Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8325/17.0T8VNG.P1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
REQUISITOS
PROVA DOCUMENTAL
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
PRAZO DE CADUCIDADE
CADUCIDADE DA AÇÃO
Data do Acordão: 09/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O recurso de revisão é um recurso extraordinário através do qual pode ser posta em causa uma decisão transitada em julgado (decisão revidenda).

II. São três as condições para se proceder à revisão com o fundamento previsto na al. c) do artigo 696.º do CPC: (i) meio de prova documental, (ii) superveniência (objectiva ou subjectiva) e (iii) essencialidade (suficiência e essencialidade stricto sensu).

III. A “falta de recordação” de uma sms, alegadamente relevante para o litígio entre as partes, implica, em rigor, tomada de conhecimento e subsequente desconsideração, o que só pode ser atribuído a falta de zelo e / ou falta de interesse do destinatário – numa palavra: a falta da diligência devida –, o que inviabiliza a alegação de desconhecimento sem culpa para o efeito da superveniência subjectiva exigida naquela norma.

IV. Se, na sms enviada, o funcionário da ré apenas se compromete ou manifesta a intenção de “reencaminhar o assunto superiormente”, não pode dizer-se que existe um reconhecimento, por parte da ré, do direito da autora susceptível de impedir o curso do prazo de caducidade para a propositura da acção.

V. Não tendo a sms aptidão, por si só, para alterar a decisão em sentido mais favorável à recorrente (in casu: no sentido da improcedência da excepção de caducidade), fica também por preencher o requisito da essencialidade do documento previsto na norma.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

1. AA, titular do cartão de cidadão n.º ..., contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., ..., instaurou acção judicial contra Caetano Baveira – Comércio de Automóveis, S.A., pessoa colectiva n.º 500003165, com sede em Vila Nova de Gaia, formulando contra esta os seguintes pedidos:

a) seja resolvido o contrato de compra e venda do veículo ..-MZ-.., com a devolução do veículo à ré e restituição à autora do valor pago pela compra;

b) seja a ré condenada a pagar à autora 172.333,22€ a título de danos patrimoniais, acrescida do valor que vier a ser apurado, pela privação de uso do veículo nos períodos em que a mesma esteve nas oficinas da ré, e dos valores que se vencerão ainda a título de privação de uso; e

c) seja a ré condenada a pagar à autora 2.500,00€ a título de danos não patrimoniais.

Alegou para o efeito que no dia 4 de Setembro de 2015, adquiriu à ré o veículo automóvel BMW ... com a matrícula ..-MZ-.., pelo valor de 73.950,00€ que a autora pagou nos termos acordados, veículo que veio a apresentar defeitos tempestivamente reclamados pela autora e que a ré não resolveu porque a sua reparação é impossível e torna o bem inaproveitável; em resultado, a autora sofreu danos de diversa ordem dos quais pretende ser ressarcida.

2. A ré contestou a acção, por excepção e por impugnação, arguindo além do mais a excepção da caducidade do direito da autora por terem decorrido mais de seis meses sobre a denúncia dos defeitos e até à instauração da acção.

3. Após julgamento, foi proferida sentença, julgando procedente a excepção de caducidade da acção e absolvendo a ré dos pedidos formulados.

4. Do assim decidido interpôs a autora recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido Acórdão no qual concluiu dever confirmar a decisão que julgou caducado o direito da autora e julgou o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

5. Transitado em julgado o Acórdão desta Relação, veio a autora, cerca de dois anos depois, interpor recurso extraordinário de revisão.

6. Em 21.04.2022 o Tribunal da Relação do Porto proferiu um Acórdão com o seguinte o dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso de revisão improcedente, negando a revisão do Acórdão proferido nos autos e transitado em julgado”.

7. Deste Acórdão vem agora a autora interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Alega que “foram violados os artigos 152º, 607º, 696º, 697º, 700º, nº 1, todos do Código de Processo Civil”, concluindo nos seguintes termos:

1. No entender da recorrente foi feita uma aplicação incorrecta dos artigos 696º e 697º do Código de Processo Civil, estando outrossim verificados os requisitos legais nele previstos para a procedência do recurso.

2. O que se cura de averiguar no presente recurso de revisão é quando a recorrente tomou conhecimento da sms recebida pelo seu pai, sendo que a circunstância deste a ter recebido em momento anterior não significa que dela tivesse obrigação de se lembrar, nem representa negligência, incúria ou falta de diligência da sua parte.

3. Contrariamente ao sustentado no douto acórdão recorrido, a recorrente só teve conhecimento da sms em 17/04/2021 por só nessa data seu pai ter encontrado a sms em causa, atenta a forma como estabelecia usualmente contacto com o Dr. BB.

4. Nem a recorrente afirmou que o prazo de interposição do recurso fico dependente da resposta da administração da recorrida.

5. O que ela disse foi que decorrendo negociações em 26/05/2017 ainda não havia decorrido o prazo de caducidade na data da propositura da acção.

6. Não entende a recorrente a conclusão do douto acórdão recorrido que ela não pode pretender aproveitar-se do efeito da sms de impedir o início da contagem do prazo de prescrição, sem aceitar o conhecimento da mesma.

7. Entendimento que não tem correspondência com a realidade uma vez que se o pai da recorrente se recordasse da sms e a ela tivesse acesso directo teria feito uso dela no processo, tanto mais que a excepção de caducidade foi invocada na contestação.

8. Por outro lado, já anteriormente se explicou o motivo pelo qual o pai da recorrente não se lembrava de ter recebido a sms, motivo que a recorrente reputa de lógico, racional e entendível, por se tratar de acto isolado, excepcional.

9. O cérebro humano recebe todo o tipo de informação que cada pessoa processa de acordo com os padrões económico, social, religioso, de personalidade e outros, sendo que o pai da recorrente (e ela própria) não são juristas.

10. Para além disso, o pai da recorrente não tem obrigação ou conhecimento para atribuir relevo ao teor da sms recebida nas condições já referidas e da mesma dar conhecimento à recorrente. Com o objectivo de potenciar uma possível e futura contestação da invocada excepção de caducidade.

11. Salvo o devido respeito por melhor opinião, a interpretação a este respeito formulada pelo douto acórdão recorrido é infundada. Uma coisa é ter recebido a sms, outra é compreender a sua dimensão e consequências em sede de caducidade.

12. No seu julgamento, a recorrente estava impedida de fazer uso da sms até ao momento em que o seu pai a “encontrou”, sms que não estava, por isso, à sua disposição, não podendo também aceitar a acusação que lhe é feita de falta de diligência e de obrigação de conhecer os efeitos da sms em termos de caducidade, por não ter conhecimento jurídicos para tanto.

13. Os arestos citados pelo douto acordão recorrido nada acrescentam à discussão na medida que apenas tecem considerações genéricas sobre esta temática, mas não se debruçam sobre situação idêntica ou similar.

14. Sendo que no caso dos autos estamos perante desconhecimento, por ausência de memória do recebimento da sms e impedimento da sua utilização daí emergente.

15. Ora, a sms tem a virtualidade de, só por si, alterar a decisão em sentido favorável à recorrente.

16. Se, como vem dito no final do acórdão, os Exmos Senhores Desembargadores tinham dúvidas quanto a algumas questões para eles suscitadas pela sms deveriam ter usado da prerrogativa estabelecida no nº 1 do artigo 700º do Código de Processo Civil, procedendo às pertinentes diligências.

17. Não obstante isso, a documentação referida na sms é o livro (Manuel de Formação Técnica) junto aos autos pela recorrente em 02/06/2017.

18. Esse documento, produzido pela BMW Portugal em Março de 2017, determinou a alteração por parte desse Venerando Tribunal do facto 43 dado como provado nos autos principais.

18. A sua elaboração ocorreu posteriormente a Dezembro de 2016 (data em que foi dado como provado terem cessado as negociações entre as partes), dele se extraindo que a BMW Portugal reconheceu a existência de danos e desgastes nunca antes assumidos pela recorrida.

19. Daí que se perceba a razão pela qual em Maio de 2017 a recorrente o tenha invocado para legitimar a reabertura das negociações e a disponibilidade da recorrida para, face ao seu teor, reapreciar a questão.

21[1]. A recorrente não pretende introduzir na discussão novos factos, até porque sempre pugnou pela inexistência de caducidade e porque o documento já constava dos autos.

22. De acordo com o ensinamento de Alberto dos Reis, se a sms ora junta já constasse do processo a decisão proferida sobre a excepção de caducidade seria diametralmente oposta.

23. Nem pode existir qualquer dúvida quanto ao teor e alcance da sms da qual resulta inequivocamente que, independentemente do livro, o funcionário da recorrida e seu representante decidiu submeter o assunto à consideração superior.

24. O reconhecimento deste facto ocorre, pelo menos de forma tácita, nos artigos 46º e 74º a 76º das contra-alegações da recorrida.

25. A colocação da questão superiormente implica a reabertura das negociações, sob pena de existir flagrante contradição entre a manifestação de vontade do Dr. BB e os factos vertidos nos artigos mencionados na conclusão nº 24”.

8. A ré apresenta resposta às alegações.

Pugna pela improcedência do recurso, concluindo assim:

A) A aqui Recorrida considera que o Acórdão recorrido fez uma apreciação correta relativamente às questões de facto, bem como de igual modo uma aplicação das normas legais em causa de forma correta, motivo pelo qual deverá ser negado provimento ao presente recurso.

B) O documento que serviu de base ao presente Recurso Extraordinário de Revisão é um alegado SMS (Serviço de Mensagens Curtas) enviado para o Sr. CC

C) A Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais, SA notificada para o efeito, veio aos autos informar que não lhe é possível certificar a veracidade e autenticidade do SMS em apreço

D) Razão pela qual a aqui Recorrida impugna desde já a admissibilidade de tal documento uma vez que não é possível aferir da sua proveniência, veracidade e autenticidade

E) Face ao exposto e à inadmissibilidade do SMS em causa como fundamento do Recurso Extraordinário de Revisão, deve ser negado provimento ao presente recurso

F) Se assim não se entender, ainda que por mero dever de patrocínio, sempre se argumenta e remete para a falta de fundamento legal do Recurso Extraordinário de Revisão, conforme consta do douto Acórdão recorrido

G) Na medida em que os fundamentos que justificam a interposição do Recurso Extraordinário de Revisão encontram-se previstos de forma taxativa no artigo 696º do Código de Processo Civil

H) Nomeadamente, no que ao caso sub judice importa, o disposto na alínea c) quanto ao critérios de “novidade” e “suficiência” que devem revestir de forma inerente os respetivos documentos que são objeto de apreciação

I) A Jurisprudência tem sido clara e concreta quanto a necessidade de se verificarem estes dois critérios de forma cumulativa

J) No que concerne ao alegado SMS que se pretende fazer uso, este não apresenta nenhum dos critérios mencionados

K) O SMS esteve sempre disponível no telemóvel do Sr. CC, que é pai da Recorrente e mantém um contacto muito próximo com a mesma

L) Tendo, inclusive, sido o próprio Sr. CC o intermediário entre a aqui Recorrida e Recorrente durante todo o processo, sendo mesmo uma parte “ de facto “ nos presentes autos e que se encontra explanado na douta sentença proferida em 1ª Instância

M) Pelo que não se vislumbra nenhum impedimento objetivo ou subjetivo que obste ao fácil acesso por parte da Recorrente ao SMS em questão

N) Mesmo que, hipoteticamente, a aqui Recorrente não tivesse tido conhecimento do alegado SMS, o mesmo não se pode dizer quanto ao Sr. CC

O) E uma vez que era o próprio a estabelecer as comunicações entre as partes, a aqui Recorrente teve todas as condições, meios e oportunidade para fazer uso desse alegado documento em tempo útil e adequado processualmente

P) Se assim não ocorreu, apenas se pode imputar essa responsabilidade à aqui Recorrente por não ter diligenciado de forma natural e correta na busca e utilização dos meios probatórios que tinha ao dispor

Q) Neste sentido, não pode vir agora a aqui Recorrente tentar socorrer-se de um alegado SMS que sempre esteve disponível e facilmente acessível, e era do conhecimento do Sr. CC que sempre agiu em nome da Recorrente perante a Recorrida

R) Da mesma forma que não pode a Recorrente alegar agora que não tinha conhecimento do SMS em questão

S) Tentando assim aproveitar-se do facto de, supostamente, o SMS estar no telemóvel do seu pai

T) Manifestando deslealdade e má-fé para com a Justiça e a realidade dos factos

U) Deste modo, não se faz cumprir o requisito da “novidade” que deve ser inerente ao documento em causa

V) Em sentido semelhante, o requisito da “suficiência” está ele também longe de se constatar

X) O conteúdo do SMS não é, por si só, suficiente para provar novos factos ou alterar factos já provados em sede de Sentença e confirmados por Acórdão, concretamente o Ponto 32 dos factos provados e Ponto 31 dos factos não provados

Z) Isso fica inclusive explícito quando é a própria Recorrente que tem de explicar de forma autónoma no articulado qual o assunto que tal SMS retratava

AA) Dado que por si só, nunca o texto apresentado como corpo do SMS pode, sem conjugação de outros meios probatórios, fazer valer-se como bastante para provar qualquer tipo de pretensão

BB) Deixando a descoberto a insuficiência do documento em que se baseia a Recorrente

CC) Ora, não se verificando nenhum dos critérios de “novidade” e “suficiência” que são inerentes aos termos da Lei no que respeita ao disposto na alínea c) do artigo 696º do Código de Processo Civil

DD) Não pode o presente recurso ter provimento por falta de fundamento legal conforme fixa a Jurisprudência

EE) Além da inadmissibilidade do documento e da não verificação dos critérios de “novidade” e “suficiência” exigidos pela Lei

FF) Verdade é que aquilo que a Recorrente pretende alterar com o alegado SMS, isto é, o Ponto 32 dos factos provados e Ponto 31 dos não provados constantes da Sentença e confirmados por Acórdão, e que afirmam que as negociações extra-judiciais entre as partes terminaram no final do ano de 2016

GG) Não corresponde de forma alguma com o que de real aconteceu e a aqui Recorrente sabe disso

HH) As negociações extra-judiciais terminaram em final de 2016, contudo a aqui Recorrente, na pessoa do Sr. CC, nunca se conformou com a posição assumida e última da Recorrida

II) E continuou, de forma insistente, a tentar pressionar a Recorrida para aceitar os seus termos

JJ) No entanto, não alterava a sua proposta, apenas insistia

KK) Proposta que foi declinada várias vezes e comunicada quer a aqui Recorrida quer ao próprio Sr. CC

LL) A missiva enviada pela Recorrente na data de 03 de Janeiro de 2017 e por intermédio de Mandatária, resume-se somente a uma tentativa de pressão por parte da Recorrente, uma vez que em nada alterou a proposta já recusada no final de 2016

MM) O processo de negociação extra-judicial só pode ser assim considerado quando as duas partes estão comprometidas e interessadas em negociar uma solução capaz de satisfazer ambas as partes e foi o que ocorreu até final de 2016

NN) A partir dessa data, não mais houve negociação e o que se verificou foi uma pressão contínua por parte do Sr. CC para que a Recorrida aceitasse os termos da Recorrente

OO) A aqui Recorrida manteve sempre a sua posição desde final do ano de 2016 e desde aí que apenas se limitou a ir declinando e a não ceder a pressões para aceitar os termos definidos pela Recorrida

PP) Atento o aqui exposto, ao presente recurso, deverá ser negado provimento, não só pela falta de comprovação da genuinidade, veracidade do documento, bem assim como a inadmissibilidade do documento e falta de fundamento legal do mesmo, mas também por ser manifesta a tentativa de desvirtuar a realidade dos factos já provados no Ponto 32 e não provados no Ponto 31 da Douta Sentença e do Douto Acórdão que a confirmou, bem como pelo Douto Acórdão agora posto em causa”.

9. O Exmo. Desembargador Relator proferiu um despacho em que pode ler-se:

Por ser legal e tempestivo e vir interposto por quem tem legitimidade, admito o recurso interposto do Acórdão que rejeitou o recurso de revisão.

Salvo melhor opinião, o recurso é de apelação (trata-se de uma decisão proferida pela Relação funcionando como 1.ª instância de julgamento da causa que pôs termo a incidente processual – o recurso de revisão tem, na fase rescindente, a configuração de incidente – processado autonomamente: artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil), sobe nos próprios autos (do apenso de revisão) e tem efeito suspensivo da decisão (artigo 647.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil).

Notifique e remeta ao Supremo Tribunal de Justiça”.

*

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se se verifica o fundamento do recurso de revisão previsto no artigo 696.º, al. c), do CPC.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O Tribunal recorrido considerou que, para a decisão a proferir, relevavam os factos constantes do Relatório (e no presente Relatório sucintamente referidos) e ainda os factos seguintes:

1. O pai da autora CC é titular de um telemóvel com os IMEI’s ...26 ...53, ao qual está atribuído o número ...55, em cuja caixa de mensagens de texto figura a seguinte, mensagem: De: ...59 para ...55 - recebida a 26 de Maio de 2017 às 19h:51m: “Boa tarde Depois do nosso telefonema de sexta-feira já tinha identificado a documentação por si referida. Conforme lhe transmiti então, iria reencaminhar o assunto superiormente, o que já fiz. Cumprimentos BB”.

2. No processo principal foram julgados provados, entre outros, os seguintes factos:

27) Seguindo o conselho do Responsável pela Caetano Baviera Porto – Dr. DD -, a autora agendou uma reunião com o Director da Unidade de ... da ré – Dr. BB -, que tinha em vista a resolução definitiva de toda esta situação.

28) No decurso desta reunião, que ocorreu no dia 06/10/2016 entre o representante da autora (Sr. CC) e o Dr. BB, este solicitou-lhe que aguardasse algum tempo para ele tentar resolver a situação.

29) Algum tempo decorrido, o Dr. BB contactou a autora e transmitiu-lhe que a ré se propunha a retomar a viatura “a preços correntes”, tendo adiantado a quantia de 60.000,00€ (sessenta mil euros).

30) A autora transmitiu então ao Dr. BB os motivos pelos quais não aceitava o valor que lhe era proposto para uma retoma.

31) E, novamente, lhe foi solicitado por aquele mais algum tempo para contactar a Administração da ré e encetar esforços no sentido de aumentar o valor da proposta apresentada.

32) Algumas semanas decorridas, e já pelo final do ano de 2016, o Dr. BB contactou novamente a autora dizendo-lhe que não tinha conseguido que a ré aumentasse o valor da proposta apresentada.

3. Da motivação da decisão sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto consta o seguinte:

“[…] Pese embora não tenha havido o devido cuidado de explorar estes aspectos dos depoimentos, basta ouvir a sua gravação para de imediato se ficar perfeitamente convencido que o veículo foi adquirido em nome da autora (por razões que não se apuraram mas que certamente existiram) mas quem o desejou de facto, o escolheu, se dispôs a pagar o respectivo preço, tinha conhecimentos técnicos sobre automóveis (diz que trabalhou muitos anos no ramo) para conhecer e avaliar as respectivas características e a elas sentir um apego pessoal forte, usava o veículo a maior parte das vezes e fez absolutamente todos os contactos com a ré para tratar de tudo o que tinha a ver com o veículo, foi não a autora mas sim … o seu pai e testemunha CC.

Não foi certamente por acaso que o seguro automóvel foi contratado por ele! E também não foi certamente por acaso que o veículo começou a apresentar problemas (perder potência e entrar em safe mode) em condições muito especiais de circulação (a velocidades elevadíssimas praticadas numa auto-estrada, apesar dos limites legais) e conduzido pelo pai da autora (sendo certo que não se imagina como possível que quem nem se sente seguro a conduzir um veículo com caixa manual tivesse especial interesse em adquirir um veículo para atingir aquelas velocidades … superiores a 200km/hora).

Por isso, o que se afirma nos autos sobre a utilização exclusivamente para fins pessoais da autora está adulterado e não corresponde inteiramente à verdade, conforme a autora não pode deixar de saber.

[…] Nessa medida, sopesando os meios de prova produzidos à luz das regras de experiência acabadas de citar é para nós absolutamente seguro que não foi produzida prova de que o veículo foi adquirido para ser afecto ao uso privado e pessoal da autora e ao invés, foi produzida prova de que o veículo estava relacionado com o desenvolvimento de uma actividade profissional por aquele a quem se destinou de facto o veículo: o pai da autora.

O depoimento deste, independentemente da discussão sobre a respectiva credibilidade, é insuficiente porque o depoente é verdadeiramente o interessado no conflito, é do ponto de vista material o titular do litígio que se desenvolve por interposta pessoa (a filha) e, como tal, não pode sem mais ser aceite como suficiente para demonstração de factos que lhe são favoráveis, sobretudo quando o seu conteúdo se defronta com as inverosimilhanças apontadas.

[…] O tribunal a quo julgou provado que «… pelo final do ano de 2016, o Dr. BB contactou novamente a autora dizendo-lhe que não tinha conseguido que a ré aumentasse o valor da proposta apresentada» (32). E julgou não provado que «a ré atrasou a possível solução consensual desta questão, com vista a protelar a propositura da acção» (31).

O primeiro desses pontos reproduz aquilo que a própria autora alegou no artigo 52 da petição inicial, onde afirmou, referindo-se ao que se passou depois da reunião de 06-10-2016, que «algumas semanas decorridas, e já pelo final do ano de 2016, o Dr. BB contactou novamente a autora dizendo-lhe que não tinha conseguido que a ré aumentasse o valor da proposta apresentada». Não se percebe, pois, nem a recorrente a indica, aliás, que alteração podia ser introduzida na decisão proferida sobre o ponto 32 dos factos provados.

No que concerne ao facto julgado não provado, refira-se que o mesmo tem uma redacção conclusiva e inexpressiva porquanto não concretiza em que consistiu o «atrasar» ou «a possível solução consensual».

O que a autora alegou nos artigos 61º e 62º da contestação foi que «…desde a data em que ocorreu a referida reunião … a autora continuou a encetar todos os esforços possíveis no sentido de alcançar uma solução consensual com a ré», o «que não foi possível, merecendo uma resposta definitivamente negativa por parte da mandatária da ré no dia 7/Junho/2017». Esta alegação refere-se ao comportamento da autora (continuou a tentar convencer a ré a pagar-lhe o valor que pretendia), não ao comportamento da ré (atrasou uma possível solução de consenso) que é o que está vertido para o ponto 31 do elenco dos factos não provados.

A propósito desta matéria a ré alegou nos artigos 69º e seguintes da contestação que na sequência da reunião de 06-10-2016 houve uma negociação para se conseguir chegar a um valor consensual para que a ré retomasse a viatura e que isso não foi possível porque o pai da autora pretendia que lhe fosse devolvido o valor que tinha pago pelo veículo apesar de ter percorrido com ele mais de 21.000 km desde a sua aquisição.

Depois, na resposta à excepção, a autora alegou nos artigos 13 e seguintes que se empenhou em obter uma solução extrajudicial para evitar a instauração da acção, mas «a ré (ardilosamente) foi alimentando, e atrasando com sucessivos pedidos de tempo para transmissão da situação e análise pela Administração, e depois pelos seus mandatários» até que em Junho de 2017 deu uma resposta final no sentido de que não era viável retomar a viatura pelo respectivo valor de compra.

Nesse contexto é fácil de perceber o que se passou. Na reunião de 06-10-2016 o pai da autora pretendeu que a ré retomasse o veículo devolvendo o preço que lhe tinha sido pago pela sua aquisição, a ré recusou fazê-lo porque entendia que face ao tempo decorrido e à utilização que tinha sido feita do veículo este se desvalorizara entretanto e apenas aceitava devolver o valor do veículo. Perante a insistência do pai da autora, a ré ficou de analisar melhor a situação e semanas depois, antes do final do ano, informou que não aumentava o valor da sua proposta. O pai da autora contactou a sua mandatária e esta no início de Janeiro do ano seguinte enviou à ré a carta que se encontra junta com a contestação e na qual afirma isso mesmo: que a ré tinha transmitido que apenas retomaria o veículo pelo seu valor actualizado e não pelo valor que ele tinha quando foi adquirido pela autora. E nessa carta volta a insistir para a ré aceitar retomar o veículo por este valor, acrescido de despesas e uma indemnização.

Que isso se passou assim resulta designadamente dos documentos juntos e do teor do depoimento da testemunha BB que foi o interlocutor do pai da autora na reunião de 06-10-2016. Embora isso não esteja documentado nos autos por razões que se prendem com o Estatuto da Ordem dos Advogados, a autora apenas terá recebido uma resposta dos mandatários da ré em Junho seguinte.

Nesse contexto é evidente que se encontra correctamente julgado provado o ponto 32 da matéria de facto. E quanto ao ponto 31 a decisão também é a correcta porque não existe absolutamente nenhum meio de prova que permita afirmar que a ré andou ardilosamente a tentar ganhar tempo para evitar a instauração da acção antes de o direito caducar

Repare-se que a autora já tinha recebido da ré uma resposta negativa quanto a aceitar retomar o veículo pelo valor da compra e por isso já tinha conhecimento da posição da ré. A carta de Janeiro de 2017 não passa da reapresentação de uma proposta que já tinha sido recusada e, por isso mesmo, não passa de uma tentativa reforçada (por ser de mandatário, por este vir então alegar prejuízos para fazer subir o valor a suportar pela ré e por ameaçar com a instauração de uma acção) de reabrir a negociação, sem, contudo, que a ré tivesse manifestado qualquer comportamento (não vem alegado sequer) que evidenciasse que a sua anterior posição ainda era provisória, que estava disponível para reabrir a negociação, que podia vir a aceitar o que antes já tinha recusado.

Por outras palavras, a autora delineou essa estratégia de actuação mas não invoca um único facto que traduza um comportamento da ré de abertura a essa renegociação. A afirmação da existência de negociações pressupõe a adesão voluntária e consciente de ambos os negociadores a um processo negocial, não se basta com a vontade de um deles de continuar a insistir com o outro (ainda que com novos argumentos) para que aceite aquilo que este já manifestou recusar.

Por conseguinte, o facto do mencionado ponto 31 só podia ter sido julgado não provado, como foi, decisão que aqui se confirma.

4. Da fundamentação de direito do Acórdão consta ainda o seguinte:

No caso, a autora apresenta-se a exercer o direito de resolver o contrato e o direito de indemnização pelos danos sofridos. Como vimos, esta acção estava assim sujeita ao prazo de caducidade de seis meses após a denúncia dos defeitos do veículo.

Resulta da matéria de facto que a autora começou por reclamar de determinado comportamento anómalo do veículo. A ré procedeu à averiguação das causas dessas anomalias e veio a detectar que o veículo tinha sido adulterado pelo anterior proprietário a quem o havia comprado (retomado) e depois vendido à autora através da colocação de um kit de potência adicional. A ré procedeu à eliminação dessa situação e o veículo deixou de apresentar as anomalias anteriormente acusadas.

Depois disso, o veículo apresentou outra anomalia no seu funcionamento, a qual foi denunciada pela autora à ré. Quando a ré recebeu o veículo para reparar essa outra anomalia (29/06/2016), havendo o receio do surgimento no futuro de novas anomalias, foi sugerido à autora e aceite por esta a abertura de negociações entre a autora e a ré para alcançarem uma solução consensual para o problema, razão pela qual essa anomalia não chegou a ser diagnosticada ou reparada pela ré. Nessas negociações a autora pretendeu primeiramente ficar com o veículo assumindo a ré a responsabilidade por qualquer problema que ele viesse a apresentar no futuro e mais tarde que a ré retomasse o veículo pelo valor que a autora pagara por ele e a ré propôs primeiramente estender a garantia do veículo por mais 4 anos e depois retomar o veículo a preço de mercado. No final no final de 2016 a ré informou a autora que rejeitava a proposta desta no sentido de retomar o veículo pelo valor pretendido pela autora.

Depois deste acontecimento, a autora não tornou a solicitar à ré a reparação do veículo no tocante à anomalia na caixa de velocidades e no diferencial. Ao invés optou por escrever uma nova carta à ré, agora através da sua mandatária, na qual insiste para que a ré aceite retomar o veículo pelo valor correspondente ao preço pago pela autora, acrescido de uma indemnização. Por outras palavras, a autora insistiu com a ré para esta aceitar o que ela já havia recusado.

Neste contexto factual, afigura-se-nos correcta a decisão de julgar caducado o ]]direito da autora uma vez que em 16-10-2017 quando a acção foi instaurada já estavam decorridos bem mais que seis meses sobre a data em que a ré comunicara a sua posição final em relação à pretensão da autora. Com essa comunicação, as negociações entre as partes ficaram encerradas uma vez que a posição da autora manifestou na carta era de mera insistência na proposta cuja rejeição já lhe tinha sido comunicada e não consta dos autos qualquer facto que permita presumir que a ré manteve as negociações em aberto e/ou manifestou qualquer disposição para rever de novo a sua posição. Tendo sido esse o desfecho das negociações a autora dispunha de 6 meses para insistir com a ré para que procedesse então à reparação do veículo e, caso esta não o fizesse, instaurar a acção com vista ao exercício dos direitos emergentes dos defeitos do veículo”.

O DIREITO

O presente recurso é interposto no âmbito de recurso de revisão.

Como é do conhecimento geral, o recurso de revisão é um recurso extraordinário através do qual pode ser posta em causa uma decisão transitada em julgado.

Como explica Francisco Lucas Ferreira de Almeida, “[o] expediente ou remédio processual da revisão visa a substituição da decisão revidenda por outra não inquinada dos vícios subjacentes à sua impugnação” – é, no fundo, “uma erupção de uma certa relatividade do princípio de autoridade ou da força de caso julgado (…)[2].

Trata-se, segundo parte significativa doutrina, de uma figura com carácter híbrido, um misto de recurso e de acção[3].

O recurso de revisão está regulado, presentemente, nos artigos 696.º a 702.º do CPC. Inicia-se com a apresentação do requerimento de interposição do recurso (cfr. artigo 698.º do CPC), que é autuado por apenso e deve ser objecto de um exame preliminar e de um despacho de indeferimento ou de admissão do recurso (cfr. artigo 699.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

Se o recurso for admitido, o tribunal deverá conhecer do fundamento da revisão. Esta é a fase rescindente, que segue os termos do processo comum declarativo (cfr. artigo 700.º, n.º 2, do CPC), e tem o fim de manter ou afastar a decisão transitada em julgado (decisão revidenda).

Decidindo o tribunal pela improcedência do fundamento da revisão, o pedido é julgado improcedente (juízo não rescindente) e, consequentemente, subsiste o caso julgado.

Decidindo o tribunal, ao invés, pela procedência do fundamento da revisão, a decisão revidenda é rescindida (juízo rescindente). Neste caso, abre-se, em regra, uma nova fase (fase rescisória), que compreende o rejulgamento da causa (juízo rescisório) (cfr. artigo 701.º do CPC), e visa retomar o processo para aí obter uma decisão que substitua a decisão rescindida.

Se, afinal, for concedida a revisão, declara-se inutilizada a parte inquinada e subsistente a parte restante, passando-se à reconstituição da primeira.


*

No presente recurso está em causa saber se deve julgar-se procedente o fundamento do recurso.

O Tribunal recorrido decidiu pela negativa. Pelo carácter exaustivo, pela clareza e pela lógica dos argumentos expostos, considera-se pertinente reproduzir a respectiva fundamentação:

O presente recurso extraordinário de revisão constitui uma arguta e inteligente tentativa de evitar as consequências do trânsito em julgado do Acórdão que confirmou a decisão de improcedência da acção, mas, salvo o devido respeito e melhor opinião, sempre possível, parece condenado ao insucesso.

O artigo 696.º do Código de Processo Civil consente, na respectiva alínea c), que a decisão transitada em julgado seja objecto de revisão quando «se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida».

São assim requisitos cumulativos deste fundamento do recurso de revisão a apresentação de (i) um documento, que (ii) a parte não tivesse conhecimento ou podido fazer uso do documento no processo em que foi proferida a decisão a rever, e que (iii) o documento seja, por si só, suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

O segundo requisito está de algum modo ligado com o modo como se encontra fixado o prazo para a interposição do recurso. Nos termos do artigo 697.º do mesmo diploma o recurso não pode ser interposto se tiverem decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão, salvo se respeitar a direitos de personalidade, e o prazo para a interposição é de 60 dias, contados desde que o recorrente obteve o documento.

Que documento é que a recorrente apresenta para fundamentar o recurso? Uma mensagem curta de texto (vulgo sms) recebida no telemóvel do seu pai e guardada na app de mensagens deste telefone.

A recorrente alega que só teve conhecimento da sms em 17/04/2021, através de seu pai CC, porque nesse dia o seu pai se preparava para efectuar uma "limpeza" ao seu telemóvel, eliminando registos para libertar memória e deu com a mensagem da qual «não se recordava por só ter trocado esta e mais duas sms com o Dr. BB no reduzido espaço de dez dias e porque todos os contactos entre eles eram feitos através de mail e chamada de telemóvel».

Esta alegação encerra duas antinomias lógicas a que a recorrente não consegue fugir.

A primeira é a de que recorrente não pode pretender, em simultâneo, que o seu pai a representava e actuava em seu nome ao apresentar propostas à ré para resolução do conflito relacionado com os defeitos do veículo automóvel e não a representava nem actuava em seu nome para receber as respostas da ré.

Se a recorrente aceita que o modo como o seu pai se relacionava com a ré sobre este problema a vinculava a ela no tocante à denúncia dos defeitos, à exigência da respectiva reparação e à apresentação de propostas de resolução amigável do conflito (sob pena de o seu direito ter caducado muito antes disso), tem de aceitar que no tocante à recepção das respostas da ré, o seu pai actuou igualmente em sua representação e em seu nome.

Por outras palavras, a recorrente não pode pretender que através do seu pai apresentou à ré uma nova proposta (não se cuida por ora de definir se a mensagem pode ser interpretada como tal) e repudiar que através do seu pai recebeu por mensagem telefónica a resposta do interlocutor que representava a ré. Esta constatação obriga afinal a concluir que a recorrente (na pessoa do seu pai e representante) recebeu a sms de que agora se pretende fazer valer e que a recebeu, naturalmente, na data da mesma porque, tratando-se de uma mensagem electrónica trocada através de uma app específica de um telemóvel, o seu envio é praticamente instantâneo.

O segundo paradoxo é que a recorrente não pode pretender, em simultâneo, que o prazo para interpor a acção ficou dependente da resposta da administração da ré à sua insistência que a sms anunciava ir suscitar (não se cuida aqui também por ora se isso era assim) e pretender que desconhecia a sms sem a qual não podia concluir que a sua insistência reabrira o diálogo com a administração da ré que já recusara o que ela havia proposto (!).

Se antes do final de 2016 a ré recebeu a resposta da administração da recorrida a recusar a sua última proposta para resolução do conflito e pretende agora que só porque depois disso enviou uma nova comunicação com «documentação» haveria que esperar por nova resposta da recorrida já que a sua comunicação foi apresentada à administração e ela ficou de responder, tem de aceitar que tomou conhecimento da sms porque só essa mensagem lhe poderia criar a confiança de que a sua comunicação ia ser presente à administração e seria objecto de decisão e resposta por parte desta.

Por outras palavras, do ponto de vista puramente lógico a recorrente não pode pretender aproveitar-se do efeito da sms de impedir o início da contagem do prazo de prescrição sem aceitar o conhecimento do sms.

Conforme se anotou de modo claro no Acórdão a rever, embora a aquisição do veículo tenha sido formalizada em nome da autora, quem fez o negócio, pagou o respectivo preço, passou a usar o veículo e no relacionamento com a ré tratou de tudo o que se passou após a manifestação de anomalias no veículo foi o seu pai. Exactamente por isso, o documento que ora é apresentado como fundamento do recurso de revisão é uma mensagem electrónica de resposta a uma comunicação que o seu pai dirigiu ao seu interlocutor na ré, BB.

Por isso, para efeitos daquela acção, como para efeitos do presente recurso, tem de se entender, sob pena de um abstraccionismo que nos afastará da justiça do caso, que o conhecimento do pai da autora é o conhecimento da autora, não podendo aceitar-se a tese de que o seu pai tinha conhecimento de algo que respeita ao caso, mas ela não.

De modo hábil, não vem reconhecido que o seu pai tinha conhecimento da mensagem electrónica que recebeu no seu telemóvel, nem, em rigor, afirmado que não tinha conhecimento dela. O que se alega é somente que ao fazer uma limpeza dos ficheiros do telemóvel o seu pai se terá apercebido da mensagem no seu telemóvel, da qual o pai «não se recordava». Se bem vimos, nem mesmo esta hábil configuração dos factos pode levar a que se aceite o pretenso desconhecimento da sms.

Desde logo, porque novamente do ponto de vista lógico uma pessoa só pode deixar de ter recordação daquilo que já foi do seu conhecimento; aquilo que nunca foi do conhecimento de uma pessoa jamais esta pode ter esquecido para não se recordar. Uma pessoa só pode deixar de se recordar da sensação que lhe causou a visão da Notre Dame se antes visitou Paris e foi observar a Notre Dame, apreendendo de modo consciente os resultados dessa observação. A perda de memória pressupõe inelutavelmente algo que foi registado no cérebro, mas que depois, no decurso do processo de reconstituição da memória, a pessoa não consegue reavivar e tornar presente.

Depois porque supostamente a sms continha uma resposta a um pedido apresentado no âmbito de uma negociação para composição extrajudicial do conflito relacionado com os defeitos do veículo adquirido à ré. A ser assim, então estamos no âmbito de declarações negociais ou quase-negociais e teremos de aplicar o regime jurídico da perfeição da declaração negocial dos artigos 224.º e seguintes do Código Civil.

Nos termos deste preceito, a declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida, mas é igualmente considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida. Ora se a sms foi enviada para o telemóvel do pai da autora, a mensagem chegou ao seu poder em condições de ser conhecida, sendo certo que inclusivamente a app de recepção está concebida com mecanismos para alertar o utilizador da existência de mensagem por ler quando esta usa o telemóvel (é precisamente por isso que o que vem alegado é somente que «não se recordava» da mensagem).

Daí que seja forçoso concluir que, independentemente de saber se depois ele se esqueceu ou não da mensagem, o pai da autora teve conhecimento da sms, cujo conteúdo se tornou eficaz quanto a ele na data de recepção da mensagem, isto é, na data da própria mensagem.

As perguntas a colocar são, portanto, estas:

1) sendo o documento composto por uma mensagem electrónica (sms) existente na app de um telemóvel do representante do próprio, pode afirmar-se para efeitos da alínea c) do n.º 2, do artigo 697.º do Código de Processo Civil, que o representado só «obteve» o documento quando o representante lhe deu conhecimento da mensagem?

2) havendo um documento que tem de se considerar que foi conhecido pelo destinatário, basta a alegação de que «não se recordava» do mesmo para preencher o conceito de «não ter conhecimento ou não ter podido fazer uso» do documento que é exigido na alínea c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil?

A nosso ver a resposta a ambas as questões deve ser negativa.

Conforme já se referiu, estando a sms registada na app do telemóvel, a mensagem está em poder do utilizador do destinatário e titular do equipamento electrónico que regista a sms.

Se a mensagem não foi usada no processo judicial onde foi proferido o Acórdão recorrido não foi por a autora estar impedida de o fazer ou não ter a mensagem à sua disposição para a usar. Foi sim por a autora (e o seu pai) não ter sido suficientemente diligente na recolha dos documentos relativos à negociação entabulada com a ré para a resolução do problema dos defeitos do veículo, sendo certo que o equipamento electrónico onde se encontrava o documento é um aparelho sempre à mão e de uso quase permanente, que a acção foi instaurada poucos meses após a recepção da mensagem e que nela foi de imediato suscitada pela ré na sua contestação a excepção da caducidade do direito da autora que tornava conhecida a necessidade e a premência da demonstração do curso daquelas negociações.

Por outro lado, o recurso extraordinário de revisão não está concebido como uma segunda oportunidade para a parte reverter a decisão em que decaiu, fazendo a demonstração que falhou na acção. O recurso de revisão está concebido como uma válvula de escape do sistema, como uma possibilidade excepcional de afastar os efeitos do caso julgado nas situações em que a decisão transitada é manifestamente uma decisão injusta, desajustada, proferida fora das condições imprescindíveis à afirmação do due process e do fair trial.

Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-05-2021, proc. n.º 3606/12.1TBBRG-A.G1.S2, in www.dgsi.pt, «o recurso extraordinário de revisão regulado nos arts. 696º e ss. do CPC constitui um instrumento excepcional que permite quebrar a resistência de uma decisão coberta pelo caso julgado, no pressuposto de que, em casos tipificados, os valores da segurança e da certeza jurídica inerentes ao caso julgado material devem ceder perante a demonstração de circunstâncias cuja gravidade abala os alicerces da própria decisão» (sublinhados nossos).

Em consonância com essa exigência, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-12-2018, proc. n.º 179/14.4TTVNG-B.P1.S1, in www.dgsi.pt, o seguinte:

«[…] para a doutrina, o recurso de revisão só é admissível, com fundamento na alínea c), do artigo 696º, se não for imputável à parte a impossibilidade de apresentação do documento no processo anterior, ou seja, se não lhe puder ser assacada a impossibilidade de o apresentar a tempo de interferir no resultado da decisão a rever. Para isso, é necessário que a parte demonstre que, apesar de ter empregue todos os esforços que estavam ao seu alcance para o obter, mesmo assim, não o conseguiu.

Deste modo, não podem servir de base para o recurso de revisão tanto os casos em que a parte apesar de ter conhecimento da existência do documento, o não o quis apresentar na acção, como os casos em que a parte, não teve dele conhecimento, devido à sua incúria, falta de zelo e de cuidado, sendo-lhe, assim, imputável o seu não uso por não agido com a «diligência própria dum bom chefe de família». O que leva a concluir que se a parte agiu com a devida diligência, com a que lhe era exigível, na obtenção do documento, e não o tendo conseguido, não lhe pode ser imputada a sua não apresentação na acção em que foi proferida a decisão a rever.»

Também com interesse para o caso escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-02-2021, proc. n.º 1098/08.9TBFAF-S.G1.S1, in www.dgsi.pt, o seguinte:

«[…] para fundamentar a revisão, o documento a que alude a alínea c) do artigo 696.º do CPC, tem de cumprir dois requisitos cumulativos: (i) a novidade (o que significa que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão em causa, seja porque ainda não existia, seja porque, existindo, a parte não pôde dele socorrer-se); e (ii) a suficiência (o que implica que o documento deva constituir um meio de prova susceptível de, por si só, demonstrar ou infirmar facto ou factos relevantes por forma a conduzir a decisão mais favorável ao recorrente)[..]. (…) Mostra-se consolidado o entendimento de que a parte não pode socorrer-se do recurso extraordinário de revisão quando, apesar de ter conhecimento do documento, o não quis apresentar, e quando a circunstância de não ter tomado conhecimento do documento se deva à sua incúria e falta de zelo, o mesmo é dizer, quando tenha actuado sem a diligência normal [..].»

Podemos ainda citar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-01-2017, proc. n.º 39/16.4YFLSB, in www.dgsi.pt, que faz a propósito uma extensa resenha da jurisprudência daquele Venerando Tribunal, e no qual se afirma de modo peremptório:

«[…] o que importa reter (por ser pacífico) é que a impossibilidade de apresentação do documento no processo anterior – isto é, a tempo de interferir no resultado declarado na decisão revidenda – não pode ser imputável à parte.

Ficam, assim, excluídos da previsão normativa em análise os casos em que a parte tinha conhecimento do documento e não o apresentou porque não quis, bem como os casos em que não teve conhecimento do documento por incúria sua, sendo-lhe imputável o seu não uso.

Dito de outro modo, o que se impõe para que possa haver lugar a revisão é que se demonstre que, apesar de a parte ter empregue todos os esforços que estavam ao seu alcance para obter o documento, não lhe foi, ainda assim, possível obtê-lo; não lhe sendo, portanto, imputável a sua não apresentação na acção na qual foi proferida a decisão a rever […]»

Nesse sentido, só pode ser fundamento do recurso de revisão um documento de que a parte pura e simplesmente não tinha conhecimento ou de que não tenha podido fazer uso, ou seja, um documento cuja existência a parte desconhecia ou não era obrigada a conhecer ou de que, usando da normal e devida diligência, esteve impedida de fazer uso.

Essa circunstância não se verifica quando a parte tinha o documento na sua mão (literalmente falando), podia com facilidade aceder a ele e usá-lo e estava consciente da necessidade e do interesse do mesmo, só não o tendo feito por negligência ou incúria própria ou por mera falha de memória, concentração ou raciocínio naturalmente imputável à sua própria aptidão, capacidade e discernimento.

Entendemos, pois, que nas concretas circunstâncias apresentadas pela autora nem o recurso de revisão foi aprestado tempestivamente (a autora «obteve» o documento em causa muito antes dos 6 meses anteriores à instauração do recurso e mesmo ainda a tempo de o usar no processo em que foi proferida a decisão a rever), nem se verifica um dos requisitos cumulativos do fundamento de recurso de revisão previsto na alínea c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil (a parte tinha «conhecimento» e a «possibilidade de fazer uso» do documento no processo).

Diga-se que mesmo que não se concluísse desse modo, ainda assim haveria que julgar improcedente o fundamento do recurso.

O outro dos requisitos do fundamento de recurso invocado é que o documento seja, por si só, suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

A exigência do preceito é óbvia: o documento deve impor a modificação do sentido da decisão por si só, isto é, sem necessidade de qualquer outro meio de prova. Esta auto-suficiência do documento pressupõe, por um lado, que o documento constitua prova plena do facto documentado (caso contrário, o seu valor probatório estará sempre dependente da posição que a parte contrária adopte em relação ao facto documentado, podendo ou não ser suficiente em função do que resulta dos demais meios de prova produzidos) e, por outro lado, que esse facto seja determinante para a alteração da decisão, sendo certo que o recurso de revisão não serve para a modificação da fundamentação de facto da decisão ou da respectiva motivação, serve para a modificação do respectivo dispositivo.

Assim, pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-03-2021, proc. n.º 850/14 .0YRLSB.S3, in www.dgsi.pt, o seguinte:

«A locução “por si só” constante da alínea c) do art. 696.º do CPCivil significa que o documento tem de ter força própria suficiente para levar à modificação da decisão a rever. Terá de se tratar de um documento decisivo ou crucial, no sentido de que a decisão revidenda teria sido diferente se o documento houvesse sido levado em consideração pelo julgador.

Compreende-se aqui o rigor da lei. A revisão vai colocar em causa o caso julgado. E o caso julgado é um valor que deve ser preservado. Parafraseando Teixeira de Sousa (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 568), diremos que “o caso julgado é uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social (…) e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. Ele é, por isso, expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica”. Por isso, só em situações que conflituam manifestamente com a justiça da decisão é que, na perspectiva da lei, o caso julgado deve poder ser postergado.

Fundando-se a revisão em documento, não basta, portanto, que se trate de um documento que, conjugado com a demais prova suplementar de livre apreciação, possa ou não interferir no juízo do julgador. Para isso qualquer documento sempre serviria. Muito ao invés, é preciso que se verifique que o documento, por si só (portanto sem o concurso adjuvante de outras provas), tem a virtualidade de levar à modificação da decisão a rever. Por isso dizem Fernando Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., p. 316) e Francisco Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, II, p. 573) que se o documento não tiver a força suficiente para destruir a prova em que se fundou a decisão revidenda, não vale como fundamento para a revisão.

E como se aponta no acórdão deste Supremo de 19 de Setembro de 2013 (processo n.º 663/09.1TVLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt) “o documento novo deve, por si só, assegurar uma decisão favorável, ou seja, se apresentado a tempo, criaria no Tribunal uma convicção diversa daquela a que chegou; daí que se possa afirmar que tem de existir nexo de causalidade entre a não apresentação desse documento e o de ter julgado como se julgou.”».

No mesmo sentido, lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-01-2021, proc. n.º 1012/15.5T8VRL-AU.G1-A.S1, in www.dgsi.pt, o seguinte:

«[…] há-de tratar-se de documento que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a sentença se fundou; isto é, o documento deve impor um estado de facto diverso daquele em que a sentença assentou. Não basta que o documento tenha qualquer relação com a causa já decidida; há-de ser tal que persuada o juiz de que por outro meio dele a causa poderá ter solução diversa da que teve.

[…] Louvando-nos ainda no acórdão do STJ de 17.01.2006, “para servir de fundamento à revisão “é necessário que o documento, além do carácter da superveniência, faça prova de um facto inconciliável com a decisão a rever, isto é, que só por ele se verifique ter esta assentado numa errada averiguação de facto relevante para o julgamento de direito “ (Rodrigues Bastos, Notas ao Código do Processo Civil, Vol. III, 3ª ed., pág. 319).

Alberto dos Reis (Código do Processo Civil Anotado, Vol. Vi, pág. 357) também ensina: “O magistrado para julgar se o documento é decisivo, deverá pô-lo em relação com o mérito da causa, deverá proceder ao exame do mérito e indagar qual teria sido o êxito da causa se o documento houvesse sido apresentado. Feito este exame, ou o magistrado se convence de que se o documento estivesse no processo, a sentença teria sido diversa e, neste caso, deve admitir a revogação; ou se convence de que, não obstante a produção do documento, a sentença seria a mesma, porque assenta sobre outras bases e está apoiada em razões independentes do documento - e neste caso deve repelir a revogação”.

O documento a que se refere o alª c) daquele artº 771º tem de corporizar uma declaração de verdade ou ciência, isto é, uma declaração destinada a corporizar um estado de coisas, pelo que deve ser um documento em sentido estrito. Terá ainda de ser um documento decisivo, dotado, em si mesmo, de uma força tal que possa conduzir o Juiz à persuasão de que, só através dele, a causa poderá ter solução diversa da que teve.»

Existe um outro aspecto que é igualmente de chamar à colação.

Se no processo onde foi proferida a decisão a rever o tribunal não podia, com as excepções legais, conhecer de factos não alegados, parece tautológico que a parte não pode fazer-se valer do recurso de revisão para introduzir na discussão factos novos e fundar nestes a modificação da decisão. O recurso de revisão não constituiu uma forma válida de suscitar questões, formular pretensões ou arguir excepções dotadas de novidade em relação à lide decida com trânsito em julgado.

Portanto, a suficiência do documento tem por referência as questões que cabia conhecer na decisão a rever e os factos que podiam servir de fundamento a essa decisão. O que significa que o documento em causa terá de representar um meio de prova que só por si permita decidir diferentemente factos de que o tribunal podia conhecer e de cuja nova decisão decorra só por si a alteração do dispositivo relativamente a questões de que houvesse de conhecer nos autos.

No caso, estava em causa o julgamento da excepção da caducidade.

No Acórdão cuja revisão se pretende foi entendido que como a autora pretendia exercer o direito de resolver o contrato de compra e venda e o direito de indemnização pelos defeitos da coisa vendida, a «acção estava assim sujeita ao prazo de caducidade de seis meses após a denúncia dos defeitos do veículo». Foi ainda entendido que esse prazo não se suspendia nem interrompia e a caducidade só era impedida pela instauração, dentro do prazo legal ou convencional, da acção para exercício do direito, excepto, tratando-se de matéria relativa a direito disponível, como era o caso, se tivesse havido reconhecimento do direito. E foi entendido que no caso não existia qualquer facto que evidenciasse que a ré reconheceu o direito que a autora pretende exercer, nem tal havia sido alegado.

O documento em causa é uma mensagem electrónica enviada ao pai da autora pelo seu interlocutor na ré, na qual este o informa que identificou (rectius, localizou) documentação referida por aquele num telefonema anterior e que, conforme lhe transmitiu então, irá «reencaminhar o assunto superiormente».

É manifesto que esta comunicação não encerra qualquer reconhecimento do direito da autora, sendo certo que, como vimos, jamais esse reconhecimento foi alegado na acção para defesa em relação à matéria da excepção da caducidade. O documento não possui, pois, a virtualidade de impor a modificação da decisão sobre a excepção com tal fundamento.

Na decisão a rever foi ainda manifestado que a autora denunciou os defeitos primeiramente detectados e a ré reparou o veículo, e, posteriormente, tendo o veículo apresentado outra anomalia de funcionamento, a autora fez a sua denúncia à ré, a qual, face ao receio do surgimento no futuro de novas anomalias, sugeriu à autora e esta aceitou negociarem uma solução consensual para o problema, razão pela qual essa anomalia não chegou a ser diagnosticada ou reparada pela ré. Essas negociações decorreram algum tempo, mas no final no final de 2016 a ré informou a autora que rejeitava a proposta desta no sentido de retomar o veículo pelo valor pretendido pela autora. Depois disso, a autora não solicitou à ré a reparação da nova anomalia no veículo e apenas lhe escreveu uma carta insistindo para a ré aceitar retomar o veículo pelo preço pago pela autora, acrescido de uma indemnização.

Por esse motivo, foi decidido que quando a acção foi instaurada em 16-10-2017 já estavam decorridos mais de seis meses sobre a data em que a ré comunicara a sua posição final em relação à pretensão da autora, encerrando as negociações. E como não constava dos autos qualquer facto que permita presumir que a ré manteve as negociações em aberto e/ou manifestou qualquer disposição para rever de novo a sua posição, a autora dispunha de 6 meses para insistir com a ré para que procedesse então à reparação do veículo e, caso esta não o fizesse, instaurar a acção com vista ao exercício dos direitos emergentes dos defeitos do veículo.

O documento em causa permite, por si só, modificar esta conclusão?

A nosso ver, não. Nessa mensagem o funcionário da ré apenas indica que remeteu a comunicação do pai da autora para a administração da ré, que serviu elemento de transmissão de uma mensagem; não assinala que a administração da ré entendeu reabrir as negociações ou reponderar a sua anterior decisão de não aceitação da proposta da autora para solução extrajudicial do conflito que antes tinha comunicado à autora; tão pouco transmitiu, bem ou mal, autorizado o não, qualquer confiança de que isso iria suceder, isto é, que as negociações seriam reabertas e a decisão reanalisada.

Não queremos dizer que isso não podia ter sucedido; estamos apenas a afirmar que tal não resulta do documento e necessitava de resultar para o recurso de revisão poder proceder. Como afirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, página 831, «o documento legitimador da revisão não poderá apenas ter a virtualidade de abalar a matéria de facto fixada na decisão recorrida, devendo ser de tal modo antagónico, no seu alcance probatório, com aquela que justifique, apreciado de uma forma isolada e sem qualquer relação com a prova produzida no processo, a decisão em sentido contrário».

Para que se pudesse retirar a conclusão de que as negociações foram reabertas e voltou a estar em discussão um acordo extrajudicial para resolução do conflito, seria necessário determinar o conteúdo da comunicação que o representante da ré recebeu do pai da autora e reencaminhou para a sua chefia, se a mesma continha alguma reformulação da proposta que a ré já tinha antes recusado e se em função disso a administração da ré entendeu reponderar a sua decisão ou, à luz das regras da boa fé, tinha a obrigação de o fazer. E para alcançar essa conclusão era inevitável ter de recorrer a outros meios de prova complementares do documento ora junto, designadamente o depoimento do representante da ré, o documento com a comunicação do pai da autora e o depoimento do administrador da ré ao qual foi dirigida aquela comunicação pelo seu funcionário”.

Como se vê, o Tribunal a quo chegou à decisão depois de uma análise profunda do regime aplicável e da doutrina e da jurisprudência relevantes. Mas percorra-se o caminho que que cumpre percorrer para verificar do acerto daquela decisão.

O artigo 696.º do CPC, na parte que interessa para a presente decisão, tem o seguinte teor:

A decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando:

(…)

c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”.

Segundo João de Castro Mendes e Teixeira de Sousa[4], em obra recentemente publicada, “o recurso de revisão delimita-se unicamente pelos fundamentos” e estes podem ser agrupados em categorias, prendendo-se o fundamento em causa na al. c) do artigo 696.º do CPC com a superveniência de documento.

A propósito deste fundamento em particular leiam-se as observações de Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre[5]:

A alínea c) (…) prevê a apresentação de documento anteriormente omitido, por a parte dele não ter tido conhecimento ou dele não ter podido fazer uso no processo, e que, por si só, seja suscetível de modificar a decisão revidenda em sentido mais favorável à parte vencida (documento superveniente essencial)”.

Por sua vez, Rui Pinto[6] afirma:

São três as condições para se reabrir o processo com o fundamento da al. c): (i) meio de prova documental, (ii) superveniência e (iii) nexo de essencialidade (…).

Antes de mais, apenas prova documental (cfr. artigos 362.º ss. CC) é relevante para efeitos e revisão de decisão. Não se admitem outros meios de prova (…).

Por outro lado, o documento deve ser superveniente, subjectivamente ou objectivamente, seja porque a parte desconhecia sem culpa, seja porque não pôde fazer uso do documento por justo impedimento ou por inexistência do documento sem que esta lhe seja imputável (…).

Finalmente, o documento há-de ter a virtualidade de apenas por si só alterar em favor do recorrente o sentido decisório transitado em julgado, i.e., um documento suficiente para o vencimento da pretensão do vencido. Isso significa mais do que uma coisa.

Em primeiro lugar, o objeto documentado há-de ser composto por factos que integrem a matéria de facto que foi oportunamente alegada em sede de causa de pedir ou de excepção. Não podem, por isso, ser factos alheios ao objeto processual julgado pelo juiz, mas também não podem [ser] factos subjectivamente ou objetivamente supervenientes, ainda que relativos ao litígio, i.e., que o recorrente desconhecia ou que apenas ocorreram depois do termo do processo e que apenas na revisão vem alegar (…).

Em segundo lugar, o novo meio de prova há-de ser suficiente para alterar a decisão sem a necessidade de outros meios de prova, ainda que já apresentados no processo (…).

Em terceiro lugar, o documento há-de ser relevante de modo essencial ou decisivo para a pretensão do vencido”.

Partindo desta proposta de repartição dos requisitos da al. c) do artigo 696.º do CPC em três (o carácter documental da prova, a sua superveniência e a sua essencialidade, todos entendidos nos termos acima descritos), logo se vê o fundamento apresentado in casu não pode proceder para os efeitos pretendidos.

Não se põe em causa o carácter documental da prova apresentada. As mensagens de telemóvel, vulgarmente conhecidas como sms (short message system) são, evidentemente, susceptíveis de ser reconduzidas à categoria dos documentos previstos na al. c) do artigo 696.º do CPC, quando por interpretação literal, pelo menos por interpretação extensiva[7].

Os problemas começam logo no segundo requisito – a superveniência. Não é possível, de facto, considerar-se que a recorrente desconhecia sem culpa a mensagem em causa. Partindo do princípio de que um assunto que foi susceptível de justificar a propositura de um processo judicial é suficientemente importante para a autora e o seu pai (sujeito manifestamente envolvido e participante), eles deveriam ter dado à troca de comunicações (telefonemas e mensagens escritas) uma atenção especial. Neste contexto, não se compreende que o pai da autora não se recordasse da sms recebida no seu telemóvel. A ser verdadeira, a falta de recordação da sms implica, em rigor, tomada de conhecimento e subsequente desconsideração da sms. Isto só pode ser atribuído a falta de zelo ou / e falta de interesse – numa palavra: a falta da diligência devida –, o que inviabiliza a alegação de desconhecimento sem culpa[8].

Não pode considerar-se, assim, pelos mesmos fundamentos expostos de forma acutilante no Acórdão recorrido, sintetizados nas considerações aqui expendidas, que o documento seja nem objectiva nem subjectivamente superveniente, o que impede a procedência do fundamento da revisão.

Mas, ainda que assim não fosse, ou seja, ainda se desse por verificada a superveniente, é possível antecipar que o fundamento sempre falharia por falta do terceiro e último requisito – a essencialidade.

Como se viu, a essencialidade é desdobrável nas dimensões da suficiência e essencialidade stricto sensu, o que quer dizer que o documento tem de ser apto a modificar ou inverter o sentido da decisão revidenda (tem de ser essencial) e de ser apto a modificar ou inverter o sentido da decisão revidenda sem necessidade de recurso a outros elementos (tem de ser suficiente). A justificação para estas exigências encontra-se, claro está, no facto de estar em discussão uma decisão transitada em julgado.

Como se sabe, o que está em discussão no presente recurso é uma decisão que julgou procedente a excepção de caducidade da acção. Entendeu-se em tal decisão que a acção estava sujeita ao prazo de caducidade de seis meses após a denúncia dos defeitos do veículo e que, não tendo ocorrido qualquer facto impeditivo do curso do prazo, este já se encontrava esgotado quando a acção foi instaurada (em 16.10.2017).

Ora, na sms enviada ao pai da autora pelo funcionário da ré este apenas se compromete ou manifesta a intenção de “reencaminhar o assunto superiormente”. É visível que esta mensagem não configura um reconhecimento, por parte da ré, do direito da autora[9], sendo, portanto, absolutamente irrelevante para a contagem daquele prazo[10]. Quer isto dizer que, ao contrário do que a recorrente pretende, a sms sempre seria insusceptível de modificar o sentido da decisão transitada em julgado (cfr. conclusão 15).

Chegados aqui, não resta senão confirmar a conclusão de improcedência do fundamento da revisão, por ausência dos requisitos exigidos pelo artigo 696.º, al. c) do CPC, e, consequentemente, de improcedência da revisão, permanecendo o caso julgado.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente.

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Lisboa, 29 de Setembro de 2022


Catarina Serra (Relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Decerto por lapso a recorrente omitiu o número 20 e passou ao número 21, o que se manteve.
[2] Cfr. Francisco Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil – volume II, Coimbra, Almedina, 2015, p. 566 (interpolação nossa, sublinhados do autor).
[3] Cfr., entre outros, José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume VI, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 375 e p. 390, Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil – Reforma de 2017, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 204 (nota 216), Francisco Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil – volume II, cit. p. 567. Distintamente, Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 202 e p. 203) refere-se aos recursos extraordinários como “meios de renovação da instância já extinta por julgamento transitado em julgado” ou “incidentes declarativos, mas incidentes póstumos de reabertura da instância”. Seguindo o que apelida “a boa doutrina de Alberto dos Reis”, questiona-se, adiante, este autor: Mas serão estes [] recursos extraordinários ações, ainda que incidentais? Apesar de alguma jurisprudência no sentido afirmativo (…), a resposta deve ser negativa. Tal é, aliás, desde logo indiciado pela qualificação legal, nascida no Código de 1939, como recurso abandonando a anterior figura da ação de anulação de julgado do artigo 148.º do Código de 1876. Passemos a demonstrar a nossa qualificação. Antes de mais, pesem embora as diferenças, conseguem-se destrinçar princípios comuns entre os dois recursos extraordinários, no meio do casuísmo. Esses carateres desembocam na conclusão de estarmos perante incidentes declarativos póstumos de reabertura da instância (…). Portanto, num caso e noutro estes recursos extraordinários, substitutivos não são acções, pois a decisão final não lhes pode ser imputada, mas à própria ação que reabrem. A nova decisão substitutiva já virá, pois, em sede externa do procedimento repetido ficando, obviamente, como decisão da ação antes transitada” [cfr. ob. cit., pp. 205-206 (sublinhados do autor)]
[4] Cfr. João de Castro Mendes / Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, volume II, Lisboa, AAFDL, 2022, p. 210.
[5] Cfr. José Lebre de Freitas / Armindo Ribeiro Mendes / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, Coimbra, Almedina, 2022 (3.ª edição), p. 305.
[6] Cfr. Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, cit., pp. 403-405 (sublinhados do autor).
[7] Cfr., para a interpretação extensiva da norma, João de Castro Mendes / Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, cit., p. 213.
[8] Veja-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-02-2021 (Proc. 1098/08.9TBFAF-S.G1.S1).
[9] Recorde-se o artigo 331.º, n.º 2, do CC: “1. Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo. 2. Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido”.
[10] Veja-se, a este propósito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2016 (Proc. 2679/13.4TBVCD.P1.S1), onde se discute caso próximo ao dos presentes autos.