Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ERNESTO NASCIMENTO | ||
| Descritores: | RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO PODERES DE COGNIÇÃO NULIDADE OMISSÃO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO QUALIFICAÇÃO JURÍDICA PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA NEXO DE CAUSALIDADE INCUMPRIMENTO DEVER DE CONDUTA ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA VÍCIOS | ||
| Data do Acordão: | 11/19/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário : | I. O tipo objectivo do crime de maus tratos, cometido por omissão consiste na ausência da acção, na capacidade fáctica da acção, no nexo – hipotético – de causalidade adequada e na constatação da posição de garante. II. Para a conformação do elemento subjectivo é essencial a correcta informação do agente sobre a identidade e as características da vítima, bem como sobre o carácter perigoso ou proibido da actividade. III. Enquanto o nexo de causalidade constitui matéria de facto já a questão da verificação do dolo eventual prende-se com a operação de subsunção dos factos ao Direito, encerra, em si mesmo, uma conclusão sobre o conjunto da objectividade dos factos que, exceptuando a hipótese de erro nas premissa ou na lógica que lhe subjaz, não é susceptível de ser colocada em causa. IV. Existe dolo eventual se o agente no momento da realização do facto – por acção ou por omissão – e, não obstante prever como possível a realização do resultado, não renuncia à conduta ou não pratica o acto que o possa impedir. V. Nos crimes omissivos apenas se poderá afirmar o nexo de causalidade, entre o comportamento omissivo e o resultado, se aquele for tido como adequado a evitar este, se se puder afirmar que se não fosse a omissão o resultado não se teria verificado. VI. Verificado no Supremo Tribunal o vício do erro notório na apreciação da prova, recortado numa deficiente leitura dos factos com base, única e exclusivamente, na violação das regras da experiência comum - sem qualquer reporte à prova produzida - nada impedirá que, desde logo, este Supremo Tribunal decida da causa, sem necessidade de reenvio. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório 1.No âmbito do processo comum coletivo 2349/23.5T9VNG do Juízo Central Criminal do Porto, foram submetidos a julgamento os arguidos «Lar ...», instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para idosos [E...], AA, BB, CC e DD, tendo sido, a 26.11.2024, proferido acórdão que jugando a acusação totalmente improcedente, os absolveu de todos os crimes de que eram acusados, bem como do PIC formulado. 2. Inconformado, interpôs recurso o Ministério Público para o Tribunal da Relação do Porto, que por acórdão de 21.5.2025 decidiu, - parte criminal: - conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, como consequência do reconhecimento da verificação dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º/2 alíneas b) e c) CPPenal e do erro de julgamento quanto à matéria de facto, determinar: a) a alteração da decisão recorrida quanto à matéria de facto; b) a condenação dos arguidos AA e BB pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de maus tratos, p. e p. pelo artigo 252.º-A, n.º 2, a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 9 meses de prisão e de 1 ano de prisão; - em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenam cada um dos arguidos nas penas conjuntas de 1 ano e 3 meses de prisão, cuja execução suspendem por igual período temporal, nos termos previstos no artigo 50.º, n.ºs 1, 4 e 5, do Código Penal; - c) a condenação das arguidas CC e DD pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 252.º-A, n.º 2, a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 1 ano e 3 meses de prisão, cuja execução fica suspensa por igual período temporal, nos termos previstos no artigo 50.º, n.ºs 1, 4 e 5, do Código Penal; - d) a condenação da arguida «Lar ...», instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para idosos (E...), com o NIPC .......80 e sede na Rua 1, Vila Nova de Gaia, pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de maus tratos, p. e p. pelo artigo 252.º-A, n.º 2, a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 120 e 150 dias de multa; - em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenam a arguida na pena conjunta de 200 dias de multa, á taxa diária de € 120 euros; - parte cível: e) na decorrência das alterações introduzidas na matéria de facto e preenchimento do tipo objetivo e subjetivo do crime de maus tratos, julgam parcialmente procedente o pedido de indemnização civil apresentado por EE e, consequentemente, condenam solidariamente os demandados E... Lar ..., AA, BB, CC e DD no pagamento à demandante da quantia de € 8.000,00 (oito mil euros), acrescida de juros legais de mora contados desde a notificação até efetivo e integral pagamento. 3. Inconformados recorrem agora os arguidos, rematando, cada um deles, respectivamente, as seguintes conclusões: - arguida CC: a) Resulta do teor do Acórdão que antecede, que a recorrente foi condenada pela prática de um crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 2, a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 1 ano e 3 meses de prisão, cuja execução fica suspensa por igual período temporal, nos termos previstos no artigo 50.º, n.ºs 1, 4 e 5, do Código Penal. b) Não pode a recorrente conformar-se com a sua condenação, desde logo porque não praticou qualquer ilícito criminal. Em obediência ao disposto na alínea c) do artigo 432.º do C.P.P, a recorrente indica apenas as questões suscitadas que visem exclusivamente matéria de Direito e com as quais não se conforma face ao Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, que seguidamente discrimina: a) Da incorreta qualificação jurídico-penal dos factos; b) Da excessividade da pena aplicada e violação dos princípios da adequação à gravidade dos factos, bem como, o princípio da proporcionalidade; c) Do Pedido de Indemnização Civil (PIC). c) A respeito da incorreta qualificação jurídico-penal dos factos: Dispõe o artigo 152.º A do Código Penal o seguinte: “1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. d) O crime de maus-tratos está inserido no capítulo dos crimes contra a integridade física, sendo que a sua ratio está na proteção da pessoa individual e da dignidade da pessoa humana. e) O bem jurídico protegido é a saúde entendida como um bem jurídico complexo suficientemente amplo e nas suas múltiplas dimensões para se identificar com a integridade do ser humano, em todas as suas componentes física, psíquica, mental e moral a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, nos mesmos termos em que se encontra protegida no artigo 25.º da CRP. f) Para haver imputação do resultado à conduta do agente é necessário que exista entre a conduta (ação ou omissão) e o resultado, um nexo causal concreto, ou seja, é indispensável que tenha sido a conduta a causa efetiva do resultado. Por fim, este crime é doloso, pressupondo uma conduta dolosa / intencional do agente, por ação ou omissão. g) No caso em apreço, o que nos importa é a omissão, que consiste no facto do utente FF, não ter alegadamente ingerido líquidos em quantidade suficiente para evitar que tivesse ficado desidratado e de tal facto se ter ficado a dever à circunstância de não lhe terem sido ministrados pelos colaboradores do lar, bem como ao incumprimento do dever de controlar a atividade das AAD (Auxiliares de Ação Direta) de quem teria essa obrigação dentro da instituição. h) Salvo o devido respeito, a recorrente entende que os pressupostos deste crime não se encontram preenchidos, porquanto não existe por um lado, nexo causal uma vez que não se provou que a conduta seja causa efetiva do resultado e por outro, não houve qualquer intenção de causar mal-estar ao utente FF. Antes de mais, e pela sua relevância importa contextualizar os factos temporalmente. i) No que tange ao utente FF, os factos reportam-se, a agosto de 2020, ou seja, ao tempo da pandemia. Pandemia essa, que levou ao decretamento do estado de emergência do país e à aprovação de medidas extraordinárias (com aprovação de legislação especial) no sentido de prevenir e conter os contágios pela infeção epidemiológica por SARS - CoV - 2 e pela doença Covid-19. j) Na sequência da aprovação dessa legislação especial - Despacho n.º 4097-B/2020, de 2 de abril -, foram impostas pela Direção Geral de Saúde (DGS), medidas que visavam impedir o contágio da doença, que vitimou milhões de pessoas no mundo inteiro (últimos dados falam de 6.919.573 pessoas). Uma dessas medidas, passava pela colocação das pessoas que entravam no lar, em quarentena / isolamento profilático, durante 14 (catorze) dias. k) “Quarentena” significava na altura, que os contactos eram reduzidos ao mínimo indispensável, ou seja, o contacto com os utentes era o mínimo possível e feito pelo menor número de pessoas possíveis. l) Deste modo, as visitas de rotina de enfermagem ou de outro pessoal da área da saúde estava reduzido ao mínimo essencial. E era assim, porquê? Precisamente, porque só assim se conseguia evitar as cadeias de contágio da doença. m) Importa ter presente que o utente FF, de 92 anos de idade, esteve no Lar ..., 11 dias, sempre em quarentena, dando assim cumprimento à legislação em vigor à data. n) O referido utente, entrou no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, no 11º dia da quarentena, apresentando sinais de desidratação. Provou-se que era uma pessoa tolamente dependente de terceiros, por força das comorbilidades que apresentava, provou-se ainda que tomava diuréticos o que pode ter acelerado o processo de desidratação. o) Logo, e objetivamente a responsabilidade por esse facto (desidratação) poderia ser imputada a quem estava encarregue de lhe ministrar tais líquidos, ou seja, às AAD. p) Pois que, quem tinha acesso ao utente eram apenas e só as AAD (responsáveis pela prestação dos cuidados de higiene e alimentação dos utentes) e bem assim, a equipa médica / enfermagem que tinham total autonomia para o exercício das suas funções, sempre que alguma situação anómala lhes era reportada. - Curiosamente, nenhuma dessas pessoas foi acusada nestes autos. q) Se todas as pessoas que trabalhavam naquele lar (funcionárias, chefias e direção) tivessem contacto direto com o utente FF, a medida imposta pela DGS perderia o seu efeito útil, a sua eficácia e a sua razão de ser. r) Mais, aceitar estes contactos plúrimos é o mesmo que aceitar desobedecer à DGS e às suas diretrizes excecionais. s) Aqui chegados, importa salientar que a recorrente, não exercia à data dos factos, nenhuma destas funções, não era AAD, nem fazia parte do corpo clínico do lar, pelo que não era ela a pessoa responsável por dar / ministrar água ao Sr. FF. t) Na verdade, a recorrente não tinha contacto direto com os utentes e nem era desejável que o tivesse, tendo por base a situação absolutamente excecional provocada pela infeção epidemiológica por SARS - CoV - 2 e pela doença COVID 19 e também pelo estado de quarentena do utente em questão. u) À data dos factos, a recorrente desempenhava a função de Chefe de Serviços Gerais no lar, competindo-lhe organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de áreas dos serviços gerais, nos termos do preceituado no artigo art.º 52.º dos Estatutos do Lar de .... v) Sendo que a estrutura residencial para pessoas idosas (E...) encontra-se hierarquizada, em estrutura piramidal. Assim, topo da hierarquia temos o Presidente da Direção, a seguir a Diretora Técnica, logo abaixo a Chefe de Serviços Gerais, seguidamente, as Encarregadas de Sector (Piso) e na base da pirâmide as Auxiliares de Acão Direta (AAD). w) Por conseguinte, eram as AAD que estavam na “linha da frente”, em contacto direto com os utentes, principalmente, com aqueles que se encontravam em quarentena. x) Ao ler o Acórdão recorrido percebemos que o mesmo, seguindo a tese errada vertida na acusação, parte do pressuposto que havia um dever jurídico de garante / um dever de fiscalização por parte do lar e de todos os seus trabalhadores, onde a recorrente se inclui, que consistia em assegurar que as necessidades básicas de higiene e alimentação dos utentes eram cumpridas pelas AAD. y) Considerou o tribunal recorrido que a recorrente omitiu esse dever de acompanhamento, vigilância e fiscalização. Acrescentando, que essa omissão se veio a repercutir na saúde e bem-estar do utente FF, falecido 2 anos depois dos factos a que estes autos se reportam. z) O Acórdão recorrido parte assim, da ideia que houve uma omissão que consistiu no facto do utente FF, não ter ingerido líquidos em quantidade suficiente para evitar a sua desidratação, e que essa desidratação, se ficou a dever à circunstância de não lhe terem sido ministrados pelos colaboradores do E... água suficiente, acrescentando ainda que a recorrente devia ter fiscalizado a atividade das AAD e não o fez. Salvo o devido respeito, não podemos aceitar este raciocínio, tendo por base as considerações que tecemos supra a propósito da contextualização dos factos em termos temporais. Deste modo, é legítimo questionar em que consiste esse tal dever de fiscalização? aa) Em sede de audiência e julgamento, a Digníssima Magistrada do Ministério Público não conseguiu alegar e provar que tenha sido negada água / outros líquidos ao Sr. FF, nem que dias tal ocorreu e quem foram as AAD responsáveis por tal omissão. bb) As AAD foram ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamentos e nada sabiam... como bem salientou o douto Acórdão proferido pela 1ª instância. cc) Aliás, toda a prova produzida contraria totalmente a decisão vertida do Acórdão recorrido. dd) É inegável, que na estrutura piramidal da E..., a recorrente estava próxima das AAD, porém, não sendo imputável diretamente qualquer omissão às AAD, uma vez que não está em causa não ter sido ministrada / recusada água ao utente FF, mas tão só não ter sido detetada mais cedo a desidratação que estava a padecer, não pode ser igualmente imputado qualquer incumprimento desse dever de fiscalização à recorrente. ee) Mais se diga, que se nada de criminalmente relevante é imputado ao inferior hierárquico (AAD), o seu superior hierárquico (recorrente) não pode ser condenado por não ter verificado e corrigido o que não foi mal feito pelo subordinado. ff) Subsumindo a matéria de facto dada como assente, não conseguimos assacar qualquer responsabilidade criminal à recorrente, não obstante a gravidade e seriedade da situação vivida pelo utente FF. gg) Como referimos anteriormente, o utente em questão estava em quarentena, como impunha a lei. Durante todo o tempo que esteve nessa condição foi sempre acompanhado pelas AAD que lhe prestaram os cuidados de higiene e alimentação necessária, bem como reportaram a quantidade de urina nas fraldas e qualquer outro elemento anormal que se sucedia (factos 27 a 30). hh) O utente em questão não foi deixado à sua sorte, uma vez que as AAD cuidaram dele, assegurando as suas necessidades mais elementares como sejam, alimentação, medicação, higiene e outras. ii) Tanto assim é que foram tomados apontamentos / anotações das AAD, que se encontram juntos a folhas dos autos relativos às mudas da fralda, toma de refeições, etc. jj) Ademais, leitura e interpretação dos dados resultantes da quantidade de urina na fralda e de outros indicadores era feita pela equipa de enfermagem que tinha plenos poderes para a prestação dos cuidados de saúde, sendo que em pleno período de covid, fruto das contingências da pandemia, da falta de pessoas disponíveis para trabalhar em lares, esses dados muitas das vezes não eram preenchidos e/ou nem eram analisados em tempo útil pela equipa de enfermagem. kk) A este respeito sempre se dirá que a quantidade de urina nas fraldas é apenas um elemento a ter em conta em conta para possíveis processos de desidratação, mas existem outros como sejam a febre, falta de apetite, estado de prostração, etc., situações anómalas que nunca foram reportadas por quem contactava diretamente com o utente, ou seja, AAD e equipa médica / enfermagem. ll) Sucede que a interpretação dos sinais de desidratação dos utentes, competia à equipa médica e de enfermagem e não à recorrente que não dispõe de conhecimentos médicos, nem habilitações académicas para tanto. Neste seguimento, não pode ser apontada qualquer falha na atuação da recorrente uma vez que como dissemos anteriormente, não teve contacto direto com o utente FF e não lhe foi reportada qualquer situação anómala relativa ao estado de saúde deste utente. mm) É um absoluto contrassenso ainda para mais, tendo presente que à data dos factos, as orientações dadas pela DGS iam no sentido do mínimo contato exterior com as pessoas que estavam em quarentena. Assim, a recorrente não podia, naquela altura, verificar in loco o que se estava a passar e, consequentemente fiscalizar de modo proativo as informações dadas pelas AAD, tendo de confiar e interpretar corretamente as informações por elas prestadas. nn) Salvo o devido respeito, não vislumbramos a necessidade e a obrigação de a recorrente intervir, fiscalizando sabe-se lá o quê... tanto mais que a recorrente não tem conhecimentos médicos para o efeito, nem tão pouco recebeu qualquer formação para tanto, como resulta aliás, da matéria de facto dada como provada. oo) Note-se que a equipa clínica tinha total autonomia para efetivação de diagnósticos e cuidados de saúde e foi com base nessa autonomia, que o utente em questão foi encaminhado para o Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. pp) Na senda do que vem sendo explanado, uma conclusão se impõe: não houve qualquer omissão do dever funcional da recorrente, que com as funções que ocupava e com as restrições que existiam, não tinha obrigação nem tampouco forma de conseguir detetar uma desidratação que estava em pleno avanço, sendo que os sinais que estavam a ser reportados por quem tinha contato direto com o utente em nada apontavam nesse sentido e, no dia em que se poderia cogitar que algo estaria mal, a intervenção médica/hospitalar foi prontamente solicitada, no dia 29 de agosto de 2020. qq) Aqui chegados concluímos que não era exigível que a recorrente tivesse outra atuação perante os elementos objetivos recolhidos pelas AAD. E mais, basta ter presente o teor do Relatório da Perícia realizada pelo INML, junto a fls. Dos autos, para perceber que a negligência a existir é do corpo clínico / corpo de enfermagem que não observou o utente devidamente e foi incapaz de perceber que com aqueles sinais (diminuição da quantidade de urina nas fraldas) deviam ter encaminhado o Sr. FF mais cedo para o hospital. rr) Não houve, por conseguinte, qualquer atuação dolosa por parte da recorrente. ss) Ao nível do elemento subjetivo, o comportamento em questão é punível em termos dolosos, pressupondo, assim, uma conduta dolosa do agente, que nos presentes autos não se verificou. tt) Na sequência do que vem sendo explanado, entendemos humildemente que não foram infligidos ao utente FF, maus-tratos físicos e nessa medida, a recorrente não pode ser condenada, como foi, pela prática do crime p. e. p no artigo 152.º - A do Código Penal, uma vez que os seus pressupostos legais não se mostram preenchidos, pelo que se impõe a sua ABSOLVIÇÃO. uu) Caso Vossas Excelências Excelentíssimos Senhores Conselheiros, assim não entendam, então impõe-se reduzir a pena concreta aplicada à recorrente. Pelo que POR MERA CAUTELA E SEM PRESCINDIR, sempre se dirá o seguinte: vv) A propósito da excessividade da pena aplicada e violação dos princípios da adequação à gravidade dos factos, bem como, o princípio da proporcionalidade: Salvo melhor opinião, a pena concretamente aplicada à recorrente, peca por excessiva e ultrapassa a culpa na prática dos factos. ww) Em nosso humilde entendimento, a pena aplicada à arguida viola os princípios da adequação à gravidade dos factos, bem como, o princípio da proporcionalidade. xx) Dispõe a Constituição da República Portuguesa (CRP) no seu artigo 18.º nº 2 o seguinte, a respeito do princípio da proporcionalidade: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. yy) Este princípio é reafirmado pelo n.º 3 do artigo 49. ° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que indica um critério para a determinação da pena ao prescrever “[a]s penas não devem ser desproporcionadas em relação à infração”. zz) Ora, da substância do princípio da proporcionalidade decorre que na fixação das penas deve o julgador atender a três dimensões, que enunciaremos em seguida: - Idoneidade / Adequação; - Exigibilidade / Necessidade; - Proporcionalidade (em sentido estrito) / Justa Medida. aaa) Acresce que, na determinação concreta da pena, deve o julgador atender igualmente às finalidades de aplicação de qualquer pena, finalidades essas, plasmadas no artigo 40.º do Código Penal. Os coevos autos reportam-se a um período absolutamente excecional, decorrente de uma pandemia, pelo que andou mal o tribunal recorrido ao ignorar este facto por completo. bbb) Deste modo, a pena mais justa, no caso de condenação, aventamos, será de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período. ccc) Por último, temos de analisar o Pedido de Indemnização Civil, formulado nos autos: ddd) Pugna-se que o PIC deve ser julgado totalmente improcedente dado que, como cremos ter demostrado, não existe qualquer responsabilidade criminal, e, por conseguinte, nenhuma responsabilidade civil, pode ser assacada à recorrente. Porém, no caso de V. Exas. entenderem que devem condenar a recorrente, sempre se dirá o seguinte: eee) O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, devendo, por isso, refletir a censura de que é merecedor o autor do facto ilícito gerador de danos, a sua situação económica e as do lesado e do titular da indemnização, os padrões da indemnização geralmente adotados na jurisprudência, as flutuações de valor da moeda, etc. – Neste sentido, vide o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10-04-2018, disponível para consulta em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/FF37A398776E343180258297004EEDA7 . fff) O Código Civil português, na sua redação atual, não define propriamente a equidade, deixando essa missão para a Jurisprudência e Doutrina. ggg) Como ensina Ana Prata, um juízo de equidade será aquele “que o julgador formula para resolver o litígio de acordo com um critério de justiça, sem recorrer a uma norma pré-estabelecida. Julgar segundo a equidade significa, pois, dar a um conflito a solução que se entende ser a mais justa, atendendo apenas às características da situação e sem recurso à norma jurídica eventualmente aplicável”. – in Dicionário Jurídico, Volume I, 5.ª Edição, Coimbra: Almedina, 2008, p. 600 hhh) No caso em apreço, não foi atendida a condição sócio económica do ofendido / demandante. Aliás, ela é absolutamente desconhecida. iii) Assim, não alcançamos como foi determinado, não alcançando sequer os critérios que lhe serviram de base, o que não é aceitável tendo por base a nossa Jurisprudência e Doutrina. jjj) Ora, a situação económica do lesado e do titular do direito à indemnização é um fator a ser considerado na avaliação e determinação da indemnização devida. kkk) Sendo que o objetivo da indemnização é colocar o lesado na situação em que estaria se não tivesse ocorrido o evento lesivo, e a análise da sua condição económica pode influenciar a forma como essa reparação é feita, especialmente no caso de danos não patrimoniais. lll) O critério relativo à situação económica do lesante e do lesado pode, com vantagem, ser reconduzido a uma ideia de proporcionalidade, funcionado como fator da correção da extensão indemnizatória que se mostre concretamente desproporcionada em face da situação patrimonial dos sujeitos, passivo e ativo, da indemnização. – neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21/03/2013, disponível para consulta em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/4ab602da0 23606dd80257b56003ade42?OpenDocument mmm) Salvo melhor entendimento, não ter sido averiguada a situação económica do ofendido / demandante consubstancia uma nulidade, que aqui se invoca, pelo que devem ser retiradas todas as consequências legais, o que muito respeitosamente se requer; - arguida BB: A) Vinha a aqui Arguida acusada, nos presentes autos, de dois crimes de maus tratos, em concurso real de infracções, crime previsto e punido pelo artigo 152-A do Código Penal. Uma vez realizado julgamento, foi a Arguida absolvida dos crimes pelos quais vinha acusada, bem como do PIC formulado, por douto acórdão datado de 26-11-2024. Todos os demais Arguidos foram, também, absolvidos. B) Inconformado, veio o Ministério Público intentar Recurso. C) O Venerando Tribunal da Relação do Porto concedeu total provimento ao recurso apresentado pelo Ministério Público, como consequência do reconhecimento da verificação dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP, e do erro de julgamento quanto à matéria de facto. D) Discordamos profundamente da decisão proferida pelo Digníssimo Tribunal da Relação do Porto, por entendermos não ter qualquer respaldo na prova produzida e, essencialmente, por não reproduzir o que resulta, de forma óbvia, da experiência comum. E) Referir, primeiramente, que como resulta do art. 434.º do CPP, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça (de ora em diante STJ) visa exclusivamente o reexame da matéria de direito. Não obstante, esta regra tem como exceção o previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP. F) Em suma, a única hipótese de o STJ sindicar matéria de facto é através da análise da existência de vícios decisórios, previstos nas als. do n.º 2 do art. 410.º do CPP, ocorrendo uma tal intervenção apenas para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa própria, se se vier a concluir que por força da existência de qualquer dos vícios referidos não pode chegar a uma correcta solução de direito. G) Neste âmbito, resulta claro que se impõe ao Digníssimo Tribunal de recurso esta revisão da matéria de facto, pois consideramos, salvo melhor opinião, que a actual decisão de direito está fundada em premissas claramente contraditórias, perceptíveis pela simples leitura do texto da decisão recorrida e em conjugação com as regras da experiência comum. H) Pelo que se torna é importante fazermos uma breve explanação de todo o acervo factual, para que depois se possa analisar a aplicação do Direito. I) Comecemos por explicar que resultou claro da prova produzida que as funções da aqui Arguida, Diretora Técnica, eram dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. É também responsável pela criação de uma estrutura administrativa para gerir a instituição, colaborando igualmente na verificação e custos e planeamento de utilização de mão-de-obra, equipamento materiais e instalações, controlando os respetivos serviços. J) Não resultou provado que as funções da Diretora Técnica fossem mais do que as que foram dadas como assentes. K) Ainda assim, o Digníssimo Tribunal da Relação do Porto dá como provado – salvo melhor opinião, erradamente e sem qualquer respaldo na prova produzida e regras de experiência comum - que “a correção do comportamento de quem diretamente cuidou deste utente (AAD) não foi efetuada pelas chefias, por se terem demitido do exercício das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes ao cargo que ocupavam”. L) Impondo assim à Arguida, Diretora Técnica do Lar, uma obrigação de acompanhamento direto dos cuidados básicos que eram prestados, algo que é funcionalmente impossível de acontecer, e vai totalmente contra os factos provados, nomeadamente o ponto 4.º da matéria de facto. M) Não houve qualquer omissão por parte da aqui Arguida, nem tão pouco uma conduta dolosa, pelo contrário. A Arguida sempre exerceu as suas funções de forma exemplar, providenciando para que a Instituição tivesse pessoal suficiente, o que fez, sempre de acordo com o protocolado com a Segurança Social, conforme resultou das suas declarações. N) Nunca se demitiu dos seus deveres de fiscalização, fazendo-o com recurso à delegação de poderes, não sendo expectável – nem sequer possível, sob pena de se gerar uma grande confusão - mais do que isso numa instituição do tamanho do Lar de .... O) Ademais, caso a aqui Arguida operasse a tal fiscalização in situ, estaria a violar todas as normas de isolamento que vigoravam à data – recorde-se que vivíamos tempos excepcionais, marcados pelo estado de emergência em Portugal, decorrente da proliferação da doença COVID 19. P) EM CONCRETO, DA FALTA DE PREENCHIMENTO DOS ELEMENTOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS, CONSTITUITIVOS DO CRIME: Q) Os crimes pelos quais a aqui arguida vem acusada encontram-se tipificados no artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal. R) O elemento objectivo da norma, com relevância para o caso, traduz-se em alguém que tenha ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação pessoa menor ou particularmente vulnerável e lhe infligir maus tratos físicos ou psicológicos. Visa-se, assim, tutelar um bem jurídico complexo que radica na dignidade da pessoa humana, pelo que, para constituir maus tratos, a conduta apurada deve consubstanciar uma ofensa que, pelas suas características (a analisar no caso concreto, à luz do específico contexto relacional existente entre o agente e a vítima, correspondente a um dos descritos no corpo do n.º 1 da norma incriminadora), se reflecte negativamente na saúde física, psíquica ou mental da vítima e conduz à degradação da sua dignidade pessoal. S) Sobre o crime em apreço o STJ em Acórdão de 5/04/2006 escreveu que “para caracterização do crime de maus tratos, previsto no art. 152.º, n.º 1 do CP, importa aferir a gravidade da conduta traduzida por crueldade, insensibilidade …” (www.dgsi.pt). T) Os actos praticados podem ser de várias espécies e são considerados na sua integração num comportamento global dotado de uma unidade de sentido de ilicitude, cujo elemento característico corresponde, precisamente, ao tipo dos maus tratos, previsto no artigo 152.º-A do Código Penal. U) Quanto à imputação subjectiva do tipo, não obstante as diferentes modalidades que pode revestir, o seu fundamento demanda exclusivamente o dolo em qualquer das suas modalidades. V) Na vertente de maus tratos físicos, o dolo abrange o resultado, traduzindo-se na consciência e a vontade de causar a lesão da integridade física da vítima e, nos restantes casos, implica a consciência e vontade de criar o risco de lesão da saúde da pessoa do ofendido. W) No caso em apreço o dolo, a existir, seria necessariamente o dolo eventual, que ocorre quando o agente, embora não pretendendo directamente causar o resultado danoso, tem consciência de que este ocorrerá como consequência necessária ou possível da sua conduta e com isso se conforma (cf. o art.º 14.º, nºs 2 e 3 do CP). É precisamente o que o acórdão recorrido imputa à arguida: a existência de uma omissão, uma ausência de correcção de comportamento, por forma a contrariar o comportamento das Auxiliares de Acção Direta – assumindo-se este como causador de danos nos ofendidos, já que de facto estamos a operar por meio de uma assunção, uma vez que nunca se provou concretamente qual a causa e o causador da desidratação dos ofendidos. X) O facto típico materializa-se na “criação de um risco de verificação de um resultado típico” que existirá sempre que esse perigo se verifica ou é intensificado por efeito da omissão, traduzida na ausência da acção esperada e exigível por referência àquilo que, segundo a descrição típica, é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal e desde que o omitente esteja em condições de poder levar a cabo a acção devida ou necessária a evitar o resultado (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed., págs. 927 e 928). Y) Relativamente à arguida, Diretora Técnica do Lar, considerando a matéria de facto provada, nomeadamente o ponto 4.º, é certo que resulta configurada a sua posição de garante da saúde física, mental e do bem-estar emocional dos utentes que tinha a seu cargo, por força das funções exercidas na Instituição. Z) Não obstante, o Digníssimo tribunal a quo faz uma interpretação do dever de vigilância imputado aos Arguidos, em especial à aqui Arguida, Diretora Técnica, que não tem qualquer respaldo na realidade, porquanto as competências de um Diretor Técnico não se consubstanciam no dever de vigilância, in situ. De facto, de acordo com a experiência comum, à directora técnica de uma instituição com centenas de utentes não se impõe a vigilância diária da situação de todos esses utentes, sendo impossível conciliar os seus efectivos deveres – de direcção e coordenação - com a tal vigilância que se pretende imputar como obrigação da Arguida. AA) Dos autos resultou provado que a instituição funciona de forma hierarquizada, pelo que as funções de vigilância direta ao utente compete às AAD e aos responsáveis de piso, cabendo a estes o reporte à Diretora Técnica e ao corpo clínico de todas as informações que imponham uma correcção por parte destes órgãos. Não se equaciona como possível que a Arguida tivesse obrigação de permanecer de forma continua em todas as áreas da Instituição a policiar o que ia sendo feito por empregadas de limpeza, auxiliares, enfermeiros, médico, pois para a execução destes trabalhos é que estes profissionais eram contratados. À Arguida competiam funções de natureza diversa e, claro está, a resolução de questões ligadas ao funcionamento da instituição, questões estas que chegassem ao seu conhecimento pelas vias adequadas. BB) Conclui-se, assim, que não se demonstrou que a Arguida estava ciente de que algo anómalo pudesse acontecer no que concerne à hidratação dos utentes, que para tal tenha sido alertada e, ainda assim, nada fizesse para corrigir a situação, designadamente mediante a correcção do comportamento das Auxiliares de Acção Direta, a quem se impunha o dever de zelar pela hidratação dos utentes. CC) Assim, não resta senão reconhecer que o acervo factual nos autos não suporta a conclusão, de que a Arguida estavam realmente ciente da deficiente prestação de cuidados aos ofendidos – a ter acontecido tal deficiência, porque em momento algum no processo há o apuramento de quem é o responsável “primário” -, nos moldes já enunciados e susceptíveis de configurar “maus tratos”, e, para além disso, estavam efectivamente capazes de adoptarem as medidas necessárias para corrigir tal situação. DD) Ou seja, não se mostra minimamente demonstrado um comportamento omissivo por parte da arguida (nem tão pouco é referido, no acórdão recorrido, que comportamento deveria ter sido adotado), adequado a evitar a produção dos resultados lesivos da saúde física e do bem-estar emocional dos ofendidos, que lhe possa ser imputado a título de dolo, ainda que eventual. EE) O tipo de ilícito do crime de maus-tratos apenas fica preenchido, por omissão, quando por força da ausência da acção devida ou esperada se cria ou potencia um risco de verificação do resultado típico. Mas, sublinha-se, qual a acção devida ou esperada por parte da Diretora Técnica neste âmbito? A fiscalização, quarto a quarto, das acções das AAD? A visita constante aos utentes em época de plena pandemia, colocando em risco a saúde dos mesmos? Nada disto vai de encontro às regras da experiência comum, consubstanciando inclusivamente uma ilegalidade, à data dos factos, por violação do dever de quarentena e proibição de contactos. FF) Por conseguinte e face a todo o exposto, não se mostram preenchidos os elementos objectivos e, essencialmente, subjectivos do crime de maus tratos, impondo-se a absolvição da arguida da prática dos ilícitos pelos quais vem acusada. GG) Paralelamente, entende-se que o Pedido de Indemnização Civil deve ser julgado totalmente improcedente, pois que o que está em causa para a procedência do referido pedido é uma responsabilidade culposa pela prática de crime ou de um facto ilícito, o que se demonstrou não existir; - arguida DD: I. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de direito (incluindo-se a matéria de facto sindicável sob os termos do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal) do acórdão proferido nos presentes autos, que condenou o recorrente pela “pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 2, al. a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 1 ano e 3 meses de prisão cuja execução fica suspensa por igual período temporal, nos termos previstos no artigo 50.º, n.ºs 1, 4 e 5, do Código de Processo Penal. II. O tribunal a quo, incorretamente, julgou como provado que: “Do mesmo modo, ao omitir o dever de acompanhamento, vigilância e fiscalização, as arguidas CC e DD representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral do ofendido FF e, apesar disso, permaneceram inativas, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontrava aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia;” III. Através deste fundamento supramencionado, o tribunal a quo atribuiu à recorrente, incorretamente, o dolo eventual – sem que houvesse qualquer prova direta ou indireta da consciência da recorrente (sobre o estado de desidratação do Sr. FF) que pudesse fazer prova de que houve qualquer conformação sua com o resultado (pois a desidratação era desconhecida pela recorrente). IV. A recorrente nunca se conformaria com a desidratação do Sr. FF – se tivesse tal consciência. V. A recorrente agiria imediatamente se soubesse que o Sr. FF necessitava de hidratação (se tivesse consciência). VI. Em cumprimento expresso ao n.º 2. do artigo 412.º do Código de Processo Penal, indica-se que o acórdão ora recorrido violou a presunção da inocência da recorrente, positivada no n.º 2, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, bem como violou o princípio da livre apreciação da prova, por violar as regras de experiência comum, a lógica e a razão. VII. Perante todo o conteúdo material dos autos (inexistência completa de provas), o tribunal a quo, no entendimento do recorrente, deveria ter julgado improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando o acórdão absolutório. VIII. A norma correta que deve ser aplicada ao presente processo é n.º 2, do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa – absolvendo-se a recorrente sob a luz da presunção da sua inocência. IX. Por necessidade de fundamentar a violação do princípio in dubio pro reo, e considerando toda a motivação já exposta, o testemunho do Sr. Dr. GG impõe decisão diversa da recorrida. Neste sentido, indica-se as concretas passagens em que se fundam as impugnações: - entre os 7 minutos e 30 segundos aos 12 minutos e 55 segundos, respondeu, de forma muito serena e credível, às indagações do Ministério Público e do Tribunal. Em suma, declarou que as fraldas, e os dados de registos das mesmas (através das interpretações subjetiva das mesmas), eram meios ineficientes e imprecisos para diagnosticar qualquer estado de desidratação; - entre os 13 minutos aos 15 minutos e 40 segundos, confrontado com as fls. 167 dos autos, pelo Ministério Público, respondeu que a recusa do Sr. FF em tomar seus remédios ao deitar (no dia 22 de agosto), conjugado com os registos das fraldas, não era um indicativo da sua desintoxicação – considerando outras explicações plausíveis para a recusa (como, i.e., irritação do doente). - entre os 14 minutos e 57 segundos aos 17 minutos, indagado pelo Tribunal pois sempre se referia ao corpo clínico, referindo-se aos tempos de COVID que se viviam, o Dr. GG respondeu que a equipa clínica poderia ser um enfermeiro ou ser médico. Que não poderia ser um auxiliar de acção direta (AAD). Pois em rigor, deveria ser um enfermeiro ou um médico para diagnosticar a desidratação. X. A ausência de elementos probatórios aliados às declarações do médico Dr. GG (referidas no acórdão absolutório), devem impor decisão diversa da recorrida. XI. Em respeito ao princípio constitucional do in dubio pro reo, em caso de dúvida sobre a existência dos elementos objetivos e subjetivos do crime, designadamente se a recorrente agiu ou não com consciência do real estado de desidratação do Sr. António (se a mesma assumiu ou não o risco de produzir este resultado), se impõe a absolvição da mesma. XII. Entende-se que o acórdão recorrido padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, uma vez que a fundamentação é exígua para sustentar a condenação por maus tratos, em face da ausência de elementos objetivos e subjetivos que comprovem a conformação com a produção do resultado. XIII. Também entende-se que o acórdão incorre em erro notório na apreciação da prova, baseando a condenação em presunções e ilações que não encontram respaldo na prova produzida – desconsiderando outras hipóteses de acontecimentos igualmente plausíveis que deveriam operar a favor da recorrente (designadamente que a mesma desconhecia o facto de que o Sr. FF estava em processo de desidratação). XIV. A ausência dos requisitos para a responsabilização civil da recorrente, designadamente o facto voluntário, a ilicitude do facto, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, impõe, de igual forma, a absolvição da recorrente da indemnização cível em que foi condenada. XV. Salienta-se, por fim, que o presente recurso abrange apenas matéria de direito; - arguido AA: A. Resulta do teor do Acórdão recorrido que o Recorrente foi condenado pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de maus tratos, p. e p. pelo art.º 152.º -A, n.º 2, alínea a) Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º n.º 3, 72.º e 73.º do CP, na pena conjunta de 1 ano e 3 meses de prisão, cuja execução suspende por igual período temporal, nos termos previstos no art.º 50.º n.ºs 1, 4 e 5 do CP; B. O aludido Acórdão entendeu modificar a decisão proferida pelo Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 11, do Tribunal Judicial do Porto que absolveu o Recorrente pela prática, em concurso real de infrações, de dois crimes de maus tratos, p. e p. pelo art.º 152.º -A do CP. C. O Recorrente não se pode conformar com tal condenação, motivando o presente recurso, que visa o reexame da matéria de direito, de acordo com os arts.º 432.º alínea c) e 434.º ambos do CPP. D. O presente recurso tem como fundamento/motivação: o erro de direito na reapreciação da prova constante nos autos e a incorreta qualificação jurídico penal dos factos. E. O acórdão que ora se recorre, salvo o devido respeito, confunde a sua mera discordância ou diversa opinião quanto à valorização levada a cabo pelo Coletivo do Tribunal de 1.ª instância, com a alegada existência de um erro notório na apreciação da prova, conforme se alegará. F. Quanto ao erro de direito na apreciação e revalorização da prova constante nos autos, importa referir que não se vislumbra, ao longo do acórdão que ora se recorre, que o Recorrente se tenha demitido de quaisquer funções que lhe estavam adstritas em virtude da sua função como Presidente do lar e que tenha omitido qualquer comportamento no exercício das suas funções. G. O lar apresenta uma organização estruturada em que: no topo da hierarquia se situa o Presidente da Direção, a seguir a Diretora Técnica, no nível abaixo a Chefe de Serviços Gerais, no seguinte as Encarregadas de Sector (Piso) e na base as Auxiliares de Acão Direta (AAD). H. Nos termos do art.º 52.º dos Estatutos do referido lar, ao Presidente da Direção, aqui recorrente, compete: (i) superintender na administração do Lar ... orientando e fiscalizando os respetivos serviços; (ii) convocar e presidir às reuniões da Direção, dirigindo os respetivos trabalhos; (iii) representar o Lar ... em juízo ou fora dele; (iv) assinar e rubricar os termos de abertura e encerramento e rubricar o livro de atas da Direção e; (v) despachar os assuntos normais de expediente e outros que careçam de solução urgente, sujeitando estes últimos à confirmação da Direção na primeira reunião seguinte. I. Eram as AAD que contactavam diretamente com os utentes, prestando-lhes os cuidados básicos de saúde, de higiene e de alimentação, sendo que estas apenas quando verificavam a existência de situações anormais com os utentes é que reportavam essa situação no livro de turno ou diretamente com os enfermeiros. J. Existia uma total independência da equipa médica e de enfermagem nos cuidados de saúde dos utentes no Lar. K. Importa referir que, os episódios descritos na acusação decorreram no início da pandemia covid-19, tendo sido decretado o estado de emergência e todos os lares de idosos foram encerrados e limitados os contactos com o exterior. L. Quanto à ofendida HH, os factos ocorreram no dia 24 de abril de 2020 (em plena pandemia), no qual a mesma foi admitida pelo Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, com queixas de dispneia desde há 3 semanas, com agravamento súbito naquele dia, esforço respiratório, tosse com expetoração que não expele e temperatura de 37,9 graus. M. Observada pela Equipa Médica do Hospital foi diagnosticada com covid 19, apresentando ainda as “mucosas corada, mas desidratadas”, compatível com um estado de desidratação com gravidade moderada. N. Resulta do parecer médico-legal e dos elementos clínicos junto aos autos, que não existe qualquer evidencia de que o estado de desidratação das mucosas da utente HH seria facilmente observado por cuidador zeloso. O. Aliás, apesar da utente HH movimentar-se em cadeiras de rodas, mantinha total independência para certas atividades, designadamente para alimentação. P. Questiona-se, assim, como poderia o Recorrente, sem qualquer formação e/ou conhecimentos médicos, controlar o estado de saúde dos utentes, mas concretamente observar o estado de desidratação das mucosas da utente HH? Que omissão é imputada ao aqui Recorrente? Q. O Acórdão ora recorrido não refere nem especifica qual o comportamento omissivo que é atribuído ao Recorrente e que lhe é devido no exercício das suas funções de Presidente do lar. R. Não resulta provado nos autos, nem foi alegado, que o Recorrente tenha negado água ou comida à utente HH, nem que alguém dentro da instituição se deveria ter apercebido desse estado de desidratação mais cedo e que o mesmo era notório. S. Aliás, a testemunha GG, médico de profissão, inquirida nos autos, explicou, que o estado das mucosas é apenas um dos elementos para aferir a desidratação, havendo muitos outros fatores a ter em conta para se poder efetuar um diagnóstico positivo. T. Essa testemunha explicou ainda que, tendo em conta o estado caótico dos serviços, pelo facto de estarmos a viver num estado pandémico e ainda pelo facto da utente HH estar infetada por covid 19, de que veio a falecer, fazia com que as outras patologias, como a possível desidratação, não fossem tão evidentes face a essa doença mais grave. U. Pelo exposto, não podemos concluir que o estado de desidratação da utente HH ficou a dever-se à insuficiência de ingestão de recursos líquidos e que os mesmos lhe deviam ter sido fornecidos pelo Recorrente. V. Quanto ao ofendido FF, os factos ocorreram no dia 29 de agosto de 2020 (em plena pandemia) sendo admitido no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, por solicitação do lar, que entendeu que o estado de saúde de FF necessitava de cuidados de saúde hospitalares. W. Importa referir que, o utente FF integrou no E... Lar ... em 18/08/2020 e que, de acordo com a legislação Covid 19 vigente aquela data, foi colocado no Piso 3, para cumprir período de isolamento de 14 dias. X. Durante esse período de isolamento, era reduzido ao mínimo o número de pessoas que entrava no quarto do utente FF, nomeadamente as AAD que prestavam os cuidados de higiene e alimentação e o pessoal médico, caso fosse necessário, de forma a cumprir as regras de segurança e higiene recomendadas pela DGS. Y. Apesar do quadro clínico da equipa médica do Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia que observou o utente FF ter considerado que o mesmo era compatível com estado de desidratação, não resultou provado nos autos qualquer evidencia de que o estado de desidratação do utente FF seria facilmente observado por cuidador zeloso. Z. Aliás, a testemunha GG explicou que o estado de desidratação não se revela com uma simples observação das mucosas ou com a observação de urina nas fraldas, havendo outros elementos clínicos que conjugados nos podem conduzir a esse diagnóstico, devendo a urina e mucosas constituírem fatores de alerta para um possível diagnóstico. AA. Pelo que se questiona, como poderia o aqui recorrente, sem qualquer formação e/ou conhecimentos médicos, controlar o estado de saúde dos utentes, mas concretamente observar o estado da urina e da desidratação das mucosas do utente FF? Que omissão é ao aqui Recorrente imputada? BB. Mais uma vez, não se vislumbra ao longo do acórdão que ora se recorre qualquer comportamento omissivo ao Recorrente que lhe fosse devido no exercício das suas funções de Presidente do lar. CC. O Recorrente não tinha, nem nunca teve, qualquer contato direto com os utentes, aliás, não tal era desejável devido ao período de pandemia que se vivia na altura dos factos. DD. Nessa altura, eram apenas as AAD que estavam em contacto direto com os utentes. EE. Pelo supra exposto, não se poderá concluir que o Recorrente, enquanto Presidente do Lar, se demitiu das suas funções de vigilância, fiscalização dos serviços do lar e, consequentemente tenha contribuído para o estado de desidratação dos utentes HH e FF. FF. Pelo contrário, terá de forçosamente se concluir que o Recorrente cumpriu com as funções que lhe estavam adstritas como Presidente do lar. GG. Quanto à incorreta qualificação jurídico penal dos factos, o Recorrente entende que o acórdão recorrido fez uma errada interpretação e qualificação jurídica ao considerar que se encontram verificados os elementos objetivos e subjetivos do crime de maus tratos. HH. De acordo com o art.º 152.º A do Código Penal:“1- Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.” II. Para haver imputação do resultado à conduta do agente é necessário que exista entre a conduta (ação ou omissão) e o resultado um nexo causal concreto, ou seja, é indispensável que tenha sido a conduta a causa efetiva do resultado. JJ. Para além disso, trata-se de um crime que exige o dolo, relevando, portanto, todas as manifestações que lhe são próprias (cf. artigo 14.º do Código Penal). KK. In casu, o Recorrente vem acusado de omissão, ou seja, do facto dos utentes em causa não terem ingerido líquidos em quantidade suficientes para evitar a desidratação. LL. Não ficou provado, nem foi alegado, que alguma vez tenha sido negada água ou líquidos aos ofendidos/utentes, não vislumbramos em que medida possa ter havido qualquer atitude negligente do Recorrente, nem dos funcionários do lar, no que concerne à desidratação dos mesmos. MM. Mais, ficou provado que a desidratação não era visível, pelo que teria de haver um diagnóstico mais profundo, que apenas poderia ser efetuado por equipas de enfermagem ou equipas médicas. NN. Assim sendo, não se poderá imputar qualquer responsabilidade ao aqui Recorrente pelo estado de desidratação dos utentes aqui em causa, pelos seguinte motivos: (i) não ficou provada que alguém da instituição negou líquidos ou os não proporcionar aos utentes e (ii) não houver qualquer omissão de diagnóstico (a desidratação não era visível). OO. As funções adstritas ao Recorrente era de gestão, deliberação e orientação dos serviços, no sentido de providenciar pelas equipas médicas e de enfermagens, não se intrometendo nos seus diagnósticos e tratamentos. PP. Não cabia ao Recorrente, na qualidade de Presidente do Lar, desencadear os procedimentos necessários para a intervenção das equipas médicas e/ou de enfermagem, não podendo igualmente estender o conceito geral do dever de fiscalização do Recorrente a estas situações. QQ. Pelo supra exposto, não se mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de maus tratos. RR. Pelo exposto, o Recorrente deverá ser absolvidos dos crimes de que vem acusado, mantendo-se desta forma, a decisão proferida pelo Coletivo do Tribunal de 1.ª Instância que aqui se adere, na íntegra. SS. Deverá, ainda, o pedido de indemnização cível formulado pela EE, na qualidade de filha do ofendido/utente FF, ser improcedente, tendo em conta que não existe qualquer responsabilidade culposa pela prática de um crime ou facto ilícito, o que se demonstrou não existir; - arguido Lar de ...: 1. O acórdão recorrido faz uma incorreta qualificação jurídico-penal dos factos; 2. Não estão preenchidos os pressupostos para a verificação do crime de maus-tratos; 3. Não resulta alegado nem provado que tenha ocorrido uma ação ou omissão dolosa, em qualquer uma das modalidades do dolo; 4. A prova produzida permite concluir pela inexistência de uma conduta — ainda que por omissão — intencional e consciente por parte dos Arguidos ou das AAD; 5. A determinação do estado de desidratação não era detetável por um cuidador atento e zeloso; 6. Não ficou demonstrada a consciência e a vontade de causar a lesão da integridade física dos Ofendidos, ou de perigo de criação de prejuízo; 7. Não resulta da prova que os Arguidos tiveram consciência de a lesão ocorreria como consequência necessária e possível da sua conduta, e que se conformaram, ainda assim, com tal possibilidade; 8. Ficou demonstrado nos autos que houve registos da administração de líquidos e de alimentação, e dos débitos de urina, bem assim dos cuidados prestados; 9. Quando foi detetada uma situação anómala, foi acionado o corpo clínico. 10. Não foi alegado nem demonstrado que a deteção da situação anómala deveria ter ocorrido em momento anterior àquele em que ocorreu. 11. O Acórdão em sindicância não indica, nem demonstra, qual o concreto comportamento adequado à produção do resultado que, consciente e voluntariamente, foi omitido pelos Arguidos. 12. O contexto pandémico tem de, necessariamente, ser atendido para aferir que tudo foi feito para evitar a produção do resultado observado. 13. Qualquer eventual omissão não configura comportamento doloso por parte das AAD ou mesmo dos Arguidos. 14. Nenhum dever foi omitido pelos Arguidos. 15. O relatório pericial refere expressamente que, a ter havido conduta/ omissão, sempre foi a título negligente, e por parte do corpo clínico, por não ter sido capaz de, mediante a observação dos Utentes determinar o estado de desidratação em momento anterior. 16. Impõe-se a absolvição dos Arguidos. 17. A decisão vertida no mesmo viola dos princípios da adequação e da proporcionalidade relativamente à pena aplicada; 18. As penas aplicadas, designadamente quanto à Recorrente, são excessivas e desproporcionadas; 19. Não foi observada a adequação, a necessidade, ou a proporcionalidade na pena aplicada; 20. Não foram atendidas as finalidades de prevenção geral e especial; 21. Não foi suficientemente considerado o contexto espácio temporal em que os factos ocorreram. 22. Existe um erro notório na apreciação da prova; 23. Verifica-se a existência de dúvida, e dificuldade na prova da consciência e do comportamento dos Arguidos. 24. O Tribunal a quo confunde a opinião diversa relativamente ao julgamento da 1ª instância com a existência de erro notório na apreciação da prova; 25. Os Arguidos não se demitiram das suas funções. 26. Nenhuma conduta, ou eventual omissão dos Arguidos é adequada à produção do resultado verificado. 27. Não é violado nenhum dever funcional, considerando as funções de cada órgão nos termos explanados no processo. 28. Logo que foi detetada uma situação anómala foi a mesma reportada ao corpo clínico que deu o devido encaminhamento. 29. Não é possível identificar o que mais poderia ter sido feito pelos Arguidos, nem qual o concreto comportamento pelos mesmos omitido. 30. Não consta alegado ou demonstrado que o estado de desidratação era notório. 31. A decisão proferida não se pode considerar devidamente sustentada atenta a existência de erro notório na apreciação da prova. 32. Há uma insuficiência para a decisão da matéria de facto (aditada) dada como provada; 33. Não resulta da acusação, ou dos autos, quais os elementos objetivos e subjetivos do crime pelo quais os Arguidos vêm acusados. 34. Nada está provado relativamente aos elementos objetivos e subjetivos do crime em causa. 35. Não é possível atribuir aos Arguidos a prática de um qualquer crime, sequer o dos autos. 36. Não foi alegada ou demonstrada qual a concreta conduta omitida pelos Arguidos; 37. Não resulta alegada ou demonstrada a existência de dolo por parte dos Arguidos; 38. O pedido de indemnização civil é manifestamente improcedente. 39. Inexiste responsabilidade criminal dos Arguidos. 40. Não foi produzida prova suficiente relativamente aos danos alegados pela Demandante. 41. Foi omitida a análise da condição económica da Demandante. 42. Tal configura nulidade. 43. A decisão sub judice deve ser revogada e mantido o acórdão proferido pela 1ª instância. 4. Admitidos os recursos por despacho de 2.7.2025 e cumprido o disposto no artigo 411.º/6 CPPenal apresentou o Sr. Procurador Geral Adjunto resposta conjunta defendendo a improcedência de todos os recursos. 5. Remetidos a este Supremo Tribunal de Justiça, em vista dos autos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º CPPenal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de deverem ser - rejeitados, parcialmente, os recursos interpostos pelos arguidos “Lar de ...”, BB e DD, no que se reportam aos denominados vícios da decisão previstos no n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P., designadamente da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, por se tratar de matéria que se encontra fora dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça e, - julgados improcedentes, nos seus demais termos, os recursos interpostos por estes mesmos arguidos “Lar de ...”, BB e DD, e bem assim os recursos interpostos pelos arguidos AA e CC, acompanhando a resposta apresentada pelo MP. 6. Notificados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º/2 CPPenal, responderam os arguidos, - DD, reiterando o recurso, alegando que, - o MP defende a improcedência do recurso, não obstante a inexistência do elemento subjetivo que o tipo condenatório exige - tema central do recurso; - a arguida nunca teve a consciência de que o utente estava desidratado – e nem poderia ter – pois não tinha acesso ao quarto de isolamento (quarentena) onde o utente se encontrava; - este diagnóstico competia ao corpo clínico do Lar - que não foram objecto de acusação; - é certo que o MP defende a rejeição do recurso, relativamente à parte em que se mencionam os vícios do artigo 410.º/2 CPPenal; - a arguida mencionou os vícios que entendeu existir nos autos, por obrigação processual/profissional – diante da inexistência do elemento subjetivo do crime condenatório, arguindo, sim, a violação do princípio in dúbio pro reo, pois sem qualquer prova razoável ou lógica, o tribunal a quo decidiu em seu desfavor – quando a deveria ter absolvido, pois que sem qualquer facto base razoável, foram extraídos factos, consequências que violam, de forma patente, o aludido princípio; - CC, dando por integralmente reproduzidas as conclusões vertidas no seu recurso, nada mais tendo a acrescentar; - BB, dando, igualmente, como reproduzido, na íntegra, todo o teor das suas conclusões de recurso; - Lar de ..., também, dando por reproduzidas as conclusões vertidas no recurso apresentado. 7. Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente Acórdão. Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (neste sentido, o acórdão n.º 7/95 do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de Dezembro de 1995, e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites de cognição do Tribunal Superior. Das conclusões dos recursos, que as questões suscitadas nos vários recursos são as seguintes: - recurso da arguida CC: - incorreta qualificação jurídico-penal dos factos; - excessividade da pena aplicada e violação dos princípios da adequação à gravidade dos factos, bem como, o princípio da proporcionalidade; - pedido de Indemnização Civil; - recurso da arguida BB: - revisão da matéria de facto – uma vez que a decisão de direito está fundada em premissas claramente contraditórias, perceptíveis pela simples leitura do texto da decisão recorrida e em conjugação com as regras da experiência comum; - falta de preenchimento dos elementos objectivos e subjectivo do tipo; - pedido de indemnização civil; - recurso da arguida DD: - violação da presunção da inocência, positivada no n.º 2, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa; - violação do princípio da livre apreciação da prova, por violação das regras de experiência comum, da lógica e da razão; - vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; - vício do erro notório na apreciação da prova; - requisitos para a responsabilização civil; - recurso do arguido AA: - erro de direito na reapreciação da prova; - incorreta qualificação jurídico penal dos factos; - pedido de indemnização civil; - recurso do arguido Lar de ...: - incorreta qualificação jurídico-penal dos factos; - o carácter excessivo e desproporcionado da pena: - erro notório na apreciação da prova; - a existência de dúvida, e dificuldade na prova da consciência e do comportamento dos arguidos; - insuficiência para a decisão da matéria de facto (aditada) dada como provada; - pedido de indemnização civil; - nulidade por ter sido omitida a análise da condição económica da demandante. 2. Delimitação do objecto do recurso. O recurso, para o STJ, que é circunscrito a matéria de direito, nos termos do artigo 434.º CPPenal, tem, no caso concreto, por objeto um acórdão da Relação proferido em recurso, que revertendo a decisão absolutória da 1.ª instância condenou os arguidos, - parte criminal: - AA e BB pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de maus tratos, p. e p. pelo artigo 252.º-A, n.º 2, a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 9 meses de prisão e de 1 ano de prisão; - em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenam cada um dos arguidos nas penas conjuntas de 1 ano e 3 meses de prisão, cuja execução suspendem por igual período temporal, nos termos previstos no artigo 50.º, n.ºs 1, 4 e 5, do Código Penal; - CC e DD pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 252.º-A, n.º 2, a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 1 ano e 3 meses de prisão, cuja execução fica suspensa por igual período temporal, nos termos previstos no artigo 50.º, n.ºs 1, 4 e 5, do Código Penal; - a arguida «Lar ...» pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de maus tratos, p. e p. pelo artigo 252.º-A, n.º 2, a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 120 e 150 dias de multa; - em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenam a arguida na pena conjunta de 200 dias de multa, á taxa diária de € 120 euros; - parte cível: - julgando parcialmente procedente o pedido de indemnização civil apresentado por EE, solidariamente, todos eles, no pagamento à demandante da quantia de € 8.000,00, acrescida de juros legais de mora contados desde a notificação até efetivo e integral pagamento. O acórdão recorrido é, assim, recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, cfr. artigos 399.º, 400.º/1 alínea e) e 432.º/1 alínea b) CPPenal. Estabelece o artigo 400.º/1 alínea e) CPPenal, sob a epígrafe de “decisões que não admitem recurso”, que, “1 - Não é admissível recurso: (…) e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa da liberdade, ou pena de prisão não superior a 5 anos, excepto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância - na redacção dada pela Lei 94/2021 de 21.12. (…)”. Por sua vez, dispõe o artigo 432.º CPPenal, sob a epígrafe “recursos para o Supremo Tribunal de Justiça”, que. “1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º; b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º; c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º; d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores. 2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º”. Finalmente, o artigo 434.º, sob a epígrafe “poderes de cognição”, dispõe que, “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º” – resultando o segmento final da redação dada pela Lei 94/2021. Da enunciação deste regime resulta, assim, ser admissível recurso, para o STJ, de acórdãos das Relações, proferidos em recurso, que revertendo a decisão absolutória da 1.ª instância, condenem e apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos. Contudo, os arguidos não limitaram os respectivos recursos a um segmento específico da decisão recorrida. A decisão recorrida é, pois, recorrível para o STJ quanto às questões relativas a todas as penas parcelares, bem como à pena única. E, assim, em relação aos recursos, - da arguida CC: - a incorreta qualificação jurídico-penal dos factos e, - a excessividade da pena aplicada e violação dos princípios da adequação à gravidade dos factos, bem como, o princípio da proporcionalidade. - da arguida BB: - a falta de preenchimento dos elementos objectivos e subjectivo do tipo; - do arguido AA: - a incorreta qualificação jurídico penal dos factos; - do arguido Lar de ...: - incorreta qualificação jurídico-penal dos factos; - o carácter excessivo e desproporcionado da pena. Todavia suscitam ainda os arguidos, - BB - a revisão da matéria de facto – uma vez que a decisão de direito está fundada em premissas claramente contraditórias, perceptíveis pela simples leitura do texto da decisão recorrida e em conjugação com as regras da experiência comum; - DD: - violação da presunção da inocência, positivada no n.º 2, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa; - violação do princípio da livre apreciação da prova, por violação das regras de experiência comum, da lógica e da razão; - vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; - vício do erro notório na apreciação da prova; - AA: - erro de direito na reapreciação da prova; - Lar ...: - erro notório na apreciação da prova; - a existência de dúvida, e dificuldade na prova da consciência e do comportamento dos arguidos; - insuficiência para a decisão da matéria de facto (aditada) dada como provada. E, todos os arguidos a questão do pedido de indemnização civil. De acordo com o já citado artigo 434.º, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, pelo que o conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos Tribunais da Relação, que conhecem de facto e de direito, cfr. artigo 428.º CPPenal. Tratando-se de um recurso de acórdão da Relação proferido em recurso, cfr. artigo 432.º/1 alínea b) CPPenal, não é admissível recurso para o STJ “com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”, isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas - aditamento do artigo 11.º da Lei 94/2021 - diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), o que, todavia, não prejudica os poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito, cfr. artigo 434.º CPPenal. Isto é, mesmo nos casos em que o recurso apenas se pode dirigir à matéria de direito, é possível intervenção nos matizes da existência de vícios decisórios expressos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º CPPenal, conquanto resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e, bem assim, em casos de alguma nulidade que não deva considerar-se sanada. E, assim, considerando o regime vigente advindo das alterações ao CPPenal, introduzidas pela Lei 94/2021, o recurso para o STJ, nos casos subsumíveis à previsão das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º CPPenal, visa-se exclusivamente o reexame da matéria de direito, a existência dos vícios decisórios ou a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada. Por outro lado, a literalidade da alínea b) do nº 1 do citado inciso legal, não referenciando que o recurso nela previsto se destina exclusivamente o reexame da matéria de direito, ou aos fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º CPPenal, impõe a conclusão de que foi propósito do legislador excluir como fundamento dos recursos subsumíveis à sua previsão, o conhecimento dos vícios decisórios. Ou seja, nos recursos – como e o caso concreto - a que se reporta a alínea b) do n.º 1 do artigo 432.º CPPenal, os recorrentes não podem invocar, como fundamento do recurso, a existência, no acórdão recorrido, de vícios decisórios, o que, em todo o caso, não impede o seu conhecimento oficioso. Assim, tem sido posição unânime do STJ que, no regime em vigor, os vícios decisórios e as nulidades referenciados no artigo 410.º/2 e 3 CPPenal, só constituem alicerce recursivo para o STJ nos casos previstos na alínea a) – recurso de decisão da relação proferida em 1ª instância – e alínea c) – recurso per saltum de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo – do n.º 1 do artigo 432.º CPPenal, não sendo pois, nos termos da alínea b) do mesmo n.º 1 admissível recurso para o STJ com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do dito artigo 410.º, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios decisórios, quando a correta decisão de direito a proferir possa vir a ser afetada pela sua subsistência. Nesta senda, parece entendimento consolidado que julgado pelo Tribunal de 2.ª Instância um recurso interposto da decisão proferida em 1.ª Instância, o recorrente, discordando da decisão daquele, apenas pode impugnar esta última decisão e não (re)introduzir no recurso para o STJ a impugnação da decisão da 1.ª instância. Como é sabido a questão da violação do princípio in dubio pro reo e da presunção da inocência, em que aquele se pode traduzir, pode e deve ser conhecida em sede do vício do erro notório na apreciação da prova. Desde logo parece que estamos perante uma confusão entre o vício de erro notório na apreciação da prova e a valoração desta. Enquanto que esta obedece ao regime do artigo 127.º CPPenal e, é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do artigo 410.º CPPenal – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova. Mesmo a invocação do princípio in dubio pro reo, acaba por dizer respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do artigo 410.º/2 CPPenal, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção. Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual fica afastado o princípio do in dubio pro reo, sendo que tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova, ou ónus da prova a cargo dos arguidos, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º/1 CPPenal, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme artigo 32.º/1 da Constituição da República. Sendo as questões suscitadas nas referidas conclusões questões em matéria de facto, há que ter em atenção, que, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º CPPenal, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, pelo que as questões de facto não se encontram integradas nos seus poderes de cognição. Por outro lado, não é da competência do Supremo Tribunal de Justiça conhecer dos vícios aludidos no artigo 410.º/2 CPPenal, como fundamento de recurso, quando invocados pelos recorrentes, uma vez que o conhecimento de tais vícios sendo do âmbito da matéria de facto, é da competência do tribunal da Relação, cfr. artigos 427.º e 428.º/1 CPPenal. Dai que o Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de revista, apenas conheça de tais vícios oficiosamente, se os mesmos se perfilarem no texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, uma vez que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, cfr. artigo 434.º CPPenal. Como decidiu o Acórdão de 8.11.2006, deste Supremo Tribunal, in Proc. n. 3102/06 - 3.ª Secção, os vícios elencados no artigo 410.º/2 CPPenal, respeitam à matéria de facto; são anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Também o apelo ao princípio in dubio pro reo respeita à matéria de facto. O tribunal vocacionado para o reexame da matéria de facto é o da Relação, a quem cabe, em última instância, decidir a matéria de facto – artigos 427.º e 428.º CPPenal. Se o agente intenta ver reapreciada a matéria de facto, esta e a de direito, ou só a de direito, recorre para a Relação; se pretende ver reapreciada exclusivamente a matéria de direito recorre para o STJ, no condicionalismo restritivo vertido nos artigos 432.º e 434.º CPPenal, pois que este tribunal, salvo nas circunstâncias exceptuadas na lei, não repondera a matéria de facto. Sobre matéria de facto, o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, não confere a obrigatoriedade de um terceiro grau de jurisdição, assegurando-se o direito ao recurso nos termos processuais admitidos pela lei ordinária. Como já atrás se deixou referido, o Supremo Tribunal de Justiça só tem competência para apreciar matéria de direito, constituindo única exceção a esta regra as situações em que ocorrem os vícios e nulidades a que se reportam as als. a) e c) do nº2 do artigo 432º do Código de Processo Penal. Daí que, desde logo, não seja possível apreciar erros de julgamento. E o mesmo acontece quanto aos vícios da decisão. Com efeito, dado que está em apreciação um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu um primeiro recurso do tribunal da primeira instância, este Supremo Tribunal não pode conhecer dos vícios e nulidades a que se reportam os n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º CPPenal. Com efeito e como decorre claramente do disposto no artigo 434º do Código de Processo Penal tal apenas seria possível a. Relativamente a um acórdão do Tribunal da Relação proferido em primeira instância e visando exclusivamente matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410. CPPenal; b. Relativamente a acórdão final proferido pelo tribunal coletivo ou pelo tribunal do júri que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos e visando exclusivamente matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º CPPenal. Termos em que, os recursos têm de ser rejeitados, nestes segmentos. O mesmo se diga em relação à violação do princípio in dubio pro reo. Com efeito, a violação do princípio in dubio pro reo diz respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicada pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do artigo 410.º/2 CPPenal, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção. Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido m obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido. Saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto, mas que exorbita o poder de cognição do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista. E, assim, também, neste segmento, os recursos não são admissíveis. Quanto à matéria do pedido de indemnização civil. Estão em causa recursos em que se suscita, também, a questão concernente ao pedido cível enxertado no processo penal. Dispõe, a este propósito, o artigo 400.º CPPenal, sob a epígrafe “Decisões que não admitem recurso”, que, “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”, n.º 2 e, “Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”, n.º 3. O n.º 2 deste artigo 400.º CPPenal corresponde ao n.º 1 do artigo 629.º CPCivil, que dispõe que o recurso ordinário “só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”. Está aqui consagrado “um regime híbrido ou misto quanto à admissibilidade de recurso, pois que esta depende, cumulativa e simultaneamente, do valor da causa (alçada) e do valor da sucumbência (differendum), relevando, no entanto, apenas aquele, em caso de fundada dúvida sobre este”, cfr. AUJ 10/2015 do STJ. A admissibilidade do recurso das decisões relativas ao pedido civil deduzido no processo penal depende, assim, da verificação cumulativa de dois requisitos: - que o pedido tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, sendo que a alçada constitui o limite (definido em regra pelo valor da causa) dentro do qual um tribunal julga sem possibilidade de recurso ordinário; - que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre, sendo que a sucumbência (decaimento) constitui o prejuízo ou desvantagem que a decisão implicou para uma parte (que tenha ficado, total ou parcialmente, vencida). Donde, mesmo que a sucumbência seja superior a metade da alçada do tribunal, não é admissível o recurso se o valor do pedido se situar dentro da alçada do tribunal recorrido. Como é sabido, em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de € 5.000,00, cfr. artigo 44.º/1 da Lei 62/2013, de 26 de agosto, que aprovou a Organização do Sistema Judiciário. Por sua vez, o referido n.º 3 do artigo 400.º CPPenal resultou da reforma introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de agosto, fazendo caducar a jurisprudência fixada em sentido contrário pelo STJ no denominado Assento n.º 1/2002, de 14.3.2002 (DR, I Série, de 21.05.2002), no sentido de que: “no regime do Código de Processo Penal vigente – n.º 2 do artigo 400.º, na versão da Lei 59/98, de 25 de agosto – não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão penal”. E, então, por força da referida alteração legislativa, a recorribilidade do segmento decisório relativo à matéria cível deixou de estar dependente da admissibilidade de recurso da decisão quanto à parte criminal. “Por força do disposto no artigo 4.º CPPenal e, uma vez que a ação civil se autonomiza dos destinos da causa penal, importa ter em conta que a admissibilidade de recurso não está condicionada apenas pelas circunstâncias do n.º 2 do artigo 400.º. A pretendida igualação com o regime de recursos da ação civil importa, com efeito, que os casos de admissibilidade previstos no artigo 721.º CPCivil na redação do Decreto Lei 303/2007, de 24 de Agosto, nomeadamente o de “dupla conforme”, previsto no n.º 3, sejam aqui aplicáveis”, defende o Conselheiro Pereira Madeira in Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2016. Almedina, 2.ª edição revista, 1202, comentando o artigo 400.º CPPenal. Este entendimento corresponde à orientação uniforme seguida nas Secções Criminais do STJ, no sentido de que o regime de admissibilidade dos recursos previsto no CPC tem aplicação subsidiária aos recursos relativos a pedidos de indemnização cível formulados em processo penal. Com a introdução, por força da Lei 48/2007, de 29 de agosto, do n.º 3 ao artigo 400.º CPPenal, operou-se uma alteração profunda do regime de admissibilidade dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões sobre os pedidos de indemnização cível enxertados em processo penal. Por força desta alteração legislativa, a recorribilidade do segmento decisório relativo à matéria cível deixou de estar dependente da admissibilidade de recurso da decisão quanto à parte criminal do acórdão recorrido, como até então sucedia, nomeadamente por força do entendimento sufragado no assento deste Supremo Tribunal 1/02, de 14 de março. A recorribilidade da decisão sobre matéria cível desprendeu-se do recurso em matéria penal; isto é, a admissibilidade de recurso para o STJ, restrito à matéria cível, passou a ser apreciada de acordo com os critérios próprios de recorribilidade do Código de Processo Civil. O legislador passou a fazer apelo, por força do estatuído no artigo 4.º CPPenal, ao regime de admissibilidade dos recursos previsto para os processos de natureza exclusivamente civil. O acesso ao Supremo Tribunal de Justiça passou, por conseguinte, a dever obediência ao regime jurídico do recurso de revista previsto no CPC, pois que, ao aditar o mencionado n.º 3 ao artigo 400.º do CPP, o legislador processual penal não definiu normas próprias de admissibilidade do recurso para a parte da sentença relativa ao pedido de indemnização civil, o que deve conduzir o julgador, perante esta lacuna, a socorrer-se dos pertinentes normativos do processo civil. E, assim, se consolidou jurisprudência no sentido de que o regime de admissibilidade dos recursos previsto no CPC tem aplicação subsidiária aos pedidos de indemnização cível formulados em processo penal. Como decorre da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, que lhe deu origem, o aditamento do n.º 3 ao artigo 400.º CPPenal, pela Lei 48/2007, foi justificado pela necessidade de garantir a igualdade entre todos os recorrentes em matéria cível, dentro e fora do processo penal. Pelo que, se, com esta alteração, introduzindo uma quebra ao princípio de adesão, se quis consagrar idênticas possibilidades de recurso quanto à indemnização civil no processo penal e no processo civil, nada se dizendo de diferente no Código de Processo Penal, a norma do artigo 671.º/3 do novo CPC, de conteúdo essencialmente idêntico ao da norma do n.º 3 do artigo 721.º do CPC de 1961, na redação introduzida pelo Decreto Lei 303/2007, de 24 de agosto, não pode deixar de se aplicar ao processo penal, sob pena de se criar uma situação de desigualdade que o legislador manifestamente não quis. Nos termos do artigo 629.º/1 CPCivil, o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior ao da alçada do Tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse Tribunal, atendendo-se em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa. Não sendo o presente caso nenhum dos excecionalmente previstos no n.º 2 da mesma norma em que independentemente do valor da causa ou da sucumbência é sempre admissível valor. No caso concreto a demandante pedia a condenação dos arguidos no pagamento da indemnização no valor de € 30.000,00. E, assim, apreciando a questão da admissibilidade dos recursos quanto à parte da indemnização civil, resulta manifesto que estando em causa aquele valor do pedido e a condenação dos arguidos solidariamente, no pagamento da quantia de € 8.000,00, também, este segmento da decisão não é susceptível de recurso para este Supremo Tribunal porque aquele valor se contém dentro do valor da alçada do Tribunal da Relação. Em função do exposto, nos termos já enunciados e ao abrigo do disposto no artigo 420.º/1 alínea b) CPPenal, tendo em conta que a decisão que admitiu os recursos não vincula o tribunal superior, cfr. artigo 414.º/3 CPPenal, há, assim, que rejeitar os recursos quanto a todas as questões suscitadas, excepto quanto à subsunção dos factos ao Direito e à operação de determinação da medida das penas. Reconduzidos os recursos aos seus objectos legalmente admissíveis, vejamos o que disse a esse respeito a Relação. 3. Atentemos no que nos autos consta. 3. 1. Findo o inquérito, foi proferido despacho de arquivamento: Tendo presente que não está isento de responsabilidade criminal aquele que, mesmo não tendo poderes de superior direcção e representação de uma pessoa colectiva, como têm os gerentes/dirigentes, no entanto age em seu nome ou no seu interesse por virtude de um vínculo que o habilita a praticar determinado tipo de actos, em nome e no interesse dessa mesma entidade , como é o caso das auxiliares de acção directa que exercem funções nos Lares de Idosos, procedeu-se ao interrogatório de II (fls. 227), JJ (fls. 237), KK ( fls. 250), LL ( fls. 261) , MM ( fls. 269), NN ( fls. 280) e OO ( fls. 295), todos eles, como se disse, Auxiliares de Acção Directa ( AAD) no E... Lar ... , com instalações no município de Vila Nova de Gaia. A sua identificação foi-nos fornecida pela Direcção Técnica da Instituição por terem prestado apoio no âmbito das suas funções, no caso, ao utente FF, aqui ofendido, entre 18 de Agosto de 2020 e 29 de Agosto de 2020, período correspondente aos dos acontecimentos de que foi vítima, conforme informação de fls. 44. Aquando dos seu interrogatórios e confrontados com os registos que os associavam a cuidados àquele prestados e que constam no processo de fls. 163 a 167 ( Relatórios de Turno de Ocorrências do Piso 3) e fls. 169 ( cuidados ao utente), todos eles afirmaram não identificar o utente FF, negando ter-lhe prestado qualquer apoio no âmbito das suas funções de AAD. Mesmo quando lhes foram exibidos registos contendo as iniciais dos seus nomes que supostamente os identificariam como tendo cuidado daquele utente no período em causa, todos negaram que essas iniciais ou as anotações que constam nesses registos lhes pertencessem ou tivessem sido feitas pelo seu punho. Alguns deles deram conta que em muitos casos as iniciais dos nomes das auxiliares eram feitas por um colaborador que estava de serviço e que o fazia por todos ( JJ/NN/OO); que em plena pandemia Covid 19 havia alterações diárias dos horários das AAD feitas pela Encarregada Geral e distribuídos na Portaria que nem sempre coincidiam com o planeamento mensal ( NN/ OO) e que as AAD podiam desempenhar as suas funções em qualquer piso ( NN). Analisando os registos de fls. 163 a 167 e o de fls. 169 verificamos que a identificação da AAD que esteve de turno em determinado dia se fez através da aposição das iniciais do nome ( item “Assinatura da AAD”) numa quadricula, havendo casos em que no mesmo espaço são colocadas mais do que uma assinatura ( inicial) , que supostamente indiciaria ter havido intervenção de mais do que uma colaboradora. Também verificamos que a mesma inicial (assinatura da AAD) nem sempre se apresenta com o mesmo contorno em todos os registos e que as anotações que por vezes constam no Relatório de Turno não se apresentam assinadas. Também constatamos não existir ( ou pelo menos não nos foi fornecido) uma Lista contendo a identificação das AAD de turno e da assinatura que utilizavam para se identificar nas ocorrências em que intervinham ou nas tarefas que executavam. Tendo em conta a versão apresentada pelos arguidos constituídos ( e mesmo dando de barato que a negação a nível da sua intervenção não passa de uma forma de defesa expectável) , temos que foram levantadas sérias dúvidas quanto à sua intervenção ao nível dos cuidados básicos prestado ao utente FF que a demais prova quer analisada individualmente quer conjuntamente não permite esclarecer. A intervenção de cada colaborador na actividade que presta aos idosos acolhidos no Lar tem que ser clara e perceptível, devendo a Instituição funcionar de forma organizada que permita a quem nisso tenha interesse saber quem foi a auxiliar que esteve de serviço, quando, onde o prestou ( piso) e o que fez. Responsabilizar em termos criminais estes arguidos pela autoria do crime de maus tratos ( por omissão) que neste autos se investiga quando há dúvidas sérias quanto à sua intervenção faz desde já antever que, em sede de julgamento, a probabilidade de virem a ser absolvidos é superior à da sua condenação. Assim sendo, por insuficiência indiciária, ao abrigo do artigo 277 n.º 2 do Código de Processo Penal, determino o arquivamento dos autos quanto aos arguidos II, JJ, KK, LL, MM, NN e OO. Notifique PP, que exercia as funções de Encarregada do Piso 2, do Lar ..., onde estava acolhida a ofendida QQ, encontrou-se de baixa médica no período de 20 a 24/04/2020, que correspondeu ao período da evolução do processo de desidratação .daquela residente diagnosticado aquando da sua admissão ao SU no CHVNG no dia 24/04/2020. Não tendo estado ao serviço e por o início e termo do quadro de desidratação ter correspondido precisamente ao período da sua incapacidade por doença, não é a mesma responsável pela problemática de que aquela utente foi ofendida. Assim sendo, não se irá exercer a acção penal contra ela. 3. 2. Na mesma ocasião foi deduzida acusação, para julgamento em processo comum e julgamento pelo Tribunal Colectivo, imputando-se aos arguidos, 1- IPSS “O Lar ...”, representada pelo seu actual Presidente de Direcção RR , em concurso real de infracções, 2 ( dois) crimes de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152- A, n.º 1, alí. a) , com referência ao art.º 11º, n.º 2, alí. a) e b), n.º 4, n.º 5 e n.º 7, todos do Código Penal; 2- AA, em concurso real de infracções, 2 ( dois) crimes de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152- A, do Código Penal; 3- BB , em concurso real de infracções, 2 ( dois) crimes de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152- A, do Código Penal; 4- CC, 1 ( um) crimes de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152- A, do Código Penal; 5- DD 1 ( um) crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152- A, do Código Penal, porquanto, 1º Como Instituição Particular de Solidariedade Social, registada na Direcção Geral da Segurança Social (DGSS) sob a inscrição n.º ...84, desde 06/06/1984, o Lar ... é uma pessoa colectiva sem fins lucrativos, que tem como fins e principais actividades a concessão de bens, prestação de serviços e outras iniciativas de promoção do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades, nomeadamente nos domínios do apoio a pessoas idosas e na resposta social da estrutura residencial para pessoas idosas ( E...). Tem as suas instalações na Rua 1, em Vila Nova de Gaia. 2º Em termos de funcionamento o E... Lar ... apresenta uma organização estruturada em que no topo da hierarquia se situa o Presidente da Direcção, a seguir a Directora Técnica, no nível abaixo a Chefe de Serviços Gerais , no seguinte as Encarregadas de Sector ( Piso) e na base as Auxiliares de Acção Directa ( AAD). 3º Nos termos dos Estatutos, compete ao Presidente da Direção, entre outras, a função de superintender na administração do Lar ... orientando e fiscalizando os respetivos serviços de forma a garantir a satisfação do bem – estar geral dos utentes acolhidos , nomeadamente, a nível da alimentação, da assistência médica e de enfermagem, higiene e vestuário , representando ainda a Instituição em juízo ou fora dele. 4º À Directora Técnica compete , em geral, dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes , e em especial: a) Promover reuniões técnicas com o pessoal; b) Promover reuniões com os residentes, nomeadamente para a preparação das atividades a desenvolver; c) Sensibilizar o pessoal face à problemática da pessoa idosa; d) Planificar e coordenar as atividades sociais, culturais e ocupacionais dos idosos; à Chefe de Serviços Gerais, organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais ; às Encarregadas de Sector (Piso), coordenar no seu sector o serviço prestados pelo E... através das Auxiliares de Acção Directa aos residentes, colaborar na elaboração das escalas de serviço e prestar cuidados de saúde, higiene e alimentação aos idosos acolhidos; e às Auxiliares de Acção Directa ( AAD) realizar atividades de higiene, mobilização, alimentação do utente, manter as condições de limpeza e higienização nas instalações, garantir o cumprimento das prescrições médicas, fazer acompanhamento e zelar pelo bem-estar geral do utente. 5º No ano de 2020 o Presidente da Direcção era o arguido AA , a Directora Técnica a arguida BB , a Chefe de Serviços Gerais a arguida CC , a Encarregada de Sector ( Piso) 2 era PP ( aqui testemunha), e a Encarregada do Sector ( Piso) 3 era a arguida DD, cabendo àqueles que ocupam lugares superiores supervisionar e dar ordens aos que se posicionam abaixo de si. 6º Todas estes agentes exerciam as suas funções em virtude de um vínculo que os habilitava a assegurar o bem-estar dos utentes acolhidos no E... , agindo em nome e no interesse da instituição Lar .... 7º Aquando da admissão à instituição Lar ... todos os utentes eram observados pela Equipa de Enfermagem a fim de avaliar o seu estado de saúde e, nos casos em que se faziam acompanhar por informação médica, era ainda verificado se a mesma correspondia à avaliação feita, integrando todos estes elementos, e em especial no caso de se tratar de residente com toma de medicação, um dossier individualizado em nome de cada utente designado “Cardex”, do conhecimento de toda a estrutura organizativa do Lar, geralmente guardado dentro de um armário situado no piso 3 correspondente ao Gabinete Médico/Enfermagem e disponível a todos que nele exerciam funções, tal como ocorreu com a admissão dos ofendidos HH e FF. 8º A ofendida HH, nascida em D/M/1952, com 65 anos, integrou o E... Lar ... em 22/08/2018, por entre a arguida Lar ... ( E...) e a ofendida ter sido firmada uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas da segunda, ocupando quarto situado no Piso 2. 9º A ofendida HH padecia de doença neurológica degenerativa ( paraparésia espástica hereditária) confirmada em 2009, movimentava-se em Cadeiras de Rodas, embora ultimamente estivesse confinada ao leito, andava algaliada cronicamente e estava dependente para as actividades de vida diária dos cuidados que a instituição lhe prestava ( higiene, alimentação, toma da medicação, vestuário, apoio, vigilância e incentivo etc.). 10º No dia 24 de Abril de 2020, foi admitida pelas 18.27 horas, no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, com queixas de dispneia desde há 3 semanas, com agravamento súbito naquele dia, esforço respiratório, tosse com expectoração que não expele e temperatura de 37.9 º . 11º Observada pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas activos: a) Covid 19 admissão; data 1º resultado positivo 19/04/2020: data de início de sintomas/dias de evolução da doença: desconhecido/= 3 semanas; factores de risco para progressão desfavorável : HTA, idade>65 anos, achados analíticos desfavoráveis; PCR >10mg/dl; doença actual, Pneumonia com hipoxia ( fase IIb); suporte de O2 actual: 4 cânula (débt L/min); b) IR tipo 2; c) Hipernatrémia: NA + 154; d) Hipocaliémia; K+ 2,86; e) LRA: creatinina 1,04 ( basal 0,8) . Apresentava ainda as “Mucosas coradas, mas desidratadas” . 12º O quadro clínico referido em supra, é compatível com estado de desidratação que médicolegalmente se classifica como de gravidade moderada a grave ( tendo presente o achado de TA ( tensão arterial) 72/53mmHg, Hipernatrémia: Nat+154 e Creatinina 1,04 ( basal 0.89)). 13º O estado de desidratação apresentava evolução de há vários dias, mas seguramente de mais de 24 horas, e deveu-se a uma insuficiência ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do E... Lar ... que dela cuidavam . 14º O quadro clínico degradou-se com episódios de dessaturação em parte condicionadas por secreções abundantes, vindo a falecer, sendo o óbito verificado a 26/04/2020, pelas 14.10 horas. 15º No Serviço de Urgência foi-lhe administrado soro e outras substâncias para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, bem como morfina para as dores. 16º Aquando da sua admissão ao Serviço de Urgência do CHVNG o arguido AA e a arguida BB mantinham-se como Presidente da Direcção e Directora Técnica do Lar, respectivamente, não havia colaboradora que desempenhasse as funções de Encarregada Geral e a Encarregada do Sector (Piso) 2 PP esteva ausente do serviço desde 20/04/2020, por baixa médica. 17º Encontrando-se a ofendida aos cuidados da arguida E... Lar ... e podendo e devendo a instituição assegurar a alimentação, saúde e demais cuidados necessários ao seu bem-estar, através dos seus diferentes colaboradores, por falta de cuidado e de assistência, que podia e devia ter prestado, mas omitiu, foi a responsável do estado de desidratação em que a ofendida HH se encontrava, quando no dia 24/04/2022 deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. 18º Já FF, nascido em D/M/1928, com 91 anos de idade, integrou o E... Lar ... em 18/08/2020, por entre a arguida Lar ... e o ofendido ter sido constituída uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas do segundo, tendo sido colocado no Piso 3, para cumprir período de isolamento de 15 dias de acordo com a legislação Covid 19 então vigente. 19º Aquando da sua admissão AA continuava a ser o Presidente da Direcção, a arguida BB mantinha-se como Directora Técnica do Lar, CC tinha iniciado em Julho desse ano as funções de Chefe de Serviços Gerais e Eva Maria Costa , após período de gozo de férias, desde 25 de Agosto desse ano que tinha regressado ao serviço. 20º O ofendido FF, apresentava amputação da perna esquerda, cegueira, hipoacúsia grave, patologia tiroideia, HTA, dislipidemia e falta de mobilidade, dependendo para as actividades de vida diária em exclusivo dos cuidados que a instituição lhe prestava (banho, apoio, vigilância, incentivo, alimentação, higiene, vestuário, medicação, mudança de fralda , etc). 21º No dia 29 de Agosto de 2020, pelas 15.54 horas, foi admitido no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, por hipotensão ( TA-80/60), associado a taquicardia ( -125bpm) e a dificuldades respiratórias ( polipneia, respiração predominantemente abdominal e episódios de hipoventilação), saturação de oxigénio no sangue ( Sp02) de 85-94%, sem alterações do estado de consciência, febre ou outros sintomas. 22º Observada pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas activos: a) infecção respiratória; b) hipernatrémia; c) hipocaliémia ; d) lesão renal aguda de provável etiologia pré-renal. Apresentava ainda a pele e mucosas coradas mas ligeiramente desidratadas e estava cianótico. 23º O quadro clínico referido em supra é compatível com estado de desidratação que médicolegalmente se classifica como grave ( tendo presente o achado creatinina = 1,79mg/dl, ureia=119mg/dl, Nat=165 mmol/L e a queda tensional para o valor de 80/60mmHG). 24º No Serviço de Urgência do CHVNG, para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, foram administrados ao ofendido 1.000ml de soro a 100 ml/h, ou seja, ao longo de 10 horas, por via endovenosa, tendo posteriormente sido transferido para o Serviço de Urgência do Hospital Santo António, para prosseguir a fluidoterapia endovenosa. 25º Caso não tivesse ocorrido intervenção terapêutica era previsível a progressão da desidratação que, no seu termo, poderia conduzir à sua morte. 26º O estado de desidratação deste ofendido já se vinha manifestando, pelo menos, desde o dia 27 daquele mês da Agosto , e deveu-se a uma insuficiência ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos pelos colaboradores do E... que dele cuidavam e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. 27º Na verdade, um dos métodos que o E... introduziu no seu funcionamento para aferir do estado de hidratação dos utentes acamados, como no caso do utente FF, era o do controlo das fraldas , que , em regra, eram mudadas cinco vezes ao dia, entendendo-se este por período de 24 horas, uma durante a noite, duas no período da manhã e outras duas durante a tarde, e sempre que se procedia a uma muda de fralda a colaboradora que o fazia, que por regra era Auxiliar de Acção Directa ( AAD), registava na Ficha Cuidados de Higiene e Imagem ( Controle dos Esfíncteres) a quantidade de urina observada numa classificação que podia ser “Muito, “Pouco”, ”Nenhum” ou “normal”. 28º Na Ficha dos Cuidados de Higiene referida em supra do residente FF foram feitos os registos seguintes: 1- Referente a 27 de Agosto de 2020 . - noite ( de 26 para 27) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas uma com “Pouco” e outra com “normal”; tarde duas mudas com “Pouco”. 2- Referente a 28 de Agosto de 2020. - noite ( de 27 para 28) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas sem registos de urina na fralda ( Nenhum) ; tarde duas mudas com “Pouco”. 3- Referente a 29 de Agosto de 2020. - noite ( 28 para 29) uma muda com “Nenhum”; manhã uma muda com “Nenhum” 29º Sendo que nos registos referentes à presença de urina na fralda entre a data da sua admissão ao E... a 18 de Agosto e o dia 27 desse mês, de acordo com a Ficha dos Cuidados de Higiene e Imagem foi sempre detectada a presença de urina nas mudas de fralda ( dia 18, quatro mudas, uma com “Pouco” e as restantes “Normal”; dia 19, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 20, cinco mudas todas “Normal”; dia 21, cinco mudas, quatro “Normal e uma “Pouco”; dia 22, cinco mudas todas “Normal”; dia 23, cinco mudas todas “Normal”; dia 24, cinco mudas, três “Normal” e duas “Pouco”; dia 25, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 26 cinco mudas todas “Normal”). 30º Não obstante se ter detectado uma diminuição progressiva da urina na fralda a partir de 27 de Agosto, que deveria funcionar como alerta para o cuidador de que algo não estaria a correr com normalidade a nível do fornecimento dos recursos hídricos ao ofendido, por não terem conseguido interpretar esses dados e concluir que o utente se encontrava em processo evolutivo de desidratação, as Auxiliares de Acção Directa que nesse dia e nos seguintes trataram do ofendido , cuja identidade não foi possível apurar, não fizeram intervir a Equipa de Enfermagem nem promoveram a sua ida ao hospital. 31º Sendo que a interpretação daqueles dados, nomeadamente, o preenchimento do conceito de fralda com “Pouco” ou “Normal” urina era feito de forma subjectiva e dependia da sensibilidade do que cada uma das Auxiliares de Acção Directa entendia por “Pouco” ou “Normal” . 32º Resultando a deficiência ao nível da interpretação dos dados e a deficiente actuação posterior da falta de formação que lhes deveria ter sido dada por quem a nível superior exercia as funções de liderança, ou seja, o Presidente da Direcção, Directora Técnica, Chefe de Serviços Gerais e de Sector (Piso). 33º Igualmente, a correcção do comportamento de quem directamente cuidou deste utente ( AAD) não foi corrigido pelas chefias referidas no artigo 32 por se terem demitido do exercício das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes ao cargo que ocupavam. 34º Encontrando-se o ofendido aos cuidados da arguida E... Lar ... e podendo e devendo a instituição assegurar a alimentação e demais cuidados necessários ao seu bemestar, através dos seus diferentes colaboradores, por falta de cuidado e de assistência, que podia e devia ter prestado, mas omitiu, foi a responsável pelo estado de desidratação em que o ofendido FF se encontrava, quando no dia 29/08/2020 deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. 35º Os dois ofendidos pelas idades que tinham e pelas fragilidades a nível de saúde que evidenciavam faziam deles pessoas especialmente vulneráveis e totalmente dependentes dos cuidados quotidianos que lhe eram prestados pelo E... Lar .... 36º Pelas funções que os arguidos AA, BB , CC e DD desempenhavam na estrutura do E... Lar ..., recaía o dever jurídico de pessoalmente acompanhar, vigiar e fiscalizar a prestação dos cuidados básicos prestados aos utentes nele acolhidos pelos diferentes colaboradores de forma a assegurar e garantir a sua saúde e bem estar geral, servindo a sua intervenção para corrigir, debelando ou reduzindo o mais possível, qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos prestados aos residentes e aqui ofendidos HH e FF. 37º Ao omitir o dever de acompanhamento, vigilância e fiscalização os arguidos AA, BB , CC e DD representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem - estar geral dos dois ofendidos e, apesar disso, permaneceram inactivos, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efectivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua admissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de VNGaia, que lhes causou sofrimento, desalento , quebra física e psicológica. 38º Actuaram livres, conscientes e voluntariamente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 3. 3. Efectuado o julgamento, na 1.ª instância a matéria de facto foi assim decidida. Factos provados. 1º Como Instituição Particular de Solidariedade Social, registada na Direção Geral da Segurança Social (DGSS) sob a inscrição n.º 17/84, desde 06/06/1984, o Lar ... é uma pessoa coletiva sem fins lucrativos, que tem como fins e principais atividades a concessão de bens, prestação de serviços e outras iniciativas de promoção do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades, nomeadamente nos domínios do apoio a pessoas idosas e na resposta social da estrutura residencial para pessoas idosas ( E...). Tem as suas instalações na Rua 1, em Vila Nova de Gaia. 2º Em termos de funcionamento o E... Lar ... apresenta uma organização estruturada em que no topo da hierarquia se situa o Presidente da Direção, a seguir a Diretora Técnica, no nível abaixo a Chefe de Serviços Gerais, no seguinte as Encarregadas de Sector (Piso) e na base as Auxiliares de Acão Direta ( AAD). 3º Nos termos do art.º 52.º dos Estatutos do referido lar compete ao Presidente da Direção: a) Superintender na administração do Lar ... orientando e fiscalizando os respetivos serviços; b) Convocar e presidir às reuniões da Direção, dirigindo os respetivos trabalhos; c) Representar o Lar ... em juízo ou fora dele; d) Assinar e rubricar os termos de abertura e encerramento e rubricar o livro de atas da Direção; e) Despachar os assuntos normais de expediente e outros que careçam de solução urgente, sujeitando estes últimos à confirmação da Direção na primeira reunião seguinte. 4º A Direção Técnica do E... compete a um técnico, cujo nome, formação e conteúdo funcional se encontra afixado em lugar visível e a quem cabe a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo. À Diretora Técnica compete, em geral, dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. É também responsável pela criação de uma estrutura administrativa para gerir a instituição, colaborando igualmente na verificação e custos e planeamento de utilização de mão-de-obra, equipamento materiais e instalações, controlando os respetivos serviços. - à Chefe de Serviços Gerais compete organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais; - às Encarregadas de Sector (Piso) compete coordenar no seu sector o serviço prestados pelo E... através das Auxiliares de Ação Direta aos residentes, colaborar na elaboração das escalas de serviço, controlar e requisitar os serviços indispensáveis ao normal funcionamento dos serviços, zelar pelo cumprimento das regras de segurança e higiene no trabalho e verificar o desempenho das tarefas atribuídas às AAD. - às Auxiliares de Ação Direta (AAD) realizar atividades de higiene, mobilização, alimentação do utente, manter as condições de limpeza e higienização nas instalações, garantir o cumprimento das prescrições médicas, fazer acompanhamento e zelar pelo bem-estar geral do utente. 5º No ano de 2020 o Presidente da Direção era o arguido AA, a Diretora Técnica a arguida BB, a Chefe de Serviços Gerais a arguida CC, a Encarregada de Sector (Piso) 2 era PP (aqui testemunha), e a Encarregada do Sector (Piso) 3 era a arguida DD, cabendo àqueles que ocupam lugares superiores supervisionar e dar ordens aos que se posicionam abaixo de si. 6º Todas estes agentes exerciam as suas funções em virtude de um vínculo que os habilitava a assegurar o bem-estar dos utentes acolhidos no E..., agindo em nome e no interesse da instituição Lar .... 7º Aquando da admissão à instituição Lar ... todos os utentes eram observados pela Equipa de Enfermagem a fim de avaliar o seu estado de saúde e, nos casos em que se faziam acompanhar por informação médica, era ainda verificado se a mesma correspondia à avaliação feita, integrando todos estes elementos, e em especial no caso de se tratar de residente com toma de medicação, um dossier individualizado em nome de cada utente designado “Cardex”, do conhecimento de toda a estrutura organizativa do Lar, geralmente guardado dentro de um armário situado no piso 3 correspondente ao Gabinete Médico/Enfermagem e disponível a todos que nele exerciam funções, tal como ocorreu com a admissão dos ofendidos HH e FF. 8º A ofendida HH, nascida em D/M/1952, com 65 anos, integrou o E... Lar ... em 22/08/2018, por entre a arguida Lar ... ( E...) e a ofendida ter sido firmada uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas da segunda, ocupando quarto situado no Piso 2. 9º A ofendida HH padecia de doença neurológica degenerativa (paraparésia espática hereditária) confirmada em 2009, movimentava-se em Cadeiras de Rodas, mas mantinha independência para certas atividades, designadamente para alimentação. 10º No dia 24 de Abril de 2020, foi admitida pelas 18.27 horas, no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, com queixas de dispneia desde há 3 semanas, com agravamento súbito naquele dia, esforço respiratório, tosse com expetoração que não expele e temperatura de 37.9 º. 11º Observada pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos: a) Covid 19 admissão; data 1º resultado positivo 19/04/2020: data de início de sintomas/dias de evolução da doença: desconhecido/= 3 semanas; fatores de risco para progressão desfavorável: HTA, idade>65 anos, achados analíticos desfavoráveis; PCR >10mg/dl; doença atual, Pneumonia com hipoxia (fase II b); suporte de O2 atual: 4 cânula (débt L/min); b) IR tipo 2; c) Hipernatrémia: NA + 154; d) Hipocaliémia; K+ 2,86; e) LRA: creatinina 1,04 (basal 0,8). Apresentava ainda as “Mucosas coradas, mas desidratadas”. 12º O quadro clínico referido em supra, é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como de gravidade moderada a grave (tendo presente o achado de TA (tensão arterial) 72/53mmHg, Hipernatrémia: Nat+154 e Creatinina 1,04 (basal 0.89)). 13º O estado de desidratação resultou da insuficiente toma de líquidos que compensassem as perdas, sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal. 14º O quadro clínico degradou-se com episódios de dessaturação em parte condicionadas por secreções abundantes, vindo a utente QQ falecer, sendo o óbito verificado a 26/04/2020, pelas 14.10 horas. 15º No Serviço de Urgência foi-lhe administrado soro e outras substâncias para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, bem como morfina para as dores. 16º Aquando da sua admissão ao Serviço de Urgência do CHVNG o arguido AA e a arguida BB mantinham-se como Presidente da Direção e Diretora Técnica do Lar, respetivamente, não havendo colaboradora que desempenhasse as funções de Encarregada Geral, sendo que a Encarregada do Sector (Piso) 2 PP esteve ausente do serviço desde 05/04/2020, por estar infetada com Covid 19. Nesse mês, cerca de 20 colaboradores da instituição não estavam ao serviço por estarem infetados com Covid 19. 17º No mês de Abril de 2020, o estado de emergência estava ativo, estando em pleno vigor o despacho normativo n.º 4097-B/2020, de 2 de Abril, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 18º FF, nascido em D/M/1928, com 91 anos de idade, integrou o E... Lar ... em 18/08/2020, por entre a arguida Lar ... e o ofendido ter sido constituída uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas do segundo, tendo sido colocado no Piso 3, para cumprir período de isolamento de 14 dias de acordo com a legislação Covid 19 então vigente. 19º Durante o período de isolamento, o número de pessoas que entrava no quarto do ofendido FF era reduzido ao mínimo, nomeadamente as AAD que prestavam os cuidados de higiene e alimentação e o pessoal médico, caso fosse necessário, mas sempre cumprindo as regras de segurança e higiene recomendadas pela DGS. 20.º Aquando da sua admissão AA continuava a ser o Presidente da Direção, a arguida BB mantinha-se como Diretora Técnica do Lar, CC tinha iniciado em Julho desse ano as funções de Chefe de Serviços Gerais e Eva Maria Costa, após um período de gozo de férias, regressou ao serviço em 25 de Agosto e era a responsável pelo piso 3. 21º O ofendido FF, apresentava amputação da perna esquerda, cegueira, hipoacúsia grave, patologia tiroideia, HTA, dislipidemia e falta de mobilidade, dependendo para as atividades de vida diária em exclusivo dos cuidados que a instituição lhe prestava (banho, apoio, vigilância, incentivo, alimentação, higiene, vestuário, medicação, mudança de fralda, etc). 22º No dia 29 de Agosto de 2020, pelas 15.54 horas, por solicitação do E... que entendeu que o estado de saúde de FF necessitava de cuidados de saúde hospitalares, o mesmo foi admitido no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, por hipotensão (TA-80/60), associado a taquicardia ( -125bpm) e a dificuldades respiratórias (polipneia, respiração predominantemente abdominal e episódios de hipoventilação), saturação de oxigénio no sangue (Sp02) de 85- 94%, sem alterações do estado de consciência, febre ou outros sintomas. Observado pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos: a) infeção respiratória; b) hipernatrémia; c) hipocaliémia; d) lesão renal aguda de provável etiologia pré-renal. Apresentava ainda a pele e mucosas coradas mas ligeiramente desidratadas e estava cianótico. O quadro clínico referido em supra é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como grave (tendo presente o achado creatinina = 1,79mg/dl, ureia=119mg/dl, Nat=165 mmol/L e a queda tensional para o valor de 80/60mmHG). 23º No Serviço de Urgência do CHVNG, para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, foram administrados ao ofendido 1.000ml de soro a 100 ml/h, ou seja, ao longo de 10 horas, por via endovenosa, tendo posteriormente sido transferido para o Serviço de Urgência do Hospital Santo António, para prosseguir a fluidoterapia endovenosa. 24º Caso não tivesse ocorrido intervenção terapêutica era previsível a progressão da desidratação que, no seu termo, poderia conduzir à sua morte. 25º O estado de desidratação deste ofendido deveu-se a uma insuficiência ingestão de recursos líquidos e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, sendo que o utente tomava diuréticos o que acelera o processo de desidratação e impõe a toma de mais líquidos. 26º Uma das formas que o E... introduziu no seu funcionamento para aferir do estado de hidratação dos utentes acamados, como no caso do utente FF, era o do controlo das fraldas, que, em regra, eram mudadas cinco vezes ao dia, entendendo-se este por período de 24 horas, uma durante a noite, duas no período da manhã e outras duas durante a tarde, e sempre que se procedia a uma muda de fralda a colaboradora que o fazia, que por regra era Auxiliar de Ação Direta (AAD), registava na Ficha Cuidados de Higiene e Imagem (Controle dos Esfíncteres) a quantidade de urina observada numa classificação que podia ser “Muito, “Pouco”, ”Nenhum” ou “normal”. 27º Para além deste elemento as AAD também deveriam reportar algo de anormal que se passasse com os utentes, como febre, falta de apetite, etc., sendo que, no período de covid, apenas depois do reporte de alguma anormalidade é que a equipa de enfermagem e/ou médica intervinha para fazer o diagnóstico do utente. 28.º Durante essa semana foram reportadas, no livro de turno/ocorrências as seguintes situações pelas AAD relativas ao ofendido FF: - no dia 18/08/2020 a entrada do utente que ficou em isolamento no quarto sem número. Para além disso, o utente comunicou dores de cabeça, tendo sido ordenada pela enfermeira SS a toma de Bem-u-ron. - no dia 19/08/2020 que o utente comia comida passada; - no dia 21/08/2020 que o utente recusou a medicação do jantar; - no dia 22/09/2020 que o utente recusou a medicação do jantar. 29.º Na Ficha dos Cuidados de Higiene referida em supra do residente FF foram feitos os registos seguintes: 1- Referente a 27 de Agosto de 2020. - noite (de 26 para 27) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas uma com “Pouco” e outra com “normal”; tarde duas mudas com “Pouco”. 2- Referente a 28 de Agosto de 2020. - noite (de 27 para 28) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas sem registos de urina na fralda (Nenhum) ; tarde duas mudas com “Pouco”. 3- Referente a 29 de Agosto de 2020. - noite (28 para 29) uma muda com “Nenhum”; manhã uma muda com “Nenhum”. 30º Sendo que nos registos referentes à presença de urina na fralda entre a data da sua admissão ao E... a 18 de Agosto e o dia 27 desse mês, de acordo com a Ficha dos Cuidados de Higiene e Imagem foi sempre detetada a presença de urina nas mudas de fralda (dia 18, quatro mudas, uma com “Pouco” e as restantes “Normal”; dia 19, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 20, cinco mudas todas “Normal”; dia 21, cinco mudas, quatro “Normal e uma “Pouco”; dia 22, cinco mudas todas “Normal”; dia 23, cinco mudas todas “Normal”; dia 24, cinco mudas, três “Normal” e duas “Pouco”; dia 25, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 26 cinco mudas todas “Normal”). 31º As Auxiliares de Ação Direta que nos dias 27 e 28 de agosto cuidaram do ofendido, cuja identidade não foi possível apurar, não solicitaram a intervenção da Equipa de Enfermagem nem promoveram a sua ida ao hospital, o que apenas ocorreu no dia 29 de Agosto. 32º O preenchimento do conceito de fralda com “Pouco” ou “Normal” urina era feito de forma subjetiva e dependia da sensibilidade do que cada uma das Auxiliares de Ação Direta entendia por “Pouco” ou “Normal”. 33º O lar de ..., como a grande generalidade das instituições similares, não ministrava ações de formação às AAD, sendo costume da instituição as mais novas apreenderem com as mais velhas e com os profissionais de saúde as melhores práticas e os procedimentos a adotar. 34.º A leitura e interpretação dos dados resultantes da urina na fralda e de outros indicadores era feita pela equipa de enfermagem que tinha plenos poderes para a prestação dos cuidados de saúde, sendo que em pleno período de covid, fruto das contingências da pandemia, esses dados muitas das vezes não eram preenchidos e/ou nem eram analisados em tempo útil pela equipa de enfermagem. 35º Os dois ofendidos pelas idades que tinham e pelas fragilidades a nível de saúde que evidenciavam eram pessoas especialmente vulneráveis, sendo que o ofendido FF era totalmente dependente dos cuidados quotidianos que lhe eram prestados pelo E... Lar .... 36.º Os arguidos AA e BB não fizeram qualquer visita a estes utentes quando os mesmos estavam em isolamento e quarentena, como aliás não era costume fazerem, sendo que a arguida BB apenas costuma ter contacto com os utentes aquando da admissão, tudo isto sem prejuízo de eventuais visitas de rotina que poderiam fazer ao lar. 37º A arguida DD e a arguida CC não contactaram diretamente com o utente FF, nem lhe ministraram qualquer cuidado de higiene, comida ou de saúde, sendo que a arguida DD enquanto encarregada de piso 3, só em situações excecionais é que prestava tais serviços aos utentes e a arguida CC nunca o fazia. (…). Factos não provados - que as funções do presidente da direção, consagradas nos Estatutos E... Lar ..., fossem mais do que aquelas que foram dadas como provadas e que constam do art.º 52.º dos referidos estatutos; - que as funções de diretora técnica, responsável de piso ou encarregada geral fossem mais para além das que foram dadas como assentes - que a ofendida HH não se conseguisse alimentar sozinha e que estivesse totalmente dependente de terceiros para tomar as suas refeições e para beber água; - que o estado de desidratação que a ofendida HH apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do lar ... e que o mesmo fosse visível por qualquer funcionário zeloso; - que as AAD que prestaram cuidados ao utente FF tivessem interpretado de forma incorreta os dados revelados pela troca de fraldas; - que os arguidos devessem ter dado ações de formação às AAD para correta interpretação dos dados resultantes da troca de fraldas; - que os arguidos se tivessem demitido das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes aos cuidados que ocupavam e que essa hipotética omissão tenha sido causal do estado de desidratação que os utentes em causa sofreram. Indicação probatória quanto aos factos dados como provados e não provados (…) Procedendo à explicação dos motivos que nos levaram a considerar provados e não provados certos factos, entendemos que devemos fazer um ponto prévio. É que estes episódios ocorreram durante o início da pandemia por covid-19, sendo que os meses de Março e Abril de 2020 foram particularmente difíceis, com inúmeros contágios. Por causa disso, foram emitidas medidas especiais, tendo sido declarado o estado de emergência e tendo os lares de idosos sido encerrados e limitados os contactos com o exterior. Sempre que um doente era infetado com Covid 19 o mesmo tinha que ficar em isolamento e sempre que um utente dava entrada num lar de idosos, tinha que estar de quarentena por um período de 14 dias. Nos isolamentos e na quarentena o contacto com os utentes era o mínimo possível e feito pelo menor número de pessoas possíveis, as quais, mesmo com as restrições impostas pela DGS, tinham de cuidar das necessidades básicas dos utentes, a nível de saúde higiene e alimentação, bem como prestar os cuidados de saúde possíveis. Logo, qualquer juízo sobre a ação ou omissão dos arguidos, tem que levar em conta este quadro excecional, esclarecendo-se igualmente que as funções de cada um dos arguidos, nomeadamente a concretização do dever de fiscalização está na ténue fronteira entre a matéria de facto e a matéria de direito. No caso em apreço, os elementos clínicos, aqui se incluindo o parecer médico-legal junto aos autos, as informações hospitalares e as informações constantes dos registos internos do lar permitiram-nos dar como assentes os estados de saúde dos utentes do lar aqui em causa. Já quanto às funções que cada um dos arguidos desempenhava, os estatutos do lar e a informação de fls. 405 e 406 permitiram-nos dar como provadas as funções de cada um dos arguidos no lar, tendo em conta o cargo que ocupavam. Quanto a questões mais especificas, designadamente a concretização dessas funções, a alegada omissão de deveres funcionais por parte dos arguidos e as consequências dessas alegadas omissões na saúde dos utentes aqui em causa, a prova produzida não nos permitiu muito mais além do que aquilo que consta nesses documentos. Porém, alguma da prova produzida, nomeadamente dos depoimentos dos arguidos e das pessoas que lá trabalhavam, permitiram-nos concluir por uma total independência da equipa médica e de enfermagem nos cuidados de saúde. Por outro lado, eram as AAD quem contactava diretamente com os utentes, prestando-lhe os cuidados básicos de saúde e higiene, reportando sempre alguma situação anormal no livro de turno ou comunicando logo diretamente com os enfermeiros, sendo que eram apenas as AAD que prestavam os cuidados básicos de higiene e alimentação aos utentes, ficando as restantes pessoas na cadeia hierárquica com funções de gestão e organização. Quanto os utentes estavam com covid ou de quarentena os contactos eram reduzidos ao mínimo, conforme referido pela testemunha OO, de forma a evitar o contágio, como decorria das orientações da DGS. Também foi referido por todas as testemunhas a ausência de ações de formação das AAD, tendo sido referido expressamente que as mais novas apreendiam com as mais velhas. Foi referenciado e é do conhecimento comum a inexigência de habilitações para exercer as funções de AAD e a grande falta de profissionais qualificados no setor, sendo que no período do Covid essa falta ainda se fez sentir com maior acuidade atenta as grandes necessidades que se fizeram sentir e as inúmeras baixas médicas por doença dos profissionais desse setor – muitos ficaram infetados – aliado a um abandono de muitas pessoas que tiveram medo de ir trabalhar para os lares, por medo de contágio. A propósito das ações de formação, a testemunha OO, que tem formação como auxiliar de saúde, na área da geriatria, confirmou ser normal não haver ações de formação nesta área, referindo expressamente que nunca lhe foi ministrada, durante o curso que tirou, qualquer formação para a interpretação da urina nas fraldas, referindo que o conceito de pouco, muito ou normal advém do senso comum. Aliás, e um pormenor que apenas a imediação pode verificar, essa testemunha sorriu e mostrou surpresa quando lhe foi perguntado se era normal haver esse tipo de formação, aparentando considerar ridícula a questão que lhe foi colocada, “obrigando” o Tribunal a justificar e a enquadrar a pergunta colocada. Já a testemunha PP foi importante para descrever o normal funcionamento do lar e a forma como o mesmo funcionou no período Covid (a testemunha TT enfermeira do Lar depôs em sentido idêntico), principalmente no seu início, descrevendo um cenário quase de guerra, falando da ausência de muitos profissionais e no abandono de muitas práticas que até então se faziam. A esse propósito a testemunha PP, que era encarregada de setor - piso 2, afirmou expressamente que no seu piso, devido ao incremento de trabalho, deixaram de fazer o registo no livro de ocorrências, bem como o reporte dos cuidados de higiene e imagem dos utentes. Porém e não obstante esse depoimento, não deixamos de dar como assente o teor das fichas que constam de fls. 168 e 169 relativamente ao utente FF, uma vez que a testemunha era encarregada de piso diferente e as funcionárias que trabalharam no piso 3 (NN, OO, UU e KK), que era o piso do utente FF, não afirmaram em Tribunal que deixaram de cumprir esse procedimento, embora tenham colocado dúvidas sobre a autenticidade da sua assinatura nesses documentos, a qual consistia numa simples aposição das iniciais. As testemunhas VV e TT, enfermeiros do Lar, afirmaram terem total autonomia para prestar cuidado médicos, não reportando falhas graves de material no Lar, apenas referindo a enorme quantidade de serviço que tinham, pois consideravam o quadro de enfermagem insuficiente. Mais referiram que durante o Covid as visitas de rotina aos utentes passaram a ser o mínimo, pois a elevada quantidade de trabalho não o permitia, sendo que eram as AAD que contactavam diretamente com os utentes e lhes reportavam se algo de anormal se passava. A testemunha VV ainda referenciou a falta de meios no que concerne às AAD, explicando que muitas delas eram o primeiro emprego e sem qualquer formação, louvando o esforço dos mais antigos em ensinar e orientar as pessoas mais novas que entravam na instituição. Completou o seu depoimento referindo a normalidade deste facto, atenta a elevada falta de pessoas (qualificadas ou não qualificadas) para trabalhar nesta área. Por fim, nenhuma das testemunhas falou ser normal o presidente e a diretora do lar controlarem o estado de saúde dos utentes, verificando se os cuidados médicos lhe eram ministrados, atribuindo-lhes apenas funções de gestão e orientação, para o bom funcionamento da instituição, tendo a testemunha TT realçado o papel da arguida BB na organização dos serviços, nomeadamente na elaboração de turnos do pessoal. Continuando na análise probatória centremo-nos na situação da utente HH, em que o Digno Magistrado do Ministério Público consubstancia a sua acusação no estado de desidratação que a mesma apresentou quando foi levada para o hospital, referindo que tal estado se deveu a deficiente ingestão de líquidos que deveriam ter sido fornecidos pelo lar ..., salientando que naquela data não havia encarregada geral e a encarregada do setor -piso2- estava de baixa médica, concluindo por uma omissão de prestação de cuidados da instituição por responsabilidade do arguido AA, enquanto presidente da direção, e da arguida BB, enquanto diretora-geral da instituição. Sem cairmos na tentação de, nesta sede, tecermos considerações de direito, temos que da prova produzida se veio efetivamente a concluir que a testemunha PP estava de baixa médica, por ter sido infetada por covid 19. Isso mesmo foi confirmado por essa testemunha. Porém, não só essa testemunha esteve de baixa como muitas outras pessoas o estiveram em Abril de 2020, conforme foi dito pela enfermeira TT, que descreveu a situação naquele período como caótica, fruto da pandemia e da falta de meios que houve na altura, pois que muito do pessoal foi embora e outros ficaram infetados. Em relação à utente HH, a testemunha PP afirmou recordar-se da mesma, afirmando que a referida HH tinha autonomia para consumir refeições, o que também foi confirmado pela sua irmã, a testemunha WW. Esta última testemunha afirmou que fruto dos condicionamentos motivados pelo Covid ficou impossibilitada de visitar a irmã, estando muito magoada com o lar, pois que não lhe deu quaisquer informações sobre o estado de saúde da sua irmã, desde que começou o confinamento, apenas lhe tendo comunicado o seu falecimento, raramente atendendo os telefonemas que efetuou, sendo que quando faziam, não a deixavam falar com a irmã, nem lhe davam informações sobre a mesma. Dos elementos clínicos resultou que a mesma testou positivo ao Covid 19 em 19/04/2020 e que foi enviada ao hospital em 24/04, tendo vindo a falecer em 26/04. Na altura, em que deu entrada no hospital apresentou um estado de desidratação moderada. Dos elementos clínicos e do parecer médico junto aos autos, resulta que a utente tomava cerca de 16 horas diárias de oxigénio, o que pode determinar a secreção das mucosas, não havendo qualquer evidência, conforme referido no parecer médico-legal, de que o estado de desidratação das mucosas seria facilmente observado por cuidador zeloso. Com esta prova e tendo em conta os factos constantes da acusação demos como assente os factos em singelo, não sufragando qualquer conclusão vertida na acusação, embora de um modo não muito percetível, de que a instituição omitiu a sua obrigação de prestar os cuidados de saúde e de alimentação necessário ao bem-estar da utente. Na verdade, não ficou provado nem foi alegado que a instituição negou água ou comida à utente, apenas parecendo resultar que alguém dentro da instituição se deveria ter apercebido desse estado de desidratação mais cedo e que o mesmo era notório. Todavia, isso não resulta da prova produzida, pois que no parecer médico-legal o seu subscritor afirma não ter dados suficientes para dar uma resposta concreta a tal pergunta. Além disso, foi explicado pela testemunha GG, médico, que o estado das mucosas é apenas um dos elementos para aferir da desidratação, havendo muitos outros fatores a ter em conta para se poder efetuar um diagnóstico positivo. Se adicionarmos o estado caótico dos serviços, por todas as circunstâncias que acima referimos e que não podemos imputar a quem quer que seja e ainda o facto da utente estar infetada por covid 19, de que veio a falecer, o que fazia com que outras patologias como a possível desidratação não fossem tão evidentes face a essa doença mais grave, então não vislumbramos qualquer omissão por parte do pessoal do lar ... e muito menos do seu corpo dirigente. Já quanto à situação do utente FF verifica-se que o mesmo estava de quarentena na instituição por ter sido transferido do hospital. A sua situação de saúde também era evidente, estando totalmente incapacitado de prover os seus cuidados básicos de saúde, higiene e alimentação, necessitando de terceira pessoa para o efeito, pois estava cego e tinha uma perna amputada. Perante este cenário seria normal ter um acompanhamento mais próximo por parte dos funcionários do lar. Porém, não podemos deixar de salientar que estávamos num período de covid 19, sendo que apesar de Agosto de 2020 ter sido um período de acalmia, algumas medidas restritivas ainda eram adotadas. Uma delas era reduzir o contacto ao mínimo das pessoas que estavam isoladas ou de quarentena. Por tal facto, as visitas de rotina de enfermagem ou de outro pessoal de saúde estava reduzido ao mínimo essencial. Logo, apenas demos como provado os factos em singelo, bem como todo o quadro fático existente à volta deste utente, dando ainda como provados os elementos que referimos na parte geral relativamente ao estado de saúde do utente, quando da sua entrada no hospital, não deixando aqui de salientar o depoimento da testemunha GG que afirmou que o estado de saúde do utente era grave e o seu estado de desidratação era bastante elevado e que certamente resultaria de um processo evolutivo com 5 dias pelo menos. No entanto, esta testemunha explicou igualmente que o estado de desidratação não se revela com uma simples observação das mucosas, ou com a observação de urina nas fraldas, havendo outros elementos clínicos que conjugados nos podem conduzir a esse diagnóstico, devendo os elementos que supra referimos – urina e mucosas- constituírem fatores de alerta para um possível diagnóstico. Em relação a este utente, as testemunhas inquiridas - AAD e enfermeiros - afirmaram lembrarem-se do mesmo, mas não se recordarem da intervenção que tiveram com o referido utente. Já a arguida DD negou qualquer contacto com o utente, argumentando que a sua função era mais de gestão e que quem o acompanhava eram as AAD, tendo também salientado que apenas regressou ao serviço no dia 25 de agosto, após o gozo de férias. Ora, perante a falta de prova testemunhal e tendo sido junto aos autos o livro de ocorrências e o relatório dos cuidados de higiene, demos as informações constantes desses documentos como assentes, não obstante, como supra referimos, a testemunha PP ter dito que na altura não estavam a preencher o referido relatório por falta de tempo (a testemunha referiu-se ao seu piso – piso2- nada sabendo quanto ao piso 3). Por fim e quanto às funções dos arguidos, entendemos que a concretização do dever de fiscalização terá que ser feita em sede de direito, esclarecendo que apenas demos como assentes as funções que derivam dos estatutos e da informação do lar de ... de fls. 405 e 406, sendo que quanto ao contacto dos arguidos com os utentes aqui em causa, o mesmo foi inexistente, com exceção da arguida BB que teve contacto com o mesmo aquando da admissão. No resto, os arguidos negaram contacto e as testemunhas inquiridas e que trabalhavam na instituição sempre referiram, no que ao período em causa importa, que quando os utentes estiveram em isolamento ou quarentena apenas os AAD interagiram com os utentes. Já em relação aos enfermeiros, os mesmos (TT, VV e SS) depuseram que tinham total autonomia para efetivação de diagnósticos e cuidados de saúde, tendo a enfermeira SS referido que foi ela quem enviou o utente FF para o hospital, por ter sido alertada pela AAD que contactou diretamente com o utente FF que o mesmo não estaria bem». 3. 4. E, na decisão recorrida, da seguinte forma. (…) Impugnação da matéria de facto e vícios decisórios. O recorrente impugna parcialmente a matéria de facto considerada provada constante do ponto 9), considerando que a prova produzida na audiência de julgamento, de natureza documental, impõe que da sua redação fique a constar o segmento «andava algaliada cronicamente», incluído no despacho de acusação. E considera, para além disso, que a decisão enferma dos vícios de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova (vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP). (…) O ponto 9) da matéria de facto provada tem o seguinte teor, reproduzindo parcialmente o que constava do despacho de acusação: «A ofendida HH padecia de doença neurológica degenerativa (paraparésia espática hereditária) confirmada em 2009, movimentava-se em Cadeiras de Rodas, mas mantinha independência para certas atividades, designadamente para alimentação». Considera o recorrente que a prova documental constante dos autos comprova que a ofendida HH tratava-se de doente «algaliada cronicamente», inexistindo qualquer justificação que o tribunal a quo tivesse feito constar da motivação da decisão de facto para a exclusão daquele segmento. Analisando a prova documental indicada pelo recorrente [em concreto, o «relatório de urgência» referente à admissão da mencionada ofendida no serviço de urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, provinda do Lar de ..., no dia 3/4/2020, constante do Anexo 3 junto aos autos] verificamos que, efetivamente, tal meio de prova comprova que a ofendida HH, internada no Lar de ..., tratava-se de doente «algaliada cronicamente», o que deve ser incluído no ponto 9) dos factos provados, de forma coincidente com o que consta do mesmo ponto da acusação [«andava algaliada cronicamente»]. Na verificação dos vícios da contradição entre os factos provados e os não provados e do erro notório, foi ainda alterada a matéria de facto, tendo-se aditado ao elenco dos factos provados os seguintes, reproduzindo o sentido da factualidade constante da acusação: - O estado de desidratação [da utente QQ] deveu-se a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do E... Lar ... que dela cuidavam (aditamento à matéria de facto provada, reproduzindo parcialmente o artigo 13.º da acusação – o que, como vimos, também decorria da supressão do vício de contradição insanável, já tratado). - Encontrando-se a ofendida QQ aos cuidados da arguida E... Lar ... e podendo e devendo a instituição assegurar a alimentação, saúde e demais cuidados necessários ao seu bem-estar, através dos seus diferentes colaboradores, por falta de cuidado e de assistência, que podia e devia ter prestado, mas omitiu, foi a responsável do estado de desidratação em que a ofendida se encontrava, quando no dia 24/4/2020 deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (artigo 17º da acusação, corrigindo-se o erro de escrita aí constante quando à menção da data). - O estado de desidratação deste ofendido [FF] deveu-se a uma insuficiente ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos pelos colaboradores do E... que dele cuidavam e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, sendo que o utente tomava diuréticos o que acelera o processo de desidratação e impõe a toma de mais líquidos (correção do ponto 25) da factualidade provada, em consonância com o artigo 26º da acusação). - Não obstante se ter detetado uma diminuição progressiva da urina na fralda a partir de 27 de Agosto, que deveria funcionar como alerta para o cuidador de que algo não estaria a correr com normalidade a nível do fornecimento dos recursos hídricos ao ofendido, as Auxiliares de Ação Direta que nos dias 27 e 28 de Agosto cuidaram do ofendido, cuja identidade não foi possível apurar, não solicitaram a intervenção da Equipa de Enfermagem nem promoveram a sua ida ao hospital, o que apenas ocorreu no dia 29 de Agosto (correção do ponto 31) da matéria de facto provada, em parcial consonância com o alegado no artigo 30.º da acusação). - Igualmente, a correção do comportamento de quem diretamente cuidou deste utente (AAD) não foi efetuada pelas chefias, por se terem demitido do exercício das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes ao cargo que ocupavam (aditamento ao elenco dos factos provados, reproduzindo o artigo 33.º da acusação). - Encontrando-se o ofendido FF aos cuidados da arguida E... Lar ... e podendo e devendo a instituição assegurar a alimentação, saúde e demais cuidados necessários ao seu bem-estar, através dos seus diferentes colaboradores, por falta de cuidado e de assistência, que podia e devia ter prestado, mas omitiu, foi a responsável do estado de desidratação em que o ofendido se encontrava, quando no dia 29/8/2020 deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (artigo 34º da acusação). - Pelas funções que os arguidos AA, BB, CC e DD desempenhavam na estrutura do E... Lar ... recaía o dever jurídico de acompanhar, vigiar e fiscalizar a prestação dos cuidados básicos prestados aos utentes nele acolhidos pelos diferentes colaboradores, de forma a assegurar e garantir a sua saúde e bem-estar geral, servindo a sua intervenção para corrigir, debelando ou reduzindo o mais possível qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos prestados aos residentes e aqui ofendidos QQ e FF (artigo 36.º da acusação). - Ao omitir o dever de vigilância e fiscalização, os arguidos AA e BB representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral dos dois ofendidos e, apesar disso, permaneceram inativos, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, o que lhes causou sofrimento (artigo 37.º da acusação). - Do mesmo modo, ao omitir o dever de acompanhamento, vigilância e fiscalização, as arguidas CC e DD representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral do ofendido FF e, apesar disso, permaneceram inativas, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontrava aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (artigo 37.º da acusação). - Atuaram livres, conscientes e voluntariamente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei (artigo 38.º da acusação). Simultaneamente, devem ser eliminados os seguintes segmentos da matéria de facto não provada, para além dos referenciados através de formulação genérica utilizada pelo tribunal a quo («outros factos alegados na acusação, contestação ou durante a discussão da causa, que se mostrem em contradição com os factos dados como provados ou por eles prejudicados»): - que o estado de desidratação que a ofendida HH apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do Lar ...; - que os arguidos devessem ter dado ações de formação às AAD para correta interpretação dos dados resultantes da troca de fraldas; - que os arguidos se tivessem demitido das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes aos cuidados que ocupavam e que essa hipotética omissão tenha sido causal do estado de desidratação que os utentes em causa sofreram. (…). Com base na seguinte fundamentação: Sustenta o recorrente que o acórdão objeto do presente recurso padece do vício de contradição insanável entre os factos provados e os não provados, argumentando que o segmento que o tribunal a quo considerou não ter ficado provado - «o estado de desidratação que a ofendida HH apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do lar ... e que o mesmo fosse visível por qualquer funcionário zeloso» – está em contradição com o conteúdo dos artigos 1º, 2º, 4º e 6º inseridos no elenco dos factos provados. Vejamos, então. O conteúdo dos pontos 1), 2), 4) e 6) da matéria de facto provada é o seguinte: 1) Como Instituição Particular de Solidariedade Social, registada na Direção Geral da Segurança Social (DGSS) sob a inscrição n.º 17/84, desde 06/06/1984, o Lar ... é uma pessoa coletiva sem fins lucrativos, que tem como fins e principais atividades a concessão de bens, prestação de serviços e outras iniciativas de promoção do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades, nomeadamente nos domínios do apoio a pessoas idosas e na resposta social da estrutura residencial para pessoas idosas (E...). Tem as suas instalações na Rua 1, em Vila Nova de Gaia. 2) Em termos de funcionamento o E... Lar ... apresenta uma organização estruturada em que no topo da hierarquia se situa o Presidente da Direção, a seguir a Diretora Técnica, no nível abaixo a Chefe de Serviços Gerais, no seguinte as Encarregadas de Sector (Piso) e na base as Auxiliares de Acão Direta (AAD). 4) A Direção Técnica do E... compete a um técnico, cujo nome, formação e conteúdo funcional se encontra afixado em lugar visível e a quem cabe a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo. À Diretora Técnica compete, em geral, dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. É também responsável pela criação de uma estrutura administrativa para gerir a instituição, colaborando igualmente na verificação e custos e planeamento de utilização de mão-de-obra, equipamento materiais e instalações, controlando os respetivos serviços. - à Chefe de Serviços Gerais compete organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais; - às Encarregadas de Sector (Piso) compete coordenar no seu sector o serviço prestado pelo E... através das Auxiliares de Ação Direta aos residentes, colaborar na elaboração das escalas de serviço, controlar e requisitar os serviços indispensáveis ao normal funcionamento dos serviços, zelar perlo cumprimento das regras de segurança e higiene no trabalho e verificar o desempenho das tarefas atribuídas às AAD. - às Auxiliares de Ação Direta (AAD) realizar atividades de higiene, mobilização, alimentação do utente, manter as condições de limpeza e higienização nas instalações, garantir o cumprimento das prescrições médicas, fazer acompanhamento e zelar pelo bem-estar geral do utente. 6) Todas estes agentes exerciam as suas funções em virtude de um vínculo que os habilitava a assegurar o bem-estar dos utentes acolhidos no E..., agindo em nome e no interesse da instituição Lar .... (…) Ora, a circunstância de a utente HH preservar autonomia para a realização de algumas atividades, alimentando-se sozinha, não significa, obviamente, que não carecesse de apoio, vigilância e supervisão por parte das colaboradoras do Lar de ..., que dela cuidavam, designadamente no que toca à ingestão de recursos hídricos em quantidade necessária, tanto mais que, como reconheceu o tribunal a quo nos pontos 9) e 35) da matéria de facto provada, a ofendida, pelas comorbilidades que apresentava, tratava-se de pessoa especialmente vulnerável. Sendo assim, e considerando, ainda, a natureza das obrigações assumidas pelo E... Lar ... para com a utente HH, com vista à satisfação de todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene e medicação de que esta carecia (cf., para além da factualidade expressamente invocada pelo recorrente, também o que resultou provado no ponto 8), parece-nos flagrantemente contraditória com esta realidade a negação, constante do elenco da factualidade considerada não provada, de que «o estado de desidratação que a ofendida HH apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do lar ...». Como assinala o recorrente, o quadro de desidratação não é um estado normal da pessoa humana e, no caso em apreço, o estado de desidratação que a utente evidenciava quando foi observada pela equipa médica do serviço de urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia – classificável, medico-legalmente, como de gravidade moderada a grave (cf. os pontos 11) e 12) considerados provados) - resultou, como reconheceu o tribunal a quo, da não ingestão de substâncias hídricas em quantidades suficientes para compensar as perdas (cf. o ponto 13), sendo que, naturalmente, o seu fornecimento - ou, de modo equivalente, a supervisão da toma de líquidos em quantidades adequadas (pois que é naturalmente exigível que a instituição garanta que os utentes ingerem líquidos nas quantidades necessárias para garantir uma adequada hidratação, devendo ser-lhes fornecidos tais recursos hídricos quando estes não os tomem de todo ou quando tais líquidos ingeridos espontaneamente sejam insuficientes) – competia aos colaboradores do Lar de ..., entidade que assumiu a obrigação de cuidar da referida utente, especialmente vulnerável, já que padecia de doença neurológica degenerativa diagnosticada em 2009, deslocava-se em cadeira de rodas e andava cronicamente algaliada, encontrando-se, para além disso, doente com covid 19 e, por esse motivo, em isolamento, tal como assinalou o tribunal a quo na motivação da decisão de facto constante do acórdão recorrido. Importa, assim, suprir a contradição insanável evidenciada, eliminando do elenco da factualidade não provada o descrito segmento factual dele constante [«que o estado de desidratação que a ofendida HH apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do Lar ...»] e corrigindo-se a redação do ponto 13) da matéria de facto provada, por forma a fazer constar da matéria de facto provada, em sintonia com o que constava do despacho de acusação, o seguinte: «O estado de desidratação deveu-se a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do E... Lar ... que dela cuidavam». Resolvida esta questão, importa, agora, indagar se a decisão recorrida está afetada de «erro notório na apreciação da prova» - vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP -, como sustenta o recorrente. (…) Densificando o vício decisório cuja análise agora nos ocupa, começa o Ministério Público /recorrente por assinalar, reportando-se ao segmento da matéria de facto não provada anteriormente tratado, o seguinte: «No segmento específico de o estado de desidratação que a ofendida HH apresentava “não ser visível por qualquer funcionário zeloso”, pode ainda configurar o vício do erro notório na apreciação da prova, do n.º 2, alí. c) do art. 410.º do CPPenal. Com efeito, tendo-se considerado no artigo 12.º dos factos provados que o estado de desidratação sofrido pela utente era do ponto de vista médico-legal de gravidade moderada a grave, decorre da experiência comum que estes estados de desidratação habitualmente estão associados a sintomas como dores de cabeça, cansaço, boca seca, redução da urina, que, a terem existido, como seria expectável no caso desta residente, facilmente poderiam ser percecionados por cuidador atento e zeloso, o que não aconteceu. Por outro lado, como atrás já se consignou, “porque se trata de factos de conhecimento geral decorrente de um grau mínimo de experiência de vida e da vulgarização e massificação de certos ensinamentos básicos de ciência médica ao alcance de todos nós, nem os estados de desnutrição e de desidratação são fenómenos súbitos ou de emergência espontânea, antes constituem condição física que são o culminar de um processo mais ou menos prolongado no tempo e que são fortemente indiciadores da qualidade (ou falta dela) dos cuidados de alimentação, higiene, saúde e bem estar físico prestados à pessoa que os apresenta” – Ac da Relação de Lisboa de 23/02/2022, Relatora Desembargadora Cristina Almeida e Sousa- donde, a conclusão a extrair é a de caso esta residente tivesse sido tratada por cuidadores atentos, interessados e com conhecimentos da atividade, facilmente teriam concluído que a utente se encontrava em processo progressivo de desidratação». Não reconhecemos, porém, razão ao recorrente na crítica que, neste âmbito, dirige ao acórdão recorrido, não se evidenciando pela leitura da decisão em causa que o tribunal a quo, julgando não provada a matéria factual relacionada com a cognoscibilidade do estado de desidratação evidenciado pela utente QQ por «qualquer funcionário zeloso», haja violado regras da experiência comum ou ainda regras de valoração da prova vinculada (maxime, de natureza pericial). Com efeito, todos os sintomas físicos enunciados pelo recorrente [dores de cabeça, cansaço, boca seca, redução da urina] assentam num exercício meramente especulativo, sem tradução na factualidade especificamente atendida pelo tribunal a quo (e que, de resto, nem sequer estavam descritos no despacho de acusação, como se constata da respetiva leitura). Além disso, o tribunal faz menção ao parecer médico-legal constante dos autos, salientando que não existia qualquer evidência, conforme ali referido, que «o estado de desidratação das mucosas seria facilmente observado por cuidador zeloso», acrescentando que «foi explicado pela testemunha GG, médico, que o estado das mucosas é apenas um dos elementos para aferir da desidratação, havendo muitos outros fatores e ter em conta para se poder efetuar um diagnóstico positivo». Prossegue o recorrente, assinalando a existência de «erro notório na apreciação da prova» relativamente ao segmento da matéria de facto não provada relacionado com a invocada incorreta interpretação dos dados revelados pela troca das fraldas [«que as AAD que prestaram cuidados ao utente FF tivessem interpretado de forma incorreta os dados revelados pela troca de fraldas»]. Ora, apesar de nos parecer evidente que era efetivamente exigível ao E... Lar ... que tivesse dado ações de formação às AAD, designadamente para correta avaliação do estado de hidratação dos utentes acamados – como era o caso do utente FF – através do controlo das fraldas, a simples leitura do acórdão recorrido não evidencia a ocorrência de um erro na apreciação da prova – e, muito menos, de forma notória – por referência ao segmento factual em apreço. Com efeito, é certo que as auxiliares de ação direta que nos dias 27 e 28 de agosto cuidaram do ofendido não solicitaram a intervenção da Equipa de Enfermagem – como deveriam -, nem promoveram a sua ida ao hospital, o que apenas ocorreu no dia 29 de agosto. Contudo, os elementos disponíveis resultantes do acórdão não revelam se tal omissão ficou a dever-se, efetivamente, a deficiente interpretação dos dados resultantes da observação da urina contida nas fraldas do utente FF ou a qualquer outro motivo (descuido, desatenção ou até esquecimento por parte das AAD). Já a conclusão de que os arguidos se demitiram das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes aos cargos que ocupavam e que essa omissão foi causal do estado de desidratação que os utentes em causa sofreram – conclusão excluída pelo tribunal a quo, levando, por isso, à inclusão da factualidade respetiva na matéria de facto não provada – impunha-se como decorrência lógica dos factos que o tribunal, no acórdão recorrido, considerou terem ficado provados e, em particular, dos que constam dos pontos 1), 2), 3), 4), 5), 6) – estes, relacionados com as funções atribuídas aos cargos dirigentes do E... e respetivos colaboradores - e 7), 8), 9), 13),16), 18), 20), 21), 25), 26), 27), 28), 29), 30), 31), 32), 33), 35), 36) e 37) da matéria de facto provada. Como foi reconhecido pelo tribunal a quo, os dois ofendidos, pelas idades que tinham e pelas fragilidades a nível de saúde que evidenciavam, eram pessoas especialmente vulneráveis, sendo que o ofendido FF era totalmente dependente dos cuidados quotidianos que lhe eram prestados pelo E... Lar ... (cf. o ponto 35 da matéria de facto provada). O Lar ... é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que tem uma estrutura residencial para idosos, prestando esse serviço, tendo sido utentes desta estrutura a ofendida HH (nascida em D/M/1952), no período compreendido entre 22/8/2018 a 26/4/2020 (data do seu óbito), e o ofendido FF (nascido em D/M/1928), no período de 18/08/2020 a 29/08/2020. Competia, assim, ao Lar ... assegurar a execução das tarefas necessárias a garantir o bem-estar e saúde dos respetivos utentes, provendo diariamente pela sua alimentação e cuidados médicos. Deste modo, e como bem assinala o recorrente, da factualidade apurada pelo tribunal resulta inequivocamente configurada a sua posição de garante da saúde física, mental e do bem-estar emocional dos utentes que tinha a seu cargo, particularmente destes dois ofendidos, derivada do especial contexto relacional de confiança e de apoio à satisfação das necessidades a que a instituição arguida estava contratualmente obrigada e, ainda, a situação de vulnerabilidade e dependência, fruto da doença das duas vítimas [e também da sua idade avançada, no que concerne ao ofendido FF]. É de notar que, no que concerne à utente QQ, a circunstância de preservar autonomia para a realização de algumas atividades, alimentando-se sozinha, não significa, como já tivemos oportunidade de assinalar, que não carecesse de apoio, vigilância e supervisão por parte das colaboradoras do Lar de ..., que dela cuidavam, designadamente no que toca à ingestão de recursos hídricos em quantidade necessária, uma vez que, como reconheceu o tribunal a quo nos pontos 9) e 35) da matéria de facto provada, a ofendida, pela condição de saúde que apresentava, tratava-se de pessoa especialmente vulnerável. Reconhece-se que a situação pandémica, então vivenciada, introduziu restrições relevantes ao nível do contacto direto com os utentes deste tipo de estabelecimentos, impondo, em determinados casos, medidas de isolamento obrigatório, como sucedeu com o utente FF (cf. o ponto 18) e, tanto quanto resulta do acórdão recorrido, também com a utente QQ. Contudo, nem tal circunstância, nem o facto de competir às AAD fazer o acompanhamento direto aos utentes, pode significar um esvaziamento das funções de organização, supervisão e vigilância atribuídas ao Presidente do Lar e, em especial, à Diretora Técnica, à Chefe de Serviços Gerais e à Encarregada de Piso. Recordemos o que ficou assente nos pontos 3) e 4) da matéria de facto provada, com relevo para apreciação da questão que nos ocupa: 3.º Nos termos do art.º 52.º dos Estatutos do referido lar compete ao Presidente da Direção: a) Superintender na administração do Lar ... orientando e fiscalizando os respetivos serviços. 4.º - A Direção Técnica do E... compete a um técnico, cujo nome, formação e conteúdo funcional se encontra afixado em lugar visível e a quem cabe a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo. À Diretora Técnica compete, em geral, dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. É também responsável pela criação de uma estrutura administrativa para gerir a instituição, colaborando igualmente na verificação e custos e planeamento de utilização de mão-de-obra, equipamento materiais e instalações, controlando os respetivos serviços. - à Chefe de Serviços Gerais compete organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais; - às Encarregadas de Sector (Piso) compete coordenar no seu sector o serviço prestados pelo E... através das Auxiliares de Ação Direta aos residentes, colaborar na elaboração das escalas de serviço, controlar e requisitar os serviços indispensáveis ao normal funcionamento dos serviços, zelar pelo cumprimento das regras de segurança e higiene no trabalho e verificar o desempenho das tarefas atribuídas às AAD. Dir-se-á, até, que as especiais limitações e dificuldades decorrentes da situação pandémica deveriam ter levado aqueles que, na estrutura, exerciam funções de organização, liderança, vigilância e supervisão a uma maior e atenta intervenção, de forma a garantir que os serviços prestados pelo E... asseguravam os cuidados básicos destes utentes. Sucede que, não obstante os arguidos AA, BB, CC e DD terem, estatutariamente, funções de supervisão, vigilância e coordenação, aparentemente não as exerciam relativamente ao desempenho das AAD, limitando-se a confiar nas informações por elas prestadas, designadamente à equipa de enfermagem (cf. os pontos 27), 31), 33), 36) e 37) da matéria de facto provada), apesar de ser conhecida a falta de formação técnica específica daquelas profissionais (cf. os pontos 32) e 33) considerados provados). Sendo particularmente evidente a gravidade da omissão deste dever de vigilância em relação ao ofendido FF, dada a sua condição de dependência absoluta dos cuidados que lhe eram prestados – impondo-se, por isso, que o E..., conhecedor deste facto, tivesse delineado estratégias com vista a garantir uma adequada ingestão hídrica por parte do utente (cf. os pontos 7, 22, 24 e 25) -, também estamos convictos de que a circunstância de a utente QQ se alimentar por si e de o seu estado de desidratação, de gravidade moderada a grave, poder não ser percetível, não afasta a responsabilidade do Lar, por se ter obrigado a prestar-lhe todos os cuidados necessários ao seu bem estar através dos diferentes colaboradores que trabalhavam para si, sejam aqueles que diretamente tinham essa tarefa (as AAD), como aqueles que ocupavam cargos de chefia e que tinham a missão de se certificar da qualidade do serviço prestado, mostrando-se exigível a adoção de procedimentos adequados à concretização de tal objetivo. Neste sentido, assume relevância, como salienta o recorrente, que só após o episódio ocorrido com o utente FF quem dirigia o Lar deu instruções específicas para a hidratação dos utentes, o que não existia até então (cf. o ponto 48) dos factos provados), evidenciando uma falha ao nível dos procedimentos adequados que, a par da inexistência de efetiva e eficaz vigilância dos serviços e cuidados prestados pelas AAD, esteve na origem do estado de desidratação que afetou os dois utentes, realidade que deveria ter sido reconhecida pelo tribunal coletivo, pois regras da lógica e da experiência comum assim o impunham. É de notar, aliás, que o tribunal a quo considerou provado, no ponto 37), que «A arguida DD e a arguida CC não contactaram diretamente com o utente FF, nem lhe ministraram qualquer cuidado de higiene, comida ou de saúde, sendo que a arguida DD enquanto encarregada de piso 3, só em situações excecionais é que prestava tais serviços aos utentes e a arguida CC nunca o fazia», o que revela que a situação de delegação quase absoluta da responsabilidade por todos os cuidados prestados aos utentes nas AAD precedia o contexto pandémico. Dito isto, não podemos deixar de assinalar que a análise da prova (tal como se encontra enunciada na decisão recorrida), em conjugação com juízos de normalidade decorrentes da experiência comum, implicava que o tribunal tivesse retirado as necessárias ilações quanto ao dolo dos arguidos. Com efeito, a prova do dolo, na ausência de confissão, assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível dos arguidos, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum. Como é assinalado no acórdão do TRP de 27/1/2021 (disponível em www.dgsi.pt), a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico da pessoa e só a ela se chega através de factos externos ao agente e, assim, através de prova indireta. Ora, sabendo-se que se tratava de utentes com as caraterísticas atrás referidas, que os tornava pessoas especialmente vulneráveis, e demitindo-se os arguidos de exercer as suas funções de organização, vigilância, inspeção e orientação das AAD, comportamentos que serviriam para corrigir ou reduzir ao mínimo qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos que lhes eram prestados, impunha-se logicamente a conclusão de que os arguidos admitiram como possível que de tal omissão poderiam resultar para aqueles utentes estados de desidratação, conformando-se com tais resultados. É esta, efetivamente, a única conclusão lógica a extrair da globalidade da prova e dos demais factos feitos constar no elenco da factualidade provada – tarefa que o tribunal não levou até ao fim, quando regras da experiência e da lógica assim o impunham, incorrendo, deste modo, num erro notório na apreciação da prova. Exigia-se, assim, na conclusão de uma tarefa consequente com os princípios da lógica e adequada valoração da prova apreciada na sua globalidade, tal como se encontra enunciada na decisão recorrida, a seleção dos factos que se afiguravam congruentes com a atuação dolosa dos arguidos AA, BB, CC e DD. 3. 5. Apenas em benefício de uma melhor e mais cabal exposição da contextualização dos factos e dos fundamentos da apreciação crítica da prova, passamos, da mesma forma, a enunciar os fundamentos de direito das decisões das instâncias. “ (…) Analisando os factos temos que os arguidos não vêm acusados por nenhuma ação, mas sim por omissão. E aqui a omissão consiste no facto dos utentes em causa não terem ingerido líquidos em quantidade suficiente para evitar que tivessem ficado desidratados e de tal facto se ter ficado a dever à circunstância de não lhe terem sido ministrados pelos colaboradores do E..., bem como ao incumprimento do dever de controlar a atividade das AAD de quem teria essa obrigação dentro da instituição. Da factualidade provada ficou assente que eram as AAD que tinham contacto direto com os utentes, sendo elas as responsáveis pela prestação dos cuidados de higiene e alimentação dos utentes. Questão que se coloca é saber se essas técnicas deram ou não quantidade suficiente de líquidos aos utentes para evitar a desidratação. Ora, de uma forma objetiva temos que responder que os líquidos que os utentes ingeriram não foram suficientes para compensar a perda, mas isso não significa que tenha havido culpa de alguém no deficit de líquidos que foi detetado nos utentes. Com efeito e desde logo o verbo dar tem de ser entendido de forma diferente relativamente aos dois utentes, pois que a utente HH conseguia alimentar-se sozinha e o utente FF não. Logo, entendemos que o termo mais correto, relativamente à utente HH, será o de proporcionar e em relação ao utente FF ministrar. E aqui esta distinção prende-se com o facto da utente HH ter autonomia suficiente para se alimentar o que não sucedia com o utente FF. Prosseguindo na análise temos que foi diagnosticada à utente HH uma desidratação moderada a grave, apresentando mucosas coradas, mas desidratadas. O estado de desidratação resultou da insuficiente toma de líquidos que compensassem as perdas, sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal. Por fim, entre 19 de Abril a 24 de Abril de 2020, a utente HH estava em isolamento por ter dado resultado positivo ao Covid. Com estes factos e não tendo ficado assente que alguma vez tenha sido negada água ou líquidos à utente e estando a mesma em isolamento e em condições de se alimentar a si mesma, não vislumbramos em que medida possa ter havido qualquer atitude negligente dos funcionários do lar, no que concerne a esta doença - desidratação. Na verdade e começando pelo primeiro argumento, a utente alimentava-se sozinha e não estava totalmente dependente de terceiro, pelo que a toma de líquidos não tinha que ser ministrada pelos funcionários, mas apenas proporcionada – colocar água à disposição. Também verificar e acompanhar se a utente bebia ou não a água que lhe era proporcionada é algo difícil de se fazer e algo que naquela altura, com inúmeros casos graves de covid, não seria preocupação primordial dos funcionários do lar. Acresce que essa desidratação não era visível – as mucosas não estavam coradas - pelo que teria que haver um diagnóstico mais profundo, algo que apenas poderia ser efetuado por equipas de enfermagem ou equipas médicas. Assim sendo e se houvesse alguma responsabilidade pelo estado de saúde da HH, designadamente pelo seu estado de desidratação, a mesma seria da equipa médica ou de enfermagem, pois que as mesmas, no Lar ..., tinham total autonomia para efetuar diagnósticos, o que aliás constituiu uma prática usual e é uma boa prática. Mas será que houve? Os factos em causa sucederam-se em pleno período de pandemia, no seu início, em que as medidas decretadas eram um pouco contraditórias, havendo mais dúvidas que certezas sobre o que fazer. Nesse período e por haver elevados surtos de covid em lares, foi decretado o encerramento dos mesmos. No Lar ... muita gente foi infetada, estando em Abril de 2020, cerca de 20 funcionários do lar ausentes do serviço, por variadas razões – infetados, isolamento obrigatório ou recusa em trabalhar. O estado de desidratação que a utente HH padecia - moderada/grave - resultou da insuficiente toma de líquidos que compensassem as perdas, sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal. A utente HH estava infetada com covid, estando em isolamento coercivo. Naquela altura e para evitar o contágio, os contactos com os infetados eram reduzidos ao mínimo possível. A utente tinha autonomia para se alimentar. A desidratação não era visível nas mucosas. A utente veio a falecer por covid e não por desidratação. Com este quadro não vislumbramos em que medida tenha havido qualquer negligencia ou qualquer omissão por parte da equipa médica ou de enfermagem, não lhes sendo exigível qualquer outro comportamento. Com efeito e com o diagnóstico de covid 19, a doença a tratar era essa, sendo que não estando visível a desidratação, não era expetável que se fizesse um despiste a essa doença, uma vez que a mesma não era prioritária. Além disso, não nos podemos esquecer do quadro caótico que se viveu na altura em causa e na redução de contactos ao mínimo para evitar a proliferação da doença, pelo que não era exigível ao corpo clínico que verificasse a possibilidade de uma desidratação ou não. Porém, não são as AAD e o corpo clínico que estão a ser julgados, mas sim a direção do lar, por alegadamente não ter exercido corretamente o seu dever de fiscalização no que concerne à utente HH, tendo permitido que a desidratação existisse e não fosse detetada. Ora, como já referimos não houve qualquer falha dos funcionários do lar a negar líquidos ou a não os proporcionar à utente, nem tampouco qualquer negligência na omissão de diagnóstico, pelo que não há qualquer responsabilidade dos arguidos AA e BB. No entanto e mesmo que tivesse havido negligência na omissão do diagnóstico ou falha na ação das AAD, o que não ocorreu, consideramos que mesmo assim os arguidos BB e AA não teriam praticado qualquer crime, no que se refere à utente HH. Na verdade, não concordamos minimamente com a interpretação que o Digno Magistrado do Ministério Público parece fazer dos estatutos e do conceito geral do dever de fiscalização, sendo que da prova produzida não se pode retirar idêntica conclusão. Com efeito e desde logo estamos perante uma instituição de caráter social que emprega dezenas de pessoas e serve centenas de utentes. Esta instituição tem carater hierarquizado, estando o presidente da direção, na altura o arguido AA, no topo dessa pirâmide e a arguida BB no lugar imediatamente a seguir. Como qualquer pessoa que ocupe uma posição de topo numa hierarquia, as suas funções são mais de gestão, deliberação e orientação do que de execução, propriamente dita. Mas isso não significa que também não tenham responsabilidade na execução dos planos que delinearam ou das linhas gerais que traçaram e que fiquem eximidos do dever de verificar se as suas decisões estão a ser implantadas e de forma correta. Aplicando o que referimos no caso concreto, o poder de fiscalização desses arguidos seria apenas o de verificar e providenciar para ter equipas médicas ou de enfermagem para acompanhar os utentes e não de se intrometer nos seus diagnósticos ou tratamentos. Já no que concerne aos AAD o dever de execução e de fiscalização dos arguidos é apenas de garantir a sua existência e da existência em número suficiente para o bom funcionamento dos serviços, bem como garantir que têm meios suficientes para executar corretamente o seu trabalho, não se eximindo também de, quando alertados por utentes, terceiros ou por pessoas que trabalhem na instituição – não é expetável que um presidente da direção de uma instituição com carater social com centenas de trabalhadores ou de uma diretora-geral dessa instituição estejam a controlar e monitorizar as ações dos seus funcionários, antes deixando tal função para cadeias hierárquicas inferiores - exercer o seu poder hierárquico – dar ordens – ou disciplinar caso a função dos AAD não esteja a ser corretamente exercida. Se assim não entendêssemos e perfilhássemos da posição do Digno Magistrado do Ministério Público, então o dever de fiscalização iria do topo ao final da cadeia hierárquica, tendo qualquer superior hierárquico que fiscalizar todos os elementos que lhe são inferiores nessa cadeia, não podendo delegar tal poder, pois que poderiam ser sempre responsabilizados criminalmente por atos dos seus subalternos. E isto não significa que não possam ser comprometidos por falhas dos seus subalternos, mas em sede de outro tipo de responsabilidade, como a política, ética ou moral mas não sob a alçada da responsabilidade criminal. Assim e a titulo de exemplo, ao perfilhar-se esta posição (do Ministério Público), os diretores dos bancos seriam sempre e independentemente das circunstâncias responsáveis criminalmente por abusos de confiança dos seus funcionários, ou um diretor do hospital como o hospital de São João ou Santa Maria seria sempre responsável por um errado diagnóstico médico prestado na sua instituição ou os diretores nacionais das polícias seriam sempre responsáveis criminalmente por qualquer crime cometido pelo respetivo agente policial, etc. Claro que não é assim, não se podendo confundir a responsabilidade cível e possivelmente criminal da instituição, com a responsabilidade criminal do seu representante máximo ou do seu diretor-geral, confundindo-se o dever de fiscalização e/ou de controle com a obrigação de todos os funcionários executarem corretamente a sua função. A defender esta tese não haveria necessidade de haver chefias e postos intermédios, pois que a responsabilidade última seria sempre do cargo superior da empresa. No caso e no que concerne à utente HH, não se verificou a prática de qualquer omissão por parte dos funcionários ou do corpo clínico da instituição, sendo que a existência da desidratação da referida utente e o seu não diagnóstico pelo corpo clínico não pode ser imputado a alguém da instituição. Com isto não queremos referir que a morte de um utente não seja sempre de lamentar e que o facto referido pela irmã da utente de que a instituição nunca lhe deu noticias sobre a HH não seja de censurar- que é -, mas simplesmente que as pessoas acusadas não cometeram qualquer crime e que a sua alegada atuação, neste caso omissão, não teve qualquer nexo de causalidade com a morte da utente, que se deveu a uma doença que vitimou milhões de pessoas no mundo inteiro (últimos dados falam de 6.919.573 pessoas). Quanto ao utente FF, deve-se aplicar o mesmo raciocínio, havendo que tecer mais algumas considerações, pela diferença da situação, nomeadamente pelo facto de haver mais pessoas da cadeia hierárquica a serem acusadas e de, felizmente, a doença em causa ter sido detetada e tratada a tempo, não ocorrendo um desfecho fatal como no caso da utente HH. Acresce que para além de repetir a formulação genérica da responsabilidade criminal das pessoas individuais que formulou relativamente à utente HH, o Digno Magistrado do Ministério Público concretizou a omissão do dever de cuidado por parte das funcionárias do lar, com base num errado diagnóstico na análise da urina nas fraldas do utente FF, acusando as arguidas CC e DD de, na qualidade de superiores hierárquicas, não terem corrigido esse diagnóstico, e os arguidos AA e BB de não terem ministrado às funcionárias do lar ações de formação necessárias tendentes à correta interpretação desses dados. Ora, não podemos concordar minimamente com tal interpretação, sendo que a mesma não tem qualquer correspondência com a realidade. Primeiro ponto: o utente FF estava desidratado e, sendo uma pessoa tolamente dependente de terceiros, o estado de desidratação deste ofendido deveu-se a uma insuficiência ingestão de recursos líquidos e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, sendo que o utente tomava diuréticos o que acelera o processo de desidratação e impõe a toma de mais líquidos. Logo, e objetivamente a responsabilidade por esse facto poderia ser imputada a quem estava encarregue de lhe ministrar tais líquidos, ou seja as AAD, pois que o ofendido estava de quarentena como impunha a lei, e consequentemente, os contactos com as demais pessoas deviam reduzir-se ao mínimo para evitar possíveis contaminações. Não obstante, nenhuma dessas AAD foi acusada, tendo o Ministério Público optado por acusar a hierarquia desses funcionários, desde o 2.º andar da pirâmide (responsável do piso) até ao topo (diretor da instituição), com os argumentos que supra expusemos. Com esta formulação da acusação o objeto do processo passa-se a centrar na omissão de diagnóstico e não na causa da doença. Logo é aí que nos temos de focar. Subsumindo a matéria de facto dada como assente, não conseguimos assacar qualquer responsabilidade criminal aos arguidos, não obstante a gravidade e seriedade da situação vivida pelo utente FF. Na verdade, dos factos 20 a 36 não vislumbramos qualquer deficiência no diagnóstico, nem qualquer violação grave dos mais elementares organizacionais ou de cuidado que tivessem impedido uma correta avaliação do ofendido FF. Concretizando, temos que do ponto de vista organizacional, não podemos formular qualquer reparo à instituição. Foi feita uma triagem ao utente, foram indicadas as suas necessidades e o mesmo foi colocado de quarentena, como impunha a lei. Durante a quarentena foi sempre acompanhado pelas auxiliares de ação direta que lhe prestaram os cuidados de higiene e alimentação necessária, bem como reportaram a quantidade de urina nas fraldas e qualquer outro elemento anormal que se sucedia (factos 27 a 30). Por outro lado, a leitura e interpretação dos dados resultantes da urina na fralda e de outros indicadores era feita pela equipa de enfermagem que tinha plenos poderes para a prestação dos cuidados de saúde, sendo que em pleno período de covid, fruto das contingências da pandemia, esses dados muitas das vezes não eram preenchidos e/ou nem eram analisados em tempo útil pela equipa de enfermagem. Perante este cenário, não vislumbramos qualquer falha na organização da instituição para evitar a ocorrência de situações de doença, nem tampouco qualquer conduta negligente no diagnóstico do ofendido, sendo que sempre que foi solicitada a equipa de enfermagem não deixou de fazer recomendações e prescrever tratamentos ao utente. Por outro lado, a ausência de exames e observações de rotina, apesar de não ser a situação ideal, era justificável na altura em causa, pois que os recursos humanos não eram infinitos e os esforços estavam mais centrados na cura dos utentes do que na rotina e na prevenção. Por fim, esclareça-se que a quantidade de urina nas fraldas é apenas um elemento a ter em conta em conta para possíveis processos de desidratação, devendo articular-se com outros meios de diagnóstico como febre, falta de apetite, estado de prostração, etc, situações anómalas que nunca foram reportadas por quem contactava diretamente com o utente. Nessa conformidade, a conduta dos arguidos - pessoas singulares - não merece qualquer censura, pois não podendo/devendo aceder ao quarto do FF por este se encontrar de quarentena e não sendo reportada qualquer situação anormal quanto ao seu estado de saúde, não se vislumbra a necessidade e a obrigação de terem tido qualquer intervenção. Acresce que se houvesse algum sinal de alarme, também não seriam os arguidos a ter de intervir, mas sim a equipa médica ou de enfermagem, pelo que se torna incompreensível o teor da acusação. Por fim, saliente-se que se tomássemos o critério de urina nas fraldas como algo de absoluto, então também não mereceria reparo a atuação dos elementos clínicos da instituição arguida, pois que no dia em que realmente se verificou uma situação anormal – dia 29 de Agosto – foi imediatamente solicitada intervenção hospitalar e providenciado transporte para o utente. Na verdade e apesar de no dia 28 ter havido duas mudas de fralda com nenhuma urina, certo é que no período da tarde já houve 2 mudas com pouca urina, pelo que, e apesar de não estar em causa a conduta da equipa médica ou de enfermagem, que não sabemos se chegou ou não a analisar aquele relatório, não podemos censurar a sua conduta de não enviar alguém para o hospital num quadro de pandemia, onde os hospitais eram muitas vezes focos de doença e propagadores do covid 19, sendo que tal pessoa se encontrava em isolamento profilático. Logo, não houve qualquer omissão do dever funcional de qualquer um dos arguidos, que com a função que ocupavam e com as restrições que existiam não tinham obrigação nem tampouco forma de conseguir detetar uma desidratação que estava em pleno avanço, sendo que os sinais que estavam a ser reportados por quem tinha contato direto com o utente em nada apontavam nesse sentido e, no dia em que se poderia cogitar que algo estaria mal, a intervenção médica/hospitalar foi logo solicitada. Além disso e mesmo que esses sinais fossem em sentido contrário, não cabia ao arguido AA, enquanto presidente da instituição, e à arguida BB enquanto diretora-geral, desencadearem os procedimentos necessários para a intervenção das equipas médicas e/ou de enfermagem, não podendo igualmente estender o conceito geral do dever de fiscalização destes arguidos a estas situações. Na verdade e reiterando o que já supra referimos não é exigível ao presidente ou a um diretor de uma instituição que emprega dezenas de pessoas e atende centenas de pessoas que fiscalize/verifique se um diagnóstico médico está a ser bem efetuado ou se a uma AAD muda corretamente a fralda de um utente. É indubitável que não tem tempo, nem competência para o efeito, sendo que se levássemos o dever de fiscalização a esse extremo, a cadeia hierárquica deixava de ser piramidal e cairíamos no ridículo de ter uma pessoa a executar, outra a verificar em tempo real se o serviço estava a ser bem feito e mais outra a verificar se quem fiscalizou o fez corretamente e assim sucessivamente. E aqui não vale a pena enunciar dezenas de acórdãos existentes em que os responsáveis do lar são responsabilizados criminalmente por maus tratos a idosos, pois estamos sempre perante situações muito diversas, nomeadamente e quase sempre de lares com natureza familiar, com poucos utentes e pouco trabalhadores, em que existe um contacto direito do proprietário com os utentes. Além disso, na maior parte das situações estamos perante casos muito mais graves do que o presente, em que há agressões ou situações de abandono total dos idosos, o que não é o caso pelo que o que podemos retirar desses acórdãos é a brilhante interpretação do direito efetuada pelos Venerandos Juízes Desembargadores e Conselheiros, mas não a subsunção dos factos ao direito pois aqui os factos são diferentes. Já em relação às arguidas CC e DD, o seu dever de fiscalização já é diferente, pois que estão mais próximas hierarquicamente das AAD. Porém e no caso concreto não sendo imputável diretamente qualquer omissão às AAD - não está em causa não ter sido ministrada água ao utente FF, mas tão só não ter sido detetada mais cedo a desidratação que estava a padecer - não lhes pode ser igualmente imputado qualquer incumprimento desse dever de fiscalização, pois que nada de mal tendo sido feito pelo inferior hierárquico, o seu superior hierárquico não pode ser condenado por não ter verificado e corrigido o que não foi mal feito pelo subordinado. Além disso, mesmo que por mera hipótese académica e em abstrato se impusesse conduta diversa a essas duas arguidas, a realidade na altura impedia esse diferente comportamento, pois que estando o utente de quarentena, as orientações dadas pela DGS iam no sentido do mínimo contato exterior com as pessoas que estavam nessa situação, pelo que estas arguidas não poderiam, naquela altura, verificar in loco o que se estava a passar e, consequentemente fiscalizar de modo proativo as informações dadas pelas AAD, tendo de confiar e interpretar corretamente as informações por elas prestadas. Por fim, a questão das necessárias ações de formação para interpretação da quantidade de urina nas fraldas. Da prova produzida não resultou que esse tipo de ações existisse, tendo igualmente ficado provado que nesta área, atenta a enorme carência de pessoas, que a formação das AAD é adquirida através da experiência profissional e dos conselhos e ensinamentos dos mais velhos, sendo que a interpretação da quantidade de urina nas fraldas advém do senso comum, não sendo necessárias ações de formação específica. A esse respeito também não podemos deixar de revelar alguma surpresa pelo teor da acusação, mostrando estupefação pela alegada necessidade de ações de formação para interpretar a quantidade de urina na fralda, considerando este Tribunal que saber se uma fralda tem muita, pouca ou nenhuma urina nas fraldas é algo que decorre do senso comum e da normal experiencia de vida, não sendo necessitário recorrer a ensinamentos de terceiro para o efeito”. “ (…) No presente caso, embora reconhecendo que ambos os ofendidos, por força da sua idade e condição de doença, eram pessoas especialmente vulneráveis e, para além disso, o dever jurídico de garante por parte do «Lar ...» - assinalando, no acórdão recorrido, que «por força do contrato celebrado entre a instituição arguida e os utentes em causa, a mesma tinha obrigação de providenciar de cuidados básicos dos utentes como a habitação, alimentação, higiene e saúde, sendo que os arguidos pessoas singulares também estavam sujeitos a esse dever geral de garante por força das funções exercidas no seio da pessoa coletiva» -, considerou o tribunal a quo que não se encontravam, desde logo, preenchidos os demais elementos do tipo objetivo do crime de maus tratos, designadamente a comprovação de que pudesse ser imputada a qualquer dos arguidos a omissão de uma ação devida ou esperada e da criação ou potenciação, por essa via, de um risco de verificação do resultado típico. Delimitado dogmaticamente o tipo de crime de maus tratos, analisemos, assim, se o conjunto de factos que resultaram provados – aqui se incluindo aqueles que foram aditados ao elenco da matéria de facto provada, por força do reconhecimento do erro de julgamento e da existência dos vícios decisórios já tratados – são ou não suscetíveis de integrarem os elementos objetivos e subjetivos do referido tipo de ilícito, para além do respetivo tipo de culpa. Começamos por assinalar que a arguida “Lar ...”, instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para idosos (E...), dispondo de uma estrutura residencial para pessoas idosas, tem sobre si o dever jurídico de garantir que aos respetivos utentes é providenciada a assistência e cuidados alimentares, de higiene e saúde adequados e de impedir que os seus utentes sofram maus tratos. Neste sentido, a Portaria 67/2012, de 21/3 que, além do mais, define as condições de organização, funcionamento e instalação das estruturas residenciais para pessoas idosas, estabelece que a estrutura residencial presta um conjunto de atividades e serviços, designadamente: a) Alimentação adequada às necessidades dos residentes, respeitando as prescrições médicas; b) Cuidados de higiene pessoal; c) Tratamento de roupa; d) Higiene dos espaços; e) Atividades de animação sociocultural, lúdico-recreativas e ocupacionais que visem contribuir para um clima de relacionamento saudável entre os residentes e para a estimulação e manutenção das suas capacidades físicas e psíquicas; f) Apoio no desempenho das atividades da vida diária; g) Cuidados de enfermagem, bem como o acesso a cuidados de saúde; h) Administração de fármacos, quando prescritos (cf. o artigo 8.º, n.º 1, da referida Portaria). Tal dever jurídico de impedir que os utentes do «Lar ...» sofressem maus tratos estende-se aos arguidos pessoas singulares, os quais exerciam as suas funções em virtude de um vínculo que os habilitava a assegurar o bem-estar dos utentes acolhidos no E..., agindo em nome e no interesse da instituição Lar ..., cabendo-lhes, respetivamente, as seguintes funções (cf. pontos 3), 4), 5) e 6) da matéria de facto provada): - Ao arguido AA, na sua qualidade de «Presidente da direção», para além do mais, «Superintender na administração do Lar ... orientando e fiscalizando os respetivos serviços». - Á arguida BB, enquanto «Diretora Técnica do E...», a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo, competindo-lhe dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. É também responsável pela criação de uma estrutura administrativa para gerir a instituição, colaborando igualmente na verificação e custos e planeamento de utilização de mão-de-obra, equipamento materiais e instalações, controlando os respetivos serviços. - Á arguida CC, na sua qualidade de «Chefe de serviços gerais», organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais. - Á arguida DD, enquanto «Encarregada do Setor (Piso 3)», coordenar no seu sector os serviços prestados pelo E... através das «Auxiliares de Ação Direta» aos residentes, colaborar na elaboração das escalas de serviço, controlar e requisitar os serviços indispensáveis ao normal funcionamento dos serviços, zelar pelo cumprimento das regras de segurança e higiene no trabalho e verificar o desempenho das tarefas atribuídas às AAD. Aquando da admissão à instituição Lar ... todos os utentes eram observados pela Equipa de Enfermagem a fim de avaliar o seu estado de saúde e, nos casos em que se faziam acompanhar por informação médica, era ainda verificado se a mesma correspondia à avaliação feita, integrando todos estes elementos e, em especial no caso de se tratar de residente com toma de medicação, um dossier individualizado em nome de cada utente designado “Cardex”, do conhecimento de toda a estrutura organizativa do Lar, geralmente guardado dentro de um armário situado no piso 3 correspondente ao Gabinete Médico/Enfermagem e disponível a todos que nele exerciam funções, tal como ocorreu com a admissão dos ofendidos QQ e FF (cf. o ponto 7). A ofendida HH, nascida em D/M/1952, com 65 anos, integrou o E... Lar ... em 22/08/2018, por entre a arguida Lar ... (E...) e a ofendida ter sido firmada uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas da segunda, ocupando quarto situado no Piso 2 (cf. o ponto 8). A ofendida HH padecia de doença neurológica degenerativa (paraparésia espática hereditária) confirmada em 2009, movimentava-se em Cadeiras de Rodas, andava cronicamente algaliada, mas mantinha independência para certas atividades, designadamente para alimentação (ponto 9). No dia 24 de Abril de 2020, foi admitida pelas 18.27 horas, no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, com queixas de dispneia desde há 3 semanas, com agravamento súbito naquele dia, esforço respiratório, tosse com expetoração que não expele e temperatura de 37.9 º (ponto 10). Observada pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos: a) Covid 19 admissão; data 1º resultado positivo 19/04/2020: data de início de sintomas/dias de evolução da doença: desconhecido/= 3 semanas; fatores de risco para progressão desfavorável: HTA, idade>65 anos, achados analíticos desfavoráveis; PCR >10mg/dl; doença atual, Pneumonia com hipoxia ( fase II b); suporte de O2 atual: 4 cânula (débt L/min); b) IR tipo 2; c) Hipernatrémia: NA + 154; d) Hipocaliémia; K+ 2,86; e) LRA: creatinina 1,04 (basal 0,8). Apresentava ainda as “Mucosas coradas, mas desidratadas” (ponto 11). O quadro clínico referido em supra, é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como de gravidade moderada a grave (ponto 12). O estado de desidratação deveu-se a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do E... Lar ... que dela cuidavam, sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal (ponto 13). O quadro clínico degradou-se com episódios de dessaturação em parte condicionadas por secreções abundantes, vindo a utente QQ falecer, sendo o óbito verificado a 26/04/2020, pelas 14.10 horas (ponto 14). No Serviço de Urgência foi-lhe administrado soro e outras substâncias para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, bem como morfina para as dores (ponto 15). Aquando da sua admissão ao Serviço de Urgência do CHVNG o arguido AA e a arguida BB mantinham-se como Presidente da Direção e Diretora Técnica do Lar, respetivamente, não havendo colaboradora que desempenhasse as funções de Encarregada Geral, sendo que a Encarregada do Sector (Piso) 2 PP esteve ausente do serviço desde 05/04/2020, por estar infetada com Covid 19. Nesse mês, cerca de 20 colaboradores da instituição não estavam ao serviço por estarem infetados com Covid 19 (ponto 16). Relativamente à situação do utente FF apurou-se o seguinte: FF, nascido em D/M/1928, com 91 anos de idade, integrou o E... Lar ... em 18/08/2020, por entre a arguida Lar ... e o ofendido ter sido constituída uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas do segundo, tendo sido colocado no Piso 3, para cumprir período de isolamento de 14 dias de acordo com a legislação Covid 19 então vigente (ponto 18). Durante o período de isolamento, o número de pessoas que entrava no quarto do ofendido FF era reduzido ao mínimo, nomeadamente as AAD que prestavam os cuidados de higiene e alimentação e o pessoal médico, caso fosse necessário, mas sempre cumprindo as regras de segurança e higiene recomendadas pela DGS (ponto 19). Aquando da sua admissão AA continuava a ser o Presidente da Direção, a arguida BB mantinha-se como Diretora Técnica do Lar, CC tinha iniciado em Julho desse ano as funções de Chefe de Serviços Gerais e Eva Maria Costa, após um período de gozo de férias, regressou ao serviço em 25 de Agosto e era a responsável pelo piso 3 (ponto20). O ofendido FF, apresentava amputação da perna esquerda, cegueira, hipoacúsia grave, patologia tiroideia, HTA, dislipidemia e falta de mobilidade, dependendo para as atividades de vida diária em exclusivo dos cuidados que a instituição lhe prestava (banho, apoio, vigilância, incentivo, alimentação, higiene, vestuário, medicação, mudança de fralda, etc). No dia 29 de Agosto de 2020, pelas 15.54 horas, por solicitação do E... que entendeu que o estado de saúde de FF necessitava de cuidados de saúde hospitalares, o mesmo foi admitido no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, por hipotensão (TA-80/60), associado a taquicardia (-125bpm) e a dificuldades respiratórias (polipneia, respiração predominantemente abdominal e episódios de hipoventilação), saturação de oxigénio no sangue (Sp02) de 85- 94%, sem alterações do estado de consciência, febre ou outros sintomas. Observado pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos: a) infeção respiratória; b) hipernatrémia; c) hipocaliémia; d) lesão renal aguda de provável etiologia pré-renal. Apresentava ainda a pele e mucosas coradas mas ligeiramente desidratadas e estava cianótico. O quadro clínico referido em supra é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como grave (pontos 21 e 22). No Serviço de Urgência do CHVNG, para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, foram administrados ao ofendido 1.000ml de soro a 100 ml/h, ou seja, ao longo de 10 horas, por via endovenosa, tendo posteriormente sido transferido para o Serviço de Urgência do Hospital Santo António, para prosseguir a fluidoterapia endovenosa (ponto 23). Caso não tivesse ocorrido intervenção terapêutica era previsível a progressão da desidratação que, no seu termo, poderia conduzir à sua morte (ponto 24). O estado de desidratação deste ofendido deveu-se a uma insuficiência ingestão de recursos líquidos e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, sendo que o utente tomava diuréticos o que acelera o processo de desidratação e impõe a toma de mais líquidos (ponto 25). Uma das formas que o E... introduziu no seu funcionamento para aferir do estado de hidratação dos utentes acamados, como no caso do utente FF, era o do controlo das fraldas, que, em regra, eram mudadas cinco vezes ao dia, entendendo-se este por período de 24 horas, uma durante a noite, duas no período da manhã e outras duas durante a tarde, e sempre que se procedia a uma muda de fralda a colaboradora que o fazia, que por regra era Auxiliar de Ação Direta (AAD), registava na Ficha Cuidados de Higiene e Imagem ( Controle dos Esfíncteres) a quantidade de urina observada numa classificação que podia ser “Muito, “Pouco”, ”Nenhum” ou “normal” (ponto 26). Para além deste elemento as AAD também deveriam reportar algo de anormal que se passasse com os utentes, como febre, falta de apetite, etc., sendo que, no período de covid, apenas depois do reporte de alguma anormalidade é que a equipa de enfermagem e/ou médica intervinha para fazer o diagnóstico do utente (ponto 27). Na Ficha dos Cuidados de Higiene referida em supra do residente FF foram feitos os registos seguintes: 1- Referente a 27 de Agosto de 2020. - noite (de 26 para 27) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas uma com “Pouco” e outra com “normal”; tarde duas mudas com “Pouco”. 2- Referente a 28 de Agosto de 2020. - noite (de 27 para 28) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas sem registos de urina na fralda (Nenhum) ; tarde duas mudas com “Pouco”. 3- Referente a 29 de Agosto de 2020. - noite (28 para 29) uma muda com “Nenhum”; manhã uma muda com “Nenhum” (ponto 29). Sendo que nos registos referentes à presença de urina na fralda entre a data da sua admissão ao E... a 18 de Agosto e o dia 27 desse mês, de acordo com a Ficha dos Cuidados de Higiene e Imagem foi sempre detetada a presença de urina nas mudas de fralda (dia 18, quatro mudas, uma com “Pouco” e as restantes “Normal”; dia 19, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 20, cinco mudas todas “Normal”; dia 21, cinco mudas, quatro “Normal e uma “Pouco”; dia 22, cinco mudas todas “Normal”; dia 23, cinco mudas todas “Normal”; dia 24, cinco mudas, três “Normal” e duas “Pouco”; dia 25, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 26 cinco mudas todas “Normal”). As Auxiliares de Ação Direta que nos dias 27 e 28 de agosto cuidaram do ofendido, cuja identidade não foi possível apurar, não solicitaram a intervenção da Equipa de Enfermagem nem promoveram a sua ida ao hospital, o que apenas ocorreu no dia 29 de Agosto (pontos 30 e 31). O preenchimento do conceito de fralda com “Pouco” ou “Normal” urina era feito de forma subjetiva e dependia da sensibilidade do que cada uma das Auxiliares de Ação Direta entendia por “Pouco” ou “Normal” (ponto 32). O Lar de ..., como a grande generalidade das instituições similares, não ministrava ações de formação às AAD, sendo costume da instituição as mais novas apreenderem com as mais velhas e com os profissionais de saúde as melhores práticas e os procedimentos a adotar (ponto 33). A leitura e interpretação dos dados resultantes da urina na fralda e de outros indicadores era feita pela equipa de enfermagem que tinha plenos poderes para a prestação dos cuidados de saúde, sendo que em pleno período de covid, fruto das contingências da pandemia, esses dados muitas das vezes não eram preenchidos e/ou nem eram analisados em tempo útil pela equipa de enfermagem (ponto 34). Os dois ofendidos pelas idades que tinham e pelas fragilidades a nível de saúde que evidenciavam eram pessoas especialmente vulneráveis, sendo que o ofendido FF era totalmente dependente dos cuidados quotidianos que lhe eram prestados pelo E... Lar ... (ponto 35). Os arguidos AA e BB não fizeram qualquer visita a estes utentes quando os mesmos estavam em isolamento e quarentena, como aliás não era costume fazerem, sendo que a arguida BB apenas costuma ter contacto com os utentes aquando da admissão, tudo isto sem prejuízo de eventuais visitas de rotina que poderiam fazer ao lar (ponto 36). A arguida DD e a arguida CC não contactaram diretamente com o utente FF, nem lhe ministraram qualquer cuidado de higiene, comida ou de saúde, sendo que a arguida DD enquanto encarregada de piso 3, só em situações excecionais é que prestava tais serviços aos utentes e a arguida CC nunca o fazia (ponto 37). Deste modo, e como bem assinala o recorrente, da factualidade apurada pelo tribunal resulta inequivocamente configurada a sua posição de garante da saúde física, mental e do bem-estar emocional dos utentes que tinha a seu cargo, particularmente destes dois ofendidos, derivada do especial contexto relacional de confiança e de apoio à satisfação das necessidades a que a instituição arguida estava contratualmente obrigada e, ainda, a situação de vulnerabilidade e dependência, fruto da doença das duas vítimas [e também da sua idade avançada, no que concerne ao ofendido FF]. É de notar que, no que concerne à utente QQ, a circunstância de preservar autonomia para a realização de algumas atividades, alimentando-se sozinha, não significa, como já tivemos oportunidade de assinalar, que não carecesse de apoio, vigilância e supervisão por parte das colaboradoras do Lar de ..., que dela cuidavam, designadamente no que toca à ingestão de recursos hídricos em quantidade necessária, uma vez que, como reconheceu o tribunal a quo nos pontos 9) e 35) da matéria de facto provada, a ofendida, pela condição de saúde que apresentava, tratava-se de pessoa especialmente vulnerável. Reconhece-se que a situação pandémica, então vivenciada, introduziu restrições relevantes ao nível do contacto direto com os utentes deste tipo de estabelecimentos, impondo, em determinados casos, medidas de isolamento obrigatório, como sucedeu com o utente FF (cf. o ponto 18) e a utente HH, por estar infetada com covid 19. Contudo, nem tal circunstância, nem o facto de competir às AAD fazer o acompanhamento direto aos utentes, pode significar um esvaziamento das funções de organização, supervisão e vigilância atribuídas ao Presidente do Lar e, em especial, à Diretora Técnica, à Chefe de Serviços Gerais e à Encarregada de Piso. Dir-se-á, até, que as especiais limitações e dificuldades decorrentes da situação pandémica deveriam ter levado aqueles que, na estrutura, exerciam funções de organização, liderança, vigilância e supervisão a uma maior e atenta intervenção, de forma a garantir que os serviços prestados pelo E... asseguravam os cuidados básicos destes utentes. Sucede que, não obstante os arguidos AA, BB, CC e DD terem, estatutariamente, funções de supervisão, vigilância e coordenação, aparentemente não as exerciam relativamente ao desempenho das AAD, limitando-se a confiar nas informações por elas prestadas, designadamente à equipa de enfermagem (cf. os pontos 27), 31), 33), 36) e 37) da matéria de facto provada), apesar de ser conhecida a falta de formação técnica específica daquelas profissionais (cf. os pontos 32) e 33) considerados provados). Sendo particularmente evidente a gravidade da omissão deste dever de vigilância em relação ao ofendido FF, dada a sua condição de dependência absoluta dos cuidados que lhe eram prestados – impondo-se, por isso, que o E..., conhecedor deste facto, tivesse delineado estratégias com vista a garantir uma adequada ingestão hídrica por parte do utente (cf. os pontos 7, 22, 24 e 25) -, também estamos convictos de que a circunstância de a utente QQ se alimentar por si e de o seu estado de desidratação, de gravidade moderada a grave, poder não ser percetível, não afasta a responsabilidade do Lar, por se ter obrigado a prestar-lhe todos os cuidados necessários ao seu bem estar através dos diferentes colaboradores que trabalhavam para si, sejam aqueles que diretamente tinham essa tarefa (as AAD), como aqueles que ocupavam cargos de chefia e que tinham a missão de se certificar da qualidade do serviço prestado, mostrando-se exigível a adoção de procedimentos adequados à concretização de tal objetivo 21. Neste sentido, assume relevância que, só após o episódio ocorrido com o utente FF, quem dirigia o Lar deu instruções específicas para a hidratação dos utentes, o que não existia até então (cf. o ponto 48) dos factos provados), evidenciando uma falha ao nível dos procedimentos adequados que, a par da inexistência de efetiva e eficaz vigilância dos serviços e cuidados prestados pelas AAD, esteve na origem do estado de desidratação que afetou os dois utentes, realidade que deveria ter sido (e não foi) reconhecida pelo tribunal coletivo. É de notar que, no período em que ocorreu o estado de desidratação da utente QQ, não havia colaboradora que desempenhasse as funções de encarregada geral e encontrava-se ausente do serviço a encarregada do setor (piso 2), por estar infetada com covid 19. Ora, inexistindo funcionário que pudesse supervisionar as atividades da AAD e ocorrendo, para além disso, uma sobrecarga do pessoal de enfermagem, é evidente que se exigia ao presidente da direção e, em particular, à diretora técnica do Lar que tivessem tomado medidas para assegurar a efetiva vigilância dos serviços prestados pelas AAD no piso 2, particularmente aos utentes que, como a ofendida HH, estavam numa situação de especial vulnerabilidade (sendo certo que, para além do seu estado de saúde crónico, ainda estava infetada e doente com covid 19, tornando-se particularmente importante garantir a sua adequada hidratação). Também se discorda da posição assumida pelo tribunal de primeira instância, quando pretende atribuir ao contexto pandémico a explicação pelo sucedido. Aliás, o tribunal a quo considerou provado, no ponto 37), que «A arguida DD e a arguida CC não contactaram diretamente com o utente FF, nem lhe ministraram qualquer cuidado de higiene, comida ou de saúde, sendo que a arguida DD enquanto encarregada de piso 3, só em situações excecionais é que prestava tais serviços aos utentes e a arguida CC nunca o fazia», o que revela que a situação de delegação quase absoluta da responsabilidade por todos os cuidados prestados aos utentes nas AAD precedia o contexto pandémico. Dito isto, se havia restrições no contato direto com os utentes impostas pela DGS, que importava respeitar, tal só podia significar que aqueles que se encontravam em posições hierárquicas superiores às AAD, como as arguidas DD e CC, em primeira linha, mas também os arguidos AA e BB, tinham de implementar procedimentos com vista à adequada supervisão e fiscalização dos cuidados diretamente prestados pelas AAD, mostrando-se incompreensível que não tivessem assegurado que a ingestão de líquidos pelo ofendido FF era suficiente e, por outro lado, não tivessem prontamente atuado perante a evidência resultante dos registos feitos constar da ficha dos cuidados de higiene, a partir do dia 27 de agosto (mostrando-se este aspeto especialmente relevante com relação às arguidas CC e DD, dadas as funções que lhes estavam atribuídas) – o que poderia ter sido contrariado caso tivessem efetivamente supervisionado as tarefas das AAD, atuando proativamente, quer verificando a quantidade de líquidos que estavam a ser ingeridos pelo utente, quer procedendo a uma análise direta da urina existente nas fraldas ou até, simplesmente, dos registos feitos constar pelas AAD, na ficha de cuidados de higiene, comportamentos que nos parece serem particularmente exigíveis naquele contexto de grandes restrições de meios humanos e consequentes constrangimentos na prestação dos cuidados aos utentes. Podemos, assim, concluir que, impendendo sobre a instituição arguida e respetivo representante e colaboradores/funcionários (os arguidos AA, BB, CC e DD) o dever de garante em relação aos ofendidos QQ e FF [assim como, naturalmente, aos demais utentes a seu cargo], omitiram os arguidos os comportamentos adequados a evitar tais ofensas à sua saúde e integridade física, que podiam e deviam ter sido adotados, ocorrendo, por essa via, uma situação de maus tratos, imputável a título omissivo, cfr. neste sentido, para além do acórdão do TRL de 23/2/2022, já citado, também o acórdão deste TRP de 12/10/2016, relatado pelo Desembargador José Carreto; o acórdão deste TRP datado de 18/10/2023, da autoria da ora relatora; e o acórdão do TRP de 27/11/2024, relatado pelo Desembargador William Themudo Gilman, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt. Na verdade, o conceito de “maus tratos” não se limita às situações mais evidentes de ofensas à integridade física ou psíquica das vítimas, frequentemente traduzidas em agressões físicas/sexuais, insultos, humilhações ou ameaças, antes abarcando um espetro muito alargado de comportamentos suscetíveis de ofender a saúde física, psíquica e emocional das pessoas às quais são dirigidos, neles se incluindo ausência da prestação de cuidados alimentares exigíveis e adequados a preservar o seu bem-estar e integridade pessoal, cfr. neste sentido, os acórdãos do TRL de 23/2/2022 e do TRP de 12/10/2016 e de 18/10/2023, já citados. É de notar que a APAV (Associação Portuguesa de Apoio á Vítima), cfr. https://apav.pt/publiproj/images/yootheme/PDF/Titono_PT.pdf, identifica como exemplo de práticas de violação de direitos de pessoas institucionalizadas, entre muitas outras, «deixar pessoas idosas com dificuldade de mobilização sentadas ou deitadas durante muito tempo, sem ajudá-las a levantar-se» e «não mobilizar regularmente pessoas idosas acamadas», para além de «práticas de violação de direitos ao nível da supervisão técnica», incluindo «Não assegurar que a equipa técnica é qualificada e que há um número adequado de profissionais que a compõem», e de «Práticas de violação de direitos ao nível da higiene pessoal», nomeadamente «Deixar as pessoas idosas sujas (por exemplo, de fezes e urina) durante muito tempo» e «Não lavar as pessoas idosas acamadas na totalidade durante longos períodos de tempo». Acrescenta-se a prática de «Negligenciar a alimentação das pessoas idosas por falta de ajuda durante as refeições». Resta analisar se, como sustenta o recorrente, se encontra demonstrada uma atuação dolosa por parte dos arguidos. E, neste âmbito, importa reiterar que o elemento subjetivo do tipo de ilícito compreende o dolo em qualquer das suas modalidades – direto, necessário e eventual -, não se exigindo, para além disso, um “dolo específico”. Assim sendo, pode verificar-se uma atuação dolosa por parte dos arguidos, mesmo que as falhas nos cuidados de alimentação e supervisão dos utentes não hajam resultado de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do Lar. Analisando a matéria factual que ficou demonstrada – incluindo aquela que foi aditada na sequência do reconhecimento da verificação dos vícios decisórios, conforme decidido no capítulo antecedente do presente acórdão – resulta inequívoco o preenchimento do elemento subjetivo do tipo de ilícito - o dolo -, tendo em resumo resultado provado que os arguidos pessoas físicas, pelas funções que desempenhavam no E... Lar ..., tinham o dever de acompanhar, vigiar e fiscalizar a prestação dos cuidados básicos prestados aos utentes nele acolhidos pelos diferentes colaboradores, de forma a assegurar e garantir a sua saúde e bem estar geral, servindo a sua intervenção para corrigir, debelando ou reduzindo o mais possível, qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos prestados aos aqui ofendidos QQ e FF (embora, no que concerne às arguidas CC e DD, tal dever apenas se concretizasse relativamente ao ofendido FF, por exercerem unicamente as suas funções no piso 3, onde estava alojado este ofendido, ocupando a ofendida HH um quarto situado no piso 2); e, ainda, que omitindo voluntária e conscientemente uma atuação conforme com os descritos deveres de acompanhamento, vigilância e fiscalização representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem estar geral dos identificados ofendidos (relativamente a ambos, no que concerne aos arguidos AA e BB, e unicamente quanto ao ofendido FF, no que se refere às arguidas CC e DD), assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua admissão ao serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Deste modo, reconhece-se que cada um dos arguidos teve a possibilidade fáctica de intervenção no acontecimento e, não obstante o dever de garante que sobre si recaía, não interveio. Assim, cada um dos arguidos pessoas físicas é, nos termos do artigo 26º do Código Penal, punível como autor - tal como, em princípio, seriam as AAD que, pessoalmente, prestaram assistência aos ofendidos, caso tivessem sido identificadas e subsequentemente acusadas pelo MP - pois que «É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.» Quanto à questão da unidade e pluralidade de infrações, uma vez que o tipo de ilícito dos maus-tratos protege bens eminentemente pessoais, a pluralidade de vítimas implica uma pluralidade de sentidos de ilícito, mesmo tendo em conta que se trata do cometimento por omissão, cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., 2007, p. 1008-1010, e o acórdão do TRP de 27/11/2024. Assim, a situação é de concurso efetivo, nos termos do artigo 30º do Código Penal, no que concerne aos arguidos AA e BB. Analisemos, agora, a responsabilidade (criminal) imputada à arguida «Lar ...», instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para idosos [E...]. Como é sabido, o artigo 11º do Código Penal estabelece as condições em que as pessoas coletivas podem ser responsabilizadas criminalmente. Para tanto será necessário que (nº 2 daquele art.º 11.º): - o responsável seja uma pessoa coletiva ou entidade equiparada, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público; - que esteja em causa um dos crimes de «catálogo» (os previstos nos artigos 144.º-B, 150.º, 152.º-A, 152.º-B, 156.º, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 177.º, 203.º a 206.º, 209.º a 223.º, 225.º, 226.º, 231.º, 232.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 359.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 377.º, 152º-A e 152º-B, nos artigos 159º e 160º, nos artigos 163º a 166º sendo a vítima menor, e nos artigos 168º, 169º, 171º a 176º, 217º a 222º, 240º, 256º, 258º, 262º a 283º, 285º, 299º, 335º, 348º, 353º, 363º, 367º, 368º A e 372º a 376º); - que esse crime tenha sido cometido em nome da pessoa coletiva ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem. Refere Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2ª Ed., p. 94) que “o critério de imputação da responsabilidade criminal às pessoas coletivas e equiparadas é duplo: ou reside no cometimento da infração criminal em nome e no interesse da pessoa coletiva por uma pessoa singular colocada em posição de liderança na pessoa coletiva ou equiparada, sendo esta posição de liderança baseada na sua pertença a um órgão da pessoa coletiva competente para tomar decisões em nome desta ou a um órgão da pessoa coletiva competente para fiscalizar aquelas decisões ou ainda na atribuição de poderes de representação pela pessoa coletiva àquela pessoa singular; ou reside no cometimento da infração criminal em nome e no interesse da pessoa coletiva por qualquer pessoa singular que ocupe uma posição subordinada na pessoa coletiva ou equiparada e o cometimento de crime se tenha tornado possível em virtude de uma violação pelas pessoas que ocupam uma posição de liderança dos seus deveres de controlo e supervisão sobre os respetivos subordinados”. Ora, descendo ao caso concreto e analisando as atribuições funcionais dos arguidos pessoas físicas, facilmente se conclui que os arguidos AA e BB desempenhavam funções que os colocavam numa posição de liderança da arguida «Lar ...», competindo ao primeiro, para além do mais, superintender na administração do Lar, orientando e fiscalizando os respetivos serviços, convocar e presidir às reuniões da Direção, dirigindo os respetivos trabalhos e representar o Lar ... em juízo ou fora dele, e á segunda, a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo, incumbindo-lhe, nessa medida, dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. Além disso, os crimes de maus-tratos cometidos por omissão pelos arguidos pessoas físicas foram em nome e no interesse coletivo da arguida, pois que foram cometidos por quem agia em seu nome e no exercício da atividade a que se dedicava a arguida «Lar ...» - alojamento e assistência a pessoas idosas. Finalmente, não resulta dos factos provados que os arguidos pessoas físicas tenham agido contra ordens ou instruções expressas de quem de direito (cf. o n.º 6 do referido art.º 11.º do CP). Exerciam cada um as suas respetivas funções ao serviço da arguida e exerceram-nas mal, é certo, no circunstancialismo em apreço, como resulta do que já deixámos assinalado, omitindo comportamentos que lhes eram impostos pelos cargos que ocupavam, mas tal não é sinónimo de que tenham agido contra ordens ou instruções expressas de quem de direito, cfr. neste sentido, também o acórdão deste TRP de 27/11/2024, já citado. Em conclusão, deve a arguida «Lar ...» ser responsabilizada criminalmente pelos dois crimes cometidos, como defendido pelo recorrente”. 4. 1. Enquadramento legal substantivo. Dispõe o n.º 1, do art.º 152.º-A do Código Penal que, “1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e : a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; b) a empregar em atividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) a sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. O bem jurídico tutelado pela norma será a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental, no caso visando-se assegurar a integridade da saúde física e mental, o bem-estar físico, psíquico e emocional de pessoas mais vulneráveis O crime consuma-se tanto com as condutas integradoras de ofensas à integridade física simples (os maus tratos físicos), ou seja, todas as agressões que envolvam alguma perturbação no corpo e saúde da vítima, como com os maus tratos psíquicos, incluindo humilhações, provocações, quer estas se reconduzam ou não a atos, gestos, palavras, expressões, escritos, etc., englobando quaisquer comportamentos que ofendam a integridade moral ou o sentimento de dignidade da vítima, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros e compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional puníveis, em si mesmas, ou não, como crimes de injúria e difamação, de ameaça ou de coação. Segundo o critério do resultado material, tanto podem ser classificados como crimes de resultado – quando a execução típica se traduz em maus tratos físicos ou em privações da liberdade - como de mera atividade – no caso de a conduta integradora do tipo constituir provocações, ameaças ou o emprego em atividades perigosas, desumanas ou proibidas -, sendo que, nos primeiros, o resultado é elemento do tipo de crime e nos segundos, apenas constitui motivo da incriminação. De acordo com o critério da intensidade da lesão do bem jurídico, estes crimes também podem ser crimes de dano, por exemplo no caso de ofensas sexuais ou corporais e das privações de liberdade, ou crimes de perigo, nas situações em que ocorram ameaças ou humilhações ou o emprego em atividades perigosas. Nos primeiros, a efetiva lesão do bem jurídico é elemento do tipo legal, enquanto nos segundos o tipo legal apenas exige a colocação em perigo do bem jurídico. Em princípio, a estrutura objetiva do tipo implica a reiteração, pois que a lesão do bem jurídico complexo protegido (a saúde) envolverá uma pluralidade de condutas da mesma ou de diferentes espécies repetidas por um período mais ou menos prolongado, embora com a expressão de «modo reiterado ou não» se admita que certas condutas isoladas, desde que dotadas de gravidade bastante, podem também operar a consumação dos maus tratos. A imputação subjetiva do tipo, pese embora as diferentes modalidades que pode revestir, tem o seu fundamento exclusivo no dolo em qualquer das suas modalidades que, justamente por causa das diferentes formas que a consumação do crime de maus tratos pode revestir, tem conteúdo variável. Implica, desde logo, sempre, o conhecimento da existência dos deveres inerentes à assunção da relação laboral, ou do vínculo de proteção-subordinação, do estado de menoridade, deficiência, velhice, doença ou gravidez da vítima. Na vertente de maus tratos físicos, o dolo abrange o resultado, traduzindo-se na consciência e vontade de causar a lesão da integridade física da vítima e, nos restantes casos, implica a consciência e vontade de criar o risco de lesão da saúde da pessoa do ofendido ou do perigo de afetação do normal desenvolvimento da criança aos cuidados do agente ou de criação de prejuízos para a saúde da vítima. Existe, ainda, dolo (necessário ou eventual) quando o agente, não pretendendo diretamente causar o resultado danoso, tem consciência de que este ocorrerá como consequência necessária ou possível da sua conduta e com isso se conforma, artigo 14.º/2 e 3 CPenal. O artigo 10.º CPenal equipara, em geral, a omissão à ação, nos crimes de resultado, estabelecendo que, quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo como também a omissão adequada a evitá-lo. São os crimes comissivos por omissão imprópria, porque o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resulta do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado, nisso se distinguindo dos crimes omissivos puros que se caracterizam pela simples abstenção de agir e são crimes de mera atividade. A punibilidade do omitente depende da existência de um específico dever jurídico que o obrigue a agir, para evitar o resultado. Só há equivalência entre o desvalor da ação e o desvalor da omissão, porque o agente tem uma posição de garante da não produção do resultado, à luz de um dever jurídico de agir que constitui o fundamento da punição e sem o qual a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um. O facto típico materializa-se na “criação de um risco de verificação de um resultado típico” que existirá sempre que esse perigo se verifica ou é intensificado por efeito da omissão, traduzida na ausência da ação esperada e exigível por referência àquilo que, segundo a descrição típica, é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal e desde que o omitente esteja em condições de poder levar a cabo a ação devida ou necessária a evitar o resultado (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed., págs. 927 e 928). O tipo de ilícito dos maus tratos fica preenchido por omissão quando por força da ausência da ação devida ou esperada se cria ou potencia um risco de verificação do resultado típico. Está a qui em causa o segmento da norma incriminatória segundo o qual, quem tendo ao seu cuidado, à sua guarda, pessoa particularmente indefesa, e razão de idade, deficiência ou doença lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos. O tipo objectivo do crime de maus tratos, cometido por omissivo impróprio consiste na ausência da acção, na capacidade fáctica da acção, no nexo – hipotético – de causalidade adequada e na constatação da posição de garante. Para a conformação do elemento subjectivo é essencial a correcta informação do agente sobre a identidade e as características da vítima, bem como sobre o carácter perigoso ou proibido da actividade. E, aqui termina o que é absolutamente consensual, atinente com as questões da dogmática penal. A controvérsia centra-se, com efeito, na leitura e interpretação da realidade subjacente aos factos provados. Considerou a 1.ª instância que não se encontravam, desde logo, preenchidos os elementos do tipo objetivo do crime de maus tratos, designadamente a comprovação de que pudesse ser imputada a qualquer dos arguidos a omissão de uma ação devida ou esperada e da criação ou potenciação, por essa via, de um risco de verificação do resultado típico. Pelo contrário, a decisão recorrida depois de ter procedido à alteração da matéria de facto, provada e não provada, acabou por concluir que se verificavam os elementos objectivos e o elemento subjectivo, no caso, o dolo eventual. 4. 2. Aproximação ao caso concreto. Está aqui em causa o incumprimento do dever jurídico, uma conduta omissiva, própria de quem tem sobre si um especial dever de vigilância, de garantia de que o resultado lesivo não ocorra, o que torna o agente responsável nos termos do artigo 10.º/2 CPenal. Compreendendo o tipo legal um certo resultado, o facto abrange não só a acção como a omissão da acção causalmente adequada a prevenir o evento. Estamos, então, perante um crime específico, que tem a ver com a qualidade do agente ou em que sobre este recai um especial dever jurídico, sendo de natureza imprópria, sempre que tal qualidade ou dever agrava ou desagrava a ilicitude, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 66. Como vimos já, resumindo as alterações introduzidas na decisão recorrida em relação à matéria de facto definida na decisão recorrida, saliente-se o seguinte: - em sede de impugnação da matéria de facto ao ponto 9) da matéria de facto provada, “a ofendida HH padecia de doença neurológica degenerativa (paraparésia espática hereditária) confirmada em 2009, movimentava-se em Cadeiras de Rodas, mas mantinha independência para certas atividades, designadamente para alimentação”, foi aditado o segmento que constava da acusação, “andava algaliada cronicamente”. Em sede de vício da contradição, o ponto 13 da acusação - o estado de desidratação apresentava evolução de há vários dias, mas seguramente de mais de 24 horas, e deveu-se a uma insuficiência ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do E... Lar ... que dela cuidavam, foi na 1.ªinstânca julgado como provado que - o estado de desidratação resultou da insuficiente toma de líquidos que compensassem as perdas, sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal, na decisão recorrida alterado, em sintonia com o que constava da acusação, para - o estado de desidratação deveu-se a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do E... Lar ... que dela cuidavam, sendo certo, porém, que mas adiante aquando da fundamentação de Direito se fez constar que - o estado de desidratação deveu-se a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do E... Lar ... que dela cuidavam, sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal (ponto 13). No que se poderá ter, como um evidente erro de escrita, porventura, resultante de deficiente manuseamento da ferramenta do copy/paste. E, resultou ainda a seguinte alteração derivada do vício do erro notório, passando-se a reproduzir o que constava da acusação: - encontrando-se a ofendida QQ aos cuidados da arguida E... Lar ... e podendo e devendo a instituição assegurar a alimentação, saúde e demais cuidados necessários ao seu bem-estar, através dos seus diferentes colaboradores, por falta de cuidado e de assistência, que podia e devia ter prestado, mas omitiu, foi a responsável do estado de desidratação em que a ofendida se encontrava, quando no dia 24/4/2020 deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (artigo 17º da acusação, corrigindo-se o erro de escrita aí constante quando à menção da data). - o estado de desidratação deste ofendido [FF] deveu-se a uma insuficiente ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos pelos colaboradores do E... que dele cuidavam e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, sendo que o utente tomava diuréticos o que acelera o processo de desidratação e impõe a toma de mais líquidos (correção do ponto 25) da factualidade provada, em consonância com o artigo 26º da acusação). - não obstante se ter detetado uma diminuição progressiva da urina na fralda a partir de 27 de Agosto, que deveria funcionar como alerta para o cuidador de que algo não estaria a correr com normalidade a nível do fornecimento dos recursos hídricos ao ofendido, as Auxiliares de Ação Direta que nos dias 27 e 28 de Agosto cuidaram do ofendido, cuja identidade não foi possível apurar, não solicitaram a intervenção da Equipa de Enfermagem nem promoveram a sua ida ao hospital, o que apenas ocorreu no dia 29 de Agosto (correção do ponto 31) da matéria de facto provada, em parcial consonância com o alegado no artigo 30.º da acusação). - igualmente, a correção do comportamento de quem diretamente cuidou deste utente (AAD) não foi efetuada pelas chefias, por se terem demitido do exercício das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes ao cargo que ocupavam (aditamento ao elenco dos factos provados, reproduzindo o artigo 33.º da acusação). - encontrando-se o ofendido FF aos cuidados da arguida E... Lar ... e podendo e devendo a instituição assegurar a alimentação, saúde e demais cuidados necessários ao seu bem-estar, através dos seus diferentes colaboradores, por falta de cuidado e de assistência, que podia e devia ter prestado, mas omitiu, foi a responsável do estado de desidratação em que o ofendido se encontrava, quando no dia 29/8/2020 deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (artigo 34º da acusação). - pelas funções que os arguidos AA, BB, CC e DD desempenhavam na estrutura do E... Lar ... recaía o dever jurídico de acompanhar, vigiar e fiscalizar a prestação dos cuidados básicos prestados aos utentes nele acolhidos pelos diferentes colaboradores, de forma a assegurar e garantir a sua saúde e bem-estar geral, servindo a sua intervenção para corrigir, debelando ou reduzindo o mais possível qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos prestados aos residentes e aqui ofendidos QQ e FF (artigo 36.º da acusação). - ao omitir o dever de vigilância e fiscalização, os arguidos AA e BB representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral dos dois ofendidos e, apesar disso, permaneceram inativos, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, o que lhes causou sofrimento (artigo 37.º da acusação). - do mesmo modo, ao omitir o dever de acompanhamento, vigilância e fiscalização, as arguidas CC e DD representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral do ofendido FF e, apesar disso, permaneceram inativas, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontrava aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (artigo 37.º da acusação). - atuaram livres, conscientes e voluntariamente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei (artigo 38.º da acusação). E, por consequência ainda, a eliminação dos seguintes segmentos da matéria de facto não provada, - que o estado de desidratação que a ofendida HH apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do Lar ...; - que os arguidos devessem ter dado ações de formação às AAD para correta interpretação dos dados resultantes da troca de fraldas; - que os arguidos se tivessem demitido das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes aos cuidados que ocupavam e que essa hipotética omissão tenha sido causal do estado de desidratação que os utentes em causa sofreram. Como dissemos já, é certo delimitado o âmbito dos presentes recursos, os mesmos visam exclusivamente o reexame da matéria de direito. Sem embargo, importa sublinhar que, na sua aparente linearidade, o caso vertente convoca algumas questões relevantes, desde logo, com os crimes omissivos, com o nexo de causalidade e com o dolo eventual, a eles reportados. Que, cremos, não terão sido correctamente equacionadas na decisão recorrida. Como fundamento da lógica argumentativa a desenvolver importa que, desde já, se afirme que as decisões proferidas nas instâncias analisaram as consequências da conduta dos arguidos, à luz do dever de garante, negando, primeiro e afirmando, depois a existência de nexo de causalidade entre a omissão e o resultado, a título de dolo eventual. E, então, na decisão recorrida afirmou-se que o resultado, a desidratação, sobreveio, então, por causa e na sequência da omissão dos arguidos, que a terem corrigido a situação, teriam logrado evitar aquele resultado. Sublinhe-se a assertividade e a certeza da decisão recorrida, na afirmação de ambas as situações no domínio dum fenómeno tão complexo como é a comissão por omissão, a título de dolo eventual. Se o nexo de causalidade constitui matéria de facto já a questão da verificação do dolo eventual prende-se com a operação de subsunção dos factos ao Direito – encerra, em si mesmo, uma conclusão sobre o conjunto da objectividade dos factos que, exceptuando a hipótese de erro nas premissa ou na lógica que lhe subjaz, não é susceptível de ser colocada em causa. Sem embargo da proclamação da intangibilidade de tal matéria não podemos deixar de salientar a especial sensibilidade que reveste a afirmação dum fenómeno de natureza psicológica em qualquer uma das suas vertentes (intelectual ou volitiva), nomeadamente face a uma conduta omissiva, o qual só é detectável através dos indícios que a exprimem. Para mais em caso de dolo eventual. Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 27.11.2013, processo 37/12.7JACBR, “na verdade a constatação da existência de qualquer um dos elementos em que se decompõe o dolo tem como pressuposto uma valoração que tem de arrancar dos indícios existentes, nomeadamente o perfil da actuação do arguido e extrair das mesmas as consequências que as regras da experiência quando não as próprias leis científicas permitem. Como refere Ragués i Vallès ao pronunciar-se sobre a prova do dolo em processo penal na prova indiciária intervêm dois tipos de enunciados distintos que se empregam num juízo de inferência: as chamadas regras da lógica formal e as regras da experiência. Para se poder afirmar que a conclusão obtida através da prova de indícios coincide com a realidade afirma o mesmo Autor que são necessários dois pressupostos básicos e irrenunciáveis: as regras da experiência que se apliquem em termos de premissa maior devem ser enunciados para que transmitam declarações seguras, e irrefutáveis, sobe o conteúdo da referida realidade e, em segundo lugar, é necessário também que os factos provados, que se conjugam em termos de premissa menor do silogismo judiciário correspondam inteiramente á realidade, cfr. Dolo Y Su Prueba En El Proceso Penal de Ragues I Valles Dentro das regras da experiência que vigoram na sociedade podem identificar-se dois grandes grupos: por um lado as leis científicas e, por outro, todas aquelas ilações que não são mais do que as regras de experiência quotidiana. As primeiras formam-se a partir dos resultados obtidos pelas investigações das ciências, a que se atribui o carácter de empíricas, enquanto que as outras assentam na denominada experiência quotidiana que surge através da observação, ainda que não exclusivamente cientifica, de determinados fenómenos ou práticas e a respeito das quais se podem estabelecer consenso. Na verdade, a máxima da experiência é uma regra que exprime aquilo que sucede na maior parte dos casos, mais precisamente é uma regra extraída de casos semelhantes. A experiência permite formular um juízo de relação entre factos, ou seja, é uma inferência que permite a afirmação que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos. Parte-se do pressuposto de que “em casos semelhantes existe um idêntico comportamento humano” e este relacionamento permite afirmar um facto histórico não com plena certeza mas, como afirma Tonini, como uma possibilidade mais ou menos ampla. Tais referências, transponíveis, para toda e qualquer hipótese em que procure indagar uma afirmação de vontade subjacente à culpa, têm implícitas, na sua aplicação prática, a necessidade de afirmação que, face às concretas circunstâncias, a experiência comum, ou a experiência de vida do cidadão normal, permite a afirmação, sem qualquer dúvida, de que, quem assim actua – no caso, do dolo eventual, previu a ocorrência do resultado e com ele se conformou. Tal afirmação é linear quando o processo causal é expresso no apontar dum percurso em que aquela omissão, no caso, conduz necessariamente a determinado resultado. Porém, já se afigura mais complexa, quando a relação de causalidade foge à adequação normal entre a omissão e o facto pois que, pelo meio, se interpõem circunstâncias concretas que, afectando aquela relação, só se podem afirmar em função dum conhecimento concreto da sua existência pelo agente que só caso a caso se pode verificar”. Dito isto, e sem embargo do exposto sobre insindicabilidade da matéria de facto por este Supremo Tribunal, não podemos deixar de sublinhar o seguinte. É certo que se colocou em causa a legitimidade de arguição, pelos recorrentes, dos vícios do artigo 410.º/2 CPPenal, consabido que com a decisão da Relação se encerra o ciclo da matéria de facto. 4. 3. O vício do erro notório na apreciação da prova. Sem embargo, de este Supremo Tribunal poder, se tal se tornar imperativo para o seu conhecimento, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão previstos no n,º 2 do artigo 410.º CPPenal, atinentes com o julgamento da matéria de facto. E compreende-se que assim seja. Para proceder a uma adequada revisão da matéria de direito, é necessário que a matéria de facto se encontre perfeitamente estabilizada. Estes vícios – da decisão e, não do julgamento - são, consabidamente, vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Este reexame, feito por iniciativa própria, visará obviar a que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias. Isto é se este Supremo Tribunal concluir que por força da existência de qualquer dos vícios referidos não pode chegar a uma correcta solução de direito. Para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias. Este conhecimento oficioso deve, assim, ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios. Considerar-se que não podem invocar-se os vícios do nº 2 do artigo 410.º como fundamento do recurso directo para o STJ de decisão final do tribunal colectivo, não significa que este Supremo Tribunal não os possa conhecer oficiosamente. Na fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005, in DR Série I-A, de 07-12-2005, refere-se que a indagação dos vícios faz-se “no uso de um poder-dever, vinculadamente, de fundar uma decisão de direito numa escorreita matéria de facto”. Por outro lado, continua em vigor o Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR, Série I-A, n.º 298, de 28-12-1995, que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º/2 CPPenal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito. E, assim, este Supremo Tribunal conhece oficiosamente desses vícios quando, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, constate que, por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não possa conhecer de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentem como plausíveis. Este exame oficioso da existência ou não dos vícios decisórios ao nível do assentamento da facticidade relevante. tem subjacente razões de necessidade de certificação de substrato fáctico bastante, congruente, compatível, harmonioso e válido para suportar a decisão de direito. Em suma, nos casos de recurso de acórdão da Relação para o Supremo, em que o recurso é puramente de revista, cingindo-se a matéria de direito, é de admitir por razões atinentes com a necessidade de certificação de substrato fáctico bastante, escorreito, expurgado de qualquer vício, congruente, compatível, harmonioso e válido para suportar a decisão de direito – o exame oficioso da existência ou não dos vícios decisórios ao nível do assentamento da facticidade relevante. E, aqui socorremo-nos da, acertada, fundamentação aduzida na decisão recorrida acerca da noção do vício do erro notório na apreciação da prova. “O «erro notório na apreciação da prova» configura uma patologia extrema da decisão que, não se confundindo com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova levada a efeito pelo julgador, traduz-se na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, violadora das regras da experiência, das legis artis ou das regras sobre o valor da prova vinculada, refletida no próprio texto da decisão recorrida. Radica, assim, em situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova, em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente. “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta. Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada. Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cf. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6). Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, cf. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt. Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”. Da mera leitura da fundamentação da decisão recorrida, mormente, do elenco dos factos provados, cremos ressaltar, a evidência de tal vício. Aqui se começou por entender que todos os arguidos cada um, com as suas especificidades tinham o dever jurídico de evitar o resultado inerente a este tipo legal, seja a ofensa à saúde dos utentes. O Lar ..., enquanto instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para idosos (E...), dispondo de uma estrutura residencial para pessoas idosas, desde logo, nos termos da Portaria 67/21012 de 21.3, tem sobre si o dever jurídico de garantir que aos respetivos utentes é providenciada a assistência e cuidados alimentares, de higiene e saúde adequados e de impedir que os seus utentes sofram maus tratos. Dever jurídico que se estende aos demais arguidos, pessoas singulares, que ali exerciam funções, em virtude do vínculo que cada um mantinha com a instituição. O arguido AA, na qualidade de Presidente da Direção. A arguida BB, enquanto Diretora Técnica do E.... A arguida CC, na qualidade de Chefe de serviços gerais. A arguida DD, enquanto Encarregada do Setor (Piso 3). Vejamos, então, a materialidade apurada: - a ofendida HH, - nascida em D/M/1952, com 65 anos, integrou o E... Lar ... em 22/08/2018, por entre a arguida Lar ... (E...) e a ofendida ter sido firmada uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas da segunda, ocupando quarto situado no Piso 2; - padecia de doença neurológica degenerativa (paraparésia espática hereditária) confirmada em 2009, movimentava-se em Cadeiras de Rodas, andava cronicamente algaliada, mas mantinha independência para certas atividades, designadamente para alimentação; - no dia 24 de Abril de 2020, foi admitida pelas 18.27 horas, no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, com queixas de dispneia desde há 3 semanas, com agravamento súbito naquele dia, esforço respiratório, tosse com expetoração que não expele e temperatura de 37.9 º; - observada pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos: a) Covid 19 admissão; data 1º resultado positivo 19/04/2020: data de início de sintomas/dias de evolução da doença: desconhecido/= 3 semanas; fatores de risco para progressão desfavorável: HTA, idade>65 anos, achados analíticos desfavoráveis; PCR >10mg/dl; doença atual, Pneumonia com hipoxia ( fase II b); suporte de O2 atual: 4 cânula (débt L/min); b) IR tipo 2; c) Hipernatrémia: NA + 154; d) Hipocaliémia; K+ 2,86; e) LRA: creatinina 1,04 (basal 0,8). Apresentava ainda as “Mucosas coradas, mas desidratadas”; - o quadro clínico referido em supra, é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como de gravidade moderada a grave; - o estado de desidratação deveu-se a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do E... Lar ... que dela cuidavam – excluindo o segmento “sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal”; - o quadro clínico degradou-se com episódios de dessaturação em parte condicionadas por secreções abundantes, vindo a utente QQ falecer, sendo o óbito verificado a 26/04/2020, pelas 14.10 horas; - no Serviço de Urgência foi-lhe administrado soro e outras substâncias para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, bem como morfina para as dores; - aquando da sua admissão ao Serviço de Urgência do CHVNG o arguido AA e a arguida BB mantinham-se como Presidente da Direção e Diretora Técnica do Lar, respetivamente, não havendo colaboradora que desempenhasse as funções de Encarregada Geral, sendo que a Encarregada do Sector (Piso) 2 PP esteve ausente do serviço desde 05/04/2020, por estar infetada com Covid 19. Nesse mês, cerca de 20 colaboradores da instituição não estavam ao serviço por estarem infetados com Covid 19; - o ofendido FF, - nascido em D/M/1928, com 91 anos de idade, integrou o E... Lar ... em 18/08/2020, por entre a arguida Lar ... e o ofendido ter sido constituída uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas do segundo, tendo sido colocado no Piso 3, para cumprir período de isolamento de 14 dias de acordo com a legislação Covid 19 então vigente; - durante o período de isolamento, o número de pessoas que entrava no quarto do ofendido FF era reduzido ao mínimo, nomeadamente as AAD que prestavam os cuidados de higiene e alimentação e o pessoal médico, caso fosse necessário, mas sempre cumprindo as regras de segurança e higiene recomendadas pela DGS; - aquando da sua admissão AA continuava a ser o Presidente da Direção, a arguida BB mantinha-se como Diretora Técnica do Lar, CC tinha iniciado em Julho desse ano as funções de Chefe de Serviços Gerais e Eva Maria Costa, após um período de gozo de férias, regressou ao serviço em 25 de Agosto e era a responsável pelo piso 3 ; - apresentava amputação da perna esquerda, cegueira, hipoacúsia grave, patologia tiroideia, HTA, dislipidemia e falta de mobilidade, dependendo para as atividades de vida diária em exclusivo dos cuidados que a instituição lhe prestava (banho, apoio, vigilância, incentivo, alimentação, higiene, vestuário, medicação, mudança de fralda, etc); - no dia 29 de Agosto de 2020, pelas 15.54 horas, por solicitação do E... que entendeu que o estado de saúde de FF necessitava de cuidados de saúde hospitalares, o mesmo foi admitido no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, por hipotensão (TA-80/60), associado a taquicardia (-125bpm) e a dificuldades respiratórias (polipneia, respiração predominantemente abdominal e episódios de hipoventilação), saturação de oxigénio no sangue (Sp02) de 85- 94%, sem alterações do estado de consciência, febre ou outros sintomas; - observado pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos: a) infeção respiratória; b) hipernatrémia; c) hipocaliémia; d) lesão renal aguda de provável etiologia pré-renal. Apresentava ainda a pele e mucosas coradas mas ligeiramente desidratadas e estava cianótico; - o quadro clínico referido em supra é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como grave; - no Serviço de Urgência do CHVNG, para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, foram administrados ao ofendido 1.000ml de soro a 100 ml/h, ou seja, ao longo de 10 horas, por via endovenosa, tendo posteriormente sido transferido para o Serviço de Urgência do Hospital Santo António, para prosseguir a fluidoterapia endovenosa; - caso não tivesse ocorrido intervenção terapêutica era previsível a progressão da desidratação que, no seu termo, poderia conduzir à sua morte. - o estado de desidratação deste ofendido deveu-se a uma insuficiência ingestão de recursos líquidos e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, sendo que o utente tomava diuréticos o que acelera o processo de desidratação e impõe a toma de mais líquidos; - uma das formas que o E... introduziu no seu funcionamento para aferir do estado de hidratação dos utentes acamados, como no caso do utente FF, era o do controlo das fraldas, que, em regra, eram mudadas cinco vezes ao dia, entendendo-se este por período de 24 horas, uma durante a noite, duas no período da manhã e outras duas durante a tarde, e sempre que se procedia a uma muda de fralda a colaboradora que o fazia, que por regra era Auxiliar de Ação Direta (AAD), registava na Ficha Cuidados de Higiene e Imagem ( Controle dos Esfíncteres) a quantidade de urina observada numa classificação que podia ser “Muito, “Pouco”, ”Nenhum” ou “normal”; - para além deste elemento as AAD também deveriam reportar algo de anormal que se passasse com os utentes, como febre, falta de apetite, etc., sendo que, no período de covid, apenas depois do reporte de alguma anormalidade é que a equipa de enfermagem e/ou médica intervinha para fazer o diagnóstico do utente; - na Ficha dos Cuidados de Higiene referida em supra do residente FF foram feitos os registos seguintes: 1- Referente a 27 de Agosto de 2020. - noite (de 26 para 27) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas uma com “Pouco” e outra com “normal”; tarde duas mudas com “Pouco”. 2- Referente a 28 de Agosto de 2020. - noite (de 27 para 28) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas sem registos de urina na fralda (Nenhum) ; tarde duas mudas com “Pouco”. 3- Referente a 29 de Agosto de 2020. - noite (28 para 29) uma muda com “Nenhum”; manhã uma muda com “Nenhum”; - sendo que nos registos referentes à presença de urina na fralda entre a data da sua admissão ao E... a 18 de Agosto e o dia 27 desse mês, de acordo com a Ficha dos Cuidados de Higiene e Imagem foi sempre detetada a presença de urina nas mudas de fralda (dia 18, quatro mudas, uma com “Pouco” e as restantes “Normal”; dia 19, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 20, cinco mudas todas “Normal”; dia 21, cinco mudas, quatro “Normal e uma “Pouco”; dia 22, cinco mudas todas “Normal”; dia 23, cinco mudas todas “Normal”; dia 24, cinco mudas, três “Normal” e duas “Pouco”; dia 25, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 26 cinco mudas todas “Normal”); - as Auxiliares de Ação Direta que nos dias 27 e 28 de agosto cuidaram do ofendido, cuja identidade não foi possível apurar, não solicitaram a intervenção da Equipa de Enfermagem nem promoveram a sua ida ao hospital, o que apenas ocorreu no dia 29 de Agosto; - o preenchimento do conceito de fralda com “Pouco” ou “Normal” urina era feito de forma subjetiva e dependia da sensibilidade do que cada uma das Auxiliares de Ação Direta entendia por “Pouco” ou “Normal”; - o Lar de ..., como a grande generalidade das instituições similares, não ministrava ações de formação às AAD, sendo costume da instituição as mais novas apreenderem com as mais velhas e com os profissionais de saúde as melhores práticas e os procedimentos a adotar; - a leitura e interpretação dos dados resultantes da urina na fralda e de outros indicadores era feita pela equipa de enfermagem que tinha plenos poderes para a prestação dos cuidados de saúde, sendo que em pleno período de covid, fruto das contingências da pandemia, esses dados muitas das vezes não eram preenchidos e/ou nem eram analisados em tempo útil pela equipa de enfermagem; - os dois ofendidos pelas idades que tinham e pelas fragilidades a nível de saúde que evidenciavam eram pessoas especialmente vulneráveis, sendo que o ofendido FF era totalmente dependente dos cuidados quotidianos que lhe eram prestados pelo E... Lar ...; - os arguidos AA e BB não fizeram qualquer visita a estes utentes quando os mesmos estavam em isolamento e quarentena, como aliás não era costume fazerem, sendo que a arguida BB apenas costuma ter contacto com os utentes aquando da admissão, tudo isto sem prejuízo de eventuais visitas de rotina que poderiam fazer ao lar; - a arguida DD e a arguida CC não contactaram diretamente com o utente FF, nem lhe ministraram qualquer cuidado de higiene, comida ou de saúde, sendo que a arguida DD enquanto encarregada de piso 3, só em situações excecionais é que prestava tais serviços aos utentes e a arguida CC nunca o fazia. Indiscutível se revela o apontado dever jurídico por parte de todos os arguidos. No entanto, como se refere no citado acórdão de 27.11.2013, “para aproximar o mais possível o critério de constatação da causalidade que se emprega com o fazer positivo, a jurisprudência exige que a acção imaginada evitasse o resultado com uma probabilidade consistente. Sem dúvida que na omissão não é possível exigir, como no fazer positivo, uma certeza absoluta a respeito da causalidade, pois que a sua análise não pode fazer-se em relação a um acontecimento real, mas somente em relação a algo configurado como uma hipótese que se furta todo o cálculo seguro, ou seja, uma causalidade hipotética. Isto significa, que na omissão as conclusões da teoria de causalidade são menos fiáveis que no fazer positivo. Somente quando se constate com probabilidade séria e segura que a acção esperada teria evitado o resultado, haverá que questionar da mesma forma que em relação ao fazer positivo, se a produção do resultado era manifestamente improvável atendendo ao escasso grau de perigosidade da omissão, cfr. Tratado de Derecho Penal – Parte General de Jescheck - Hans – Heinrich, esta regra assume duas restrições. A primeira circunscreve-se à ideia de que a equiparação não se verificará se for outra a intenção da lei o que sucede nos casos de crimes de execução vinculada ou em que o legislador relaciona a censurabilidade da acção com essa forma vinculada de execução. O que acontece com a coacção, com a generalidade dos crimes sexuais ou com a burla, em que há que verificar, autonomamente, se, no caso concreto, a omissão corresponde ou é equiparável à acção. Não é essa a hipótese do crime de maus tratos no qual o tipo se limita a incluir a exigência de um resultado, sem lhe associar qualquer forma vinculada de execução. A segunda consagrada na lei está inscrita no n.º 2 do artigo 10.º, ao pressupor que a omissão só é punível quando sobre o agente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado decorrente da sua omissão. Como refere Jeschek nos delitos impróprios de omissão não basta o facto de se verificar que uma possível acção teria impedido o resultado para responsabilizar alguém com capacidade de acção pela violação do bem jurídico, mas é necessário que exista um dever de garante. O ordenamento jurídico impõe ao cidadão, o dever de omitir acções activas mediante as que possam ser violados bens jurídicos de terceiro, mas exige em todo caso a demostração de una "especial razão" para, excepcionalmente, fazer alguém responsável por ter omitido a actuação de modo positivo para proteger os bens jurídicos alheios. A equiparação da omissão com o fazer positivo pressupõe, assim, que o omitente tenha que agir como "garante" de se evitar o resultado. Todos os deveres de evitar o resultado fundamentam-se na ideia fundamental de que a protecção do bem jurídico em perigo depende duma prestação positiva duma determinada pessoa e os interessados confiam e podem confiar na intervenção activa da mesma. O dever de garante pelo fazer perigoso prévio responde à proibição de lesar outro ("neminem laede"). Quem ocasiona uma perturbação da ordem social estabelecido para impedir a lesão dos bens jurídicos deve preocupar-se que o perigo que criou não se transforme num resultado típico. Existem aqui três requisitos a assinalar : por um lado, o fazer prévio tem que ocasionar o perigo próximo (adequado) da produção do dano. Por outro, o comportamento tem que ser o objetivamente antijurídico Por último, a infracção do dever consiste na vulneração duma norma orientada precisamente para a protecção do correspondente bem jurídico, cfr. Jesheck Tratado de Derecho Penal, parte General, 256/257”. Contudo, para utilizar a expressão do arguido, constata-se a existência de dois saltos lógicos na afirmação do elemento subjectivo, no caso, o dolo eventual. E, ainda, uma outra situação, reportada, à matéria da existência de nexo de causalidade entre a actuação omissiva dos arguidos e o resultado. Questão, esta, que não tem, em concreto, subjacente a apontada alteração da redacção do ponto 13 – que, apesar de o ter sido, no sentido da descrição da acusação, ainda assim, em sede de fundamentação de Direito se recorreu á redacção dada pela decisão da 1.ª instância. Que negou a existência de tal nexo de causalidade e que a decisão recorrida afirmou. Sem que daqui, contudo, se evidencie uma qualquer situação susceptível de ser enquadrada em qualquer um dos vícios do n.º 2 do artigo 410.º CPPenal. Com efeito, nesta precisa questão não resulta que a matéria de facto dada por provada seja insuficiente para suportar a decisão de direito, que se esteja perante qualquer forma de contradição entre a fundamentação – de facto - ou entre esta e a decisão ou que resulte como patente a verificação de erro na apreciação da prova. Merecerá, ainda assim, no local próprio, a questão do nexo de causalidade entre a omissão e o resultado, ser apreciada, no segmento da aplicação do Direito aos factos. E, então, vamos incidir a nossa atenção naquela primeira questão. 4. 3. 1. O elemento subjectivo Vejamos então a questão da verificação, da descrição, do dolo eventual e, desde logo, do elemento volitivo do dolo – terem os arguidos previsto ou admitido como possível o resultado. E, também a verificação do elemento intelectual, sendo que aquele não é consequência automática da verificação deste. Têm ambos que ser demonstrados. Na análise a efectuar é essencial a análise da decisão recorrida para que se possa concluir sobre o processo lógico que foi seguido para considerar a matéria de facto atinente com o dolo, como provada. O acórdão recorrido debruçou-se sobre esta questão específica. Nos moldes já enunciados: “(…) importa reiterar que o elemento subjetivo do tipo de ilícito compreende o dolo em qualquer das suas modalidades – direto, necessário e eventual -, não se exigindo, para além disso, um “dolo específico”. Assim sendo, pode verificar-se uma atuação dolosa por parte dos arguidos, mesmo que as falhas nos cuidados de alimentação e supervisão dos utentes não hajam resultado de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do Lar. Analisando a matéria factual que ficou demonstrada – incluindo aquela que foi aditada na sequência do reconhecimento da verificação dos vícios decisórios, conforme decidido no capítulo antecedente do presente acórdão – resulta inequívoco o preenchimento do elemento subjetivo do tipo de ilícito - o dolo – tendo em resumo resultado provado que, - os arguidos pessoas físicas, pelas funções que desempenhavam no E... Lar ..., tinham o dever de acompanhar, vigiar e fiscalizar a prestação dos cuidados básicos prestados aos utentes nele acolhidos pelos diferentes colaboradores, de forma a assegurar e garantir a sua saúde e bem estar geral, servindo a sua intervenção para corrigir, debelando ou reduzindo o mais possível, qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos prestados aos aqui ofendidos QQ e FF; - embora, no que concerne às arguidas CC e DD, tal dever apenas se concretizasse relativamente ao ofendido FF, por exercerem unicamente as suas funções no piso 3, onde estava alojado este ofendido, ocupando a ofendida HH um quarto situado no piso 2); - omitindo voluntária e conscientemente uma atuação conforme com os descritos deveres de acompanhamento, vigilância e fiscalização representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem estar geral dos identificados ofendidos (relativamente a ambos, no que concerne aos arguidos AA e BB, e unicamente quanto ao ofendido FF, no que se refere às arguidas CC e DD); - assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua admissão ao serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. E, assim, se reconheceu que, - cada um dos arguidos teve a possibilidade fáctica de intervenção no acontecimento e, não obstante o dever de garante que sobre si recaía, não interveio; - cada um dos arguidos pessoas físicas é punível como autor - tal como, em princípio, seriam as AAD que, pessoalmente, prestaram assistência aos ofendidos, caso tivessem sido identificadas e subsequentemente acusadas pelo MP. Esta conclusão, no entanto, não está de harmonia com a descrição da objectividade dos factos. Já que em momento resulta que qualquer dos arguidos tivesse previsto a possibilidade de verificação do estado de desidratação dos utentes e a sua conformação com essa possibilidade. Os factos provados não denunciam, não sugerem, sequer, muito menos, de forma inequívoca, a previsão da possibilidade de os utentes ficaram desidratados – por via da conduta das AAD – nem a conformação com essa possibilidade. Previsão e conformação que teria que resultar indissociável, daquela objectividade, seguindo um raciocínio indutivo/dedutivo à luz das regras da experiência comum e tendo em conta os padrões de entendimento e comportamento do homem médio. Todo o conjunto da objectividade dos factos provados, por forma alguma, tendo em atenção as regras da experiência comum e os padrões de percepção das coisas e de comportamento do homem médio, consente ou se coaduna com qualquer ideia de previsão e conformação do resultado. A objectividade provada resulta, absolutamente, inconciliável, primeiro, com a previsibilidade de os utentes virem a ficar desidratados. E, depois, não se coaduna, de todo, em relação a todos os arguidos, as pessoas singulares, pessoas de normal capacidade de entendimento, com a admissão dessa possibilidade. E, por isso, com a conformação com a sua verificação. E, assim, cremos que da leitura do texto da decisão recorrida resulta patente a verificação do vício do erro notório na apreciação da prova, na afirmação dos factos na decisão recorrida aditados, constantes dos artigos 37.º e 38.º da acusação: - ao omitir o dever de vigilância e fiscalização, os arguidos AA e BB representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral dos dois ofendidos e, apesar disso, permaneceram inativos, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, o que lhes causou sofrimento (artigo 37.º da acusação). - do mesmo modo, ao omitir o dever de acompanhamento, vigilância e fiscalização, as arguidas CC e DD representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral do ofendido FF e, apesar disso, permaneceram inativas, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontrava aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (artigo 37.º da acusação). - atuaram livres, conscientes e voluntariamente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei (artigo 38.º da acusação). Isto é, está aqui em causa que se pode traduzir na fórmula sacramental, “ao, não, actuarem, da forma descrita, os arguidos previram como possível que dessa omissão pudesse resultar a desidratação dos utentes e, ainda assim, mantiveram a sua inacção, conformando-se com tal resultado”. O que vem afirmado dado que, - os arguidos pessoas singulares, pelas funções que desempenhavam, tinham o dever de acompanhar, vigiar e fiscalizar a prestação dos cuidados básicos prestados aos utentes, de forma a assegurar e garantir a sua saúde e bem estar geral, servindo a sua intervenção para corrigir, debelando ou reduzindo o mais possível, qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos prestados; - omitindo voluntária e conscientemente o cumprimento de tal dever, representaram como consequência possível a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem estar geral dos utentes; - assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua admissão ao serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Como é consabido, elementos constitutivos dos diversos tipos legais de crime, são por um lado, o objectivo, que se traduz na descrição objectiva da acção ou omissão proibida – e, por outro lado, o subjectivo, relativo à atitude (aos conhecimentos) que o agente deve apresentar em relação à realização do tipo penal. Sem a sua verificação cumulativa, não se pode afirmar o preenchimento do tipo. Como é sabido, em face do princípio geral “nulla poena sine culpa”, consagrado no artigo 13º C Penal, fica demonstrada a necessidade, a imprescindibilidade, mesmo, de os elementos integradores da culpa – dolo para fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena. “A culpa é a censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso e, assim, se traduz num juízo de valor”, cfr. Prof. Eduardo Correia, in Direito Criminal, I, 313. “Os elementos da culpa são a imputabilidade do agente, a sua actuação dolosa ou negligente e a inexistência de circunstâncias que tornem não exigível outro comportamento”, ibidem, 322. “O dolo e a negligência têm como substracto um fenómeno psicológico, representado por uma certa posição do agente perante o facto ilícito capaz de ligar um ao outro. Estes fenómenos psicológicos, eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do agente, cabem, ainda assim, dentro da vasta categoria de factos processualmente relevantes”, cfr. Prof. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, in Manual de Processo Civil, 392, com evidente pertinência em relação ao processo penal. Daqui se conclui, igualmente, pela necessidade de a decisão condenatória dever conter os factos, neste sentido, que permitam formular o referido juízo de censura ético-jurídica ao arguido. O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas – constitutivo do tipo leal de crime, será, então, em definitivo, um dos elementos que se impõe estejam incluídos na decisão condenatória. É precisamente o elemento subjectivo do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta), ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito), ao momento emocional (conhecimento do carácter proibido da conduta) que permite estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Tanto assim que, como afirma Figueiredo Dias, “…também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado”, cfr. “Direito Penal - Parte Geral”, tomo 1, 2ª ed., 379. Assim, se os elementos objectivos - que constituem a materialidade do crime - traduzem a conduta, a acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos, já o elemento subjectivo traduz a atitude interior do agente na sua relação com o facto material. O artigo 14º C Penal, não define o dolo do tipo, apenas prevê as diversas formas que o mesmo pode revestir. Nos termos do nº. 1, “age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar”, dolo directo; nos termos do n.º 2, “age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta”, dolo necessário e, nos termos do n.º 3, “quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”, dolo eventual. “A doutrina dominante conceptualiza o dolo, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade de realização do tipo de ilícito. O dolo surge, então, justificadamente como conhecimento - o momento intelectual – e vontade – momento volitivo – de realização do facto. Os 2 elementos, do ponto de vista funcional, não se encontram, no entanto, ao mesmo nível: o elemento intelectual do dolo do tipo, não pode, por si mesmo, considerar-se decisivo da distinção dos tipos dolosos e dos tipos negligentes, uma vez que também estes últimos podem conter a representação pelo agente de um facto que preenche um tipo de ilícito - a chamada negligência consciente, artigo 15º alínea a) C Penal. Será, pois, o elemento volitivo, quando ligado ao elemento intelectual, que verdadeiramente serve para indiciar (embora não para fundamentar) uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento, uma culpa dolosa”, cfr, Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, I, 334. “Hoje vem-se colocando, a questão de saber se o dolo se esgota naqueles elementos ou se inclui também um elemento emocional – a consciência da ilicitude”, cfr. Prof. Figueiredo Dias, Jornadas, 72 e Direito Penal, Parte Geral, I, 333 e 489, apud Maia Gonçalves, in C Penal anotado, 17ª edição, 103. Expende, o Prof. Figueiredo Dias que, “o dolo não se pode esgotar no tipo de ilícito e não é igual ao dolo do tipo, mas exige ainda do agente, o momento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo, ou seja uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas”. “Se nada impede que se capte o dolo, dada a sua natureza de intimamente ligado à vida interior do agente, insusceptível de apreensão directa, através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa extrair, por meio de presunções, mesmo ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”, cfr. Ac deste Tribunal de 23.2.83, in BMJ, 324º, 620, no entanto, uma coisa é a prova do dolo e outra, diversa, é a sua alegação. Só pode ser objecto de prova, o facto anteriormente alegado. “Não se pode admitir a figura de dolo implícito”, cfr. Ac. RG de 7.4.2003, in CJ, II, 291, nem a Constituição da República consente presunções de culpa, cfr. artigo 32º/1, 2 e 5 da Constituição da República. Está em causa a configuração do dolo eventual, que se verifica quando “a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”. Precisada a existência de um crime de comissão por omissão com genética numa relação de causalidade fundada num especial conhecimento pelos arguidos importa agora que nos debrucemos sobre a modalidade do dolo eventual. Retornando ao supra identificado acórdão de 27.11.2013, “reportando-nos ao acórdão deste Supremo Tribunal de 20.10.2010, importa acentuar que, “como refere Jeschek, o dolo eventual significa que o autor considera seriamente como possível a realização do tipo legal e conforma-se com ela. O conteúdo da culpa no dolo eventual é menor que o das outras classes de dolo, porque aqui o resultado não foi tido como adquirido nem tido como seguro. Permanecem no dolo eventual, por um lado, a consciência da existência de um perigo concreto de que se realiza no tipo, e por outro, a consideração seria, por parte do agente, da existência deste risco. Considerar-se o perigo como sério significa que o agente calcula como relativamente alto o risco da realização do tipo. Deste modo obtém-se a referência á magnitude e proximidade do perigo, necessária para a comprovação do dolo eventual. Á representação da seriedade do perigo deve adicionar-se a exigência de que o autor se conforme com a realização do tipo. Significa o exposto que o agente, decidindo alcançar o objectivo que se propõe, assume a realização do tipo legal como possível, suportando o estado de incerteza existente na acção. Quem actua por tal forma perante o perigo de que se realize o tipo de acção punível denota uma postura especialmente reprovável em relação ao bem jurídico protegido, pelo que, no tocante, ao conteúdo da culpa equaciona-se a figura do dolo eventual com o dolo directo. Esta postura do agente, caracterizada como um conformar-se com a probabilidade de produção do resultado, não é um componente da vontade de acção, mas um factor de culpa: ao autor reprova-se num grau distinto da negligência consciente em virtude da sua deficiente atitude mental em relação á pretensão de respeito pelo bem jurídico protegido, e isto, porque naquela negligência é certo que reconhece o perigo, mas confia na não produção do resultado típico. O dolo eventual integra-se, assim, pela vontade de realização concernente á acção típica (elemento volitivo), pela consideração séria do risco de produção do resultado (factor intelectual), e, em terceiro lugar pela conformação com a produção do resultado típico como factor de culpa Fazendo apelo á lição do Professor Figueiredo Dias a concepção hoje largamente dominante em relação á conformação do dolo eventual é conhecida doutrinalmente como teoria da conformação; e é ela que consta expressamente do artigo 14.°/3 CPenal – “Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização". Parte da ideia de que o dolo pressupõe algo mais do que o conhecimento do perigo de realização típica. O agente pode, apesar de um tal conhecimento, confiar, embora levianamente, em que o preenchimento do tipo se não verificará e age então só com negligência (consciente). Como refere o mesmo Autor essencial se revela na doutrina da "conformação que o agente tome a sério o risco de (possível) lesão do bem jurídico, que entre com ele em contas e que, não obstante, se decida pela realização do facto. Fica, assim, prejudicada no essencial a conotação meramente psicologista da "confiança" na não produção da consequência representada como possível e, em vez dela, avulta, normativamente, o essencial: o indício que a afirmação do dolo do tipo confere de existência de uma culpa dolosa. Se o agente tomou a sério o risco de (possível) produção do resultado e se, não obstante, não omitiu a conduta, poderá com razoável segurança concluir-se logo que o propósito que move a sua actuação vale bem, a seus olhos, o "preço" da realização do tipo, ficando deste modo indiciado que o agente está intimamente disposto a arcar com o seu desvalor. A circunstância de, não obstante os riscos previstos de lesão do bem jurídico, levar a acção a cabo revela uma decisão contra a norma jurídica de comportamento, para tanto não interessando saber se as consequências negativas do facto lhe são ou não indesejáveis, se ele confia ou não temerariamente que ainda as poderá evitar. De dolo eventual se fala, numa palavra, a propósito de todas as circunstâncias e consequências com que o agente, em vista da autêntica finalidade da sua acção, se conforma ou se resigna com a verificação das mesmas, cfr. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pg. 358. A partir daqui coloca-se a questão de determinar se o critério da conformação consegue manter-se estranho à questão da probabilidade da realização típica. Para Figueiredo Dias uma resposta negativa se impõe: pois não deve dizer-se que o agente tomou a sério a possibilidade de realização se esta é manifestamente remota ou insignificante, salvo se uma tal "distância" for claramente "compensada" por uma decidida vontade criminosa. A questão em apreço assume uma superlativa dimensão naqueles casos em que o agente não pensou no risco, nem muito menos o tomou a sério ou sequer entrou com ele em linha de conta, em virtude da completa indiferença que lhe merece o bem jurídico ameaçado. O agente que revela uma absoluta indiferença pela violação do bem jurídico, apesar de ter representado a consequência como possível e a ter tomado a sério, sobrepõe de forma clara satisfação do seu interesse ao desvalor do ilícito e por isso decide-se (se bem que não sob a forma de uma "resolução ponderada", ainda que só 'implicitamente, mas nem por isso de forma menos segura) pelo sério risco contido na conduta e, nesta acepção, conforma-se com a realização. É exactamente esse posicionamento perante o risco que surge como critério separador entre figuras que detêm uma topografia próxima. Assim, o conceito de dolo eventual configura-se, também, por contraposição ao conceito de negligência consciente que o limita de forma directa. A negligência consciente significa que o autor reconheceu na verdade o perigo concreto, mas não o tomou seriamente em conta, porque em virtude de uma violação do cuidado devido em relação á valoração do grau de risco ou das suas próprias faculdades nega a concreta colocação em perigo do objecto da acção, ou, não obstante considerar seriamente tal possibilidade, confia, também de forma contrária ao dever, em que não se produzirá o resultado lesivo. Enquanto que no dolo eventual o agente "aceita", o característico da negligência consciente é a imprudência temerária. Como pedra de toque para a diferenciação, pode servir a fórmula de Frank: "Se o autor afirma: seja assim ou de outro modo, suceda isto ou aquilo, eu actuo em qualquer caso", deve considerar-se a existência de dolo eventual. Os limites das formas de culpa entre negligência consciente e dolo eventual situam-se, assim numa fronteira muito estreita que passa pela assunção ou indiferença pelo perigo contido na conduta.” Assumido que integram o dolo a vontade de realização concernente á acção típica (elemento volitivo), a consideração seria do risco de produção do resultado (factor intelectual), e a conformação com a produção do resultado típico como factor de culpa importa agora apreciar se é possível a sua afirmação no caso concreto”. Nas expressivas e esclarecedoras palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 12.3.2009, processo 08P3781, consultado nesta data no site da dgsi, “no dolo eventual cabem os casos em que o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta e, apesar disso, leva a cabo tal conduta, conformando-se com o respectivo resultado. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Coimbra, 1971, pág. 385, apresenta a solução de que se a realização do facto for prevista como mera consequência possível ou eventual da conduta haverá dolo se o agente, actuando, não confiou em que ele se não produziria. Ou, vistas as coisas pela outra face: o dolo só se excluirá, afirmando-se a negligência consciente, quando o agente só actuou porque confiou em que o resultado se não produziria. Sempre, pois que ele, representando o resultado, não tomou posição perante este, deverá ser punido a título de dolo eventual. Para Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, I, - Editorial Verbo, 1987, págs. 210-212, o dolo eventual é nos termos da lei a fixação do limite inferior do dolo para o demarcar da negligência. O Autor vinca a necessidade de repetir que o conceito legal de dolo eventual é dolo e na sua estrutura se contém tanto a «representação» ou consciência do facto como a vontade do facto. Para Maria Fernanda Palma, in Da “Tentativa Possível” em Direito Penal, Almedina, 2006, págs. 79 a 81, o dolo eventual é ainda uma forma de decisão de realização do facto típico, ou, em última análise, decisão pela lesão do bem jurídico, especificando que “na situação de dolo eventual o agente, ao aceitar o risco da verificação do resultado típico (“conformando-se” com ele, nos termos do n.º 3 do artigo 14º do Código Penal), preferindo-o aos custos da não realização da sua conduta, inclui essa aceitação nos fundamentos da sua decisão e opta pela lesão do bem jurídico. Na perspectiva do desvalor da acção, do ilícito, não há qualquer razão para diferenciar qualitativamente o dolo eventual”- acrescenta. Como se extrai do acórdão do STJ de 14-06-95, processo n.º 46599, CJSTJ 1995, tomo 2, pág. 226, o dolo eventual é integrado pela vontade de realização concernente à acção típica (elemento volitivo do injusto da acção), pela consideração de que é sério o risco de produção do resultado (factor intelectual do injusto da acção) e, por último, pela conformação com a produção do resultado típico como factor de culpabilidade. No mesmo sentido o acórdão, do mesmo relator, de 20-11-96, in BMJ 461, 194”. Age com dolo eventual o arguido que previu o resultado - no caso, os maus tratos e, mais, concretamente, a desidratação, dos utentes – admitindo esse resultado como possível e, com ele se conformando. Existe dolo eventual se o agente no momento da realização do facto – por acção ou por omissão – e, não obstante prever como possível a realização do resultado, não renuncia à conduta ou não pratica o acto que o possa impedir. É certo e indiscutível o dever dos arguidos pessoas singulares de acompanhar, vigiar e fiscalizar a prestação dos cuidados básicos prestados aos utentes, de forma a assegurar e garantir a sua saúde e bem estar geral. Como é certo e indiscutível que, da mesma forma, lhes era imposta uma intervenção para corrigir, debelar ou reduzir o mais possível, qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos prestados. Naturalmente que no estrito âmbito das funções que cada um desempenhava. No âmbito das respectivas competências funcionais. Onde cabe a delegação de poderes. Recorde-se a cadeia hierárquica: Presidente da Direção, a seguir a Diretora Técnica, no nível abaixo a Chefe de Serviços Gerais, no seguinte as Encarregadas de Sector (Piso) e na base as Auxiliares de Acão Direta (AAD). Isto dito. Cremos que a afirmação de que, - ao omitir o dever de vigilância e fiscalização, os arguidos AA e BB representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral dos dois ofendidos e, apesar disso, permaneceram inativos, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, o que lhes causou sofrimento (artigo 37.º da acusação). - do mesmo modo, ao omitir o dever de acompanhamento, vigilância e fiscalização, as arguidas CC e DD representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral do ofendido FF e, apesar disso, permaneceram inativas, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontrava aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (artigo 37.º da acusação). - atuaram livres, conscientes e voluntariamente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei (artigo 38.º da acusação), traduz um evidente erro notório na apreciação da prova. Com efeito, da mera leitura da objectividade dos factos, atentas as regras da experiência comum, cremos não se poder afirmar a verificação do elemento subjectivo, traduzido no conjunto dos apontados factos. E, assim, sendo certo que se pode discutir se nesta sede os poderes deste Supremo Tribunal são decalcados daqueles que, na mesma situação, impendem sobre o Tribunal da Relação e, se pode este Supremo Tribunal se tiver elementos para decidir, o fazer, sem lançar mão do expediente do reenvio, cremos que no caso concreto, o aludido vício se recortando - como recorta, de facto - no que entendemos ser uma deficiente leitura dos factos com base, única e exclusivamente, na violação das regras da experiência comum - por isso, sem qualquer reporte à prova produzida, nada impedirá que este Supremo Tribunal desde já e, sem mais declare a existência do vício do erro notório na apreciação da prova, com a consequente, imediata, eliminação do elenco dos factos provados dos aludidos 3 pontos. Não se pode, com efeito, da materialidade objectiva apurada concluir que, omitindo voluntária e conscientemente o cumprimento de tal dever, todos eles, representaram como consequência possível a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem estar geral dos utentes – no caso a desidratação. E, muito menos que, ainda que o tivessem previsto, se, tivessem todos eles, conformado com esse resultado. Acompanhar, vigiar, fiscalizar a forma como no quotidiano seriam prestados os cuidados aos utentes, não significa, de todo, fazê-lo a par e passo, em termos de presença física. Orientar não significa tutelar. Muito menos no contexto de condicionamento de contactos então em vigor. Imagine-se o contrário, que o faziam ao lado das AAD e que se transmitia por essa via o vírus que nos conduziu à pandemia. Hoje, porventura, estariam a ser acusados por esse facto. É evidente que a adaptação à pandemia pode ter resultado em falhas, mas não o suficiente para se dar o salto lógico que foi dado – imputação de dolo eventual a quem estava na posição de fiscalizar e vigiar. Quem estava no terreno, na linha da frente eram as AAD. Que tinham instruções para perante qualquer situação anómala accionar o corpo clínico. Médicos e enfermeiros. O que assim foi feito em relação ao utente. Tardiamente, parece, é certo. Na sequência do que foi encaminhado para o hospital. Nada foi comunicado de anormal a nenhum dos arguidos, que não tendo tido conhecimento, por qualquer forma ou via, directa ou indirecta, do concreto estado de saúde de cada utente, não previram a possibilidade de desidratação, não se conformaram com tal patologia – que veio a ser diagnosticada no hospital – e que nada podiam ter feito para a evitar. Pura e simplesmente desconheciam a realidade. Omissão geral do dever de cuidado a que estavam obrigados e de que eram capazes? Porventura. O que nos remete para o conceito legal de negligência. Sendo que no caso, estamos, perante um crime doloso. Não existe aqui responsabilidade objectiva, por causa da função, independentemente da culpa. E, aqui podemos fazer um parêntesis salientando o seguinte. No inquérito tentou-se saber quem foram as AAD que atendiam os utentes naquele período de tempo e não se logrou conseguir saber. Porque os diários estavam rubricados por alguém que não elas próprias, que teria sido feito por atacado, tendo identificado quem o poderia ter feito. Não obstante, o processo foi arquivado nessa parte. Quando teria sido demasiado fácil, através da consulta dos mapas de horários e das escalas de serviço saber quem, em determinado dia e hora, estava de serviço. E no confronto entre todos apurar quem atendeu, cada um dos utentes. Da mesma forma, porventura, em relação aos elementos do corpo clínico. E, então num caso a omissão seria de prestação de cuidados, activos digamos a ingestão de líquidos em quantidades suficientes e, no outro por ausência de registos de alterações do estado clínico dos utentes e/ou não detecção do estado de desidratação. Recorde-se que as AAD reportavam no livro de turno ou diretamente com os enfermeiros. E, assim, de omissão em omissão, se avançou no sentido da omissão do dever de vigilância e fiscalização dos arguidos, que não tinham responsabilidade nem intervenção directas naquelas omissões - todos colocados num patamar superior na cadeia hierárquica. Não está, pois, aqui em causa a omissão de proporcionar água ou alimentos líquidos aos utentes. Falta saber, de resto, se mesmo com o acompanhamento, fiscalização e vigilância dos arguidos era possível detectar mais cedo o estado clínico dos utentes. O que implicaria, desde, logo que o mesmo fosse notório, porventura. O que nos remete, para outra vertente da questão. Que apreciaremos, não obstante, a já decretada falência dos factos em que estava estruturada a verificação do elemento subjectivo. E, por isso, desde logo, a implicar o não preenchimento do tipo legal imputado aos arguidos. 4. 4. O nexo de causalidade entre a omissão e o resultado. Antes de nos debruçarmos sobre a questão do nexo de causalidade, vejamos, de uma forma mais detalhada a questão da comissão por omissão De acordo com o artigo 10.º CPenal, quando o tipo compreende o chamado evento ou resultado, o facto abrange não só a acção como também a omissão, adequadas à sua produção. O que tem subjacente a equiparação da omissão à acção e que a ligação da conduta ao resultado tem que ser vista em termos de causalidade adequada, de harmonia com a qual a causa de determinado resultado é a que for adequada, ou idónea, para o produzir, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer. Dito por outra forma pode-se concluir que, se um comportamento omissivo provocar um certo resultado típico, é de considerá-lo, para efeitos penais, como se tivesse sido produzido por acção (ou seja, se não fosse a omissão o resultado não se teria produzido). A acção omitida encontra-se em conexão legal com o resultado produzido, ou seja, a afirmação de causalidade com a omissão do fazer positivo existe sempre que este acto hipotético tivesse impedido o resultado. Há que afirmar a causalidade quando não é possível imaginar a acção esperada sem que desapareça o resultado (duplex negatio est affirmatio) A propósito dos crimes comissivos por omissão, refere o Professor Germano Marques da Silva in Direito Penal Português, Teoria do Crime, 2.ª Edição, Universidade Católica Editora, 84 e ss., que “a causa que há-de interceder entre a omissão e o resultado não tem a mesma natureza da que intercede entre a ação nos crimes comissivos por ação e o respetivo evento. Nestes, a ação produz o evento; naqueles, a omissão não evita o evento. O juízo de causalidade da omissão é um juízo hipotético, que se concretiza em considerar que se a ação devida que foi omitida se tivesse verificado o evento não se teria produzido. Trata-se, evidentemente, de um juízo probabilístico. A omissão é causa do evento sempre que, segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação, se o ato devido tivesse sido praticado o evento não se teria produzido. Se “um comportamento omissivo da ação provocar um resultado típico, podemos dizer que esse resultado deve ser equiparado, para efeitos de gravidade e de punição criminais à ação (…), desde que tal omissão seja tida como adequada a evitar tal resultado (isto é, se não fosse a omissão o resultado não se teria verificado)”. Sobre a mesma matéria Taipa de Carvalho in Direito Penal, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 570 e ss., entende que, “nos crimes de comissão por omissão, como crimes de resultado que o são, pelo resultado só pode o omitente ser responsabilizado, desde que haja (…) uma relação de adequação entre a conduta e o resultado. Só que, no caso dos crimes comissivos por omissão, a conduta em causa é uma omissão de determinada ação. Assim, não se pode dizer que a omissão causou, ou não causou, o resultado. O que tem de se perguntar é se a ação omitida (apesar de jurídico-penalmente imposta) teria impedido o resultado. Portanto, o juízo de adequação, no caso de omissão, não é um juízo de efetividade, mas um juízo hipotético. E afirmar-se-á a imputação objetiva do resultado à conduta omissiva, se a resposta ao juízo hipotético for positiva; ou seja, imputar-se-á, quando se concluir (comprovar) que, se o omitente tivesse praticado a respetiva ação, o resultado não teria ocorrido. Daqui a designação de “causalidade”, rectius, adequação hipotética para a imputação objetiva do resultado à omissão”. Teresa Beleza in Direito Penal”, II Vol., EAAFDL, 1980, 911, sobre o “raciocínio hipotético” refere que “entendendo-se que, mesmo em termos de lei positiva, é a teoria dita da causalidade adequada ou da adequação que funcionará no direito português, isso também acontecerá nas omissões ditas impuras, só que, neste caso, o raciocínio da imputação é feito por forma inversa. Isto é, o que nós vamos averiguar, para imputar um resultado a uma pessoa que omitiu evitá-lo, é saber se a atuação a que a pessoa estava obrigada era ou não adequada a evitar esse resultado. Isto é, não se põe a questão em termos de saber se a ação que a pessoa praticou era (…) adequada a provocar um resultado, mas se (e por um raciocínio hipotético nós imaginamos a atuação que a pessoa não teve), se necessariamente o resultado não desapareceria ou, em termos de adequação, se a atuação que a pessoa podia e devia ter era adequada, isto é, em termos de experiência comum, era previsível que evitasse um certo resultado”. Também João Curado Neves in Comportamento Lícito Alternativo e Concurso de Riscos, AAFDL Editora, 195 e ss., ensina que, “existe hoje em dia acordo entre a grande maioria dos autores de língua alemã no sentido de atribuir relevância ao comportamento hipotético do autor de um crime negligente (…)», relevância essa, que se traduz “em não imputar um evento ao autor de um facto ilícito caso se verifique que o seu comportamento não faltoso teria as mesmas consequências”. O que conduziria à seguinte interrogação: “se o agente tivesse respeitado o cuidado a que estava obrigado, o resultado desapareceria, ou ter-se-ia ainda assim verificado? Verificando-se a segunda alternativa, estará demonstrado que a falta de cuidado não se concretizou no resultado. A negligência no comportamento do agente foi neutral em relação à verificação da lesão do bem jurídico (Ulsenheimer, JZ 1969, p. 368)”. Adoptando a formulação de Jakobs adianta o autor que a pergunta seria “não o que aconteceria em caso de comportamento correto do agente, mas antes se a verificação do resultado pode ser explicada abstraindo do aspeto faltoso da conduta (Jakobs, Studienm, p. 102)”. Ainda, a respeito da imputação objetiva do resultado a título de comissão por omissão, citando Jescheck, escreve o Conselheiro Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues in Estudo Sobre a Responsabilidade Criminal Médico – Hospitalar, 130 e ss., que “… verificada a morte (…) do paciente haverá um evento material típico do crime de homicídio (…), cuja causa (“causa hipotética” no sentido de que, com probabilidade raiando a segurança, a ação esperada evitará o resultado) é justamente a omissão do médico “da ação adequada a evitar” tal evento”. Quanto à questão da causalidade, voltamos a citar o mencionado acórdão de 27.11.2013, “fazendo apelo às palavras de Figueiredo Dias o critério geral da teoria da adequação reside em que para a valoração jurídica da ilicitude serão relevantes não todas as condições, mas só aquelas que, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer - e portanto segundo o que é em geral previsível -, são idóneas para produzir o resultado. Consequências imprevisíveis, anómalas ou de verificação rara serão pois juridicamente irrelevantes. Neste sentido deve interpretar-se o art. 10.°-1. A referência aí feita tanto à "acção adequada" a produzir um certo resultado, como à "omissão da acção adequada a evitá-lo" quer significar que o CP português adoptou, ao menos como critério básico da imputação objectiva, a teoria da adequação, cfr.Direito Penal - Parte Geral - Tomo I - Questões Fundamentais; A Doutrina Geral do Crime. O critério da adequação dever ser geral e objectivo o que conduz à conclusão de que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo ex ante, e não ex post, mais rigorosamente, segundo um juízo de prognose póstuma. Tal significa que o juiz se deve deslocar mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a conduta e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais da experiência e o normal acontecer dos factos (o id quod plerumque accidit), a acção praticada teria como consequência a produção do resultado. Se entender que a produção do resultado era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação não deverá ter lugar. Em tal juízo de prognose póstuma devem ser levados os já referidos conhecimentos correspondentes às regras da experiência comum, mas não só. Além destes, devem ser tidos em conta - o que, em lógica pura, representa já uma entorse no princípio geral da adequação, ainda que justificável- os especiais conhecimentos do agente, aqueles que o agente efectivamente detinha, apesar de a generalidade das pessoas deles não dispor. Tal consideração tem uma especial incidência quando a causalidade têm implícito o conhecimento pelo agente dum contexto factual que, em termos de normalidade, não seria acessível. No caso vertente o ponto crucial da afirmação de causalidade expressa-se nos especiais conhecimento atribuídos à recorrente qua a habilitariam a detectar o perigo de morte caso não fossem ministrados os necessários cuidados. Tal constatação da decisão recorrida torna inócua qualquer tentativa de procura duma lacuna no processo causal, considerado de forma abstracta, e, nomeadamente, uma referência ao critério da denominada "interrupção do nexo causal". Reportando-nos ainda às palavras do citado Mestre a ideia-mestra que preside à teoria da adequação é a de limitar a imputação do resultado àquelas condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado. Pondo em especial evidência este perigo, situamo-nos mesmo no âmago das doutrinas actuais da conexão de risco: o resultado só deve ser imputável à acção quando esta tenha criado (ou aumentado, ou incrementado) um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico. Por outras palavras, para esta teoria a imputação está dependente de um duplo factor: primeiro, que o agente, com a sua acção, tenha criado um risco não permitido ou tenha aumentado um risco já existente; e, depois, que esse risco tenha conduzido à produção do resultado concreto. Quando se não verifique uma destas condições a imputação deve ter-se por excluída”. E, assim, retomando o caso concreto e no que à apreciação dos recursos aqui se reporta, a questão do juízo hipotético de adequação traduz-se em saber se a acção, de vigilância e fiscalização, omitida pelos arguidos seria idónea a evitar o resultado. Onde particular relevância a prova pericial constante dos autos, a qual se reveste de importância decisiva no domínio desta matéria, atinente com a prestação de cuidados primários e a sua repercussão em situações do foro clínico. Com efeito, ao perito, no caso ao médico, como auxiliar do julgador, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto - atendendo, v.g. ao contexto da intervenção, aos seus conhecimentos especiais, aos factores endógenos e à qualidade dos intervenientes - pede-se que emita um juízo de prognose póstuma, que equivalendo ao juízo de violação do dever de cuidado, permita, ou não, concluir, no que ao caso interessa, se tivesse sido praticada pelos arguidos - omitentes, sobre os quais recaia o dever jurídico de garante - em momento anterior – no inicio do quadro clínico – o dever que omitiram, se permitiria, desse modo, a antecipação do diagnóstico de “desidratação” e, ter-se-ia, ou não, evitado, com razoável probabilidade, o resultado – afinal, a desidratação. Sendo a resposta positiva, à luz do artigo 10.º CPenal – “omissão da acção adequado a evitá-lo” - é de imputar o resultado (desidratação) à conduta (omissiva) dos arguidos. E, o que resulta nesta sede, da análise critica da prova, feita nas instâncias, é que, - não ficou provado nem foi alegado que alguém haja negado água ou comida aos utentes; - os arguidos se deveriam, não obstante, ter apercebido do estado, emergente, latente e não notório, de desidratação mais cedo; - no parecer médico-legal o seu subscritor afirma não ter dados suficientes para dar uma resposta concreta a tal possibilidade; - a utente fazia 16 horas de oxigénio por dia e estava infectada por covid-19, de que veio a falecer; - o utente estava de quarentena e fazia diuréticos; - o estado das mucosas é apenas um dos elementos para aferir da desidratação, havendo muitos outros fatores a ter em conta para se poder efetuar um diagnóstico positivo. Voltando aos ensinamentos de Taipa de Carvalho, ob. cit., 311-313, “… a exclusão da imputação (do resultado à conduta) afirmar-se-á quer, ex post se tenha a certeza ou quase certeza de que o resultado se teria produzido na mesma, quer haja uma probabilidade ou até apenas a dúvida razoável, uma vez que in dubio pro reo”. “… para haver imputação é necessário que exista entre a conduta (ação ou omissão) e o resultado um nexo causal concreto, ou seja, é necessário que tenha sido a conduta a causa efetiva do resultado. Ora, sendo esta efetiva relação causal um elemento do tipo nos crimes de resultado, ele tem de ser objeto de prova. Donde que, havendo dúvida razoável sobre se efetivamente a conduta foi causa do resultado, ter-se-á, por força do princípio in dubio pro reo, de considerar como não provada a imputação e, portanto, de absolver o arguido do crime de resultado”. Não se pode olvidar a necessidade processual de se provar o nexo causal. No direito penal só o que pode ser susceptível de prova, com meios legalmente admissíveis, pode fundamentar uma imputação jurídica. Por isso quando as provas produzem resultados ambíguos deve absolver-se com base no princípio in dubio pro reo. E, assim, no caso do enunciado da decisão recorrida, será de concluir, aqui, não pela verificação do erro notório na apreciação da prova – em cuja, sede, se vem entendendo poder ser apreciada a violação deste princípio geral da prova em processo penal – mas em decisivo erro de direito, quanto à matéria de afirmação do nexo de causalidade, aqui exigido, em crimes comissivos por omissão, pois que os factos de onde se pretende extrair - os constantes dos artigos 37 e 38 da acusação - não assumem tal virtualidade. Com efeito, afirmar que, - ao omitir o dever de vigilância e fiscalização, os arguidos AA e BB representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral dos dois ofendidos e, apesar disso, permaneceram inativos, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, o que lhes causou sofrimento (artigo 37.º da acusação); - do mesmo modo, ao omitir o dever de acompanhamento, vigilância e fiscalização, as arguidas CC e DD representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral do ofendido FF e, apesar disso, permaneceram inativas, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontrava aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (artigo 37.º da acusação), não permite resolver a, supra enunciada, questão de direito, e responder afirmativamente à verificação do nexo de imputação objetiva do resultado (desidratação) à conduta omissiva dos arguidos, considerando a alta probabilidade – juízo hipotético de adequação – de que ainda que tivesse ocorrido a ação omitida pelos arguidos, se verificaria o mesmo resultado. Ou dito de outra forma, não se pode, decisivamente, da materialidade apurada afirmar que, verificada a desidratação, haja um evento material típico do crime de maus tratos, cuja causa (“causa hipotética” no sentido de que, com probabilidade raiando a segurança, a ação esperada evitará o resultado) haja sido a omissão dos arguidos “da ação adequada a evitar o evento, cfr. neste sentido, o acórdão da RC de 9.6.2020, processo 1131713.2TACBR,consultado no site da dgsi, sobre um caso de negligência, médica, que vimos seguindo de perto, mesmo com transcrição. Obviamente que diversa seria a conclusão se a omissão se reportasse à actuação das AAD ou dos elementos do corpo clínico, no tocante à omissão de aqueles proporcionarem água ou alimentos liquidos. E, assim, tendo em conta a materialidade considerada provada cremos não poderem subsistir dúvidas de que a omissão de actuação por parte dos arguidos, a enunciada correcção de procedimentos, não integra qualquer conduta no sentido de obviar ou colmatar o mal produzido. 5. 1. Quanto à responsabilidade criminal do arguido Lar de .... Na 1.º instância a este propósito entendeu-se o seguinte: “Postula o art.º 11 do C. Penal. 1 - Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são suscetíveis de responsabilidade criminal. 2 - As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 144.º-B, 150.º, 152.º-A, 152.º-B, 156.º, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 177.º, 203.º a 206.º, 209.º a 223.º, 225.º, 226.º, 231.º, 232.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 359.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 377.º, quando cometidos: a) Em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem. 4 - Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa coletiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade, incluindo os membros não executivos do órgão de administração e os membros do órgão de fiscalização. 5 - Para efeitos de responsabilidade criminal consideram-se entidades equiparadas a pessoas coletivas as sociedades civis e as associações de facto. 6 - A responsabilidade das pessoas conectivas e entidades equiparadas é excluída quando o agente tiver atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito. 7 - A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes nem depende da responsabilização destes. O modelo vigente não é de responsabilidade “direta” da sociedade e, para que o crime seja imputado à sociedade (para que se possa validamente afirmar que “a sociedade cometeu o crime”), é necessário, pelo menos em princípio, que o representante também o seja, ou possa ser, dado que o facto e a culpa do agente físico são componentes essenciais e pressupostos da imputação da pessoa coletiva (Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Lisboa 2009, p. 296-297). Nessa sendo, a imputação jurídico-penal dos entes coletivos assenta numa culpa erigida através do facto e da culpa das pessoas físicas e a responsabilidade da pessoa coletiva só existe quando a pessoa física (agente singular que detenha uma posição de liderança, ou um agente subordinado em virtude da violação de deveres de vigilância ou controlo) tenha agido (ou omitido o comportamento devido) em nome e no interesse coletivo. Por isso, a existência de um nexo de imputação do acto ilícito típico (ou facto de conexão) a um elemento da sociedade com posição de liderança na organização constitui um pressuposto essencial para imputação do crime à pessoa coletiva e depende da "identificação funcional" do líder autor do facto concretamente acontecido (Teresa Quintela de Brito, Fundamento da responsabilidade criminal de entes coletivos: articulação com a responsabilidade individual, Direito Penal Económico e Financeiro, Conferências do Curso Pós Graduado de Aperfeiçoamento, Coimbra, 2012, p. 205 e 206 e RPCC, Ano 20 nº 1, Janeiro-Março 2010, p. 41 a 71) Assim, embora não seja exigível que o agente singular seja efetivamente condenado (artigo 11º nº 7 Código Penal), é necessário que pelo menos seja apurada a culpa das pessoas físicas que atuam em nome e no interesse da pessoa coletiva; A contrário, se a pessoa que ocupa a posição de liderança dever ser declarada sem culpa, a pessoa coletiva beneficiará também da exoneração da responsabilidade (Germano Marques da Silva Responsabilidade Penal das Pessoas Coletivas, Revista do CEJ, 1º semestre 2008, nº 8, Almedina, p. 94). Ou seja e concretizando a responsabilidade criminal da pessoa coletiva não exige a responsabilização do seu agente, bastando que seja possível estabelecer e demonstrar o nexo de imputação do facto à pessoa física, independentemente de posterior condenação desta. Logo e a título de exemplo, podemos indicar que a pessoa coletiva pode ser condenada nos casos em que não é possível determinar qual, de entre vários, é o agente responsável pelos factos integrantes do crime, designadamente quando se sabe que a responsabilidade cabe a uma pessoa física da pessoa coletiva, mas não foi possível apurar a pessoa em causa, mas que se sabe que foi alguém da pessoa coletiva. Nestes casos, verificados os restantes pressupostos da imputação (crime cometido em seu nome e no seu interesse), a pessoa coletiva pode ser responsabilizada independentemente da condenação ou absolvição dos seus agentes. Subsumindo os factos apurados ao direito, entendemos que não ficou preenchida a prática de qualquer crime por parte da pessoa coletiva. Com efeito, o objeto deste processo é uma alegada violação do dever de fiscalização e acompanhamento por parte de membros da pessoa coletiva no que respeita aos 2 utentes e uma omissão por parte dos membros diretivos do lar ... em proporcionar aos seus funcionários ações de formação que lhes permitam interpretar corretamente os dados da urina na fralda, o que não ficou provado ter sucedido. Ora, não tendo ficado que esses concretos deveres foram omitidos pelos arguidos pessoas singulares aqui em causa, nem tampouco por outros elementos da instituição, independentemente de se ter ou não apurado a sua identidade, em caso algum a pessoa coletiva pode ser condenada. E, na decisão recorrida pela forma seguinte: “Como é sabido, o artigo 11º do Código Penal estabelece as condições em que as pessoas coletivas podem ser responsabilizadas criminalmente. Para tanto será necessário que (nº 2 daquele art.º 11.º): - o responsável seja uma pessoa coletiva ou entidade equiparada, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público; - que esteja em causa um dos crimes de «catálogo» (os previstos nos artigos 144.º-B, 150.º, 152.º-A, 152.º-B, 156.º, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 177.º, 203.º a 206.º, 209.º a 223.º, 225.º, 226.º, 231.º, 232.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 359.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 377.º, 152º-A e 152º-B, nos artigos 159º e 160º, nos artigos 163º a 166º sendo a vítima menor, e nos artigos 168º, 169º, 171º a 176º, 217º a 222º, 240º, 256º, 258º, 262º a 283º, 285º, 299º, 335º, 348º, 353º, 363º, 367º, 368º A e 372º a 376º); - que esse crime tenha sido cometido em nome da pessoa coletiva ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem. Refere Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2ª Ed., p. 94) que “o critério de imputação da responsabilidade criminal às pessoas coletivas e equiparadas é duplo: ou reside no cometimento da infração criminal em nome e no interesse da pessoa coletiva por uma pessoa singular colocada em posição de liderança na pessoa coletiva ou equiparada, sendo esta posição de liderança baseada na sua pertença a um órgão da pessoa coletiva competente para tomar decisões em nome desta ou a um órgão da pessoa coletiva competente para fiscalizar aquelas decisões ou ainda na atribuição de poderes de representação pela pessoa coletiva àquela pessoa singular; ou reside no cometimento da infração criminal em nome e no interesse da pessoa coletiva por qualquer pessoa singular que ocupe uma posição subordinada na pessoa coletiva ou equiparada e o cometimento de crime se tenha tornado possível em virtude de uma violação pelas pessoas que ocupam uma posição de liderança dos seus deveres de controlo e supervisão sobre os respetivos subordinados”. Ora, descendo ao caso concreto e analisando as atribuições funcionais dos arguidos pessoas físicas, facilmente se conclui que os arguidos AA e BB desempenhavam funções que os colocavam numa posição de liderança da arguida «Lar ...», competindo ao primeiro, para além do mais, superintender na administração do Lar, orientando e fiscalizando os respetivos serviços, convocar e presidir às reuniões da Direção, dirigindo os respetivos trabalhos e representar o Lar ... em juízo ou fora dele, e á segunda, a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo, incumbindo-lhe, nessa medida, dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. Além disso, os crimes de maus-tratos cometidos por omissão pelos arguidos pessoas físicas foram em nome e no interesse coletivo da arguida, pois que foram cometidos por quem agia em seu nome e no exercício da atividade a que se dedicava a arguida «Lar ...» - alojamento e assistência a pessoas idosas. Finalmente, não resulta dos factos provados que os arguidos pessoas físicas tenham agido contra ordens ou instruções expressas de quem de direito (cf. o n.º 6 do referido art.º 11.º do CP). Exerciam cada um as suas respetivas funções ao serviço da arguida e exerceram-nas mal, é certo, no circunstancialismo em apreço, como resulta do que já deixámos assinalado, omitindo comportamentos que lhes eram impostos pelos cargos que ocupavam, mas tal não é sinónimo de que tenham agido contra ordens ou instruções expressas de quem de direito 27. Em conclusão, deve a arguida «Lar ...» ser responsabilizada criminalmente pelos dois crimes cometidos, como defendido pelo recorrente”. Vejamos. Tudo o que acima se entendeu e se referiu era, naturalmente, reportado, directamente, aos arguidos pessoas singulares. Pressuposto da responsabilidade criminal do arguido Lar ..., perante o crime de catálogo, que constitui o de maus tratos, seria, então, - que o crime fosse cometido: - em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou - por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem. No caso, pelos arguidos AA e BB, que desempenhavam funções que os colocavam numa posição de liderança, que eram quem tinham autoridade para exercer o controlo da atividade do Lar. Está fora de causa, aqui a exclusão da responsabilidade do Lar, com base no facto de os arguidos terem actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito. É certo, que a responsabilidade criminal do Lar não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes nem depende da responsabilização destes. Só que, como vimos já, os arguidos pessoas singulares não são responsabilizados criminalmente porque se não provou o elemento subjectivo do tipo. E, se assim é e, se a responsabilidade criminal do Lar depende sempre de o crime ser cometido… Então se o crime não foi cometido, não pode, também o Lar ser criminalmente responsabilizado. Pelo simples facto de que não existe, sequer, crime. Na 1.ª instância considerou-se que, “assim e tendo em conta todo o exposto, os arguidos vão ser absolvidos de todos os crimes de que vêm acusados, improcedendo, por conseguinte, o PIC formulado, pois que o que está em causa para a procedência do referido pedido é, para além do mais, uma responsabilidade culposa pela prática de crime ou de um facto ilícito, e não uma responsabilidade objetiva por alegado incumprimento contratual”. E, na decisão recorrida entendeu-se que, “analisando, agora, o caso concreto, importa realçar que, em consequência de conduta omissiva culposa imputada à totalidade dos arguidos, a vítima FF, utente do E... Lar ..., sofreu estado de desidratação classificado médico-legalmente como grave, o qual lhe determinou, para além do mais, lesão renal aguda. Caso não tivesse ocorrido intervenção terapêutica no serviço de urgência do CHVNG, onde deu entrada no dia 29 de agosto de 2020, era previsível a progressão da desidratação que, no seu termo, poderia conduzir à morte (cf. os pontos 22) a 25) da matéria de facto provada). De acordo com o nº 1 do art.º 483º do C.C., a obrigação de indemnizar, por imputação de um dano, exige a verificação dos seguintes pressupostos: existência de um facto ilícito; imputação subjetiva do facto ao lesante; nexo de causalidade entre o facto e o dano 46. Resulta, assim, da matéria de facto apurada que os arguidos/demandados atuaram de forma ilícita e culposa, tornando-se responsáveis pela reparação dos danos, designadamente de natureza não patrimonial, que hajam causado. Não tendo sido formulado pedido tendente à compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima direta do comportamento ilícito e culposo imputado aos arguidos/demandados, os únicos que importa ponderar são aqueles que, reflexamente, foram causados à demandante, na sua qualidade de filha do ofendido. A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais está dependente de um juízo de valoração objetivo, tendente a afirmar a sua gravidade, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 496º do C.C. Ora, o tribunal a quo considerou demonstrado que «A demandante EE, filho do utente FF, ficou muito triste com a situação vivida pelo seu pai, não tendo permitido que o mesmo regressasse ao Lar após alta hospitalar, tendo deixado o seu trabalho para tomar conta do seu pai. Sentiu-se culpada pela situação vivida pelo seu pai, embora não tivesse tido qualquer contacto com o lar ..., em virtude de nessa altura, por causa do Covid 19, os lares estarem fechadas e não ser permitida qualquer visita» (cf. o ponto 47 dos factos provados). Embora a factualidade apurada a este propósito seja escassa, desconhecendo-se, por exemplo, o período temporal durante o qual a demandante manteve a assistência prestada ao seu pai, com a inerente afetação da sua vida pessoal e profissional, a verdade é que os danos comprovadamente sofridos pela demandante (tristeza e sentimento de culpa; afetação temporária da sua vida profissional e pessoal em virtude da assistência prestada ao progenitor) são objetivamente graves e relevantes, considerando todo o circunstancialismo apurado 47. Verificados, na totalidade, os pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo dos demandados, resta-nos determinar o valor da indemnização a atribuir à demandante. Os danos não patrimoniais, reportando-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral 48, são insuscetíveis de avaliação pecuniária, visando, por isso, o seu ressarcimento uma compensação das dores físicas ou morais sofridas pelo lesado, bem como sancionar, em alguma medida, a conduta do lesante. Como vem salientando a jurisprudência, a compensação por danos não patrimoniais, para constituir uma efetiva possibilidade compensatória, deve ser significativa e não meramente simbólica. Refere-se, a este propósito, no acórdão do STJ de 24/4/2013 (disponível em www.dgsi.pt), que a fixação da indemnização não deve ser simbólica, miserabilista ou arbitrária, mas nortear-se por critérios de equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art.º 494.º do CC. 49 A matéria de facto provada evidencia a elevada ilicitude do comportamento dos arguidos, considerando a condição clínica e elevada dependência do ofendido FF da assistência e cuidados prestados por terceiros, para além da gravidade da ofensa à integridade física que lhe foi causada, justificando, deste modo, o grau elevado dos danos não patrimoniais reflexamente causados à demandante. Deste modo, e ponderando ainda a situação económico-financeira dos arguidos/demandados, afigura-se-nos equitativa a quantia de € 8.000,00 por forma a compensar adequadamente a demandante dos graves danos não patrimoniais por ela sofridos e, pela mesma via, sancionar adequadamente o comportamento ilícito e culposo dos arguidos/demandados. Como estabelece o artigo 497.º, n.º 1, do Código Civil, se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade”. Vejamos. De acordo com o princípio da adesão que vigora no nosso sistema de processo penal, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, artigo 71.º e 72.º CPPenal. Desta forma se pretenderam alcançar vantagens manifestas, ao nível da economia de meios, bem como do próprio “prestígio institucional” - nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 5.11.2008, processo 2874/08 - para se evitarem julgados contraditórios Assim sendo, a causa de pedir em que se estrutura o pedido cível tem que partir dos mesmos factos que integram a prática de um crime. Isto é, dos factos que são causa da responsabilidade criminal. Donde, a causa de pedir na acção cível conexa com a criminal é sempre a responsabilidade civil extracontratual (pois que fundada na prática de um crime e não no incumprimento contratual) e não qualquer outra fonte de obrigações, como a responsabilidade civil contratual ou o enriquecimento sem causa. Porém, tal não significa que, no caso de absolvição penal, não possa ocorrer condenação no processo com base em responsabilidade pelo risco – que não deixa de ser responsabilidade extracontratual (que abrange a responsabilidade civil por factos ilícitos e a responsabilidade pelo risco). Com efeito. Dispõe o artigo 377.º CPPenal que, “1- A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 82.º”. O Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 7/99 (D.R. n.º 179, Série I-A de 3.8.1999) decidiu que se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º/1, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual. Daqui resulta que, também, por razões de justiça e de economia processual, absolvido o arguido pelo crime de que vinha acusado, a condenação em indemnização civil, quer, por responsabilidade extracontratual, quer, pelo risco (vg. em casos de acidente de viação) não está vedada, pois o que fica afastada é apenas a responsabilidade civil contratual. E, assim, - se o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime; - se o arguido for absolvido desse crime, o pedido cível formulado só poderá ser considerado se existir responsabilidade extracontratual, em caso de ilícito civil ou responsabilidade pelo risco. Por outro lado, como é sabido, o artigo 402.º CPPenal, sob a epígrafe de “âmbito do recurso”, dispõe no seu n.º 2 alínea b) que “salvo se for fundado em motivos estritamente pessoais, o recurso interposto pelo arguido, aproveita ao responsável civil”. E, o artigo 403.º sob a epígrafe de “delimitação do recurso” dispõe no seu n.º 3 que, “a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida”. Como vimos não se pode ter como provado o dolo, eventual, no caso. “A culpa criminal distingue-se da culpa civil, por aquela variar em função da gravidade do delito, sendo um seu decisivo elemento traduzindo um juízo abstracto-subjectivo, enquanto que a culpa civil mais um aspecto abstracto-objectivo, sendo relevantes na culpa criminal mais aspectos éticos e de segurança do que comércio jurídico, acrescendo, ainda, a hipótese de haver responsabilidade civil sem culpa, no caso do risco, assim como uma volumosa culpa civil ( dano elevado ) sendo diminuta a responsabilidade penal ou ao invés”, cfr, acórdão deste Supremo Tribunal de 18.6.2009, processo 81/04.8PBBGC, citando o Professor Antunes Varela. E, assim sendo, apesar de não vir provado o dolo dos arguidos, é certo que se pode, ainda assim, entender que se verifica uma actuação meramente culposa, a título de negligência, a implicar também, a verificação do elemento atinente com a responsabilidade civil, por factos ilícitos – a permitir a condenação dos demandados, se se verificassem todos os demais pressupostos. O resultado, os maus tratos, a desidratação a poder ser imputada à omissão dos arguidos, pressuporia, numa actuação meramente negligente, a violação de um dever objectivo de cuidado, destinado a evitar o resultado típico, afirmado caso a caso, em função das circunstâncias concretas, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários específicos deveres e regras de conduta. Os arguidos podem não ter agido com o dever de cuidado - que as circunstâncias do caso impunham e de que eram capazes - adequado a prevenir o dano, dever esse concretizado pelas normas jurídicas descritas, complementado por normas prudenciais e usuais da profissão, o que significa que podem ter actuado com negligência, artigo 15.º/1 CPenal. Numa qualquer da sua dupla modalidade - consciente ou inconsciente, distinguindo-se do dolo eventual, a consciente pela representação do resultado – que falha na inconsciente – estando naquela, ausente a conformação com o resultado – o que a diferencia do dolo eventual. O certo, contudo, é que, como vimos já, falta o requisito do nexo de causalidade entre a omissão e o resultado. Donde, não pode o pedido de indemnização civil, deixar, também, de improceder. III. Dispositivo Nestes termos acordam os Juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento a todos os recursos interpostos pelos arguidos/demandados, em função do que se revoga a decisão recorrida e se decreta a absolvição dos mesmos, quanto à parte criminal e, por decorrência, também, quanto à parte cível. Sem tributação. Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e, assinado eletronicamente por si e pelos Srs. Juízes Conselheiros adjuntos, nos termos do artigo 94.º/2 e 3 CPPenal. Supremo Tribunal de Justiça, 2025NOV19 Ernesto Nascimento - Relator Jorge Gonçalves – 1.º Adjunto Vasques Osório – 2.º Adjunto |