadas pela R, donde nenhuma posse houve do imóvel referido por banda da postulante. A aquisição do prédio constituiu tão-somente um meio para a Recorrente arremeter contra a Recorrida, criar um «pomo de discórdia», litigar e lucrar à custa da Recorrida…

8.ª O reivindicante que pretende o reconhecimento de um (putativo) direito real sobre uma parcela de imóvel descrito encontra-se onerado com a prova de uma causa de aquisição originária do ius in re sobre essa “porção”, dado que não lhe assiste a presunção tabular prevista no artigo 7.º CRP (cfr. Artigo 584.º/4 CPC).

9.ª Com efeito, a presunção registal não faz fé quanto à localização, área, confrontações ou linha perimetral dos prédios a que se refere (neste sentido militam, de modo unânime, a Academia, a doutrina registal – nomeadamente, do Instituto dos Registos e Notariado – e a Jurisprudência).

10.ª O registo não delimita os prédios em função das suas coordenadas geográficas (latitude e longitude) – anote-se, aliás, que, no concelho …, sequer existe cadastro geométrico dos domínios rústicos.

11.ª Por conseguinte, não é viável asseverar, com base exclusiva no registo, que determinada parcela de terreno integra um imóvel descrito (ac. STJ 21.6.2001; P. 01B1521) e, como tal, o titular inscrito beneficia da presunção legal relativamente a essa parcela.

12.ª Noutra formulação, no seio do sistema registal português, não é admissível afirmar, por consulta às tábuas e sem mais, a titularidade do «prédio continente» e deduzir, ato contínuo, a propriedade sobre uma concreta “área” naquele (pretensamente) «contida» (v. ac. STJ 14.11.2013; P. 74/07.3TCGMR).

13.ª A presunção registal funciona quando não se questiona a localização, área e configuração do imóvel disputado, quando as partes identificam mutuamente (ou o demandado não impugna) o quidsobre oqual assenta o«conflito de títulos».Ora, resulta à evidência da matéria de facto provada que o objeto da querela não está sequer caracterizado, não se sabe onde se localiza, nem se se encontra “ocupado” (mormente, pela ora Recorrida).

14.ª Por conseguinte, a A. não pode beneficiar da presunção assente no registo.

15.ª O Tribunal a quo andou, pois, bem, ao denotar que “a presunção estabelecida no citado artigo7.º não pode servir como critério identificador da titularidade de uma parte de um prédio de que duas pessoas se arrogam ser proprietários, quando haja dúvidas sobre a localização (em qual prédio) dessa parte”.

16.ª Mas ainda que assim fosse e como conclui o Tribunal da Relação, a ação tampouco procederia.

17.ª É neste passo – e só agora – que “entra em ação” a presunção do artigo 1268.º CC (todo o teor das conclusões que precedem a presente não vem impugnado pela A., o que dita, s.m.o., a improcedência da revista).

18.ª Na verdade, como bem expôs o Tribunal da Relação, ainda que a A. beneficiasse da pre-sunção legal (o que não ocorre), esta sempre cederia ante a presunção assente naposse da R. (sendo que o acervo fático ilustra vários atos de posse por parte da ora Recorrida).

19.ª Ou seja, mesmo que a A. beneficiasse do artigo 7.º CRP, sempre haveria que considerar o disposto no artigo 1268.º CC, dirimindo o conflito a favor da ora Recorrida, porquanto a posse desta antecede o registo em nome daquela (da Recorrente).

20.ª A ação estaria, pois, necessariamente votada ao insucesso.

21.ª A presunção do artigo 1268.º CC não constitui ius novorum, porquanto os Tribunais (de Recurso) não estão limitados no Direito que aplicam (cfr. Artigo 5.º/3 CPC e a natureza substitutiva – e não meramente cassatória – do recurso de apelação).

22.ª Acrescente-se que o Tribunal da Relação convocou a presunção em apreço para reforçar – mas não para fundar o douto Acórdão recorrido. Este preceito foi invocado a título de obiter dictum (como argumento de segundo plano, supletivo e meramente reforçativo), não integrando o silogismo judiciário.

23.ª Como argumento a latere, o Tribunal da Relação de Évora – que assentou o veredito na interpretação (aliás, escorreita) do alcance do artigo 7.º CRP – apenas cogita que, ainda que esta presunção revestisse valia in casu, nem assim se podia reconhecer razão à A.!

24.ª A Recorrente argumenta que a presunção contida noartigo1268.ºCCabonaaseu favor, pois que adquiriu o 2.º prédio rústico após o início dos atos de posse da Recorrida.

25.ª Não lhe assiste razão. Na verdade, a Recorrente litiga em venire contrafactum proprium.

26.ª A A. esgrime que a “parcela” pretensamente “ocupada” pela R se estende por ambos os prédios rústicos inscritos a seu favor. Como assim, não é possível cindir os prédios para efeitos do artigo 1268.º CC. A posse da R. antecede o registo da A. (referente a um dos prédios continentes da “área” reclamada).

27.ª A A. indica que, nos termos do artigo 1264.º CC, a posse se transfere com a propriedade (refere-se, sem o nomear, ao constituto possessório). Porém, este preceito inculca que o proprietário transmitente seja igualmente possuidor. Ora, não se provou que os ante-proprietários estivessem na posse dos imóveis (aliás, nem a posse da A. quedou provada). Advirta-se que a titularidade do direito real não faz presumir a posse respetiva (o inverso é, porém, verdadeiro, nos estritos termos previstos no citado artigo 1268.º CC).

28.ª Como a A não demonstrou a sua posse nem a dos transmitentes dos imóveis rústicos, não cobra sentido concitar o regime da “perda da posse”. A A. não pode ter perdido – para mais, com violência – uma posse que sequer adquiriu ou conservou…

29.ª A A. brande que os factos assentes nos autos são suficientes para deferir a sua pretensão real. Subsidiariamente, requer a ampliação da matéria de facto provada.

30.ª Antes de mais, resulta à saciedade que a A. infere dos factos provados, extrapolando o alcance do acervo probatório (o que não é legítimo). Supremo Tribunal de Justiça julga a causa olhando tão-somente para o catálogo de factos provados, conforme os mesmos “sobem” àquele Tribunal.

31.ª Em especial, não é possível extrapolar, lendo os vários pontos que integram o catálogo de factos assentes, que:

- A “faixa” de terreno reivindicada integra os prédios registados em nome da Recorrente;

- A Recorrida ultrapassou os marcos existentes;

- A Recorrida “ocupa” os terrenos registados em nome da Recorrente.

Nenhum destes factos resulta – expurgadas as partes conclusivas que adiante se censuram – do acervo de fáctico consolidado no Tribunal da Relação. Desde logo, o primeiro facto enunciado não está firmado no processo…

32.ª Também não é possível, como a Recorrente almeja, apurar-se o perímetro dos terrenos da A. para daí se condenar, como é peticionado nos autos, que a R. proceda à restituição de um (indefinido) “trato” de terra.

33.ª Antes de mais, tal delimitação não foi alegada pela A. (artigo 5.º/1 CPC); a petição inicial construída pela A. radicava na ideia (que não quedou provada) de que era o caminho de pé posto que demarcava os domínios de ambas as partes. A ação não pode assumir – sob pena de violação do princípio do pedido e do contraditório – outros contornos que não os vazados no articulado inicial.

34.ª Seja como for, não estamos ante uma ação de demarcação. Não está em causa a definição dos limites perimetrais dos prédios das partes.

35.ª A A. assaca à R. uma “ocupação” ilícita de terra que (putativamente) lhe pertence e requer ao Tribunal que a R. seja condenada na sua restituição.

36.ª O objeto processual é, assim, o “trato” de terreno alegadamente esbulhado à A.. Logo, não pode o processo prescindir da definição dessa “parcela”, pois que não pode a R. ser condenada a assegurar a integridade dos limites dominiais da A. se não os invadiu…

37.ª A “parcela” de terra disputada nos autos não pode, assim, ser definida por exclusão de partes. A R. só pode ser condenada a restituir uma (pretensa) “porção” de terreno que, efetivamente, “ocupa”, que esteja na sua disponibilidade, devolver…

38.ª O Tribunal da Relação de Évora não se pronunciou sobre a pretensa “ocupação” pela R. dos prédios pertencentes à A., pelo que esta questão sequer pode ser apreciada ex novo por este Supremo Tribunal de Justiça.

AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO (SUBSIDIARIAMENTE, RECURSO SUBORDINADO):

39.ª Por conterem locuções conclusivas, imprecisas e juízos de valor e normativos, diretamente interferentes com o thema decidendum, deve o probatório ser expurgado – revogando-se, nesta parte, o Acórdão recorrido – dos pontos 19 (parte final, que excede o firmado em audiência preliminar), 28 (“para o interior..:”), 32 (“no seu lugar”, “posicionado na junção…”), 33 (“foi recolocado…”), 34 (“incluída…”), 35 (“uma das estremas…”), 39 (“incluindo a área…”) e 40 (“afeta”, “nas proximidades da junção…”) – cfr. ac. STJ 28.9.2017; P. 809/10.7TBLMG (que recai sobre um pleito semelhante ao presente).

40.ª Salvaguardado o mérito jurídico do Acórdão sub judice (que aqui se reafirma), o mesmo violou, no que respeita à impugnação da matéria de facto, o disposto nos arts. 341.º CC e 410.º, 411.º e 607.º/3 a 5do CPC ao recusar-se depurar o acervo fáctico de expressões conclusivas e normativas.

AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO/REENVIO DOS AUTOS AO TRIBUNAL DA RELAÇÃO:

41.ª O Tribunal a quo pronunciou-se apenas sobre o primeiro elemento da causa de pedir da ação de reivindicação: a (in)existência do direito real.

42.ª Caso se entenda conceder a revista da A. (o que apenas por zelo de ofício se equaciona), requer-se respeitosamente a V. Exas. se dignem ordenar a remessa dos autos ao Tribunal recorrido para que possa conhecer das conclusões do recurso de apelação da R. atinentes ao outro elemento da causa de pedir – a “ocupação” da “parcela” pela aqui demandada – e aos factos excetivos restituição da mesma (uma vez que estas conclusões não foram julgadas, tendo ficado prejudicadas pela solução dada ao litígio no 2.º grau – cfr. Artigos 608.º/2 ex vi 663.º/1 CPC).

43.ª Não cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça o poder de substituição que assiste à Relação, deve, no provimento da revista (que se não concebe mas acautela), ser ordenado o reenvio dos autos à Relação para conhecimento da conclusão §19 e seguintes das alegações de apelante oportunamente deduzidas pela ora Recorrida (cfr. Artigo679.º CPC).

E conclui:

“a) deve ser rejeitada a revista impetrada pela Autora;

b) deve ser apreciada a ampliação do objeto do recurso que no que se refere à reapreciação da matéria de facto reputada de conclusiva ou normativa;

c) caso seja concedida a revista, devem os autos baixar ao Tribunal da Relação de Évora para cognição das conclusões do recurso de apelação que ficaram prejudicadas pela, aliás, douta solução ali dada ao litígio (cfr. conclusão 19 e seguintes)”.

13. A Autora veio responder, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª Verifica-se uma dupla conforme que impede o conhecimento da impugnação da matéria de facto por este Supremo Tribunal de Justiça (e que seria uma terceira reapreciação judicial da mesma questão), nos termos do art. 671.º, n.º 3 CPC. A ampliação do objecto do recurso deve, por isso, ser liminarmente rejeitada.

2.ª Subsidiariamente (e sem conceder), cabe salientar que a redacção utilizada na Sentença recorrida para os factos em causa resulta, quase exclusivamente, da redacção utilizada tanto na matéria de facto provada, como na base instrutória do despacho saneador (proferido ainda ao abrigo do anterior CPC e que tem a ref.ª 5271465).

3.ª E tal redacção foi aceite por acordo das partes em sede de audiência prévia, nunca tendo sido alvo de qualquer reclamação ou objecção por parte da Ré/Recorrida ao longo de cerca de 10 anos em que o processo esteve pendente na primeira instância, mesmo em sede de audiência de julgamento que foi conduzida tendo por base a referida matéria assente e base instrutória previamente estabelecidas.

4.ª Note-se, também, que a propriedade a favor da Autora dos prédios descritos nos factos n.ºs 3 e 9 e a propriedade dos prédios descritos no facto n.º 16 (posteriormente unificados num só) a favor da Ré, sempre foi pacificamente aceite pelas partes, nunca tendo sido matéria controvertida nos autos.

5.ª O que está verdadeiramente em causa nos autos é saber qual a área e confrontações dos referidos terrenos e se a Ré/Recorrida esbulhou parte dos mesmos à Autora/Recorrente durante as obras de construção do hotel, tendo posteriormente procedido à sua cessão a favor do Município de .... .

6.ª Pelo que a referência nos factos provados à propriedade de certos terrenos como pertencendo à Autora/Recorrente ou à Ré/Recorrida, não terá uma "índole conclusiva cuja afirmação é susceptível de conduzir, só por si, ao desfecho da acção”, devendo por isso ser mantidos.

7.ª A anteriormente denominada "proibição dos factos conclusivos" não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos.

8.ª Mesmo que assim se não o entenda (no que não se concede), sempre bastaria substituir a expressão “terrenos da Autora” e “terreno da Ré” por “terrenos referidos em 3 e 9” e “terreno referido em 16”, bem como outras alterações meramente formais e de pormenor.

9.ª Os factos provados ficariam então com a seguinte redacção:

19. A pretendia estender a construção do referido hotel para o terreno ocupado pelo caminho então existente, incluindo no projeto apresentado à autarquia de .... essa parcela de caminho no interior dos limites daqueles seus dos terrenos referidos em 16 e ainda uma parcela de terreno compreendida nos terrenos da autora descritos em 3 e 9.

28. Ao colocar os tapumes a ocupou uma área não determinada do caminho existente, alargando e desviando o caminho existente para o interior dos terrenos da autora descritos em 3 e 9, ocupando, atualmente, uma área de 203,06 m2 daqueles terrenos.

32. Em 29/06/2007, aqueles marcos encontravam-se no seu lugar nas estremas originais, com exceção do marco designado MR1 (ex M1), o qual (marco MR1) se encontrava antes posicionado na junção entre os dois terrenos agora da autora referidos em 3 e 9.

33. Sendo que, em ainda em Maio de 2007, o mesmo, que estava por ali no chão, foi recolocado no seu lugar de origem

[nada de conclusivo vemos neste facto que apenas retrata a realidade provada em juízo, pelo que não introduzimos qualquer alteração ao mesmo].

34. Por ali existia uma área completamente desarborizada e com uma forma circular, a qual corresponde à área onde outrora esteve implantada uma praça de touros, praça essa incluída no terreno descrito em 3 e área essa visível ainda em 2005.

[texto já clarificado pelo Tribunal a quo]

35. Após as referidas obras da verifica-se que uma das estremas daquela área encontra-se “cortada”.

[nada de conclusivo vemos neste facto que apenas retrata a realidade provada em juízo, pelo que não introduzimos qualquer alteração ao mesmo].

39. E (os terrenos da ré referidos em 16) têm a área de 61.206 metros quadrados. [texto já adaptado pelo Tribunal a quo]

40. Em data posterior a 07 de Outubro de 2010, a procedeu ao rebaixamento do caminho numa profundidade de 1,5 a 2 metros, o que afeta o terreno da autora descrito em 9 numa extensão de 80 metros ao longo da vedação com início no marco 5 e termo nas proximidades da junção entre as duas parcelas de terreno da autora descritas em 3 e 9, onde se encontrava localizado o marco 1.”.

14. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo A. / ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- a verificação de uma questão nova;

- a presunção de propriedade decorrente do registo e a presunção do artigo 1268.º do Código Civil;

- os factos provados e a ampliação do recurso suscitada pela Recorrida;

- o conhecimento da impugnação da matéria de facto deduzida pela Autora nas suas contra-alegações do recurso de apelação.


   III. Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1.1. No dia 4 de agosto de 1995, no 1.º Cartório Notarial de ...., AA declarou que, por escritura de 23 de novembro de 1989 vendeu um prédio rústico inscrito sob o artigo …., descrito sob o n.º …., tendo constatado posteriormente que a área correta do prédio, então transmitido era de 5 485 metros quadrados, retificando a citada escritura tão-somente quanto à área do prédio transmitido (cfr. cópia simples da escritura de retificação notarial lavrada a fls. 147, do livro 54-D, do 1.º Cartório Notarial de ..., cuja cópia constitui fls. 812 e ss)

1.2. A referida escritura foi acompanhada de fotocópia de caderneta predial e levantamento topográfico elaborado pelo topógrafo BB (ofício remetido por aquele cartório e documentos que constituem fls. 830 e ss.

1.3. No dia 10 de Novembro de 1997, no 2.º Cartório Notarial de …. AA declarou vender e a autora, pela boca de CC, declarou comprar “um prédio rústico sito em …, freguesia de …, concelho de …, composto de terra de cultura com árvores (cinco mil quatrocentos e oitenta e cinco metros quadrados)”, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob a ficha nº… (….) e inscrito na respetiva matriz sob o artigo 2.473 (ponto A) da matéria assente).

1.4. O negócio descrito em 3. encontra-se registado na referida ficha nº…. (…), através da apresentação nº../… (ponto B) da matéria assente)

1.5. O negócio descrito em 3. encontra-se igualmente consignado na respetiva matriz, desde 10/11/1997 (ponto C) da matéria assente)

1.6. Foi levado ao registo predial, naquela ficha nº... (...), bem como à respetiva matriz, que o prédio em 1. tem as seguintes confrontações: “nascente – caminho; norte – DD; poente – EE; sul – estrada”. (ponto D) da matéria assente)

1.7. O terreno descrito em 3. tem a área de 4 983 m23. (artigo 1.º da base instrutória).

1.8. E confronta a sul com estrada (via de ligação entre a Quinta .... e Vale ....) (artigo 5.º da base instrutória)

1.9. No dia 19 de Julho de 2007, FF e GG, HH, II, JJ, KK, LL e MM declararam prometer vender e a autora, pela boca de NN, declarou prometer comprar “um prédio rústico sito em …, freguesia …, concelho …, descrito na Conservatória do Registo Predial. …. sob o número ../… e inscrito na matriz predial sob o artigo .., composto de terra de areia com árvores, com uma área aproximada de 5.000 metros quadrados”. (ponto E) da matéria assente).

1.10. O acordo estabelecido no ponto antecedente foi reduzido a escrito. (ponto F) da matéria assente).

1.11. No dia 21 de Dezembro de 2007, no Cartório Notarial de …., FF e GG, HH, II, JJ, KK, LL e MM declaram vender e a autora, pela boca de NN declarou comprar o prédio referido em 9. (ponto G) da matéria assente).

1.12. O negócio descrito no ponto que antecede encontra-se registado na referida ficha nº….. (…), através da apresentação nº../…. (ponto H) da matéria assente).

1.13. Foi levado ao registo predial, naquela ficha nº0… (…), que o prédio em 9. tem as seguintes confrontações: “nascente – caminho; norte – DD; poente – EE; sul – OO”. (ponto I) da matéria assente).

1.14. Foi levado à matriz, naquele artigo nº..., que o prédio em E) tem as seguintes confrontações: “norte: DD; Sul: OO; Nascente: pessoa desconhecida; Poente: EE e PP”. (ponto J) da matéria assente).

1.15. O terreno referido em 9. tem a área de 4 297 m2 4 (artigo 6.º da base instrutória)

1.16. No dia 2 de Fevereiro de 2007, a M…… HOLDING, pela boca de QQ, declarou vender, e a ré, pela boca de RR, declarou comprar, “o prédio rústico denominado “........”, composto de courela de terra de areia, de semear e barreira com pinheiros, com a área de 30.000 metros quadrados, sito na freguesia …, concelho …., descrito na Conservatória do Registo Predial …. sob o nº….” e o “prédio rústico denominado …, composto de terra de areia, de semear e barreira com pinheiros, com a área de 32.835 metros quadrados, sito na freguesia …, concelho … sob o nº….”. (ponto K) da matéria assente).

1.17. O negócio descrito no ponto que antecede encontra-se registado nas referidas fichas, através, respetivamente, das apresentações nº ….. (ponto L) da matéria assente).

1.18. A ré pretendia construir um Hotel Apartamento de 5 estrelas denominado “Conrad, Palácio Valverde Resort & Spa, Hotel Apartamento”, mais precisamente no lado norte da estrada que liga Vale ..... à Quinta........ (ponto M) da matéria assente).

1.19. A ré pretendia estender a construção do referido hotel para o terreno ocupado pelo caminho então existente, incluindo no projeto apresentado à autarquia de .......... essa parcela de caminho no interior dos limites daqueles seus terrenos e ainda uma parcela de terreno compreendida nos terrenos da autora (artigos 12.º a 14.º da base instrutória, devidamente adaptados)

1.20. O projeto de construção do referido hotel foi classificado, em 6/11/2006, como Projeto de Potencial Interesse Nacional (PIN), nos termos do disposto na Resolução do Conselho de Ministros nº 95/2005, de 24/05. (ponto N) da matéria assente).

1.21. De forma a viabilizar a construção e instalação do referido empreendimento turístico da ré, foi aprovado, através de Decreto Regulamentar nº40/2007, de 9/04, a suspensão dos artigos 42º, 44º e 88º do Regulamento do Plano Diretor Municipal de ...., numa área de cerca de 6,30 hectares da freguesia de ….. (ponto O) da matéria assente).

1.22. O processo camarário para aprovação e obtenção de todas as licenças indispensáveis à implantação do supra mencionado empreendimento hoteleiro – processo nº 439/07 – iniciou-se com a apresentação pela ré junto da Câmara Municipal …. do projeto de construção do mesmo. (ponto P) da matéria assente).

1.23. A Autarquia …. aprovou o projeto de construção supra referido, em 08/08/2007. (ponto Q) da matéria assente).

1.24. Ainda assim, a Autarquia … condicionou a aprovação definitiva do mencionado projeto e a emissão da respetiva licença de construção ao cumprimento pela ré de determinadas medidas, entre as quais: “O projeto fica condicionado aos seguintes parâmetros: deverá juntar os 2 prédios rústicos descritos nas certidões da Conservatória do Registo Predial … – CRPL entregues com os respetivos números …/…. e …./... em um prédio rústico apenas, antes da emissão da licença de construção; deverão ser atualizadas as confrontações da certidão da CRPL, resultante do imposto no número anterior, de forma a confrontar com um caminho a poente, pelo facto de o terreno confrontar a poente com uma via pública classificada como VNC535, antes da emissão da licença de construção”. (ponto R) da matéria assente).

1.25. Em 20/11/2007, a Autarquia …. emitiu alvará de obras e construção com o n.º …./2007. (ponto S) da matéria assente).

1.26. Em Maio/Junho de 2007, a ré deu início à construção daquele hotel. (ponto T) da matéria assente).

1.27. Em meados de Junho de 2007, a ré ergueu tapumes na área do projeto. (ponto U) da matéria assente).

1.28. Ao colocar os tapumes a ré ocupou uma área não determinada do caminho existente, alargando e desviando o caminho existente para o interior dos terrenos da autora, ocupando, atualmente, uma área de 203,06 m2 daqueles terrenos (artigos 19.º a 21.º da base instrutória, devidamente adaptados).

1.29. Em resposta, a autora ergueu uma vedação de postes de madeira e arame nos seus terrenos, em meados do mês de Julho de 2007. (ponto V) da matéria assente).

1.30. Esta última vedação foi erguida a cerca de 5 metros de distância da vedação da ré. (ponto W) da matéria assente).

1.31. Em data imprecisa mas situada entre os anos de 1988 e 1990, encontravam-se colocados e eram visíveis os marcos de divisão dos terrenos da autora face ao caminho público a nascente (artigo 22.º da base instrutória).

1.32. Em 29/06/2007, aqueles marcos encontravam-se no seu lugar, com exceção do marco designado MR1 (ex M1), o qual (marco MR1) se encontrava antes posicionado na junção entre os dois terrenos agora da autora (artigo 23 e 24.º da base instrutória).

1.33. Sendo que, em ainda em Maio de 2007, o mesmo, que estava por ali no chão, foi recolocado no seu lugar de origem (artigo 25.º da base instrutória).

1.34. Por ali, no prédio referido em 3, existia uma área completamente desarborizada e com uma forma circular, a qual corresponde à área onde outrora esteve implantada uma praça de touros, praça essa incluída no terreno referido em 3 e área essa visível ainda em 2005 (artigos 26.º a 29.º da base instrutória).

1.35. Após as referidas obras da ré verifica-se que uma das estremas daquela área encontra-se “cortada” (artigo 30.º da base instrutória).

1.36. Antes da aquisição do terreno, a ré procedeu a um levantamento cadastral e topográfico com o intuito de definir em concreto os limites da sua propriedade, sendo o projeto de construção elaborado em função dos limites assim achados (artigos 31.º a 33.º da base instrutória).

1.37. Os terrenos da ré confrontam a norte com um terreno de cultivo (artigo 34.º da base instrutória).

1.38. E a sul com a via VNC535 (estrada que liga Vale .... a Quinta ....). (ponto X) da matéria assente).

1.39. E (os terrenos da ré referidos em 16) têm a área de 61.379 61.206 metros quadrados. (artigo 36.º da base instrutória, devidamente adaptado).

1.40. Em data posterior a 07 de Outubro de 2010, a ré procedeu ao rebaixamento do caminho numa profundidade de 1,5 a 2 metros, o que afeta o terreno da autora numa extensão de 80 metros ao longo da vedação com início no marco 5 e termo nas proximidades da junção entre as duas parcelas de terreno da autora, onde se encontrava localizado o marco 1 (artigos 37.º e 38.º da base instrutória).

1.41. Através de escritura pública denominada “ESCRITURA DE CEDÊNCIA A TÍTULO GRATUITO DE UMA FAIXA DE TERRENO COM A AREA DE 2 559m2” celebrada no dia 4 de abril de 2011, nos Edifício ….., a ré IMOCOM declarou ceder ao Município........., livre de quaisquer ónus ou encargos, uma faixa de terreno com a área de 2 559 m2 (dois mil, quinhentos e cinquenta e nove metros quadrados) do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de .......... sob o n.º …../…., freguesia de …, concelho de …, destinada a passeio em planta que fez parte do processo (cfr. cópia simples da escritura lavrada a fls. 73, do Livro n.º 52 e que constitui fls. 1185 e ss.).

1.42. A autora dirigiu duas cartas ao Município …, em 13 de março de 2008 e em 7 de abril de 2008 dando conta do facto do caminho público se encontrar na sua propriedade e requerendo a reposição do mesmo no estado em que se encontrava.


2. A verificação de uma questão nova

A Recorrente veio suscitar a questão do conhecimento de matéria nova em sede de recurso de apelação por parte do Tribunal da Relação de Évora no Acórdão sob recurso.

A Recorrente refere nas suas alegações: “Contudo, no seu recurso de apelação a Ré Imocom veio pela primeira vez, num processo que se arrastava já há mais de 11 anos, invocar um novo argumento nunca antes suscitado ou discutido em primeira instância e que consistia na necessidade de a Autora provar actos de posse sobre os terrenos, uma vez que a presunção registral deveria ceder perante a presunção de posse do art. 1.268.º Cód. Civil que beneficiaria a Ré por ser anterior ao registo da propriedade a favor da Autora.

Conforme se referiu, esse novo argumento nunca foi alegado em primeira instância pela Ré e não foi, por isso, conhecido pelo Tribunal de primeira instância.

Na verdade, em primeira instância a Ré apenas se preocupou em defender a zona de delimitação dos seus terrenos, tendo a prova realizada demonstrado que tal delimitação não estava correcta.

Pelo que, salvo o devido por mais douta opinião, na deveria a douta Relação ter sequer conhecido desse argumento.”

No Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Évora pronunciou-se desta forma sobre a questão de ser ou não uma questão nova: “O primeiro tema, a nosso ver, é decisivo e a ser procedente determina inevitavelmente o desfecho da acção (com a sua improcedência).

A recorrida contra-alega que se trata de uma questão nova e que nunca foi conhecida pelo tribunal de 1.ª instância. Salvo o devido respeito, não podemos concordar pois que isto prende-se com a própria causa de pedir e com os requisitos materiais do mérito da acção e que, por isso, é de conhecimento obrigatório.

Esta é uma acção de reivindicação cuja causa de pedir assenta no «facto jurídico de que deriva o direito real» (art.º 581.º, n.º 4, Cód. Proc. Civil). E é precisamente isto que está aqui em questão.”

Como bem refere a Autora/Recorrente, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso.

- Acórdãos do STJ, de 17/11/2016 e de 7/07/2016, consultáveis em www.dgsi.pt -

- cf. no mesmo sentido, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3, 2003, p. 5 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª edição, p. 147 -

No caso dos autos, a questão que foi colocada a julgamento foi da propriedade de uma parcela de um prédio.

O Tribunal de 1.ª instância julgou procedente a pretensão da Autora sobre o reconhecimento da propriedade, com fundamento na presunção do registo e na demonstração da “legalidade da cadeia de transmissões dos anteriores proprietários do bem para a autora”.

A Ré interpôs recurso de apelação impugnando a decisão do Tribunal de 1.ª instância, por, no seu entendimento, não se ter provado que a Autora era a proprietária dessa parcela de terreno.

E o Tribunal da Relação …, no Acórdão recorrido, pronunciou-se sobre a questão da propriedade da parcela de terreno reivindicada pela Autora e concluiu que esta não demonstrou o seu direito de propriedade.

E era esta a questão sobre a qual a Relação ….. tinha de se pronunciar, ou como afirmou o Tribunal da Relação “esta é uma acção de reivindicação cuja causa de pedir assenta «no facto jurídico de que deriva o direito real» (art.º 581.º, n.º4, Cód. Proc. Civil). E é precisamente isto que está aqui em causa”.

 Como bem refere a própria Recorrente foi utilizado, mesmo que consideremos os termos em que foi feito e referidos pela Recorrida, um argumento que não foi levado em consideração pelo Tribunal de 1.ª instância nem havia sido invocado pela Ré/Recorrida, mas trata-se de um argumento e não de uma questão nova.

Desta forma, a Recorrente não tem razão na questão que suscita.


3. A presunção de propriedade decorrente do registo e a presunção do artigo 1268.º do Código Civil

A Recorrente insurge-se contra o Acórdão recorrido, por entender que a sua propriedade sobre a parcela em causa ficou provada por beneficiar da presunção resultante do registo, como afirmou o Tribunal de 1.ª instância, e que a Ré/Recorrida não poderia beneficiar da presunção do artigo 1268.º do Código Civil porquanto a aquisição dos prédios tinha sido levado ao registo, quer pela Autora/Recorrente quer por aqueles que lhe transmitiram o prédio, antes dos supostos atos de posse praticados pela Ré/Recorrida.

O Tribunal da Relação ..., no Acórdão recorrido, entendeu que a Autora/Recorrente não beneficiava da presunção resultante do registo predial.

No caso presente, a Autora/Recorrente invocou que era a proprietária de prédios, beneficiando da presunção resultante do registo na Conservatória do Registo Predial e que a Ré/Recorrida tinha ocupado uma parcela de terreno.

Como se afirmou no Acórdão do STJ, de 10/09/2020, de acordo com o artigo 1311.º do Código Civil, o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade, sendo que este direito se adquire por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei (artigo 1316.º do Código Civil).

Destes modos legítimos de aquisição, uns são meros atos translativos do direito, também designados de modos de aquisição derivada, como são os casos do contrato e da sucessão mortis causa, enquanto outros são constitutivos do próprio direito e, por isso, designados de modos de aquisição originária, como acontece com a usucapião (artigo 1287.º do Código Civil), a ocupação (artigos 1318.º e seguintes do Código Civil) e a acessão (artigos 1325.º e seguintes do Código Civil).

A prova do direito de propriedade é feita através de factos que demonstrem a aquisição originária do domínio por parte de quem se arroga e que quer ver declarado tal direito ou de qualquer dos seus antepossuidores, nos termos gerais do direito substantivo (artigo 342.º do Código Civil), sendo que aquele que reivindica invoca, como fonte do seu direito, uma das formas de aquisição derivada, porque não constitutiva, mas meramente translativa do direito, não lhe basta provar este modo aquisitivo para que possa ser considerado titular do direito, terá ainda que alegar e demonstrar que esse direito já existia na titularidade do transmitente e, bem assim, as sucessivas aquisições dos seus antecessores até atingir a aquisição originária em algum deles, tudo isto em razão do princípio nemo plus júris ad alium transfere potest, quam ipse habet (ninguém pode transferir para outrem mais direitos do que aqueles que possui).

Assim, não basta que se demonstre a aquisição derivada, devendo também provar-se que o direito já existia no transmitente – aquisição originária – pois, as formas de aquisição derivada, na medida em que o direito adquirido se funda ou filia na existência de um direito na titularidade de outra pessoa, não são suscetíveis de, por si próprias, gerarem qualquer direito real, sendo apenas um meio de transmiti-lo.

Assim não é quando o último transmitente beneficia da presunção do Código do Registo Predial que no seu artigo 7.º estabelece que o registo definitivo constitui presunção que o direito existe e pertence ao titular inscrito.

Conquanto a teoria da substanciação consagrada no direito adjetivo civil, não sofre reservas que a causa de pedir nas ações de reivindicação pode confinar-se ao facto base da presunção legal, donde, ao titular do registo, porque beneficiário de uma presunção, apenas basta invocá-la, sendo desnecessária a prova do facto presumido.

Ao dispor que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, o artigo 7.º do Código do Registo Predial quer significar que se trata de uma presunção juris tantum, elidível por prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil) de que o direito registado existe e emerge do facto registado, pertence ao titular inscrito e tem determinada substância (a que o registo define).

Ou, dito de outra forma, não obstante o artigo 581.º, n.º 4, 2ª parte, do Código de Processo Civil, adotando o princípio da substanciação, definir a causa de pedir, quanto às ações reais, na base do facto jurídico de que procede o direito real (ou seja, o que constitui o direito e determina de certo modo o seu conteúdo, é a causa originária de que provém), a lei estabelece presunções legais do direito de propriedade (como é o caso do artigo 7.º do Código do Registo Predial, ao consagrar a presunção de que o direito existe na esfera do titular inscrito), dispensando, então, tais presunções legais o beneficiário delas de provar o facto presumido, como decorre claramente do artigo 350.º, n.º 1, do Código Civil.

Assim, no caso do artigo 7º do Código do Registo Predial:

— O facto-base da presunção, será o facto registado (por ex.: o contrato de compra e venda, doação, usucapião, etc.);

— E confere o seguinte alcance, quanto ao efeito presumido: (i) existência do direito que emerge do facto jurídico inscrito; (ii) titularidade desse direito na esfera do beneficiário inscrito; (iii) o objeto e o conteúdo dos direitos, ónus ou encargos, nos precisos termos definidos no registo.

Como se referiu atrás, a Autora/Recorrente veio invocar a presunção resultante do registo.

O Tribunal de 1.ª instância decidiu que a Autora/Recorrente era a proprietária dos imóveis, com fundamento na presunção resultante do registo.

O Tribunal da Relação ... decidiu que a Autora/Recorrente não beneficiava de tal presunção.

E o Tribunal da Relação ... decidiu bem quando considerou que a Autora/Recorrente não beneficiava da presunção resultante do registo.

O STJ vem decidindo, unanimemente, que a presunção da titularidade do direito de propriedade constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo, pois o registo predial não é constitutivo e não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio. Por esta razão, a descrição predial de um prédio – assim como as descrições matricial ou notarial – pesem embora constituam elementos enunciativos importantes de identificação, não servem, exclusivamente, para a exata determinação física ou da real situação do prédio, enquanto unidade fundiária contínua.

- cf. Acórdão de 5/05/2016; cf., ainda, Acórdãos de 14/01/2010 e de 29/04/2010 –

A presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial, na parte em que se refere ao objeto, só faz presumir que o facto inscrito incide sobre a coisa identificada na descrição, mas já não as respetivas características. Ou seja, a presunção do registo não se estende à verdade material das confrontações do prédio.

Assim, no caso presente está em causa a propriedade de uma parcela de terreno, e apesar de a Autora/Recorrente ter invocado a presunção resultante do registo de dois prédios, a Autora/Recorrente não demonstrou a titularidade da sua propriedade sobre imóveis uma vez que a presunção decorrente do registo não inclui a delimitação e confrontações do prédio e ao não ter provado qualquer posse ou aquisição originária a ação, como decidiu o Tribunal da Relação teria de improceder por não estar demonstrada a propriedade da Autora/Recorrente sobre a parcela em causa.

Quanto à questão suscitada pela Recorrente da inoperância da eventual posse da Recorrida sobre a parcela de terreno pela existência do registo anterior dos prédios na Conservatória do Registo Predial ou daqueles que lhe transmitiram os prédios:

Prescreve o n.º 1 do artigo 1268.º do Código Civil que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.

Deste preceito legal resulta que, para que não funcione a presunção derivada da posse, será necessário que exista a favor de outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse, isto é, havendo conflito de presunções, uma derivada do registo, isto é, do artigo 7.º do Código do Registo Predial e a outra emergente da posse, ou seja, do artigo 1268.º, n.º 1, do Código Civil, prevalece esta última, designada por presunção da propriedade, que só cede em confronto com a presunção derivada do registo anterior ao do início da posse.

No caso presente, e como atrás se referiu, o Acórdão recorrido não conclui pela improcedência da ação por a Recorrido beneficiar da presunção de posse, mas por a Recorrente não beneficiar da presunção de propriedade, resultante do registo, da parcela de terreno que a Recorrente alega que a Recorrida ocupa, como havia invocado, por essa presunção resultante da inscrição do direito não abranger a área, limites ou confrontações dos prédios descritos no registo e a Recorrente não ter invocada qualquer modo de aquisição originária do direito de propriedade que invoca (e, repete-se, não por essa presunção ter sido afastada por eventual posse exercida pela Recorrida). Ora, no caso presente, encontrando-se afastada a presunção de propriedade da parcela resultante do registo, não se verifica qualquer conflito de presunções.

Deste modo, e concluindo nos mesmos termos do Tribunal da Relação e pelos mesmos fundamentos, não releva apreciar profundamente a presente questão.


4. Os factos provados e a ampliação do recurso suscitada pela Recorrida

Por outro lado, vários dos factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª instância podem conduzir-nos à conclusão que a Autora/Recorrente demonstrou o seu direito de propriedade sobre a parcela em causa nos presentes autos.

E relativamente a esses factos, a Ré/Recorrida veio requerer a ampliação do objeto do recurso, sendo os factos em causa o 19, 28, 32, 33, 34, 35, 39 e 40, pretendendo a Ré/Recorrida se suprimam as seguintes passagens desses factos:

19. “A ré pretendia estender a construção do referido hotel para (…) uma parcela de terreno compreendida nos terrenos da autora”.

28. “(…) a ré (…) alargou e desviou o caminho (…) para o interior dos terrenos da autora, ocupando, atualmente, uma área de 203,06 m2 daqueles terrenos”.

32. “Em 29/06/2007, aqueles marcos encontravam-se no seu lugar, com exceção do marco designado MR1 (ex M1) que se encontrava antes posicionado na junção entre os dois terrenos agora da autora”.

33. “(…) o mesmo, que estava por ali no chão, foi recolocado no seu lugar de origem”.

34. “(…) praça essa incluída no terreno da autora”.

35. “(…) uma das estremas daquela área encontra-se “cortada””.

39. (…) incluindo a área de sobreposição de 173 m2”.

40. “o que afeta o terreno da autora (…) nas proximidades da junção entre duas parcelas de terreno da autora.”


Ora, a Ré/Recorrente suscitou a questão no Tribunal da Relação de Évora, tendo o Acórdão recorrido respondido a esta questão: “Em relação aos conceitos jurídicos utilizados na exposição da matéria de facto, parece-nos excessiva a amputação que a recorrente [aqui Recorrida] pretende fazer do texto. Existem figuras jurídicas cujo nome é um substantivo, é um descritivo de uma realidade sedo difícil escrever esta sem utilizar aqueles conceitos ou nomes jurídicos.

Por outro lado, e tendo em conta o objeto da ação (saber se a recorrente ocupou uma parte do prédio da A. as expressões utilizadas (por exemplo, «uma parcela de terreno compreendida nos terrenos da autora», «para o interior dos terrenos da autora, ocupando, atualmente, uma área de 203,06 m2 daqueles terrenos») descrevem uma realidade e delas não se retira uma conclusão decisiva. Se se tratasse de uma ação de demarcação, em que o objeto é a linha divisória entre dois prédios, o rigor seria mais exigente, pois que falar de estrema ou área confinante seria confundir já a descrição com a valoração.

A proibição da linguagem decretaria a impossibilidade de descrição e o tribunal, numa situação extrema, ficaria impedido de julgar a causa.

Mas não é este o caso, como se disse.

Assim, mantém-se a redação tal como está”.

  Ora, nesta parte, não podemos acompanhar a posição assumida pelo Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão sob recurso e neste caso em concreto.

Assim, como é sabido, em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjetivação.

Todavia, vem sendo entendido que tal enunciação pode conter referência:

— Quer a situações jurídicas consolidadas, desde que não hajam sido postas em causa, isto é, desde que sejam usadas sem representar uma aplicação do direito à hipótese controvertida (quando se trate de elementos adquiridos sobre os quais não vai incidir um esforço de apreciação normativa);

Quer a termos jurídicos portadores de alcance semântico socialmente consensual (portadores de uma significação na linguagem corrente) desde que não sejam objeto de disputa entre as partes e não requeiram um esforço de interpretação jurídica, devendo ser tomados na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum.

No caso em apreço, em que as confrontações dos prédios assumem um papel estratégico no quadro do litígio, tenha-se presente que a Autora alega que a Ré ocupou uma parte de terreno dos seus prédios:

— O contexto retratado sob os enunciados de facto atrás referidos (contendo termos e locuções jurídicas de natureza valorativa) não assume natureza meramente referencial de situações consolidadas e sem papel estratégico no quadro do litígio;

— Ao invés, integra o essencial do objeto de disputa entre as partes sobre o qual recaiu o esforço de (diversa) interpretação jurídica efetuado quer na 1.ª instância, quer no Acórdão da Relação,

pelo que não pode ser utilizado na enunciação dos factos (uma vez que contém a solução jurídica do pleito: a Ré ocupou uma área... desviando o caminho existente para o interior dos terrenos da autora, ocupando, atualmente, uma área de 203,06m2 dos terrenos da A.). 


 Deste modo, devem ser considerados como não escritos, os termos atrás referidos e sublinhados, como pretende a Ré/Recorrente na sua ampliação do objeto do recurso.  

 Assim sendo, nenhuma alteração se deve efetuar no que concerne a considerar que a Autora não demonstrou, como lhe competia nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, ser a proprietária da faixa de terreno em causa nos autos (não beneficia da presunção de propriedade resultante do registo, nos termos atrás referidos, nem alegou qualquer forma de aquisição originária dessa faixa de terreno que alegou ser proprietária e que a Ré/Recorrida ocupa).


  5. Do conhecimento da impugnação da matéria de facto deduzida pela Autora nas suas contra-alegações do recurso de apelação

 A Autora/Recorrente, nas suas alegações, refere que “Subsidiariamente e antecipando-se o argumento da Ré de que apesar de ter ficado devidamente provada (i) a propriedade dos terrenos da Autora, bem como a (ii) área exacta destes e (iii) a área da parcela ocupada pela Ré, não constaria da matéria de facto provada uma precisa delimitação da parcela ocupada que terá de ser restituída, refira-se o seguinte.

 Quanto à delimitação da área reivindicada, a mesma encontra-se definida nos n.ºs 19., 28., 29., 34., 35., 39. e 40. dos factos provados.

Estando também claramente definida nos desenhos elaborados pelos Senhores Peritos e constantes de fls.879 e 880 dos autos.

 Subsidiariamente (e sem conceder), tal como se referiu já nas contra-alegações de apelação (ver conclusões lxvi. a lxxvi, para a hipótese de se entender que os factos provados não são suficientes para delimitar, com precisão, os terrenos da Autora e, consequentemente, a área destes que foi ocupada pela Ré Imocomn e que deverá ser restituída, nos termos do art. 682.º, n.º3 CPC se requer que o processo desça à Relação para apreciação da impugnação da resposta de não provados dada aos factos sob as alíneas a) a g) dos factos não provados da douta Sentença.”

 No que concerne a esta pretensão da Autora/Recorrente:

  Não se encontra demonstrada a alegada propriedade da Autora sobre uma parcela de terreno que a Ré/Recorrida vem ocupando, como atrás se referiu.

  Por outro lado, também se considerou como não escritas algumas das afirmações constantes dos pontos 19., 28., 34., 35., 39. e 40.

 O Tribunal da Relação ..., no seu Acórdão sob recurso, não se pronunciou sobre a impugnação da matéria de facto nos termos já então pretendidos pela ora Recorrente. Contudo, a Recorrente não veio invocar a nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia, não sendo esta nulidade de conhecimento oficioso.

 A Recorrente pretende que este STJ se socorra do disposto no n.º3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil, que prescreve que o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.           

 Como já se afirmou, a Autora/Recorrente não demonstrou ser a proprietária de qualquer parcela de terreno que a Ré esteja a ocupar, pelo que é irrelevante para os autos, porquanto nenhuma influência tem sobre o mérito da causa, o saber-se que área têm os prédios e a área e delimitação da parcela em disputa, sendo um ato manifestamente inútil analisar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto ou apurar factos que não têm qualquer relevância para a decisão da causa (cf. artigo 130.º do Código de Processo Civil).

    Assim, a pretensão da Autora/Recorrente não procede.


  Deste modo, o recurso tem de improceder.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em manter o Acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 12 de janeiro de 2021


Pedro de Lima Gonçalves (Relator)   

Fátima Gomes           

Acácio das Neves

Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do decreto – Lei n.º20/2020, de 1 de maio, declara-se que têm voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Fátima Gomes e Acácio das Neves.