Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO INIBIÇÃO DO PODER PATERNAL INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA PRINCÍPIO DA NECESSIDADE PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO FILIAÇÃO PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE LEGALIDADE REVISTA EXCECIONAL | ||
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Data do Acordão: | 05/27/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I. Por ideal que seja a prevalência da família [cfr. artigo 4.º, al. h), da LPCJP], o essencial é sempre o interesse superior da criança ou do jovem [cfr. artigo 4.º, al. a), da LPCJP], devendo a medida a aplicar ser a necessária e a adequada a salvaguardar a criança ou o jovem do perigo em que se encontra no momento da aplicação da medida [cfr. artigo 4.º, al. e), da LPCJP]. II. Para se aferir da existência ou do não comprometimento sério dos “vínculos afectivos próprios da filiação” para os efeitos do n.º 1 do artigo 1978.º do CC não basta ver se existe uma ligação afectiva entre o(s) progenitor(es) e a criança; é preciso ver se ela se concretiza em gestos, actos ou atitudes que revelem de que o(s) progenitor(es) têm(tem) não só a preocupação como também a aptidão para assumir plenamente o papel que, por natureza, lhes cabe – o papel de pai(s) da criança. III. Sempre os factos demonstrem, seja o desinteresse, seja a falta de capacidade do(s) progenitor(es) para assumir plenamente este papel de pais da criança, é de concluir que não existem ou estão seriamente comprometidos, para os efeitos da norma do artigo 1978.º do CC, os “vínculos afectivos próprios da filiação”. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. RELATÓRIO 1. Nos presentes autos de promoção e protecção relativos ao menor BB, nascido em … de Março de 2019, filho de CC e de AA, depois de ter sido aplicada, em 9.06.2020, uma medida de apoio junto aos progenitores, a executar junto da mãe, pelo período de três meses, idêntica à já anteriormente aplicada pela Comissão de Crianças e Jovens …, proferiu o Tribunal Colectivo do Juízo de Menores e Família … uma decisão com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, e nos termos dos artigos 62º, n.º 1 e 3, b) e 35º, n.º 1, g) da LPP, decidem os juízes que compõem este Tribunal Colectivo em aplicar em favor do BB a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção. Nos termos dos artigos 62º-A, n.º 6 da LPP e 1978-A do C. Civil determino a inibição do exercício das responsabilidades parentais por parte dos progenitores da criança. Atento o superior interesse da criança, a progenitora não poderá ausentar-se da comunidade de inserção com a criança sendo que, caso a mesma pretenda sair da mesma, de forma definitiva, deverá o ISS assegurar a transferência imediata da criança ou para família de acolhimento, ou para casa de acolhimento sendo que, nessa altura, será nomeado tutor à criança. Atento o disposto no artigo 62º-A, n.º 5 da LPP”. 2. Inconformada, a mãe do menor AA apelou para o Tribunal da Relação …. . 3. Em 12.01.2021 proferiu este Tribunal um Acórdão em que se se julgou a apelação improcedente e se confirmou a decisão recorrida. 4. Ainda inconformada, a mãe do menor AA interpôs recurso de revista excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, al. b), do CPC. Termina a sua alegação formulando as seguintes conclusões: “Da admissibilidade do recurso de revista excpecional 1.ª Nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 672º do Código de Processo Civil, é admissível recurso de revista excepcional quando estejam em causa interesses de particular relevância social. 2.ª No caso dos autos, foi decretada a aplicação da medida em favor do menor BB de confiança a instituição com vista a futura adopção, 3.ª Não se conformando com a douta decisão da primeira instância, a aqui Recorrente interpôs recurso de Apelação para o Tribunal da Relação ………., o qual veio agora confirmar a decisão da primeira instância, havendo assim uma situação de dupla conforme. 4.ª Contudo, no caso dos autos, está em causa uma questão muito relevante sobre o estado das pessoas, pela qual foi decidido confiar o menor a instituição com vista a futura adopção, inibindo os progenitores do exercício das responsabilidades parentais, no caso a mãe, aqui Recorrente. 5.ª É entendimento generalizado da jurisprudência e da doutrina que a medida de confiança de menor a instituição com vista a futura adopção é uma questão que tem gerado divergência de posições, muito particularmente quando os progenitores a isso se opõem, pretendo manter a relação de família natural, 6.ª Trata-se de uma questão com contornos polémicos, difíceis e susceptíveis de interpretações tão divergentes que permitem considerá-la tão relevante que torna necessária uma intervenção deste Supremo Tribunal, para uma melhor aplicação do direito, 7.ª Com efeito, o conceito amplo de “superior interesse da criança” torna necessária a intervenção deste Supremo Tribunal para a melhor aplicação do direito. 8.ª A medida de confiança a instituição com vista a futura adopção é sem sombra de dúvida uma questão que muito tem movimentado a doutrina e jurisprudência, e consequentemente tem gerado divergência de posições. 9.ª No caso concreto, estão em causa a quebra total e definitiva de fortes laços afectivos, entre mãe e filho, reconhecidos pelo Tribunal, pelo que deve ser admitida a presente Revista excepcional, como já foi decidido por este Supremo Tribunal: 10.ª O pressuposto de admissibilidade da al. b) do n.º 1 do art. 672.º do CPC fica preenchido quando a resolução do pleito pode interagir com comportamentos sociais relevantes, ou seja, quando se debatam interesses que assumam importância na estrutura e relacionamento sociais e a questão tenha repercussão fora dos limites da causa. 11.ª Pelo que, se requer que seja admitida a presente revista excepcional. Do Recurso propriamente dito 12.ª Pelo Juiz …. do Juízo de Família ………, foi decretada a aplicação da medida em favor do menor BB de confiança a instituição com vista a futura adopção, com a consequente inibição do exercício das responsabilidades parentais dos progenitores, no caso a mãe, aqui Recorrente, 13.ª Por seu turno, o Mmº Tribunal a quo, o Tribunal da Relação ………., decidiu julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida. 14.ª A questão que efectivamente se coloca neste recurso é a de saber qual a definição de Superior Interesse da Criança. Em que consiste este princípio fundamental da criança, previsto quer na legislação nacional, quer na legislação comunitária, quer e nos tratados internacionais que Portugal outorgou? 15.ª A esta questão, o Mmº Tribunal a quo, responde: “Com efeito, o superior interesse da criança não pode ser um conceito abstracto, informado por soluções idênticas para uma multiplicidade de casos, mas um juízo concretizado pelas particularidades de cada situação, às quais se pergunta qual a solução mais adequada para a progressão do crescimento integral da criança. Evidentemente que a lei não elenca todos os factores que o Tribunal deverá considerar para determinar aquele interesse. Na verdade, aqui entra, inevitavelmente, uma dose de subjectivismo judiciário que se deve estribar, mesmo assim, na ponderação e criação de alguns subcritérios destinados a densificar aquele conceito e que tenham assento, como nos parece claro, nos factos que dos autos se mostrem assentes, devendo, portanto, cada caso ser decidido individualmente.” 16.ª Foi dado como provado que a aqui Recorrente sofre de oligofrenia congénita, tendo ambas as instâncias considerado que não é relevante a questão de saber a intensidade da mesma, sendo certo que é ligeira. 17.ª Foi igualmente dado como provado que existe uma ligação afectiva entre a aqui Recorrente e a criança, reconhecida por todas as testemunhas que trabalharam directamente com ambos. 18.ª O que até parece ser “prejudicial” para a manutenção da relação da família natural -entre mãe e filho - pois conclui-se, em jeito de facto provado, que “com a idade do BB, o facto de ter conseguido estabelecer uma relação com vínculo seguro com a mãe, aquele irá conseguir, à partida, vincular-se, no futuro, a outras pessoas, porque adquiriu essa mesma capacidade” 19.ª Ou seja, porque o BB adquiriu essa capacidade da relação com mãe, está mais apto à ruptura do vínculo com ela e estabelecimento de um vínculo com uma eventual família parental. 20.ª Salvo melhor opinião, parece uma manifesta contradição de ambas as instâncias. 21.ª Conclui-se igualmente, no douto acórdão recorrido que por causa da doença mental de que padece, a aqui Recorrente sozinha, nunca conseguirá acompanhar o desenvolvimento de uma criança, não conseguindo estimular o filho, nos moldes que este necessita, à medida que vai crescendo, nomeadamente em termos de linguagem, não conseguindo também impor regras ao filho, o que é mais notório com o crescimento da criança 22.ª Coloca-se a questão de saber se, mesmo que assim seja, não será possível aplicar outra das medidas elencada no art. 35º da LPCJP que não implique a imediata, total e definitiva relação de vínculo de família natural entre a mãe, aqui Recorrente, e o menor. 23.ª Foram efectuadas diversas tentativas de privilegiar a continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas com a aplicação, no fundo desde a data de nascimento do BB (…. ….. .2019) e até ao momento de medida de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, no CAV ………”. 24.ª Contudo, conclui-se que a manutenção das medidas de protecção do menor em meio familiar, não se mostram suficientes”, nem adequadas ao interesse do menor1 25.ª Veja-se o Ac. TRC de 02/10/2012, Proc.n.º 732/10.5 TBSCD, in www.dgsi.pt: 1.- A inexistência ou o sério comprometimento dos vínculos afectivos constitui requisito de verificação necessária para o decretamento da confiança judicial, a somar às situações que traduzam desinteresse parental ou em que os pais, por acção ou omissão, ponham em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança (arts. 1978º, nº 1, d) e e), e 3, e 3º, nº 2, da LPCJP). 2. - É, pois, requisito autónomo comum, de todas as situações tipificadas no nº 1 do art. 1978º, a não existência ou sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação, vistos tanto na perspectiva dos pais para com os filhos como na dos filhos para com os pais, não bastando a verificação e prova de qualquer das circunstâncias tipificadas, sendo, pois, condição de decretamento da medida de confiança judicial que se demonstre não existir ou se encontrarem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, não bastando, igualmente, que o estejam os vínculos, por assim dizer, económico-sociais próprios dela. 3.- A situação tipificada na alínea d) do referido normativo, que os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, ponham em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor, exige que o mencionado perigo seja grave. 4 - Na aplicação de uma medida de promoção e protecção deve observar-se o princípio da proporcionalidade, contemplado no art. 4º, alínea e), da Lei 147/99 (LPCJP); 5 - Um dos princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo é o da prevalência da família, o que significa que, neste domínio, deve ser dada prevalência às medidas que integrem a criança na sua família (art. 4º, g), da LPCJP). 26.ª Ou, mais relevante, o que entendeu este Tribunal (Ac. STJ de 14-07-2016, proc. 8605/13.3TBCSC.L1.S1, in www.dgsi.pt): I - Através da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção procura-se encaminhar a criança para uma desejável adoção - a futura adoção é o essencial fim desta medida - sem que os passos a dar neste sentido possam ser estorvados pela inoportuna e inconsistente rejeição da anuência dos pais. II - Se é certo que a “futura adoção” preconizada para a criança tem de assentar no preclaro abandono dos progenitores, ou seja, no rompimento dos laços de filiação biológica por parte dos pais - como se induz da al. c) do n.º 1 do art. 1878.º do CC - também é verdade que só quando tivermos a certeza de que esta relação parental se esvaziou de forma absoluta é que se poderá encetar o caminho destinado à procura de saber se a adoção é a melhor medida para a criança, assim desmerecida pelos seus pais 27.ª Assim, a inexistência ou o sério comprometimento dos vínculos afectivos constitui requisito de verificação necessária para o decretamento da medida confiança judicial a instituição com vista a futura adopção. 28.ª No caso concreto, ficou provada e reconhecida a existência desse vínculo afectivo entre a mãe, aqui Recorrente, 29.ª Deve ser dada prevalência a medidas que privilegiem a integração da criança na sua família natural, sem prejuízo da manutenção de todos os direitos e garantias devidos à criança, mesmo quando uma doença do foro mental - ligeira, insiste-se - não permite à mãe o acompanhamento daquela, na plenitude das suas vertentes, identificadas no douto acórdão recorrido. 30.ª Com a devida vénia, a medida decidida pela primeira instância e confirmada pela Relação é o reconhecimento de que o Estado Português não pode fazer mais - ou desistiu - para salvaguardar a manutenção de uma relação de família natural entre uma criança e a sua mãe portadora de doença de foro mental. 31.ª Ainda, com a devida vénia, esta também será uma vertente da prevalência do princípio do Superior Interesse da Criança: a manutenção da relação familiar natural entre a criança e a sua mãe portadora de doença mental. 32.ª Não deixará de ser um tema que - mais cedo ou mais tarde - o Estado Português terá de enfrentar. E os Tribunais de decidir. 33.ª Salvo melhor opinião, o princípio do Superior Interesse da Criança não pode determinar que o destino da criança, filha de mãe portadora de doença mental, seja necessariamente a adopção. 34.ª Assim, o acórdão ora recorrido, ao desconsiderar o vínculo afectivo entre a criança e a sua mãe, ora Recorrente, mantendo a decisão de primeira instância que determinou uma medida de que resulta a cessação da relação da família natural, está em manifesta contradição com a jurisprudência supra referida, 35.ª E viola o princípio da prevalência do Superior Interesse da Criança”. 5. O Ministério Público apresentou resposta às alegações da recorrente, sintetizada nas seguintes conclusões: “1. O presente recurso de revistaexcepcional deveser rejeitado por inadmissibilidade legal de sua interposição, por deficiente instrução, por não junção de certidão do acórdão fundamento, cujo trânsito em julgado se desconhece e que não pode ser presumido, por inobservância de requisito formal previsto no artº. 672º. Nº. 2 do CPC. 2. Mais não é permitida a sua convolação em recurso de revista, nos termos dos nº.s 3 e 5 seguintes, por não invocação de oposição de acórdãos”. 6. Em 18.02.2021 foi proferido despacho pelo Exmo. Relator do Tribunal da Relação ……….. com o seguinte teor: “Vem a apelante, mãe do menor, inconformada com o acórdão proferido nos autos que confirmou a decisão de 1.ª instância de confiança do menor a instituição com vista a futura adopção, em tempo e invocando, talvez de forma deficiente, as razões pelas quais os interesses são de particular relevância social, interpor recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça. Todavia, remeta os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do n.º 3 do art.º 672.º do C.P.Civil. Notifique”. 7. Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal à presente Relatora, proferiu esta um despacho no qual pode ler-se: “Não se encontrando impedimentos à admissibilidade do presente recurso relacionados com os requisitos gerais de recorribilidade (cfr., designadamente, artigos 629.º, n.º 1, 631.º e 638.º do CPC) nem com o requisito específico do recurso de revista (cfr. artigo 671.º, n.º 1, do CPC), cabe, no entanto, destacar o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC: “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”. No caso presente, é visível que o Acórdão recorrido confirma, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância. Ocorre, portanto, o obstáculo recursivo designado como dupla conforme. Por esta razão, não se configurando a presente situação como uma das situações ressalvadas na norma (em que o recurso é sempre admissível), o recurso por via normal não será admissível. Mas, dado que o recurso é interposto com fundamento no disposto no artigo 672.º, n.º 1, al. b), do CPC, há ainda que considerar a hipótese de o recurso ser admitido por via excepcional, como permite esta norma. Antes disso, porém, porque o presente processo é um processo de promoção e protecção de menor, logo, um processo de jurisdição voluntária[1], cumpre apreciar se estão preenchidos os requisitos específicos da admissibilidade da revista em processos de jurisdição voluntária. Trata-se, mais precisamente, de apreciar se obsta à admissibilidade da revista (nos termos gerais) o artigo 988.º, n.º 2, do CPC, com o seguinte teor: “Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência e oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”. Significa isto, como se diz no sumário do Acórdão de 30.05.2019, proferido nesta 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, que “haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito da revista [ ] em função dos [ ] fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata de 'resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade'”[2]. Verificando-se que o Tribunal recorrido se orientou por critérios de legalidade e que, como decorre das conclusões das alegações da recorrente, o presente recurso se prende, no essencial, com a interpretação das normas jurídicas aplicáveis ao caso[3], conclui-se que não existe aquele impedimento à apreciação dos pressupostos da admissibilidade excepcional do recurso. A apreciação preliminar sumária de tais pressupostos cabe, porém, não ao Relator mas à Formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC. Em face do exposto, remetam-se os autos à Formação, para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 672.º do CPC”. 8. Na sequência deste despacho, proferiu a Formação deste Supremo Tribunal de Justiça um Acórdão no qual se decidiu admitir o recurso por via excepcional com fundamento na hipótese prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, ou seja, com fundamento no “relevo social dos interesses em presença”.
* Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, é a de saber se o Tribunal recorrido decidiu bem (em conformidade com a lei) ao aplicar as medidas de confiança do menor BB a instituição com vista a futura adopção e de inibição do exercício das responsabilidades parentais por parte dos respectivos progenitores.
* II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido: 1. No dia … de Março de 2019 nasceu o BB, o qual tem a paternidade e a maternidade registadas em nome de CC e AA; 2. Por acordo de 9 de Junho de 2020, foi aplicada em favor da criança a medida de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, no CAV ……, pelo período de 3 meses; 3. Sendo que idêntica medida já tinha sido aplicada no âmbito do processo, na Comissão de Crianças e Jovens ……….; 4. No âmbito do acordo em causa, a progenitora poderia ir a casa com a criança, nomeadamente a habitação camarária atribuída aos pais; 5. Onde o pai passaria a residir; 6. Idas a casa a serem realizadas em dias e horários a serem determinados pelo ISS e pela Comunidade de Inserção, a fim de se avaliar a capacidade dos pais em prestarem os cuidados ao filho; 7. Comprometendo-se os progenitores a seguir todas as indicações das técnicas e a frequentar formações de treino parental, nomeadamente o progenitor; 8. Formações a terem lugar na “S……”; 9. A habitação em causa é sita no Aglomerado Habitacional ………; 10. À entrada da casa fica a sala, e uma kitchenette com lavandaria. 11. A sala tem mesa redonda com duas cadeiras e aparador com televisão. 12. Tem um sofá que estava virado para a parede. 13. O frigorífico não estava no sítio. 14. Não tem exaustor e tem uma placa com duas bocas eléctricas em substituição do fogão, colocada em cima de um banco redondo em equilíbrio instável. 15. Na data da visita domiciliária, o fogão tinha uma panela com água e dois pedaços de frango cozido que tiveram de ir para o lixo. 16. Os armários tinham loiça. 17. A lavandaria tinha roupa estendida no estendal. 18. Dos dois quartos, um deles mobilado com cama de solteiro e uma cómoda com televisão. 19. Havia cigarros espalhados por todo o lado. 20. O Sr. CC fuma em toda a casa e não usa cinzeiro. 21. O outro quarto está mobilado com cama de corpo e meio sem colchão, com berço com colchão novo e com roupeiro cujas portas não podem ser abertas por falta de espaço. 22. A casa de banho é grande e tem lavandaria anexa com máquina de lavar roupa. 23. A casa tem água e luz, mas só existe uma lâmpada em toda a casa que está no corredor. 24. O progenitor, depois de ter procurado ocupar a casa, onde esteve cerca de um mês, teve um surto psicótico, que o levou a não conseguir manter-se na casa em questão. 25. Alegando que tinha sido ameaçado com pistola. 26. E que a sua mãe estava a ser estrangulada. 27. Situações que não são verdadeiras. 28. E que são fruto da imaginação do pai. 29. Na sequência desses comportamentos, que se agravaram nos dias seguintes, o progenitor foi internado no Serviço de Psiquiatria do Hospital …… no dia 4 de Julho, onde permaneceu internado até ao dia 29 de Julho, com diagnóstico de Esquizofrenia. 30. Esteve de baixa médica até ao dia 7 de Setembro, data em que regressou ao trabalho. 31. Mantém acompanhamento em Psiquiatria em regime ambulatório e está medicado. 32. Tem problemas de alcoolismo crónico. 33. Tem dificuldade na gestão da sua autonomia. 34. Sendo que, em situações de tensão ou de maior exigência, tem tendência para ter respostas impulsivas e agressivas. 35. Tem poucos conhecimentos quanto às necessidades de uma criança, nomeadamente nas diferentes fases do seu crescimento. 36. Não sabendo assegurar os seus cuidados, e exercer a parentalidade. 37. O exercício da parentalidade está, assim, condicionado. 38. Tanto mais que não aceita ter nenhuma limitação nesta área. 39. Encontra-se a residir em casa dos pais, sendo a mãe quem procura que o filho tome a medicação. 40. Apesar de o progenitor da criança nem sempre tomar essa mesma medicação. 41. Em face da doença psiquiátrica do pai da criança, não foi possível iniciar o treino de competências parentais com o progenitor. 42. Tendo um discurso desconexo. 43. O progenitor aufere o equivalente ao salário mínimo nacional. 44. Gastando cerca de €100 em tabaco. 45. O progenitor não aceita regressar à casa que foi atribuída. 46. Pretendendo ficar a viver com os pais. 47. Tendo sido efectuado pedido, junto da DOMUSSOCIAL, para que aquele passe a ser integrado no agregado familiar dos pais. 48. O que foi rejeitado pela referida empresa municipal. 49. Havendo o risco de despejo dos dois agregados. 50. A progenitora realizou o estágio de 30 de Junho a 22 de Agosto na ………, em ………., perto do CAV “……..”, de segunda a sexta das 7h às 11:30h e das 15h às 19:30h. 51. O estágio da D. AA não correu bem, apesar de ter sido aprovada “por solidariedade”. 52. Assim a progenitora revelou sempre dificuldades em cumprir horários, em cumprir ordens e em ter uma atitude adequada no local de trabalho. 53. Nomeadamente ao nível da apresentação. 54. Teve dificuldade em gerir a sua vida, entre os cuidados a prestar ao filho, e o horário de trabalho. 55. Passando a estar sempre cansada. 56. E a não revelar, muitas vezes, paciência para os cuidados a prestar ao filho. 57. Tendo chegado a dizer ao filho, com um ano, que ele tinha de comer sozinho, porque a mãe estava muito cansada. 58. Actualmente continua a frequentar o curso. 59. Tem tomado a iniciativa de procurar emprego e tem feito contactos nesse sentido, de forma autónoma. 60. Relativamente à prestação de cuidados ao BB a progenitora tem assegurado, desde o nascimento, os cuidados ao filho, sempre com supervisão técnica. 61. Inicialmente do CFAP ……… . 62. Altura em que viveu, juntamente com o pai da criança, na casa dos avós paternos. 63. As discussões entre a avó e a progenitora eram frequentes. 64. Sendo que aquela a depreciava constantemente. 65. À medida que a criança vai crescendo tem revelado menos paciência na prestação desses cuidados, atendendo ao facto de o filho fazer mais birras. 66. Não conseguindo controlar essas situações. 67. Não consegue também gerir situações que não são de rotina. 68. Nomeadamente quando surgem imprevistos. 69. Existe uma ligação afectiva entre a progenitora e o BB. 70. Com uma vinculação segura. 71. O BB recorre à mãe e a mãe tenta corresponder à prestação de cuidados ao filho. 72. Contudo, continua a necessitar de supervisão constante na prestação desses cuidados. 73. Sofre de oligofrenia congénita; 74. …doença mental, estrutural, que não tem cura; 75. …que afecta a sua capacidade intelectual; 76. …e limita a eficácia de qualquer treino parental; 77. …e de autonomia para acompanhar o crescimento da criança, ao nível das exigências do seu desenvolvimento; 78. …sendo que, sozinha, nunca conseguirá acompanhar o desenvolvimento de uma criança; 79. …não conseguindo estimular o filho, nos moldes que este necessita, à medida que vai crescendo; 80. …nomeadamente em termos de linguagem; 81. …não conseguindo também impor regras ao filho, o que é mais notório com o crescimento da criança. 82. Com a idade do BB, o facto de ter conseguido estabelecer uma relação com vínculo seguro com a mãe, aquele irá conseguir, à partida, vincular-se, no futuro, a outras pessoas, porque adquiriu essa mesma capacidade; 83. Nenhum elemento da família alargada se mostrou disponível, alguma vez, para assegurar os cuidados à criança. 84. Com excepção da avó paterna, que o fez em data recente, depois da marcação da data para o Debate Judicial por ter sido pressionada pelos pais da criança. 85. A avó está disposta a acolher a criança, com os pais, em sua casa, desde que a progenitora assegura os cuidados da criança, e do pai desta. 86. A relação da progenitora com a avó paterna sempre foi de grande conflituosidade. 87. Não tendo a progenitora, até à marcação da data para realização do Debate Judicial, como projecto de vida, ir viver com os avós paternos da criança. 88. Junto da avó paterna foi fixada a residência do irmão germano do BB, o EE. 89. Em favor do qual foi aplicada, em Agosto de 2019, medida de acolhimento residencial, não havendo perspectiva de regressar à família. 90. A progenitora teve um outro filho, o DD, cuja residência foi fixada junto de uma tia paterna. 91. A avó paterna não tem ligação afectiva com o neto. 92. Não conseguindo acompanhar as necessidades de uma criança, tal como aconteceu com o filho, e agora com o neto EE. 93. Sendo que o avô paterno nunca procurou saber do neto BB. Não há, segundo se diz no Acórdão recorrido, factos não provados.
O DIREITO No caso dos autos, como decorre do precedentemente relatado, está em causa a aplicação das medidas de confiança do menor BB a instituição com vista a futura adopção e de inibição do exercício das responsabilidades parentais por parte dos respectivos progenitores, incluindo a mãe, ora recorrente. Tais medidas foram adoptadas depois de ter sido aplicada, em 9.06.2020, uma medida de apoio junto aos progenitores, a executar junto da mãe, pelo período de três meses, idêntica à já anteriormente aplicada pela Comissão de Crianças e Jovens …….. . E tiveram por base, respectivamente, o disposto nos artigos 62.º, n.ºs 1 e 3, al. b), e 35.º, n.º 1, al. g), da Lei de Proteção a Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01/09, e o disposto nos artigos 62.º-A, n.º 6, da mesma Lei e 1978.º-A do CC. Assim, a referida medida de inibição do exercício das responsabilidades parentais resulta ex lege da decretação da medida de confiança, por via do citado artigo 1978.º-A do CC. Por sua vez, a referida medida de confiança do menor a instituição com vista a futura adopção encontra-se justificada no acórdão recorrido, em linha com o entendimento da 1.ª instância, nos seguintes moldes: “Visto o complexo fáctico assente nos autos, devidamente analisado, e criticamente interpretado em 1.ª instância à luz do princípio da prevalência do Interesse Superior da Criança, pois a intervenção atendeu prioritariamente aos interesses e direitos da criança, tendo sido efectuadas diversas tentativas de privilegiar a continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas com a aplicação, no fundo desde a data de nascimento do BB (…. ….. .2019) e até ao momento de medida de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, no CAV ……. . Todavia e quase dois anos depois, manifesto é de concluir que a manutenção de medidas de protecção do menor em meio familiar, não se mostra nem suficiente, nem adequada à protecção e defesa do interesse deste menor. Na verdade, e correndo o risco de nos repetirmos, é o interesse do menor que deverá estar sempre subjacente a qualquer decisão do tribunal relativa ao seu projecto de vida. Trata-se, como é evidente, de um conceito vago e genérico que, devendo ser entendido como 'o direito do menor ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade', cfr. Almiro Rodrigues in 'Interesse do Menor, contributo para uma definição', in Rev. Infância e Juventude, n.º 1, 1985, pág. 18, permite ao juiz alguma discricionariedade, mas também exige bom senso e ponderação, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, e as várias normas com implicação na questão. Com efeito, o superior interesse da criança não pode ser um conceito abstracto, informado por soluções idênticas para uma multiplicidade de casos, mas um juízo concretizado pelas particularidades de cada situação, às quais se pergunta qual a solução mais adequada para a progressão do crescimento integral da criança. Evidentemente que a lei não elenca todos os factores que o Tribunal deverá considerar para determinar aquele interesse. Na verdade, aqui entra, inevitavelmente, uma dose de subjectivismo judiciário que se deve estribar, mesmo assim, na ponderação e criação de alguns subcritérios destinados a densificar aquele conceito e que tenham assento, como nos parece claro, nos factos que dos autos se mostrem assentes, devendo, portanto, cada caso ser decidido individualmente, cfr. Maria Clara Sottomayor in 'Regulação do Exercício do Poder Paternal' nos casos de Divórcio, pág. 39, agrupou as circunstâncias a serem atendidas pelos tribunais em dois factores - os relativos à criança e os relativos aos pais e que aqui se passam a transcrever: 'Os primeiros englobariam as necessidades físicas, religiosas, intelectuais e materiais da criança, a sua idade, sexo e grau de desenvolvimento físico e psíquico, a continuidade das relações da criança, a adaptação da criança ao ambiente extra familiar de origem (escola, comunidade, amigos, actividades não escolares), assim como os efeitos de uma eventual mudança de residência causadas por uma ruptura com este ambiente, o seu comportamento social e a preferência por ela manifestada. Os segundos abrangem a capacidade dos pais para satisfazerem as necessidades dos filhos, o tempo disponível para cuidar destes, a saúde física e mental dos pais, o sexo destes (a preferência maternal ou o princípio da atribuição da guarda ao progenitor que tem o mesmo sexo da criança), a continuidade da relação de cada um dos pais com a criança, o afecto que cada um dos pais sente pela criança, o seu estilo de vida e comportamento moral, a sua religião, a sua situação financeira, a sua ocupação profissional, a estabilidade do ambiente que cada um pode facultar aos filhos, a vontade que cada um deles manifesta de manter e incentivar a relação dos filhos com o outro progenitor. Existem, ainda, outros factores, não ligados à pessoa dos pais ou da criança, que contribuem para a decisão final. São eles, por exemplo, condições geográficas, como a proximidade da casa de cada um dos pais da escola dos filhos, condições materiais, como as características físicas de cada casa, a possibilidade de criação de um espaço próprio para a criança, o número de ocupantes da casa e condições familiares, a companhia dos outros irmãos e a assistência prestada a um dos pais por outros membros da família, por exemplo, os avós'. Todos os factores devem, pois, ser ponderados dentro do quadro factual. E diga-se, foram, 'in casu' devidamente ponderados em 1.ª instância. 'In casu' ocorreu o respeito pelo princípio da Intervenção precoce pois a intervenção foi efectuada logo que a situação de perigo foi conhecida, tendo sido também respeitado o princípio da Privacidade. Também, atentos os factos provados, foi tentado e posto em prática o Princípio da Responsabilidade parental, pois resultam provadas diversas tentativas para que os pais, não só a ora apelante mas também o pai e demais familiares, como os avós do menor, assumissem os seus deveres para com a criança, mas como manifestamente resulta dos autos sem qualquer êxito, tendo em vista o objectivo que sempre se prossegue - a defesa do superior interesse desta criança com menos de dois anos de idade. Como vimos, no caso concreto, foi aplicada a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção prevista nos art.º 35.º n.º 1 al. g) e 62.º n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 147/99 de 01/09, confiando-se o menor para família de acolhimento, ou para casa de acolhimento a indicar pelos serviços da segurança Social. Ora, depois de analisados os factos acima elencados e as sucessivas etapas que este processo já conheceu, marcado por tentativas de auxiliar a mãe de modo a manter a criança no ambiente da família biológica, ou seja, junto dela, sem resultado, por a mesma manifestamente não apresentar nem ser provável que venha a apresentar as necessárias condições pessoais para aprender as necessárias competências parentais e pessoais em geral. Na verdade, a mãe do menor, ora apelante, não revela qualquer possibilidade de vir a ter um mínimo de autonomia de vida, pois que desde o nascimento do menor BB, e não obstante o mesmo sempre ter vivido com ela, tal ocorreu sempre com supervisão técnica, pelo que é evidente que a mesma sozinha, nunca conseguirá, garantir a necessária segurança física, de saúde e de educação e proporcionar ao menor as necessárias condições para o seu desenvolvimento intelectual e emocional. Sendo certo que a supra referida supervisão técnica, pelas suas próprias características e efectivação, não é suficiente para em todos os momentos futuros defender os mais básicos interesses de segurança e de desenvolvimento desta criança. Por tudo isto e fazendo nossa toda a fundamentação constante da decisão recorrida, a que aderimos em absoluto, temos de concluir estar suficientemente justificada a medida tomada, não tendo sido violados quaisquer dos preceitos legais e dos princípios norteadores da intervenção do direito tutelar de menores, sendo a medida decretada a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança se encontrava no momento em que a decisão foi tomada, respeitando assim os princípios da proporcionalidade e da actualidade. Assim, tendo em consideração o decurso da vida deste menor e que se mostra esgotada a intervenção possível junto da sua família natural, tem de se concluir que o princípio da prevalência da família decorrente do art.º 4.º, al. g) da LPCJP foi observado pelo Tribunal recorrido, pois que o encaminhamento de uma criança para uma futura adopção significa sempre a prevalência de um projecto de vida familiar em detrimento de uma situação que manifestamente pôs em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, constituindo, 'in casu' tal opção a única e verdadeira alternativa de vida para o BB. Conclui-se, pois, que a aplicação da medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção é adequada e necessária, no caso deste menor, de pouco mais de um ano de idade, cujos progenitores não dispõem, nem se perspectiva que venham a dispor, de condições reais e efectivas para assegurar o seu integral desenvolvimento, tendo adoptado comportamentos omissivos comprometedores dos vínculos afectivos próprios da filiação, revelados pela verificação objectiva de situações previstas na al. d) do art.º 1978.º do C.Civil. Improcedem, assim, as conclusões da apelante, havendo de se confirmar a decisão recorrida”. Assim, foram equacionados, no essencial, dois parâmetros legais de tutela: o superior interesse da criança e a protecção desta perante situação de perigo para a sua segurança, saúde, formação, educação e desenvolvimento. Em face da extensa factualidade provada, as instâncias concluíram que, atentas as sucessivas etapas ocorridas e marcadas por tentativas de auxiliar a mãe de modo a manter a criança no ambiente da família biológica, mas sem resultado, por a mesma manifestamente não apresentar nem ser provável que venha a apresentar as necessárias condições pessoais para aprender as necessárias competências parentais e pessoais em geral, sendo evidente que ela sozinha nunca conseguiria garantir a necessária segurança física, de saúde e de educação e proporcionar ao menor as necessárias condições para o seu desenvolvimento intelectual e emocional, se encontrava esgotada a intervenção possível junto da sua família natural e assim comprometida a prevalência da família decorrente do art.º 4.º, al. g), da LPCJP. Contra tal entendimento sustenta a recorrente que, existindo uma reconhecida ligação afectiva entre a mãe, ora recorrente, e o seu filho (cfr., sobretudo, conclusões 8.ª e 17.ª das alegações), se fez incorrecta aplicação das normas aplicáveis, e mormente da prevalência do princípio do superior interesse da criança (cfr., sobretudo, conclusões 31.ª a 35.ª das alegações), à luz do que se deveria antes aplicar outra das medidas elencadas no artigo 35.º da LPCJP que não impliquem a imediata, total e definitiva ruptura do vínculo com a família natural (cfr., sobretudo, conclusões 22.ª e 29.ª das alegações). O raciocínio da recorrente parte de um pressuposto lógico que, embora com reflexos na jurisprudência, não é inteiramente consensual ou incontestável: o de que o requisito enunciado no proémio do n.º 1 do artigo 1978.º do CC é um requisito autónomo ou independente das hipóteses elencadas na mesma norma, funcionando estas como requisitos cumulativos ou adicionais (cfr., sobretudo, conclusões 25.ª a 27.ª das alegações). Deve ter-se consciência, porém, de que esta não é uma interpretação unívoca ou insusceptível de discussão. Atendendo, desde logo, à técnica legislativa utilizada na norma, é defensável outra interpretação – a de que as hipóteses não constituem requisitos em sentido próprio, se localizam num plano diferente daquele requisito e se relacionam com ele noutros termos. Se não veja-se mais de perto o artigo 1978.º, n.º 1, do CC: “1 - O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações: a) Se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos; b) Se tiver havido consentimento prévio para a adopção; c) Se os pais tiverem abandonado a criança; d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança; e) Se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança”. Atentando exclusivamente na técnica legislativa utilizada, parece, de facto, que o tribunal pode aplicar a medida em causa quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos aqueles vínculos, “pela verificação de qualquer das seguintes situações”, ou seja, que o tribunal pode aplicar a medida quando, pela ocorrência de qualquer das situações enumeradas, se torne visível que não existam ou se encontrem seriamente comprometidos aqueles vínculos. Poderia, assim, argumentar-se que o único requisito da medida de confiança com vista à adopção, enunciado no proémio da norma, reside na inexistência ou no sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação e que aquelas situações são meras situações indiciárias, isto é, situações que, ocorrendo, indiciam ou sinalizam a presença daquele requisito[4]. Mas mesmo que não se insista nesta interpretação, em atenção às decisões em que é firmemente defendida e acolhida a visão contrária, existe uma ideia que concita seguramente o consenso, que nunca pode perder-se de vista e por isso cumpre aqui (re)afirmar: como se diz, sugestivamente, no sumário do Acórdão deste Supremo Tribunal de 21.05.2020: “III. – Os requisitos do art. 1978.º do Código Civil devem ser apreciados de forma objectiva, tendo em conta, prioritariamente, o superior interesse do menor. IV. – O relevo atribuído ao superior interesse do menor significa que deve atender-se à qualidade dos vínculos próprios da filiação, e não às meras intenções ou aos meros esforços dos pais, sempre que tais intenções ou que tais esforços não se revelem adequados ou suficientes para criar as condições necessárias ao desenvolvimento dos filhos” [5]. O princípio da prevalência do superior interesse da criança está elencado no artigo 4.º da LPCJP, nos seguintes termos: “a intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios: a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto (…)”. Quer isto dizer, em síntese, que, para se aferir da existência ou do não comprometimento sério dos “vínculos afectivos próprios da filiação” para os efeitos da norma do artigo 1978.º do CC não basta ver se existe uma ligação afectiva entre o(s) progenitor(es) e a criança; é preciso ver em que é que, existindo esta ligação, ela se concretiza. Ela deve traduzir-se em gestos, actos ou atitudes que revelem de que o(s) progenitor(es) têm(tem) não só a preocupação como também a aptidão para assumir plenamente o papel que, por natureza, lhes cabe – o papel de pai(s) da criança. Sempre que, ao contrário, existam factos que demonstrem, seja o desinteresse, seja a falta de capacidade do(s) progenitor(es) para assumir plenamente este papel, é de concluir que não existem ou estão seriamente comprometidos, para os efeitos da norma do artigo 1978.º do CC, os “vínculos afectivos próprios da filiação”. No caso dos autos verifica-se esta última situação: apesar de, indiscutivelmente, existirem laços afectivos entre a mãe e o BB, de a mãe ter as melhores intenções e de envidar todos os esforços possíveis para cuidar do BB (cfr., entre outros, factos provados 69 a 71), tem de reconhecer-se que ela não dispõe, infelizmente, da energia nem da capacidade necessárias para cuidar cabalmente da criança (cfr., entre outros, aos factos provados 54 a 57, 65 a 68 e 72 a 81). Pode, assim, dizer-se, a título conclusivo, o seguinte: - a medida da confiança com vista a futura adopção, da qual decorre a aplicação da medida de inibição dos pais das responsabilidades parentais, está prevista no artigo 35.º, n.º 1, al. g), da LPCJP; - a aplicação daquela medida depende da verificação das exigências impostas na norma do artigo 1978.º do CC, que não poderá deixar de ser interpretado à luz do princípio da prevalência do superior interesse da criança; - tendo ficado demonstrado que foram observados os princípios e as regras aplicáveis, designadamente os contidos na LPCJP bem como as exigências impostas no artigo 1978.º do CC, interpretadas à luz do princípio da prevalência do superior interesse da criança, a decisão do Tribunal recorrido está em conformidade com a lei e não pode este Supremo Tribunal alterá-la. *** *** III. DECISÃO Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido. * Custas pela recorrente. * Catarina Serra (relatora) Rijo Ferreira Cura Mariano Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo. ________ [1] Cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Novembro de 2009 (Proc. 1735/06.OTMPRT.S1) ou de 16 de Março de 2017 (Proc. n.º 1203/12.0TMPRT-B.P1.S1). |