Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
694/23.9T8PTG.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO GONÇALVES
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
MEDIDA DE CONFIANÇA COM VISTA À FUTURA ADOÇÃO
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
LEI DE PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRESSUPOSTOS
FILIAÇÃO BIOLÓGICA
PROGENITOR
INIBIÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
I - A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei nº 147/99 de 1-9, concretiza as situações de crianças e jovens que vivenciam situações de perigo suscetíveis de pôr em causa as suas condições de segurança, saúde, formação e educação e desenvolvimento integral.

II - A medida de confiança a instituição com vista a futura adoção é uma medida de última ratio, aplicável apenas nas situações previstas no artº 1978º do Código Civil, pressupondo sempre a inexistência ou o sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação.

III - O aspeto fundamental e o que se sobrepõe neste tipo de processos será o interesse da criança e será sempre perante o mesmo, que se justificará a intervenção do tribunal e a opção pela medida que mais se adeque às necessidades daquela.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 6ª. Secção do Supremo Tribunal de Justiça

1-Relatório:

No presente processo de proteção de crianças e jovens em perigo instaurado relativamente à criança AA, o progenitor pai veio apresentar recurso da decisão que determinou a aplicação da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, prevista na al. g) do n.º 1 do artigo 35.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP).

Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 37.º da LPCJP, foi aplicada, a título cautelar, a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, em Centro de Acolhimento Temporário, prevista na al. f) do n.º 1 do artigo 35.º do referido diploma, a qual foi, entretanto, mantida.

Realizaram-se as diligências probatórias tidas por necessárias, incluindo a audição dos progenitores, dos bisavós, do técnico da EMAT e das três testemunhas arroladas pelo progenitor.

Foram juntos aos autos relatórios sociais elaborados pela EMAT, bem como os relatórios psicológicos dos bisavós paternos, conforme requerido pelo progenitor.

Encerrada a instrução e não se afigurando possível a obtenção de solução negociada de medida de promoção e proteção, o Ministério Público apresentou alegações e meios de prova, promovendo a aplicação da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista à adoção, prevista na al. g) do n.º 1 do artigo 35.º da LPCJP.

O progenitor pugnou pela aplicação da medida de promoção e proteção de apoio junto dos bisavós paternos.

A progenitora nada disse.

Recebidas as alegações e apresentada a prova, foi designado debate judicial. E, no decurso do mesmo, os técnicos ouvidos foram unânimes em considerar que o projeto de vida desta criança mais adequado é o proposto pelo Ministério Público.

Em sede de alegações orais no debate judicial, o Ministério Público manteve a posição assumida nas alegações escritas, pugnando que a única medida de promoção e proteção que salvaguarda o superior interesse desta bebé é a confiança a instituição com vista a adoção.

No que respeita ao progenitor, em sede de alegações, o mesmo pretendeu que a criança fosse confiada aos seus bisavós paternos.

Foi oficiosamente determinada a junção aos autos de diversa documentação, considerada necessária à boa decisão da causa. Consequentemente, foi ordenada a reabertura do debate judicial, tendo sido assegurado aos diversos sujeitos processuais o exercício do direito ao contraditório e o complemento das alegações anteriormente efetuadas.

Foi proferido acórdão que aplicou à criança AA, nascida em .../.../2023, a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção, prevista na al. g) do n.º 1 do artigo 35.º da LPCJP, a qual vigoraria até ser decretada a adoção, sem necessidade de revisão.

Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Évora proferido acórdão, com o seguinte teor no seu dispositivo:

«Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida».

Inconformado interpôs o progenitor recurso para este STJ., concluindo as suas alegações:

1-Caso se entenda verificada a existência da dupla conforme, com o presente Recurso de Revista Excecional, pretende o Recorrente, ao abrigo do disposto nos artigos 629.° n.º 1, 631.°, 672.° n.º 1 al. b) e 674.°, n.º 1, al. a), a reapreciação da seguinte questão: violação ou erro na interpretação e aplicação das normas jurídicas e princípios aplicáveis ao caso constantes dos artigos 1978.°, n.°1, alíneas d) e e) do Código Civil e 4.°, 34.°, 35° e 38.° -A da LPCJP, por estarem em causa interesses de particular relevância social.

2-Atendendo à situação factual, ao quadro normativo aplicável e eventuais consequências inelutáveis na vida dos intervenientes, com particular relevo na vida de uma criança na sua fase inicial, dúvidas não restam que os interesses em apreço revestem particular relevância social, devendo, assim, considerar-se verificado o requisito constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 672. ° do C.P.C.

3- Ora, quanto a este critério vertido na alínea b) tem sido decidido que o "pressuposto de admissibilidade da al. b) do n.º 1 do art. 672. ° do CPC fica preenchido quando a resolução do pleito pode interagir com comportamentos sociais relevantes, ou seja, quando se debatam interesses que assumam importância na estrutura e relacionamento sociais e a questão tenha repercussão fora dos limites da causa. A entrega de um menor a instituição social com vista a futura adoção constitui uma decisão que se relaciona com valores socais essenciais, porque implica a quebra dos laços afetivos do menor com a sua família natural, tendo evidente repercussão fora dos limites da causa." (Acórdão do STJ de 15/2/2018, Processo n.º 17/14.8T8FAR.E1.S1).

4- Estão, assim, preenchidos os pressupostos formais exigidos para o conhecimento e apreciação do presente recurso como revista excecional.

5-O acórdão do Tribunal da Relação com fundamento em que nele foi cometido erro de aplicação dos critérios legais constantes do art.0 1978, n° 1 do CC, 35°, n° 1, alínea g), e 38° - A alínea b) da LPCJP, 6º, n° 1, 8º e 13° da CEDH, mediante incorreta análise dos factos dados como provados, sustentando que a correta aplicação daquelas normas levaria a que, atenta a situação dos bisavós, bem como o interesse da menor, não fosse decretado a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, mas fosse aplicada a medida de promoção e proteção de apoio junto de outro familiar, nos termos do previsto no art. 35°, n° 1 alínea b) da LPCJP, e que consequentemente, atribua a guarda e residência da menor AA aos bisavós paternos.

6- Salvo o devido respeito que é muito, foi o Tribunal de 1ª instância que não deu a esta criança a oportunidade de estreitar laços com a sua família paterna ao entregá-la imediatamente após o nascimento a uma instituição, pese embora, os bisavós paternos desde sempre tenham demonstrado interesse e total disponibilidade para cuidar da menor AA.

7- Não se vislumbra sequer uma potencial situação de perigo para a menor ao ser entregue aos seus bisavós, nos termos do art.° 1978, n° 1 do Código Civil.

8-A medida de apoio junto a outro familiar, prevista no art.° 35°, n.°, alínea b) da LPCJP foi completamente desconsiderada, quando este progenitor e seus bisavós, em conjunto, lutaram e tentaram demonstrar ao Tribunal a quo, que detém capacidades parentais e são pessoas de bem que amam e querem muito participar, com o devido acompanhamento, o qual aceitam, da vida desta criança.

9-O facto de o progenitor e os seus bisavós serem pessoas simples, viverem num monte alentejano, e se dedicarem atualmente à agricultura, não pode ser visto como um obstáculo para que a menor AA não possa viver com eles, e tais factos não significam que estes não possam educá-la e dar-lhe todo o seu afeto, afinal ninguém escolhe a família no seio da qual nasce, e modo de vida destas pessoas não inviabiliza de todo qualquer projeto de vida para a criança.

10-E esta criança precisa urgentemente de ser integrada no seio e meio familiar para crescer dentro da normalidade.

11- O Acórdão recorrido viola, de entre outros o Princípio do Superior Interesse da Criança previstos no art.° 4o, alínea a) da LPCJP, o Princípio da Intervenção Mínima previsto no art.04°, alínea h) da LPCJP, o Princípio da Prevalência da Família previsto no art.° 4º alínea h) da LPCJP, o Princípio da Proporcionalidade e da Atualidade plasmado no artigo 4º, alínea e),

12- Mais viola os artigos 35° alíneas b) e g), 49° e 50° da LPCJ, os artigos 36°, n.° 6 e 67° da Constituição da República Portuguesa, o art.° 1978°, n.º 1 do Código Civil e os artigos 3º e 5º, de entre outros, da Convenção sobre os direitos da Criança, em vigor no nosso ordenamento jurídico por força do art.° 8º da Constituição da República Portuguesa.

Por seu turno, contra-alegou o Magistrado do Ministério Público, concluindo as suas alegações:

1.Afigura-se ao Ministério Público que o recurso como revista, não será admissível, ao abrigo do nº 1 do artº 671º, do Cód. Proc. Civil porquanto está verificada a dupla conforme prevista no nº 3, do artº 671º, desse Código.

2. Considera-se, porém, que estão preenchidos os pressupostos previstos na al. b), do nº 1, do artº 672º, do C.P.C. pelo que nada obsta à admissão do recurso como revista excecional.

3. O Ministério Público entende que a argumentação aduzida no Acórdão recorrido é, por si, só suficiente para fundar a decisão de confiança da AA a instituição com vista à sua futura adoção.

4. A solução alternativa avançada pelo Recorrente BB -confiança da menor aos seus bisavós-enfrenta ainda outros escolhos.

5. A idade dos bisavós da AA, uma vez que se provou, em 4, que o bisavô paterno, CC, nasceu a .../.../1960, e a bisavó paterna, DD, nasceu a .../.../1958, pelo que nesta data aquele já completou 64 nos de idade e esta já atingiu os 66 anos de idade, o que ofende o disposto na al. f), do nº 5, do artº 16º, do Dec. Lei nº 12/2008, de 17.01.

6. Esse limite etário já foi ultrapassado pela bisavó DD e o bisavô está prestes a atingi-lo, sendo que relativamente a um e a outro nada nos factos provados permite sustentar que entre a AA e os seus bisavós exista uma relação de afetividade ou que as competências pessoais destes constituam uma vantagem acrescida, como exigido no nº 6, do mencionado artº 16º.

7. Por outro lado, os seus bisavós constituem um casal «que criou um filho e um neto, ambos sem quaisquer competências para assumirem as suas responsabilidades parentais, sendo que o neto não tem sequer hábitos de trabalho, após ter completado um curso profissional, cujo nome nem sequer sabe dizer, o que não abona em favor das capacidades parentais destes bisavós, como mencionado no Acórdão da primeira instância, com base nos factos julgados provados respeitantes a EE e a BB.

8. Constata-se, ainda, que a motivação dos bisavós para passarem a tomar conta da AA mostra-se centrada em BB e não na promoção do

bem estar e desenvolvimento da AA, como resultou provado nos nºs. 86, 87, da matéria assente.

9. Resulta ainda provado que o bisavô paterno, CC, sofre de síndrome ango-depressivo, um quadro misto de ansiedade e depressão (…) e neuropatia periférica nº 93 dos factos provados enquanto a bisavó paterna da AA, DD, sofre de depressão crónica, 94 dos factos provados.

10. Na avaliação psicológica, os bisavós paternos demonstraram fracos recursos cognitivos, com uma postura de colaboração; não demonstraram alterações do pensamento, estando o discurso orientado no tempo e no espaço, sendo o do bisavô pouco fluído, e o da bisavó fluído -nº 95, dos factos provados.

11. O bisavô paterno demonstra uma crítica diminuída no que toca à importância da autonomia e responsabilidade do pai da criança, o mesmo já não ocorrendo com a bisavó paterna – nº 96.

12. A fraca escolaridade, a falta de compreensão, e de estimulação cognitiva, dos bisavós paternos, não lhes permitiram compreender os itens que compunham alguns aspetos da avaliação psicológica, pelo que não foi possível avaliar, em termos psicométricos, os seus traços de personalidade – nº 97.

13. Os bisavós paternos não conseguem estabelecer limites ao comportamento e decisões do progenitor da criança, e o mesmo, fruto da sua idade, e dependência daqueles, tem dificuldade em racionalizar e tomar decisões, e gerir os conflitos com a progenitora da AA, de forma a não prejudicar o adequado e saudável desenvolvimento da criança -nº 99.

14. Face às doenças de que padecem e às apuradas características das suas personalidades, os bisavós paternos da AA não apresentam as necessárias condições para assegurarem o pleno e são desenvolvimento de uma criança com os problemas que ela já apresenta, conforme, julgado provado nos nºs. 119 e 120.

15. Atentas todas essas características, o juízo de prognose que é possível realizar aponta, decisivamente, no sentido de se considerar que os bisavós, tal como não lograram que o seu filho e neto, por eles criados, alcançassem o limiar mínimo de condições tendentes a puderem tomar conta de uma criança, nos termos prescritos no nº 3, do artº 16º, do Dec. Lei nº 16/2008, também não lograrão consegui-lo relativamente à AA.

16. Pelo exposto, não restando outra alternativa ao nível da família da AA, deve ser mantida a medida aplicada pelo Acórdão da primeira instância e confirmada pelo Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora.

17. Decisão que encontra acolhimento no disposto no artº 1978º, nº 1, do Cód. Civil e nos artºs. 4º e 34º, da LPCPJ cujos requisitos devem ser apreciados de forma objetiva, tendo em conta, prioritariamente, o superior interesse do menor.

18. O que significa que deve atender-se à qualidade dos vínculos próprios da filiação, e não às meras intenções ou aos meros esforços dos pais ou de outros familiares, no caso os bisavós paternos, sempre que tais intenções ou que tais esforços não se revelem adequados ou suficientes para criar as condições necessárias ao desenvolvimento da criança.

19. É o superior interesse da AA que impõe a não aplicação de uma das medidas típicas a executar no meio natural de vida, previstas nas als. a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 35.º da LPCJP.

20. A medida da confiança com vista a futura adoção, prevista no artigo 35.º, n.º 1, al. g), da LPCJP, apresenta-se como uma medida possível e adequada para realizar o interesse superior da AA.

21. Tendo ficado demonstrado que foram observados os princípios e as regras aplicáveis, designadamente os contidos na LPCJP bem como as exigências impostas no artigo 1978.º do CC, interpretadas à luz do princípio da prevalência do superior interesse da criança, a decisão do Tribunal recorrido está em conformidade com a lei e deve ser confirmada em sede de recurso.

Foram colhidos os vistos.

2- Cumpre apreciar e decidir:

As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.

O presente recurso de revista excecional foi admitido pela Formação.

A questão a dirimir consiste em aquilatar sobre a medida de proteção aplicada.

A matéria de facto delineada e consolidada nas instâncias foi a seguinte:

1. A criança, AA, nasceu no dia ... de ... de 2023, no Hospital..., em ....

2. É filha de BB, nascido a .../.../2002 e de FF, nascida a .../.../1999.

3. Por sua vez, o BB é filho de EE, nascido a .../.../1981 e de GG, nascida a .../.../1976, avós paternos da AA.

4. Sendo que, o bisavô paterno, CC, nasceu a .../.../1960, e a bisavó paterna, DD, nasceu a .../.../1958.

5. No dia 12/05/2023, a AA foi sinalizada à CPCJ de ..., pelo Núcleo Hospitalar de Apoio à Criança e Jovem em Risco (NHCJR) do Hospital, dando conta que os progenitores residiam sem condições de habitabilidade.

6. Em face do exposto, de imediato, a CPCJ de ... decidiu instaurar um processo de promoção e proteção a favor da criança, entendendo que deveria ser aplicada uma medida de promoção e proteção, não tendo obtido consentimento por parte dos progenitores.

7. Em virtude da situação familiar da AA, por sentença datada de 26/05/2023, foi-lhe aplicada a medida cautelar de promoção e proteção de acolhimento residencial, a qual tem vindo a ser, sucessivamente, revista e prorrogada.

8. No dia 30/05/2023, a AA saiu do Hospital... e foi confiada à Casa de Acolhimento..., onde se encontra atualmente.

9. A progenitora da AA foi, ela própria, alvo de um processo de promoção e proteção, por ter sofrido abandono pela sua própria mãe, ficando ao cuidado do seu pai, por sentença de 13/10/2006, e depois da sua avó paterna e, à entrada na adolescência, foi-lhe aplicada a medida de acolhimento residencial, que culminou numa fuga da instituição, na véspera de completar 18 anos, não mais tendo regressado ao sistema de promoção e de proteção.

10. A FF foi acompanhada até 2017 (ano em que atingiu a maioridade), em consulta de pedopsiquiatria.

11. A FF sofre de défice cognitivo, psicose, perturbação hipercinética (conjunto de sintomas de hiperatividade, desatenção e impulsividade), perturbação da personalidade, asma, e abusa do tabaco.

12. À FF foi receitado o medicamento Largactil (cloropromazina), 25 mg, pertencente ao grupo dos antipsicóticos, que é um neuroléptico padrão dotado de uma potente acção sedativa e antipsicótica (antidelirante e antialucinatória), sendo eficaz na maioria dos tipos de agitação psicomotora de origem psiquiátrica.

13. A FF é uma pessoa desempregada de longa duração, tendo apenas descontado para a Segurança Social durante 15 dias, no mês de março de 2022, quando trabalhou para uma IPSS.

14. A maior parte das vezes, a FF não aufere qualquer rendimento, nem mesmo o RSI, por não o requerer, ou por incumprir as condições legais para continuar a usufruir dessa prestação social.

15. Atualmente, e desde 01/04/2024, após um período de seis meses em que teve o rendimento social de inserção cortado, a FF voltou a auferir essa prestação social, no valor mensal de 237,25 €.

16. A FF prefere usufruir do rendimento social de inserção a ter que trabalhar.

17. A gravidez do primeiro filho da FF, HH, foi pouco vigiada, e o pouco acompanhamento médico que teve ocorreu em virtude da intervenção das autoridades.

18. Durante a gravidez do primeiro filho, a FF viveu na rua, bebia em excesso, não se alimentava, por várias vezes, integrou o centro de acolhimento temporário para os "Sem Abrigo", mas pouco tempo ali permanecia, e uma das casas que habitou não tinha água, nem luz.

19. Em consequência, aquando do nascimento desse filho, ocorrido a .../.../2020, o mesmo teve que ficar internado no hospital e, aquando da sua alta médica, a .../.../2020, foi-lhe, imediatamente, retirado e entregue a uma instituição, decisão cautelar tomada pela CPCJ de ..., e posteriormente confirmada pelo tribunal.

20. Pese embora os esforços das assistentes sociais de ..., a FF nunca colaborou, rejeitou todas as orientações que lhe foram dadas, nem se manifestou disposta a alterar o seu modo de vida, antes fugindo das técnicas.

21. A paternidade do primeiro filho da FF não chegou a ser estabelecida, uma vez que a FF não sabia quem era o pai, dado que tinha dois companheiros, II, e JJ, alternadamente; quando se zangava com um, ia viver para a casa do outro, e vice-versa, quando não estava com nenhum deles, pernoitava na rua.

22. A família da FF não se disponibilizou para acolher o seu primeiro filho.

23. Em resultado, no âmbito do processo de promoção e proteção n.º 404/20.2..., que correu os seus termos no Juízo Local Cível de ... – J..., por acórdão de 28/01/2021, transitado em julgado a 08/02/2021, ao primeiro filho da FF foi aplicada a medida de promoção e proteção de confiança a instituição, com vista à adoção, prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º da LPCJP, tendo o mesmo sido posteriormente adotado no âmbito do processo de adoção n.º 89/22.1..., do Juízo Central de Família e Menores de ..., ao qual foi apensado o referido processo de promoção e proteção.

24. Quando a FF engravidou da AA, os progenitores encontravam-se a viver juntos na casa dos bisavós paternos da criança, a pedido do BB, após este e o bisavô paterno se dirigirem à casa onde a FF vivia em ..., e constatarem que a mesma se encontrava imunda, cheia de lixo, beatas, roupa suja, sem água, nem luz.

25. O bisavô paterno chegou a ter que cortar o cabelo da FF muito curto, em virtude da mesma apresentar uma infestação de piolhos e lêndeas.

26. Quando a FF vivia em casa dos bisavós paternos da AA, estes arranjaram-lhe emprego por três vezes, no lar da ..., na Junta de Freguesia da ... e na Câmara Municipal de ..., os quais não conseguiu manter por mais de 15 dias, porque arranjava sempre conflito com as colegas.

27. Após a FF ter decidido se ausentar para parte incerta, na companhia de terceiros, durante uns dias, e sem qualquer aviso ou justificação, os bisavós paternos não permitiram que a mesma regressasse a sua casa, numa altura em que já se encontrava grávida, facto que lhes tinha sido previamente comunicado pelo BB.

28. Após, durante um período de cerca de quatro meses, durante a gravidez, a FF passou a viver em situação de sem abrigo, dormindo num palheiro agrícola, em ruínas, sito na Serra de ..., insalubre, pejado de ratos, cheio de alfaias agrícolas cobertas de pó, apenas com um colchão nauseabundo no chão, aonde chovia tanto como na rua.

29. Durante esse período, a FF optou por não pedir ajuda a nenhum elemento da sua família, e recusou todas as respostas de alojamento que a Dra. KK, assistente social dos Serviços de Atendimento e Acompanhamento Social (SAAS), do Município de ..., lhe propôs, como uma casa de acolhimento para grávidas, o CAT, ou um apartamento de reinserção.

30. A progenitora iniciou o acompanhamento obstetrício já numa fase avançada da gravidez da AA, sendo fumadora, com problemas asmáticos, e consumos de álcool, só comparecia às consultas de acompanhamento quando era levada pela Dra. KK, que andava à sua procura junto dos cafés e do palheiro.

31. A mãe da AA é, habitualmente, consumidora de bebidas alcoólicas, tendo-o feito, inclusivamente durante a gravidez.

32. A mãe da AA chegava a fumar um maço de tabaco por dia durante a gravidez.

33. Durante a gravidez, a mãe da AA passava os dias inteiros no café, e a sua alimentação resumia-se, essencialmente, a bifanas e coca-colas.

34. Os bisavós paternos tinham conhecimento que a FF vivia naquelas condições, grávida do seu neto BB e, ainda, assim, nunca mais a acolheram em sua casa, com o argumento que esta nada fazia, passava a vida a dormir, não ajudava nas lides domésticas, e os envergonhava perante os vizinhos quando chegava a casa embriagada, e provocava discussões, dando azo a que a GNR tivesse que ser chamada.

35. A FF andava com o cabelo sujo, unhas sujas e compridas, e só tomava banho quando o BB a levava a casa dos bisavós paternos, durante a sua ausência, e sem o seu conhecimento.

36. A dada altura, a progenitora foi viver para a casa da avó paterna da criança, GG, a qual sofreu um AVC há cerca de cinco anos, tendo sofrido lesões ao nível neurológico, e repercussões ao nível da mobilidade, necessitando de ser cuidada e acompanhada por uma terceira pessoa.

37. Para além do mais, a GG sofre de défice cognitivo, psicose, hipertensão arterial, enfartes lacunares isquémicos múltiplos com leucoencefalopatia com resultado da diminuição da força da perna e agravamento da situação psiquiátrica, hipoplasia da artéria vertebral direita, ectasia da veia jugular à direita, e litíase vesicular múltipla.

38. Correu termos nos serviços do Ministério Público de ..., o processo administrativo n.º 192/23.0..., com vista a aferir da necessidade de propositura de uma ação de maior acompanhado a favor da GG, o que não veio a suceder, tendo o mesmo sido arquivado, por decisão de 25/01/2024.

39. Nesse processo administrativo, o BB fez saber não ter interesse em assumir qualquer cargo, não tendo indicado, tão-pouco, elementos para a constituição do Conselho de Família.

40. De igual modo, o bisavô paterno, CC, exaltou-se com a Dra. KK, que acompanhava o caso, por não concordar que a GG fosse acolhida numa casa de cuidados continuados, após ter sofrido o AVC, porque poderia perder a sua casa, apesar da GG ser dona da mesma.

41. A GG tem dificuldades em realizar atividades de vida diária como cuidar da sua higiene pessoal, cozinhar, e limpar, não tendo qualquer ajuda da FF e do BB, muito menos quando estes lá viviam.

42. Pelo contrário, os progenitores da AA gastavam, em proveito próprio, o valor da pensão de reforma da GG e impediam que esta tivesse apoio social externo.

43. A residência da GG apresenta falta de higiene, humidade e uma grande falta de isolamento térmico, para além de carecer de mobiliário adequado para receber a AA.

44. A GG é uma pessoa facilmente manipulável por quem a rodeia.

45. A 03/01/2023, um vizinho da GG, que não se quis identificar por medo de represálias, apresentou junto da GNR de ..., uma denúncia contra a FF e o BB, acusando-os de exercerem violência doméstica sobre a GG, a qual veio a dar origem ao processo de inquérito n.º 1/23.0..., que se encontra, ainda, em fase de investigação.

46. Nessa denúncia pode ler-se que o referido vizinho, por diversas vezes, presenciou o BB e a FF a ofender a GG, apelidando-a de "és uma anormal, és um bicho, és uma doente, não vales nada, nem cá andas a fazer rigorosamente nada".

47. Tais acusações foram confirmadas por uma tia da GG, LL, a qual, em declarações à GNR de ..., referiu que a FF e o BB a chamam de "deficiente, és doente, não andas cá a fazer nada".

48. Ao tempo da primeira denúncia efetuada nesse inquérito, ambos os progenitores da AA se encontravam na dependência económica da ali ofendida, sem exercerem qualquer atividade laboral, sofrendo o agregado de graves carências económicas.

49. Em consequência dessa denúncia, os progenitores foram forçados a sair de casa da GG, e arrendaram uma habitação, com uma porta de zinco, que não tinha água, nem wc, na qual entrava água da chuva através dos telhados.

50. Após o nascimento da AA, o BB voltou a residir em casa dos seus bisavós paternos, ao passo que a FF conseguiu voltar a viver em casa da GG, contra a vontade da mesma, que lhe pediu várias vezes para abandonar a sua residência, sem que esta o fizesse.

51. A 03/07/2023, a GG foi novamente questionada pela GNR de ... se tinham existido mais alguns episódios de violência doméstica, tendo a mesma referido que desde que a FF se encontra a residir com a mesma, a sua vida mudou radicalmente para pior, quer ao nível psicológico, quer ao nível físico, encontrando-se bastante debilitada.

52. Mais referiu que temia pela sua integridade física, dado que a FF a ofende e a empurra, ameaça que a "mata", e chama-a "puta", "aleijada", "deficiente", tenta isolá-la dos seus familiares e vizinhos, não permitindo que fale com estes, perturba o seu descanso quando chega a casa de madrugada, para além de a culpabilizar pela institucionalização da AA.

53. Referiu, também, que desde que a FF passou a viver na sua residência esta encontrava-se imunda, e com um cheiro nauseabundo, com roupa suja acumulada pelas várias dependências; e no quarto, onde a FF pernoitava, encontravam-se latas de refrigerantes e restos de comida espalhados, beatas de cigarros, roupa suja amontoada, situação que foi testemunhada pela GNR de ..., em visita domiciliária a casa da GG.

54. Idêntica situação foi testemunhada aquando da visita domiciliária efetuada a casa da GG, no dia 27/06/2023, pelo Dr. MM, técnico da Segurança Social, numa altura em que a FF ainda lá vivia, constatando-se que todas as divisões se encontravam, extremamente, sujas, muito mal cuidadas, com paredes sujas, e toda a casa emanava mau cheiro.

55. Na sequência do aditamento ao auto de notícia por violência doméstica, a FF foi novamente forçada a abandonar a casa da GG.

56. Atualmente a FF vive numa casa no ..., cuja renda custa 150 €, continua desempregada, e subsiste com a ajuda financeira do "NN", um homem de 58 anos de idade, com quem mantém uma relação amorosa, chamado OO, o qual, no entanto, não tem qualquer interesse em ficar com a AA.

57. A FF apresenta muitas oscilações de humor, não obedece a ninguém, e só faz o que quer.

58. Quando contrariada ou pressionada, a FF mostra-se agressiva para com quem a rodeia, sendo uma pessoa de relação difícil com os demais.

59. Por sua vez, o progenitor tem uma personalidade muito passiva, revela fragilidades no discurso, que se traduzem num vocabulário empobrecido, dificuldade na articulação e na dicção, revelando falta de discernimento e maturidade, bem como instabilidade emocional.

60. A FF já, por várias vezes, agrediu fisicamente o pai da criança, dando-lhe "sovas", ao ponto de o deixar prostrado no chão, assim como o ameaça que vai arranjar pessoas para lhe baterem e o matarem, conseguindo que ele não apresente queixa crime, e continue a fazer tudo o que ela quer.

61. O BB reconhece que tem medo da FF.

62. O BB também já foi agredido a murro pelo "NN", atual namorado da FF, o que lhe provocou um olho negro.

63. A 21/07/2023, no âmbito do processo de inquérito n.º 43/23.6..., a FF apresentou uma denúncia contra o BB, alegando ser vítima de violência doméstica por aquele, e pretender ser acolhida numa casa abrigo para mães solteiras, quando a AA já se encontrava institucionalizada.

64. A 21/10/2023, foi elaborado outro auto de notícia no referido processo de inquérito n.º 43/23.6..., em virtude da GNR ter sido chamada a casa da GG, após ter ocorrido uma discussão entre a FF, a GG, e o BB, quando aqueles pretendiam pernoitar em casa da GG, contra a vontade desta, tendo a FF dado empurrões e apertões à GG, e ficado com uma lesão junto ao olho direito, e um pequeno corte no lábio.

65. A FF e o BB foram constituídos arguidos no processo de inquérito n.º20/23.7..., por suspeita da prática do crime de abandono de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 388.º do Código Penal, em flagrante delito, a 22/06/2023, em virtude de ter sido apurado pela GNR de ... que aqueles recolheram da rua dois gatinhos, com poucas semanas, os levaram para o quintal da casa da GG, e os colocaram dentro de uma pequena gaiola para pássaros, sem água, nem comida, cheia de moscas e dejetos que não eram limpos há muito tempo, sendo o cheiro nauseabundo, o que resultou na morte de um dos gatinhos, que ali permanecia morto, ao pé do outro gatinho que apresentava sinais de magreza, e conjuntivite, que o forçava a manter os olhos sempre fechados.

66. Por despacho, de 11/03/2024, foi determinado o interrogatório complementar dos arguidos, de modo que estes se pronunciassem quanto à suspensão provisória do processo, mediante a entrega do montante de 200 € à Associação de ..., e a prestação de 40 horas de serviço de interesse público.

67. No âmbito do processo comum singular n.º 1219/20.3..., que correu os seus termos no Juízo Local Criminal de ..., por sentença prolatada a 12/12/2023, transitada em julgado a 24/01/2024, a FF foi absolvida pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º e 204.º, n. 2, alínea e) do Código Penal; tendo ainda sido homologada a desistência de queixa formulada pelo ofendido, PP, contra a FF e, em consequência, declarado extinto o procedimento criminal instaurado contra a mesma arguida.

68. Da referida sentença constam como provados os seguintes factos:

«J. No dia 04.04.2020, pelas 10h30m, arguida FF acompanhada por II, dirigiu-se à residência do ofendido PP, sita na Praça ..., em ..., com o propósito comum de ali entrarem e fazer seus os objetos de valor que lá se encontrassem.

2. Nas referidas circunstâncias de dia, hora e lugar, a arguida aguardou do lado exterior e junto da vedação da referida residência para vigiar e recolher os objetos que II retirasse do seu interior e lhe entregasse.

3. Na concretização do referido propósito, II escalou a vedação da residência, introduziu-se no seu interior, daí retirou objetos, os quais colocou dentro de sacos, passou-os para o lado de fora da vedação e entregou-os à arguida que recebeu, levou consigo e fez seus, abandonando o local, com os seguintes objetos:

- uns óculos de sol com aros dourados, e respetivo estojo com os dizeres "carrera" de cor preta, de valor não concretamente apurado;

- uns óculos 3D de cor preta, marca "Real 3D", de valor não concretamente apurado;

- bens alimentares, de características não concretamente apuradas e de valor não concretamente apurado.

4. A arguida atuou, executando um plano previamente traçado, em comunhão de esforços com II, com a intenção de integrar os referidos objetos no seu património, o que logrou, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam, que estavam a introduzir-se ilegitimamente numa habitação fechada, ladeada por uma vedação, contra a vontade e sem autorização do seu legítimo proprietário.

5. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.

Mais resultou demonstrado que:

6. A arguida não detém antecedentes criminais registados no certificado de registo criminal que lhe respeita.

7. A última declaração modelo 3 de IRS submetida em nome de FF, com o NIF ...27, respeita aos rendimentos obtidos no ano de 2014.

8. A arguida vive com a sua filha de 6 meses de idade, em habitação arrendada, pela qual despende a quantia mensal de 150,00 € a título de renda.

9. A arguida encontra-se desempregada, sendo a sua única fonte de rendimento o Abono de Família que recebe pelo Instituto de Segurança Social para a sua filha, de cerca de 269,00 €.

1 O. A arguida não tem despesas extraordinárias regulares.

11. A nível das habilitações literárias, a arguida completou o 9. º ano de escolaridade.

12. Em sede de audiência de discussão e julgamento a arguida pediu desculpa a ofendido PP».

69. O progenitor da AA, BB, não estuda nem nunca exerceu qualquer atividade laboral, e não demonstra interesse em fazê-lo, preferindo continuar financeiramente dependente dos bisavós paternos da AA, que o criaram desde pequeno.

70. A dada altura, o bisavô paterno arranjou um emprego para o BB na Câmara de ..., que este não quis.

71. Nenhum dos progenitores da AA tem carta de condução.

72. Após chumbar no exame de código à primeira tentativa, o BB desistiu de tirar a carta de condução, pese embora a insistência dos seus avós paternos.

73. Durante a escola, o BB beneficiou sempre de apoio psicológico, e de terapia da fala, e frequentou um curso profissional, cujo nome não sabe sequer identificar.

74. O BB foi acompanhado em pedopsiquiatria até 2019, por síndrome depressiva relativo a bullying, sofreu um episódio de ideias auto-lesivas em 2018 e, em 2023, teve um contacto com o centro de saúde por ansiedade.

75. O BB não sabe somar 8 mais 8, ou efetuar qualquer outra operação aritmética de pequena complexidade, confessando o mesmo que foi passando na escola, anos após ano, "por favor", nada tendo aprendido.

76. O BB não sabe cozinhar nem efetuar lides domésticas.

77. O progenitor da AA sempre foi muito mimado pelos bisavós paternos, que sempre o protegeram e tudo lhe deram, e continuam a dar.

78. O progenitor assumiu, por diversas vezes, que não tem condições para cuidar da sua filha, o mesmo sucedendo com o avô paterno, o qual, também não criou o pai da AA e, questiona que o seu filho seja o verdadeiro pai da criança, com o fundamento que a mãe da criança é vista com vários homens.

79. O pai da criança, ora vive em casa dos seus avós paternos, CC e DD, ora vive em casa da sua mãe GG.

80. Os bisavós paternos manifestaram disponibilidade para acolher a bisneta, impondo, ao início, a condição que fosse efetuado um teste de paternidade, pretensão essa que abandonaram depois do BB ter assumido a paternidade da criança.

81. A mãe da AA e os bisavós estão há muito de relações cortadas, de tal modo que os bisavós, apesar de quererem criar a AA, não pretendem manter qualquer contacto com a mãe da criança, e assumem que chamarão a GNR sempre que a mãe da criança se dirigir à sua casa a querer visitá-la.

82. Os bisavós paternos acusam, frequentemente, a FF de andar com outros homens, ser preguiçosa, e não fazer nada em casa, só querer dormir, ser uma "porca" e uma "bêbada".

83. Por sua vez, a mãe da AA acusa o bisavô paterno de lhe ter encostado uma faca à barriga na sua casa, e de lhe ter posto as mãos no pescoço na casa da avó paterna da criança.

84. Por requerimento datado de 29/05/2023, vieram os bisavós paternos requerer que a criança ficasse aos seus cuidados.

85. Por despacho judicial, datado de 13/06/2023, foram autorizadas visitas dos bisavós paternos à AA, na referida Casa de Acolhimento.

86. Os bisavós paternos pretendem que a AA lhes seja confiada a si porque a AA é do seu sangue, é sua herdeira, pretendendo que a mesma, seja, no futuro, uma boa dona de casa, e um "encosto" para o seu neto.

87. A propósito, o bisavô paterno referiu, em sede de conferência de pais, o seguinte:

«Eu gostava que ela viesse para nós para, daqui amanhã, ser um encosto do meu neto porque a mãe tem dificuldades, deu-lhe um AVC, e não está em condições, e ele não se pode estar a socorrer, daqui amanhã, da mãe; eu queria que ele, daqui amanhã, tivesse a filha para lhe arranjar a roupinha e fazer-lhe as coisas, agora quem o faz é a avó».

88. Os bisavôs paternos trabalharam na Câmara de ... e, atualmente, residem num monte isolado, trabalhando o bisavô no campo, enquanto que a bisavó se ocupa das tarefas domésticas.

89. É a bisavó paterna que, sozinha, assegura a limpeza da casa, e da roupa, e a confeção de refeições para toda a família, pretendendo que a AA venha a ser uma boa dona de casa, e a ajude nessas tarefas.

90. Os bisavós paternos apresentam muito boas condições habitacionais, com 3 anexos, cada anexo é constituído por uma sala, cozinha, quartos e casa de banho; o espaço exterior tem, ainda, uma casa de máquinas e uma garagem, é amplo e muito bem organizado.

91. Os bisavós paternos têm ambos a 4.ª classe, e vivem dos seus rendimentos relacionados com a agricultura, e das suas reformas.

92. Apesar de ambos os bisavós paternos terem carta de condução, apenas CC conduz.

93. O bisavô paterno, CC, sofre de síndrome ango-depressivo, um quadro misto de ansiedade e depressão, hipertensão, colesterol elevado, e neuropatia periférica, para o que é medicado, de forma crónica, sendo seguido na consulta da médica de família.

94. A bisavó paterna da AA, DD, sofre de depressão crónica, hipertensão, osteoartrose e varizes, para o que é medicada, sendo seguida na consulta da médica de família.

95. Na avaliação psicológica, os bisavós paternos demonstraram fracos recursos cognitivos, com uma postura de colaboração; não demonstraram alterações do pensamento, estando o discurso orientado no tempo e no espaço, sendo o do bisavô pouco fluído, e o da bisavó fluído.

96. O bisavô paterno demonstra uma crítica diminuída no que toca à importância da autonomia e responsabilidade do pai da criança, o mesmo já não ocorrendo com a bisavó paterna.

97. A fraca escolaridade, a falta de compreensão, e de estimulação cognitiva, dos bisavós paternos, não lhes permitiram compreender os itens que compunham alguns aspetos da avaliação psicológica, pelo que não foi possível avaliar, em termos psicométricos, os seus traços de personalidade.

98. A relação dos bisavós paternos é pautada por entreajuda e companheirismo, mantendo uma boa relação desde jovens. Demonstram uma vida de trabalho, dedicada à sobrevivência, e não fizeram questão que o único filho, que tiveram, estudasse, tendo o mesmo seguido o modelo em que crescia.

99. Os bisavós paternos não conseguem estabelecer limites ao comportamento e decisões do progenitor da criança, e o mesmo, fruto da sua idade, e dependência daqueles, tem dificuldade em racionalizar e tomar decisões, e gerir os conflitos com a progenitora da AA, de forma a não prejudicar o adequado e saudável desenvolvimento da criança.

100. De acordo com a avaliação psicológica, realizada a 20/11/2023, os bisavós paternos demonstram «condições funcionais e potencial afetivo para promover um ambiente cuidado à menor AA, no entanto, os recursos limitados e a idade avançada poderão dificultar a promoção das necessidades que o crescimento da menor exigirá».

101. O bisavô paterno, CC, é considerado como uma pessoa prepotente, e de trato rude, que chegou a exaltar-se perante a Dra. KK dos SAAS de ..., mesmo na presença do Comandante do Posto da GNR de ....

102. No âmbito do processo de inquérito n.º 37/16.S..., que correu os seus termos nos serviços do Ministério Público de ..., por decisão de 04/05/2017, por suspeita da prática, a 06/09/2016, do crime de ofensa à integridade física simples, foi aplicada aos arguidos QQ, CC e RR, a suspensão provisória do processo, por um período de 3 (três) meses, mediante a sujeição às seguintes injunções: «- Apresentar, cada um, um pedido de desculpas formal, perante autoridade judiciária, em data a designar.

- Não praticar ilícitos da mesma natureza durante o período da suspensão provisória do processo».

103. O referido processo n.º 43/21.0... foi arquivado, por decisão de 20/11/2017, em virtude de os arguidos terem cumprido todas as injunções e regras de conduta.

104. Os progenitores, a avó paterna, e os bisavós paternos, da AA não têm antecedentes criminais.

105. O avô paterno da AA, EE, tem o 5.º ano de escolaridade, e é tratador de gado.

106. Os avós paternos da AA casaram-se a .../.../2001, e divorciaram-se a .../.../2023, após terem vivido separados durante mais de um ano.

107. No âmbito do processo de inquérito n.º 43/21.0..., que correu os seus termos nos serviços do Ministério Público de ..., por decisão de 9/03/2022, foi aplicada ao EE a suspensão provisória do processo, por um período de 15 (quinze) meses, mediante a sujeição às seguintes injunções:

«J. Manter uma postura de respeito para com a vítima GG, nomeadamente, não praticando qualquer ato de violência quer física, quer psicológica, ou ameaça;

2. Sujeitar-se a um acompanhamento especializado sobre a patologia aditiva (álcool) ou doença de que padeça, cumprindo rigorosamente o plano terapêutico que venha a ser avaliado como pertinente para o seu caso (consultas, medicação tratamento, ou internamento caso seja necessário) nas entidades de saúde que forem aconselhadas pela DGRSP;

3. Frequentar um curso vocacionado para agressores de violência doméstica;

4. Comparecer, sempre que solicitado, perante técnicos da DGRSP responsáveis pela monotorização da medida, observando as orientações que lhe forem transmitidas».

108. Os factos que fundamentaram a aplicação, ao EE, da suspensão provisória do processo foram os seguintes:

«J. O arguido, EE, em data não concretamente apurada mas há cerca de 20 anos, contraiu matrimónio com a vítima, GG e fixaram residência na Rua do ..., no concelho de ..., freguesia de ....

2. Dessa relação nasceu BB, em .../.../2002.

3. Desde o início da relação que o arguido evidenciou comportamento agressivo para com GG.

4. Assim, ao longo deste período de 20 anos, num número não concretamente apurado de vezes, mas, pelo menos, semanalmente, o arguido EE, desferia murros e pontapés pelo corpo de GG, no interior da residência de ambos.

5. Também neste período, o arguido, com a mesma cadência semanal, gritava a GG que não prestava para nada, que como ser humano não valia nada.

6. Em data não concretamente apurada, mas no ano de 2017, no monte da ..., o arguido iniciou uma discussão com GG, e, durante essa discussão, o arguido aproximou as mãos do corpo desta e empurrou-a para trás fazendo-a cair e bater com a cabeça numa pedra.

7. Como consequência direta e imediata desta conduta do arguido, GG sentiu dores.

8. No dia 12 de setembro de 2021, o arguido EE, após haver estado a ingerir bebidas alcoólicas socialmente chegou a casa já de noite.

9. Após entrar na casa em que vivia com a vítima, foi em direção do quarto de ambos e constatou que a vítima se encontrava a dormir, deitada de barriga para cima.

10. Aproveitando-se disso, passou uma das pernas por cima do corpo de GG, e, sentado em cima do corpo desta, comprimiu uma almofada contra o rosto da vítima.

11. Comprimiu de tal forma que a vítima acordou, e momentaneamente teve falta de ar.

12. Enquanto comprimia, o arguido gritava, "eu mato-te, eu mato-te".

13. Após alguns segundos assim, o arguido de livre vontade saiu de cima de GG, abandonou o quarto e foi dormir para o sofá da sala.

14. No dia seguinte, o arguido EE pediu à vítima para lhe dar alguma roupa e abandonou a residência, indo viver para a casa dos seus pais, com estes e com o filho do casal, BB na ....

15. O arguido ao agir como agiu, fê-lo com o objetivo concretizado de molestar GG, tanto fisicamente como psicologicamente, criando um estado de medo, e inquietação permanentes e atentando desta forma contra a sua dignidade pessoal, o que conseguiu.

16. Sabia que era um tratamento cruel e desumano, e sabia que acarretaria graves consequências para o bem-estar físico e psicológico da ofendida mas, no entanto, decidiu-se em agir como agiu.

17. (…) mais sabia que GG era sua companheira, mãe do seu filho e que, por isso, tinha para com ela acrescidos deveres de respeito e cooperação.

18. No entanto, não se inibiu de humilhá-la e de agredi-la, no recato do lar, bem sabendo que para além do sofrimento que lhe causava, também lhe causava agitação e angústia.

19. O arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Os factos supra enunciados são suscetíveis de configurar a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n. ºs 1, al. a) e 2, al. a), com referência aos artigos 10.º, n. º 1, 14. º, n. º 1 e 26.º, todos do Código Penal.

Outros factos relevantes para o instituto da SPP:

20. O arguido e a vítima já se encontram a viver juntos na residência dos pais do arguido, e não há relatos de novos episódios de violência.

21. A vítima e o arguido concordaram com a suspensão provisória do processo».

109. O referido processo n.º 43/21.0... foi arquivado, por decisão de 24/10/2023, em virtude de o arguido ter cumprido todas as injunções e regras de conduta.

110. No âmbito do processo abreviado n.º 12/22.3..., que correu os seus termos no Juízo Local Criminal de ..., por sentença prolatada a 26/04/2022, e transitada em julgado a 26/05/2022, o EE foi condenado pela prática, a 12/02/2022, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de 7,00 €, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, pelo período de 3 meses e 15 dias, penas essas que foram declaradas extintas pelo seu cumprimento, por despacho de 30/09/2022.

111. Posteriormente à separação conjugal, o EE passou a viver em casa dos bisavós da AA, e, desde há uns meses, mudou-se para a casa da sua namorada, SS, em Espanha.

112. O EE nunca formulou qualquer requerimento ao processo para visitar a AA na Casa de Acolhimento, tendo-se limitado a entregar na instituição uma prenda no dia de aniversário da AA, dois dias antes da realização do debate judicial nestes autos.

113. O avô materno da AA, TT, vive com uma companheira, só soube da gravidez da filha no final da mesma, e declarou não ter disponibilidade para acolher a AA.

114. De igual modo, a tia materna da AA, UU, que já é mãe de uma filha de 3 anos, declarou não ter disponibilidade para acolher a criança.

115. A mãe da AA não fala com a avó materna da criança há cerca de 5 anos, a qual nem sequer é conhecida do pai da criança.

116. De igual modo, os bisavós maternos revelaram não ter condições para acolher a criança.

117. Não existem outros familiares da AA que a possam acolher.

118. A AA é uma bebé muito meiguinha e calma, está a frequentar a sala de berçário do Infantário do Centro de Bem-Estar Social de ..., desde 06/11/2023, tendo a adaptação decorrido de forma positiva.

119. A AA denota, atualmente, um atraso global do desenvolvimento, ao nível da linguagem e motricidade, dado que ainda não verbaliza, tem pouco equilíbrio, e não gatinha, necessitando de reabilitação psico-motora.

120. Todas as semanas a AA é visitada na Casa de Acolhimento pelos progenitores e pelos bisavós paternos, que revelam interesse, no seu bem-estar físico e emocional, decorrendo as visitas dentro da normalidade, com a duração de uma hora.

121. A progenitora regista por diversas vezes, atrasos de 15 ou 30 minutos, sendo que as visitas não podem ser prorrogadas para além do horário estipulado.

122. Ao início os progenitores faziam juntos as visitas à AA, a 7 e 30 de junho, tendo posteriormente passado a fazê-lo em separado, a progenitora sozinha ou com a sua tia madrinha, UU, e o progenitor com os bisavós paternos.

123. Nas visitas, a postura da progenitora é mais passiva, de mera observação, enquanto a bisavó paterna interage mais com a criança, a qual, normalmente, está ao seu colo.

124. Nem os progenitores, nem os bisavós paternos, usam os brinquedos didáticos existentes na sala de visitas para estimular a AA.

125. No final das visitas a AA não chora.

126. À exceção da tia-madrinha da mãe da criança, que a partir de Agosto de 2023 efetuou algumas visitas, já as tendo cessado em Fevereiro de 2024, mais nenhum outro familiar visitou a AA na Casa de Acolhimento, nem manifestou vontade de o fazer junto do Tribunal.

127. No dia do seu primeiro aniversário, um Sábado, a AA apenas teve a visita da sua mãe, em virtude de "não dar jeito" a CC dirigir-se à Casa de Acolhimento nesse dia, tendo a família paterna optado por visitá-la na quarta-feira anterior.

Factos não provados:

A) O progenitor trabalha com o seu avô no campo auferindo cerca de 250,00 €, além de outros rendimentos que lhe provém de outros trabalhos agrícolas sazonais que desempenha.

B) Os bisavós paternos da AA não são portadores de doenças.

Analisemos:

Insurge-se o recorrente relativamente ao acórdão proferido, alegando que o mesmo violou o princípio do superior interesse da criança, da prevalência da família, da intervenção mínima e da proporcionalidade, pugnando pela aplicação de medida de proteção de apoio à guarda da criança pelos bisavós paternos.

Ora, a nossa Lei Fundamental, a Constituição da República Portuguesa, remete para a lei ordinária a regulamentação da adoção (artº 36º nº 7), mas vinculada à mesma Constituição quanto aos direitos e deveres que passamos a realçar: artº 67º (conceito de família e deveres do Estado na sua salvaguarda); artº 68º (direitos e deveres dos pais e do Estado para com os filhos); artº 69º (infância/reconhecendo à criança o direito a ser protegida pela sociedade e pelo Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, com particular atenção relativamente às crianças abandonadas ou por qualquer forma privadas se um ambiente familiar normal.

Não podemos olvidar os direitos das crianças plasmados na Convenção sobre o Direito das Crianças, cujas normas vigoram diretamente na nossa ordem interna, ex vi, do artº 8º da CRP.

A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei nº 147/99 de 1-9, concretiza as situações de crianças e jovens que vivenciam situações de perigo (artº 3º) suscetíveis de pôr em causa as suas condições de segurança, saúde, formação e educação e desenvolvimento integral.

A intervenção para promoção dos direitos da criança e do jovem em perigo só é legítima quando os pais ou quem tenha a sua guarda puserem em perigo os mencionados direitos fundamentais das crianças.

A escolha de cada medida concreta a aplicar deverá atender, aos princípios orientadores da intervenção de promoção constantes do artº 4º da LPCJP, interpretados sempre à luz do superior interesse da criança.

Um desses princípios é, compreensivelmente o da “prevalência da família” que postula a primazia na integração da criança ou o jovem na sua família biológica, desde logo, porque “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens” (artº 1878º, nº 1 do CC).

Assim, a medida de promoção e proteção a equacionar deve privilegiar a manutenção e integração da criança ou jovem na família natural, nuclear ou alargada.

A medida de confiança a instituição com vista a futura adoção é, assim, uma medida de última ratio, aplicável apenas nas situações previstas no artº 1978º do Código Civil que estabelece o seguinte:

1. O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer uma das seguintes situações:

(…)

d) Se os pais por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em risco grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;

e) Se os pais da criança acolhida por particular, por uma instituição ou família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.

2. Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.

3. Considera-se que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção os direitos das crianças.

4. A confiança com fundamento nas situações previstas nas alíneas a), c), d) e e) do nº1 não pode ser decidida se a criança se encontrar a viver com ascendente, colateral até ao 3º grau ou tutor e a seu cargo, salvo se aqueles familiares ou o tutor puserem em perigo, de forma grave, a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou se o tribunal concluir que a situação não é adequada a assegurar suficientemente o interesse daquela.

Na impossibilidade de a família natural corresponder aos seus poderes/deveres, os direitos fundamentais da criança podem/devem ser assegurados pela denominada família reconhecida juridicamente, a qual tem subjacente os mesmos compromissos afetivos e materiais capazes de proporcionar um presente e futuro digno à criança ou jovem em perigo.

O instituto da adoção não estava previsto no chamado Código de Seabra de 1867, surgindo com o Código vigente de 1966, mas com alargada relevância através da Reforma de 1977 (direitos da família e sucessórios), corolário dos imperativos constitucionais que antes enaltecemos.

A sua relevância social e jurídica está bem patente na excecionalidade da intervenção deste Supremo Tribunal de Justiça, apesar das instâncias estarem em sintonia quanto ao encaminhamento da criança/AA para a adoção.

Isto porque essa medida extrema implica o seu definitivo afastamento da família natural/biológica, o que só poderá acontecer em nome do seu superior interesse, conceito indeterminado esse que será aferido pelo julgador a partir da valoração da factualidade definitivamente apurada – cfr. factos provados e não provados.

Como se escreveu no recente acórdão do STJ (pº nº 354/19.5T8ETR.PL.S1), de 30-1-2025, in www.dgsi.pt.,citando outros arestos deste mesmo Supremo: «a aplicação da medida de confiança com vista a futura adoção pressupõe sempre a inexistência ou o sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação; para se aferir da existência ou do não comprometimento sério dos vínculos afetivos próprios da filiação, para os efeitos do nº1 do art. 1978º do CC não basta ver se existe uma ligação afetiva entre o(s) progenitor(es) e a criança; é preciso ver se ela se concretiza em gestos, atos ou atitudes que revelem que o(s) progenitor(es), têm (tem) não só a preocupação como também a aptidão para assumir plenamente o papel que, por natureza, lhes cabe – o papel de pai(s) da criança; sempre que os factos demonstrem, seja o desinteresse, seja a falta de capacidade do(s) progenitor(es) para assumir plenamente este papel de pais da criança, é de concluir que não existem ou estão seriamente comprometidos tais vínculos afetivos próprios da filiação».

No caso, em análise, a AA logo à sua nascença, em ...-...-2023, foi considerada em perigo, ficando à guarda duma instituição, a “...”, em ....

Assim que saiu do Hospital..., no dia ...-...-2023, a criança foi logo confiada à Casa de Acolhimento, onde sempre esteve e continua a residir, ou seja, nunca residiu em ambiente familiar.

Está demonstrado que os pais não têm condições pessoais e sócio-económicas que permitam a assunção das suas responsabilidades parentais, nem o desejam.

Apenas os bisavós paternos com quem o pai da AA vive e depende, nascidos em ...-...-60 (bisavô) e em ...-...-58 (bisavó) teriam aquelas condições, nomeadamente, de ordem social e económica.

Contudo, como os próprios bisavós admitem, o projeto de vida da AA passaria sempre pela sua ligação ao pai, o qual, como a mãe, têm um percurso pessoal e social problemático e conflituoso, além de terem saúde precária limitativa da sua própria autodeterminação.

O mesmo se verifica com os avós paternos e maternos da AA.

Daí a criança/AA nunca ter vivido com os pais ou ascendentes.

Provou-se, em síntese, que:

- A saúde da AA é frágil.

- Aquando do seu nascimento foi referenciada pelo “núcleo hospitalar de apoio à criança em risco”, devido à falta de condições de habitabilidade dos seus pais.

- A AA denota, atualmente, um atraso global de desenvolvimento, ao nível da linguagem e motricidade, dado que ainda não verbaliza, tem pouco equilíbrio e não gatinha, necessitando de reabilitação psico-motora.

- A mãe da AA e os bisavós estão há muito de relações cortadas, de tal modo que os bisavós, apesar de quererem criar a AA, não pretendem manter qualquer contacto com a mãe da criança e assumem que chamarão a GNR sempre que a mãe da criança se dirigir á sua casa a querer visitá-la.

- Os bisavós paternos pretendem que a AA lhes seja confiada a si porque a AA é do seu sangue, é sua herdeira, pretendendo que a mesma, seja, no futuro, uma boa dona de casa e um encosto para o seu neto.

Ora, o aspeto fundamental e o que se sobrepõe neste tipo de processos será sem dúvida, o interesse da criança, e será sempre perante o mesmo que se justificará a intervenção do tribunal e a opção pela medida que mais se adeque às necessidades daquela.

Analisado todo o teor factual, constante dos autos e que é abundante, fica-nos uma imagem de grande conflitualidade familiar, de falta de competências dos progenitores para o desempenho do seu papel, do qual, também se afastam, bem como, dos outros familiares mais próximos.

Apenas os bisavós se posicionaram como guardiães da criança, mas ainda assim, resulta dos autos, nomeadamente, a seguinte factualidade:

- Os bisavós paternos apresentam muito boas condições habitacionais, com 3 anexos, cada anexo é constituído por uma sala, cozinha, quartos e casa de banho; o espaço exterior tem, ainda, uma casa de máquinas e uma garagem, é amplo e muito bem organizado.

- O bisavô paterno, CC, sofre de síndrome ango-depressivo, um quadro misto de ansiedade e depressão, hipertensão, colesterol elevado, e neuropatia periférica, para o que é medicado, de forma crónica, sendo seguido na consulta da médica de família.

- A bisavó paterna da AA, DD, sofre de depressão crónica, hipertensão, osteoartrose e varizes, para o que é medicada, sendo seguida na consulta da médica de família.

- Na avaliação psicológica, os bisavós paternos demonstraram fracos recursos cognitivos, com uma postura de colaboração; não demonstraram alterações do pensamento, estando o discurso orientado no tempo e no espaço, sendo o do bisavô pouco fluído, e o da bisavó fluído.

- O bisavô paterno demonstra uma crítica diminuída no que toca à importância da autonomia e responsabilidade do pai da criança, o mesmo já não ocorrendo com a bisavó paterna.

- A fraca escolaridade, a falta de compreensão, e de estimulação cognitiva, dos bisavós paternos, não lhes permitiram compreender os itens que compunham alguns aspetos da avaliação psicológica, pelo que não foi possível avaliar, em termos psicométricos, os seus traços de personalidade.

- Os bisavós paternos não conseguem estabelecer limites ao comportamento e decisões do progenitor da criança, e o mesmo, fruto da sua idade, e dependência daqueles, tem dificuldade em racionalizar e tomar decisões, e gerir os conflitos com a progenitora da AA, de forma a não prejudicar o adequado e saudável desenvolvimento da criança.

- De acordo com a avaliação psicológica, realizada a 20/11/2023, os bisavós paternos demonstram «condições funcionais e potencial afetivo para promover um ambiente cuidado à menor AA, no entanto, os recursos limitados e a idade avançada poderão dificultar a promoção das necessidades que o crescimento da menor exigirá».

- O bisavô paterno, CC, é considerado como uma pessoa prepotente, e de trato rude, que chegou a exaltar-se perante a Dra. KK dos SAAS de ..., mesmo na presença do Comandante do Posto da GNR de ....

Como se escreveu no acórdão recorrido «… é indiscutível que os bisavós paternos que distam três gerações de diferença da AA e que a criança tem um atraso global do desenvolvimento, ao nível da linguagem e motricidade, dado que ainda não verbaliza, tem pouco equilíbrio, e não gatinha, necessitando de reabilitação psico-motora, não têm as competências necessárias para estimular a criança.

Porém, acima de tudo, aquilo que releva nesta situação é o tipo de relacionamento existente entre todos os envolvidos e que sugere que, de futuro, o crescimento bio-psicológico será prejudicado gravemente com a adoção da solução proposta pelo recorrente.

A personalidade dos pais biológicos, os problemas de inserção social que revelam, a falta de um projeto de vida consistente são fatores perturbadores de uma integração completa no seio do agregado familiar alargado da AA.

Na realidade, comunga-se da interpretação que «a enorme conflitualidade que existe entre os pais da criança, e entre a mãe e os bisavós paternos, é fonte de disrupção da estabilidade emocional e psicológica de qualquer pessoa, não sendo um ambiente adequado para criar uma criança, muito menos de tenra idade».

E esta envolvência permite depreender que, não obstante a boa intenção dos bisavós paternos, a curto prazo, existe o risco sustentado de emergirem problemas e de sobrevir um retorno a um cenário de acolhimento institucional, o qual paralisa ou prejudica gravemente o projeto de vida da menor.

Este prenúncio de «crescer numa instituição» é sólido e a AA tem direito a desenvolver-se num ambiente estável, securizante e especialmente cuidador, não existindo ao nível da família alargada a possibilidade de garantir respostas capazes e adequadas a salvaguardar o bem-estar integral e justo da menor ao nível da saúde e educação, antevendo-se que esse contexto adverso potencie a réplica de um quadro desfavorável equivalente àquele que os pais biológicos experimentaram e que os colocou num cenário de incapacidade para promover o crescimento integral da criança.

É consensual que viver institucionalizada não é um projeto de vida aceitável para uma criança de um ano de idade e essa institucionalização deve sempre visar tão só a defesa temporária da criança e não pode servir para perpetuar o acolhimento.

Confrontados com os problemas acima evidenciados – ao nível da saúde e bem-estar da menor e quanto ao clima conflitual existente –, entendemos que a factualidade apurada não permite que o projeto de vida da AA se efetive no seio familiar e a sua felicidade e superior interesse exigem medidas atempadas e não dilatórias que garantam o seu desenvolvimento integral.

Estamos num âmbito em que os direitos da criança prevalecem sempre sobre os direitos dos progenitores e de outros familiares, sendo a decisão sempre tomada em favor daquela, conforme o seu interesse e não contra os pais e que, na hipótese concreta, a concatenação de custos e proveitos implica o corte relacional com a família biológica».

Efetivamente, é importante a existência de uma ligação afetiva entre a criança e os bisavós, mas a mesma não é só por si suficiente.

Uma criança necessita de um projeto de vida futuro, que seja consistente, securizante, protetor.

Esta criança nunca viveu em ambiente familiar, os seus progenitores não têm capacidade para assumir o seu papel, nem os ascendentes mais diretos.

Os bisavós também nunca viveram com a AA, atento o percurso da mesma desde o seu nascimento, sempre ter sido a via da institucionalização.

Ainda que a mesma viesse a ser confiada àqueles, nunca haveria uma convivência harmónica com a sua família natural, atenta a conflitualidade existente entre todos.

A AA estaria sempre privada de lidar com a sua família biológica na sua integralidade e tal ocorreria por imposição dos próprios bisavós.

A criança seria forçada a vivenciar aspetos nada condizentes com um clima de tranquilidade e felicidade, indispensáveis ao seu desenvolvimento digno e ao seu superior interesse.

Não oferecendo a família natural, as condições necessárias para um normal desenvolvimento desta criança, a opção mais adequada passará pela medida aplicada de confiança a instituição com vista a futura adoção, não merecendo reparo o acórdão proferido, já que, aplicou os preceitos legais devidos e fez a análise adequada da situação concreta.

Sumário:

- A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei nº 147/99 de 1-9, concretiza as situações de crianças e jovens que vivenciam situações de perigo suscetíveis de pôr em causa as suas condições de segurança, saúde, formação e educação e desenvolvimento integral.

- A medida de confiança a instituição com vista a futura adoção é uma medida de última ratio, aplicável apenas nas situações previstas no artº 1978º do Código Civil, pressupondo sempre a inexistência ou o sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação.

- O aspeto fundamental e o que se sobrepõe neste tipo de processos será o interesse da criança e será sempre perante o mesmo, que se justificará a intervenção do tribunal e a opção pela medida que mais se adeque às necessidades daquela.

3- Decisão:

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a revista.

Custas a cargo do recorrente.

Lisboa, 9 de abril de 2025

Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)

Luís Correia de Mendonça

Cristina Coelho