Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6928/23.2JAPRT.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO AUGUSTO MANSO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
AGRAVANTES
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
MEDIDA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
PENA DE PRISÃO
CÚMULO JURÍDICO
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 05/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Como afloramento do princípio geral de Direito Penal “ne bis in idem”, o princípio da proibição da dupla valoração impede que a mesma circunstância agravante seja valorada por duas vezes, ora como agravante modificativa do tipo de crime, ora como agravante de natureza geral, para fundamentar a pena concreta aplicada.

II - Todavia, verificada que esteja uma dessas circunstâncias que determina a agravação da moldura penal abstracta, quando se procede à determinação da medida concreta da pena, há que ponderar o seu grau de intensidade, pois, dentro desse quadro, pode ser maior ou menor.

III - Quando assim acontece, não se está a fazer uma dupla valoração da circunstância agravante, mas a proceder a análises diferentes, a primeira de ordem qualitativa para saber se a circunstância é uma das que estão enumeradas na lei, a segunda de ordem quantitativa para apurar a sua ordem de grandeza dentro do quadro já definido.

IV - A violação do princípio da proibição da dupla valoração só se verifica se a apreciação da circunstância modificativa for feita mais do que uma vez sob a mesma perspectiva, qualitativa ou quantitativa, em prejuízo do arguido.

V - Sendo o arguido recorrente condenado pela prática de 15 crimes p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.º1, e 177.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal e sendo considerada na determinação concreta da pena a particular vulnerabilidade da vítima em razão da idade, agravante a que se refere a al. c) do n.º 1 do art.º 177º do Código Penal, não se verifica a violação de tal princípio.

VI - Valorando o ilícito global perpetrado, 15 (quinze) crimes, praticados pelo arguido, entre o mês de Julho de 2022 e o dia 6 de Dezembro de 2023, ponderando em conjunto todos os factos em presença, a sua relacionação com a personalidade do recorrente e os fins das penas, mostra-se justa e adequada a pena única conjunta de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão em que foi condenado o recorrente, satisfazendo as exigências de prevenção geral e especial, sem exceder a medida da culpa.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório

1.1.Nos presentes autos, a correr termos no Juízo Central Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi o arguido AA condenado,

1-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses);

2-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses);

3-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses);

4-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses);

5-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses);

6-Condenar o arguido AA como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses);

7-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses);

8-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois mêses);

9-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses);

10-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de dois anos de prisão (vinte e quatro meses);

11-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de dois anos de prisão (vinte e quatro meses);

12-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de dois anos e dois meses de prisão (vinte e seis meses);

13-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de dois anos e dois meses de prisão (vinte e seis meses);

14-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão (trinta meses);

15-como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão (trinta meses);

-Em cúmulo jurídico das penas de prisão aludidas em B) a P), foi o arguido AA condenado na pena única de oito anos e quatro meses de prisão;

-E, arbitrada a favor da BB, a título de reparação por prejuízos sofridos, a quantia de 7.000,00 (sete mil euros), foi o arguido condenado a proceder ao pagamento dessa quantia monetária.

1.2. Inconformado com esta decisão dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

“1.o arguido não se conforma com o acórdão proferido no que respeita à medida das penas parcelares aplicadas e respectivo cúmulo jurídico.

2.Refere o Acórdão proferido nos presentes autos, “No caso em apreço, prevê o tipo legal do abuso sexual de crianças (do art. 171.º, n.º 1, do CP) a punição do crime em causa com uma pena de prisão que tem como limite mínimo 1 ano de prisão e como limite máximo 8 anos de prisão. Tais limites, por força do mencionado art. 177.º, n.º1, al.s a) e b), do CP, em virtude de agravação de 1/3 nos seus limites mínimos e máximos, passam a ser, respectivamente, de 1 ano e 4 meses (limite mínimo) e de 10 anos e 8 meses (limite máximo).”

3.O arguido foi punido pela prática de factos que consubstanciam o crime de abuso sexual de crianças (do art. 171.º, n.º 1, do CP), mas com as agravantes decorrentes do art. 177.º, n.º1, al.s a) e b), do CP,

4.Na fundamentação da medida da pena relativamente a todos e cada um dos crimes pelo qual o arguido foi condenado, consta:

Em desfavor do arguido milita:

- o grau de ilicitude associado aos factos é acentuado atendendo às circunstâncias que rodearam o comportamento do arguido, estando a vítima sozinha (sem outrem que a pudesse proteger) e a idade da mesma (10/11 anos), dentro do ilícito considerado, circunstâncias expressivas de um grau de ilicitude acentuado;” (o negrito e sublinhado são nossos).

5.Conforme entendido no douto Acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 03/09/2023, relator Excelentíssima Desembargadora

Raquel Lima, “Esta circunstância – a idade da menor e a consequente vulnerabilidade – já consta do tipo legal de crime de abuso sexual de criança (menor de 14 anos), pelo que não pode ser usada, de novo, para agravar o tipo legal que já a pressupunha.” O que igualmente se invoca no caso concreto.

6.Tal Acórdão remete inclusivamente para o “Acórdão do STJ de 24.10.2006 “- O princípio da proibição de dupla valoração impede que a mesma circunstância agravativa seja valorada por duas vezes, num primeiro momento fazendo-a funcionar como agravante modificativa do tipo de crime, com alteração da moldura da pena abstracta, num segundo momento fazendo-a operar como agravante de natureza geral, para justificar que a pena concreta seja mais elevada do que seria sem ela.”

O que igualmente se invoca no caso concreto.

7.O Acórdão recorrido, ao ter considerado a idade e vulnerabilidade da menor como um factor de agravamento da pena já previsto nos art. 171.º e 177.º ambos do CP, e igualmente, como um agravamento do grau de ilicitude associado aos factos, como expressamente refere, sopesando tal circunstancialismo para efeitos de medida da pena, agravando-a, salvo o devido respeito, violou o Princípio de Proibição de Dupla Valoração, e assim o previsto nos arts. 40.º, 71.º n.º1 e n.º 2 todos do CP.

Não o devendo ter feito.

8.Conforme resulta do Acórdão recorrido:

- O arguido admitiu alguns dos factos por que vinha acusado. Manifestando assim vontade no esclarecimento dos factos e apuramento da verdade material, e bem assim, uma evidente assunção de culpa e evidência de interiorização do desvalor da sua conduta;

- Igualmente resulta do relatório social junto aos autos que o arguido exibiu um quotidiano normativo e socialmente inserido até ao início do presente processo;

- Inexistem quaisquer indícios de o arguido ter demonstrado ou por qualquer forma manifestado inclinações ou atitudes semelhantes às em análise nos presentes autos relativamente a outras pessoas que não a menor em causa;

- Não foram detectadas ou por qualquer forma apuradas quaisquer circunstâncias que consubstanciem uma qualquer propensão ou tendência do arguido para a prática de tais factos ou ilícitos semelhantes no futuro;

- O arguido não tem antecedentes criminais, tendo um percurso de vida associado à inserção familiar e laboral;

- O arguido tem actualmente, 33 anos de idade, privado da liberdade em cumprimento de medida de coação, no meio prisional, encontra-se laboralmente activo na reciclagem.

9.O Acórdão recorrido não levou em conta, como devia, a previsão do art. 40.º do CP no que respeita à necessidade de reintegração do agente na sociedade. Devendo tê-lo feito.

10.Tendo-se focado basicamente na necessidade de prevenção geral negativa, olvidando, salvo o devido respeito, a necessidade de reintegração do agente na sociedade, por referência ao caso concreto, e em especial a ausência de antecedentes criminais do arguido e bem assim o facto de não serem conhecidos quaisquer outros factos ou indícios de que situações similares alguma vez tenham ocorrido anteriormente por referência ao mesmo, fosse com quem fosse – menor ou maior.

11.Atenta a factualidade dada como provada, a matéria supra alegada relativamente ao arguido, às circunstâncias do caso concreto, ao Princípio de Proibição de Dupla Valoração e às necessidades de prevenção geral e especial da situação sub judicio, e o previsto nos arts. 40.º, 71.º n.º1 e n.º 2 todos do CP (que se entende terem sido violados), entende-se que se impõe a alteração das penas parcelares em que o arguido foi condenado, por desajustadas e excessivas no caso sub judicio, e bem assim, atento o previsto no art. 77.º do CP, igualmente a alteração da pena única em que o mesmo foi condenado, também por desajustada face às previsões normativas alegadas.

12.As penas parcelares em que o arguido foi condenado, por aplicação do previsto nos arts. 40.º, 71.º n.º1 e n.º 2 todos do CP devem ser alteradas, por desajustadas e excessivas, no sentido de:

- Ser revogada a pena aplicada ao arguido de um ano e dez meses de prisão relativamente a cada um dos nove crimes referidos nos pontos “B” a “J” da decisão proferida, aplicando-se a pena de um ano e quatro meses de prisão relativamente a cada um de tais crimes;

- Ser revogada a pena aplicada ao arguido de dois anos (24 meses) de prisão relativamente a cada um daqueles dois crimes referidos nos pontos “K” e “L” da decisão proferida, aplicando-se a pena de um ano e cinco meses (dezassete meses) de prisão relativamente a cada um de tais crimes;

- Ser revogada a pena aplicada ao arguido de dois anos e seis meses (trinta meses) de prisão relativamente a cada um daqueles dois crimes referidos nos pontos “M” e “N” da decisão proferida, aplicando-se a pena de um ano e sete meses (dezanove meses) de prisão relativamente a cada um de tais crimes;

- Ser revogada a pena aplicada ao arguido de dois anos e dois meses (vinte e seis meses) de prisão relativamente a cada um daqueles dois crimes referidos nos pontos “O” e “P” da decisão proferida e aplicando-se a pena de um ano e seis meses (dezoito meses) de prisão relativamente a cada um de tais crimes.

13.Por alteração das penas parcelares, e por aplicação do previsto nos arts. 40.º, 71.º n.º1 e n.º 2 e 77.º, todos do CP, deve ser alterada a pena única de oito anos e quatro meses de prisão em que o arguido foi condenado, por desajustada e excessiva, revogando-a e ser aplicada ao arguido a pena única que se entende justa, adequada e proporcional, de cinco anos e três meses de prisão.

14.Apenas caso se entenda manter as penas parcelares em que o arguido foi condenado, entendemos que, salvo o devido respeito, a pena única em que o arguido foi condenado se afigura desajustada e excessiva no caso concreto, atento o já supra alegados em 8.º a 11.º das presentes conclusões, que aqui se dá por integralmente reproduzido. Resultando assim a violação do previsto nos art.º 40.º, 71.º n.º1 e n.º 2 e 77.º todos do CP.

15.Deve assim igualmente, por aplicação do previsto nos arts. 40.º, 71.º n.º1 e n.º 2 e 77.º todos do CP, em tal situação, ser revogada a pena única de oito anos e quatro meses de prisão em que o arguido foi condenado, e ser substituída por uma pena que se entende justa, adequada e proporcional, de seis anos e seis meses de prisão (setenta e oito meses).

Termos em que atento o supra exposto,

Deverá o presente recurso ser admitido e concedido provimento ao mesmo, devendo:

As penas parcelares em que o arguido foi condenado, serem alteradas, no sentido de:

- Ser revogada a pena aplicada ao arguido de um ano e dez meses de prisão relativamente a cada um dos nove crimes referidos nos pontos “B” a “J” da decisão proferida, aplicando-se a pena de um ano e quatro meses de prisão relativamente a cada um de tais crimes;

- Ser revogada a pena aplicada ao arguido de dois anos (24 meses) de prisão relativamente a cada um daqueles dois crimes referidos nos pontos “K” e “L” da decisão proferida, aplicando-se a pena de um ano e cinco meses (dezassete meses) de prisão relativamente a cada um de tais crimes;

- Ser revogada a pena aplicada ao arguido de dois anos e seis meses (trinta meses) de prisão relativamente a cada um daqueles dois crimes referidos nos pontos “M” e “N” da decisão proferida, aplicando-se a pena de um ano e sete meses (dezanove meses) de prisão relativamente a cada um de tais crimes;

- Ser revogada a pena aplicada ao arguido de dois anos e dois meses (vinte e seis meses) de prisão relativamente a cada um daqueles dois crimes referidos nos pontos “O” e “P” da decisão proferida e aplicando-se a pena de um ano e seis meses (dezoito meses) de prisão relativamente a cada um de tais crimes.

-Ser alterada a pena única de oito anos e quatro meses de prisão em que o arguido foi condenado, revogando-a, e ser aplicada ao arguido a pena única que se entende justa, adequada e proporcional, de cinco anos e três meses de prisão.

Ou apenas caso se entenda manter as penas parcelares em que o arguido foi condenado, deverá ser revogada a pena única de oito anos e quatro meses de prisão em que o arguido foi condenado, e substituí-la por uma pena que se entende justa, adequada e proporcional, de seis anos e seis meses de prisão (setenta e oito meses).”

1.3.Por despacho judicial foi o recurso admitido para o Supremo Tribunal de Justiça, por ser o tribunal competente.

1.4. Ao recurso respondeu o Senhor Procurador da República naquele Juízo Criminal formulando, a final, as seguintes conclusões:

1–Na determinação das medidas parcelares das penas não foi violado o princípio da proibição da dupla valoração.

2-Em face dos elementos que importa ter em conta para a determinação da medida concreta da pena cfr. art.º 71, n.º 2 do C. Penal afigura-se-nos que se apresentam adequadas e justas as penas parcelares aplicadas pelo Tribunal “a quo” relativamente a cada um dos crimes pelos quais o recorrente foi condenado, uma vez que, não excedendo a medida da culpa, satisfazem plenamente as exigências preventivas, gerais e especiais.

3–Perante os elementos que importa ponderar para a determinação da medida concreta da pena em sede de cúmulo jurídico apresenta-se como justa e adequada a aplicação ao recorrente a pena única de oito (8) anos e quatro (4) meses de prisão.

4 - Os M.ºs Juízes “a quo” ponderaram bem todos os elementos necessários à determinação de cada uma das penas parcelares, bem como se apresenta justa e adequada a condenação do recorrente na pena única de oito (8) anos e quatro (4) meses de prisão.

5-Não foram violadas as normas jurídicas invocadas pelo recorrente.

Nestes termos e nos demais de direito, que os Colendos Conselheiros se dignarão suprir, negando provimento ao recurso e, em consequência mantendo o Douto Acórdão, far-se-á a já costumada justiça.

1.5. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2 do CPP.

Foram os autos aos vistos e à conferência,

Decidindo,

2. Fundamentação

2.1. De Facto:

A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes do acórdão recorrido é a seguinte (transcrição):

… … …

Com interesse, mostram-se provados os seguintes factos (excluindo as menções conclusivas):

-No dia ... de ... de 2016, no Brasil, o arguido contraiu casamento com a CC;

-A BB, nascida no dia .../.../2011, em ..., de nacionalidade brasileira, está registada como sendo filha de DD e CC;

-No Brasil, o casal aludido em A), residia com a EE e com a BB;

-A BB chamava o arguido por pai;

-No Brasil, em data não concretamente apurada, mas situada no mês de ... de 2020, pelas 18H00M, quando a mãe da BB não estava em casa e a EE se encontrava a dormir, o arguido chamou a BB ao quarto onde aquele dormia;

-Após, o arguido pediu à BB que tirasse toda a roupa que a mesma trajava, o que a mesma fez, e, após, ele tirou toda a roupa que trajava e passou a mão na vulva da mesma, acariciando-a;

-No ano de 2021, o arguido veio residir para Portugal;

-No dia .../.../2022, a CC, a EE e a BB vieram para Portugal e passaram a residir com o arguido na Rua ...;

-Após a data aludida em H), durante esse ano de 2022 e no ano de 2023, a CC trabalhava, diariamente, na ..., entre as 15H00M e as 23H00M e o arguido era técnico de instalação da ..., não tendo horário certo;

-Em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre o mês de Julho de 2022 e o dia 6 de Dezembro de 2023, com a periodicidade habitualmente mensal, pelo menos, em quinze ocasiões distintas, no interior da residência aludida em H), quando a mãe da BB não se encontrava na residência e, por vezes, quando a EE não se encontrava em casa ou já se encontrava a dormir, a horas não concretamente apuradas, algumas durante a tarde, antes da hora do jantar e, outras, à noite, depois do jantar, o arguido chamava a BB, umas vezes ao quarto onde o arguido dormia e, outras, à sala da habitação e pedia-lhe para tirar a roupa que trajava da cintura para baixo, o que esta fazia e, após, o arguido, na maioria da vezes, despia toda a roupa que ele trajava, e, de seguida, em todas as situações, depois de despidos, quando a BB se encontrava deitada ou sentada, o arguido passava a mão pela vulva da BB, acariciando-a;

-Nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas em J), em, pelo menos, duas dessas ocasiões, o arguido pediu à BB para tocar no pénis do mesmo, fazendo com a mão movimentos ascendentes e descendentes, o que esta fez, apesar de dizer que não o queria fazer, masturbando-o. O arguido dizia-lhe que seria a última vez;

-Nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas em J), em, pelo menos, duas outras dessas ocasiões, o arguido pediu à BB que ela lhe lambesse o pénis, o que a BB fez;

-Nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas em J), em, pelo menos, uma outra dessas ocasiões, o arguido passou o pénis erecto na vulva da BB, sem penetrar e pressionou;

-Para além do aludido em M), no aludido dia 6 de Dezembro de 2023, no interior da residência onde viviam, a hora não concretamente apurada, mas à noite, o arguido chamou a BB para se dirigir à sala da habitação, o que a mesma fez, e ali chegada, pediu-lhe para tirar as calças e a roupa interior, o que esta fez, e, após, estando o arguido, pelo menos, despido da cintura para baixo, passou o pénis erecto na vulva da BB, sem penetrar e, nos termos aludidos em J), a mão pela vulva da mesma, acariciando-a;

-Após actuar da forma descrita em J) a N), o arguido ejaculava para a sua própria mão;

-De forma livre, voluntária e consciente, o arguido agiu com o propósito, concretizado, de praticar os factos dados como provados, constrangendo a BB a praticar os actos, e assim dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, indiferente à idade daquela, menor de 14 anos, facto que conhecia, aproveitando-se da proximidade física entre ambos existente em razão da relação de familiar que mantinha com a BB, por ser seu padrasto e residir com a mesma, indiferente às consequências de tal actuação sobre a mesma;

-O arguido estava ciente de que ao actuar da forma descrita, perturbava e estava a prejudicar, de forma séria, o desenvolvimento da personalidade da BB, que ofendia os sentimentos da mesma, prejudicava o normal desenvolvimento sexual e emocional, causando-lhe vergonha e sofrimento bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;

-A BB é estudante e não lhe são conhecidos rendimentos;

-O arguido nasceu no dia ... de ... de 1991, em ..., no .... Tem nacionalidade brasileira. Concluiu o 12.º ano de escolaridade. De modo informal, trabalhou desde os 12 anos de idade. Desde o dia .../.../2023, está privado da liberdade, em cumprimento da medida de coacção de prisão preventiva, à ordem destes autos. No meio prisional, encontra-se laboralmente activo na reciclagem, não lhe sendo conhecidos rendimentos. O arguido não recebe visitas mantendo telefónico com a filha;

-O arguido não tem averbados no seu certificado do registo criminal quaisquer condenações.

Não se provou que (excluindo as menções conclusivas e o aludido pelo arguido posto que visava infirmar o imputado):

-O aludido em H) ocorreu no dia .../.../2022;

-A CC trabalhava 14H30M e as 24H00M;

-O arguido despia a BB;

-Para além do dado como provado em K), a BB tocava com as mãos no pénis do arguido;

-No circunstancialismo aludido em L), a BB colocou o pénis dentro da boca;

-Nas circunstâncias aludidas em N), o arguido despiu as calças de pijama e as cuecas da BB;

-Para além do aludido em M) e N), o arguido colocava o pénis erecto encostado à vulva da BB, pressionando.

Motivação da convicção do Tribunal,

Quanto aos factos dados como provados:

Como dispõe o art. 127.º do CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

O julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo de que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ela foi exposta e adquirida representativamente no processo.

O arguido prestou declarações quanto aos factos e quanto à sua situação socioeconomica.

No essencial, referiu a composição do aludido agregado familiar, horários de trabalho, local onde residiam em Portugal, como a BB a si se dirigia – chamando-lhe “pai”-, a idade da BB, que conhecia, que, quando não se encontravam na presença de outrem, no quarto ou na sala, uma vez, no Brasil e, por quatro vezes (nos mês de Junho, no mês de Setembro de 2022, no mês de Janeiro de 2023 e em Dezembro de 2023), em Portugal, pediu à BB para se despir da cintura para baixo, que ele nunca se despia (só desabotoava a calça e tirava o órgão genital para fora), que se masturbava e que, após, se ausentava do local, dirigindo-se à casa de banho, para ejacular. Disse que, em todas as circunstâncias, a BB não via o que ele estava a fazer – no Brasil, pediu-lhe “para cobrir o rosto” com uma t-shirt e, em Portugal, pedia-lhe para virar o rosto, o que esta fazia. Disse que, naquele que considerou como sendo o último acto, no dia .../.../2023, tocou com a mão na vulva da BB, sem introdução do pénis/dedos e que, apesar de pensar nisso, nunca contou a ninguém o que tinha feito, nem procurou ajuda.

No que se reporta ao aludido em A) e B), atendeu-se ao teor das certidões de nascimento/casamento – referência electrónica .......16.

No que concerne ao aludido em C), D) G), H), I) e R), atendeu-se:

- ao admitido pelo arguido que admitiu tal circunstancialismo, nesta parte, compatível com o demais aludido pela BB e pela CC;

- ao depoimento das testemunhas BB (esta ouvida em declarações para memória futura1) e CC, as quais, em termos genéricos, compatíveis e, por via disso, merecedores de credibilidade, atestaram a composição do agregado familiar, residência, datas em que vieram para Portugal, a BB, concretizando, com segurança, que ela, a mãe e a irmã vieram no dia .../.../2022, local onde fixaram residência no nosso país, frequência escolar, em exclusividade, da BB, a ocupação profissional do casal, e, concretamente, quanto aos horários de trabalho da CC/flexibilidade no que ao horário de trabalho do arguido diz respeito, ao aludido pela CC, mais conhecedora dos seus horários de trabalho, da maior disponibilidade do marido;

No que concerne ao aludido em E), F), J) a O):

O arguido admitiu parcialmente apenas alguns factos (que quando estavam sozinhos, por cinco vezes, pediu à BB para se despir, que, em todas as circunstâncias, acabava por ejacular e que, no dia .../.../2023, tocou com a mão na vulva da BB).

Como se disse, a menor BB foi ouvida em declarações para memória futura. A testemunha CC, mãe da BB e esposa do arguido, disse que não assistiu a qualquer acto.

Pois bem.

Tratando-se de crimes sexuais, as declarações da/s vítima/s têm até um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante2. Não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais ou os crimes cometidos no meio familiar.

Em função destas especialidades, quando o Tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, ainda que opostas, em maior ou menor medida, ao do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso. O velho aforismo “testis unus testis nullus”, carece, pois, de eficácia jurídica num sistema como o nosso em a prova já não é tarifada ou legal, mas antes livremente apreciada pelo tribunal.

Note-se que a questão - que não é, naturalmente, privativa do direito português - tem merecido um desenvolvimento assinalável na doutrina e jurisprudência do País vizinho onde se tem vindo reiteradamente a declarar que um único testemunho, ainda que da vítima e inclusivamente de uma criança, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram as seguintes notas:

a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade;

b) verosimilhança: o testemunho há de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória e;

c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições.3

Isto posto.

No caso decidendo, atendeu-se ao depoimento da BB, em sede de declarações para memória futura (prestadas no dia 26/01/2024), menor que, por referência a hiatos temporais/orientando-se pela data da sua chegada a Portugal e pela data da apresentação da denúncia (no Brasil, o sucedido ocorreu dois meses antes de vir para Portugal e, em Portugal, em média, o sucedido ocorria uma vez por mês, com início volvidos cinco meses após a sua chegada e término no dia anterior à data da apresentação da denúncia4- no dia 07/12/2023 – fls. 4), fez referência aos períodos de tempo, embora denotando dificuldade em situar, com precisão, os concretos dias dos meses (dificuldade justificável, face à reiteração), reportando-se, contudo, em relação a Portugal, a uma periodicidade habitualmente mensal, aos actos praticados por ela e pelo arguido (relatando-os – o que sucedeu no Brasil, o que sucedeu em Portugal – em pelo menos, quinze ocasiões distintas nos termos aludidos em J), em todas elas com a prática dos actos aludidos em J) e, para além destes, em algumas delas, nos termos ali referidos, dos os actos praticados em K) a N) – sempre no total de quinze ocasiões), aos locais onde se encontravam (sempre no interior da residência onde viviam – no quarto e na sala da habitação), sempre na ausência da mãe e da irmã, por vezes, durante a tarde, outras, depois do jantar, sempre depois de o arguido pedir para despir a roupa que trajava, o que fazia, sempre depois de despidos e a existência de ejaculação para a mão do próprio em todas as circunstâncias. Por referência ao aludido pela mesma, ao constante da acusação quanto ao número de ilícitos imputados, deu-se como provado que, pelo menos, o aludido em J), ocorreu em quinze ocasiões distintas e, quanto ao aludido em K) e L), reportando a BB, com certeza, à existência de várias situações, não concretizando o número, deu-se como provado, com a segurança necessária a uma condenação, que, pelo menos, o ali referido ocorreu em duas daqueles quinze ocasiões. O aludido em L), em ocasiões distintas do aludido em K), o aludido em M), em ocasião distinta das aludidas em K) e L).

O relato da BB é compatível com o seu nível desenvolvimental e idade (quanto prestou depoimento tinha 12 anos), designadamente quanto à linguagem empregue. Do respectivo depoimento, considerando o perguntado, respondido e a linguagem utilizada, é possível concluir que a BB revela capacidade de produzir, de forma espontânea, os relatos, não se vislumbrando circunstâncias reveladoras de uma preparação das respostas capaz de condicionar a sua genuinidade, não se vislumbra a sucessiva utilização de questões sugestivas (relato prestado sem influência de técnicas sugestivas sucessivas), com o domínio dos conceitos básicos de “quê”, “quem”, “quando”, “quantas vezes” e “onde.” A BB foi capaz de descrever, envolvendo a sequência de acções e referências a conteúdos sensoriais, os locais, as circunstâncias temporais (por referência àqueles hiatos) e actos praticados, numa narrativa livre e espontânea.

O depoimento da BB revela coerência, articulação e credibilidade, pela presença de indicadores de veracidade no relato (mormente com a menção circunstanciada e pormenorizada das situações – das que se lembrava -, pontuada por explicações de circunstâncias necessariamente vivenciada, como a corroboração recíproca do depoimento, que, de forma coincidente, permitissem uma aproximação ao quotidiano familiar – explicou onde se encontrava a mãe, a irmã, onde habitualmente se encontrava quando era chamada pelo arguido), foi clara em referir em não ter a certeza em relação a concretos actos praticados pelo arguido: o que fazia a ele próprio (se se masturbava), se, no Brasil, a depoente demonstrou desconforto), pela presença de consequências psicológicas compatíveis com os abusos relatados (sentimentos de vergonha, medo, exaustão emocional, humor sub-depressivo, este último conforme conclusões do exame pericial de fls. 158, valoradas).

Acresce, ainda, com relevo indiciário ou periférico, a afectação detectada no comportamento da BB, conforme atestado pela sua mãe, a testemunha CC. A este propósito, a testemunha CC referiu sem hesitações, recuos, em termos merecedores de credibilidade, que, quando a BB lhe contou, demonstrava exaustão emocional, começou a chorar muito e dizia que ele, reportando-se ao aqui arguido, “era o motivo.”

Não são conhecidas quaisquer inimizades da menor ou da sua progenitora, naquela data casada com o arguido, em relação ao arguido, em termos de justificar a imputação de actos com intuito meramente incriminatório (ninguém a elas se referiu, nem o próprio arguido e não resultam dos autos elementos que permitam chegar a tal conclusão). Não se verificou a existência de um móbil de ressentimento ou inimizade.

Não se verifica a existência de episódios fantasiados,” “crenças autobiográficas de que foi abusada”, “tentativas forçadas” de imputação de condutas ao arguido, pessoa com quem vivia e por quem, aliás, a menor nutria estima, apelidando-o de pai. A BB reportou que, durante vários meses, silenciou o que estava a vivenciar, e identificou a pessoa a quem contou (à mãe).

O silêncio é perfeitamente explicável. A manutenção do segredo é um aspecto característico do abuso sexual de crianças. Não se pode olvidar que o silêncio de um menor, em regra, insere-se na dualidade de sentimentos que se instala em qualquer menor abusado: por um lado, julga-se beneficiado com um especial carinho de quem lhe é próximo e querido – no caso, a menor vivia com o arguido e apelidava-o de pai - e, por outro, teme que o comportamento seja errado e que a sua denúncia o afaste daquela pessoa, que destrua a família. A tudo acresce o facto de, por se tratar de menor (no ano de 2020, data do primeiro acto, a BB tinha nove anos), não apreender, de imediato, o conteúdo valorativo dos comportamentos a que é sujeita.

Por outra banda, a revelação do segredo – à mãe – é, também, perfeitamente justificável. Habitualmente, as revelações do abuso são realizadas a pessoas com quem a criança apresenta uma relação de confiança, dado o impacto emocional desse momento e, em regra, às consequências dessa revelação.

O processo de revelação reforça, ainda mais, a credibilidade do depoimento da BB, ademais quanto se atente, ainda, às conclusões da perícia de fls. 158 e 159 no sentido de que não foram detetados indicadores sugestivos de contaminar a credibilidade do seu discurso nem a capacidade de compreender e relatar factos.

Não foram detectadas ambiguidades ou contradições capazes de abalar a credibilidade do depoimento da testemunha BB.

Atendeu-se, ainda, às conclusões da perícia de fls. 158 e 159 no sentido de que não foram detectados indicadores sugestivos de contaminar a credibilidade e o discurso nem a capacidade de compreender e relatar factos da BB, a reforçar a convicção alcançada.

Para além da admissão do toque no último acto (de .../.../2023), a versão “restrita” apresentada pelo arguido é manifestamente incoerente e ilógica e, por conseguinte, inverosímil, quando confrontada com versão dos factos, segura, apresentada pela BB, em declarações para memória futura. Não faz qualquer sentido que o arguido, na suposta tentativa de proteger a menor de visualizar os actos, tenha pedido à mesma tapar ou virar o rosto e que, após, que se retirasse do local para ejacular. Se tivesse essa preocupação, com certeza, não praticava nenhum dos actos que se deram como provados.

Por outra banda, não se pode ignorar que, contrariamente ao aludido pela defesa em sede de alegações para descredibilizar o depoimento da BB, não se pode “escolher” para descredibilizar porções do depoimento da mesma em sede de declarações para memória futura e confrontá-las com o que diz serem afirmações da vítima – não gravadas, sim documentadas e escritas por súmula de terceiro, quase em jeito de testemunho de ouvir dizer por parte do perito - em sede das entrevistas que serviram, conjuntamente com outros meios, para a elaboração da resposta ao objecto da perícia – avaliação do grau de desenvolvimento, estado emocional, capacidade narrativa e mnésica, avaliação da personalidade e capacidade de testemunhar por parte da vítima (fls. 96 e 155 a 158 verso). Assim o não se pode confundir o que é o depoimento da vítima na sede própria - a de tomada de declarações para memória futura -, com aquilo que é o trabalho inerente à perícia, como que querendo afirmar que desta resulta dito algo intrínseca e substancialmente diferente do que naquelas consta pelo que, desde logo, haveria um desrespeito elementar valorativo da prova no confronto entre o qual se pode aferir da prova testemunhal e o que se impõe aferir da prova pericial, em essencial ao nível da subtração de livre apreciação pelo julgador. Isto tudo quando estamos perante uma perícia que não visa a prova dos factos, sim visa percepcionar o grau de credibilidade/maturidade/capacidade de testemunho da vítima: uma criança.

No que se refere ao aludido em P) e Q), na ausência de confissão integral e sem reservas, mais se fez uso das regras da experiência comum. Com efeito, sendo o dolo um elemento da vida interior do agente, por isso que impossível de aprender directamente, pode deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem. No caso, não lhe sendo conhecidos déficits congnitivos, atenta a inserção, idade do arguido, conhecimento e vivência próxima com a BB, conhecimento da sua idade – facto que admitiu -, considerando a consabida natureza ilícita destas condutas, a condutas que praticou, com um significado evidente, mais do que probabilidade séria daquele elemento subjectivo há certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que evidente a vontade da prática dos factos, consequências dos seus actos, e o conhecimento quanto à punibilidade e censurabilidade penal das condutas.

No que se reporta ao aludido em S), atendeu-se ao teor de fls. ........16 e referência .......03 (certidão – quanto data de nascimento/local/nacionalidade) e ao teor do relatatório social – referência electrónica ......92 (quanto às condições de vida).

No que respeita ao aludido em T), atendeu-se ao certificado do registo criminal – referência electrónica .......03.

Quanto aos factos dados como não provados:

Quanto ao aludido em 1), 2), 3) e 6), fez-se prova de realidade distinta (conforme aludido em H), J), I) e N)).

Quanto ao demais – 4), 5) e 7):

De forma clara, sem dúvidas, sem apresentação de perguntas sugestivas, a BB não o atestou, o arguido não o admitiu e, como tal, com a segurança necessária a uma condenação, não se fez qualquer prova.”

2.2. Direito

2.2.1. É pelas conclusões que se afere o objecto do recurso (402º, 403º, 410º e 412º do CPP), sem prejuízo, dos poderes de conhecimento oficioso (artigo 410.º, n.º 2, do CPP, AFJ n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995, 410º, n.º 3 e artigo 379.º, n.º 2, do CPP).

O presente recurso tem por objeto o acórdão proferido pelo tribunal colectivo, no Juízo Central Criminal de ...-J5, que condenou o arguido AA, pela prática de 15 crimes de abuso sexual de crianças nos termos já supra referidos, e, em cúmulo jurídico na pena única de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

É limitado ao reexame de matéria de direito, da competência, efectivamente, do Supremo Tribunal de Justiça, (assim se concordando com o despacho supra referido, proferido no Juízo Central Criminal de ..., - artigos 432º, n.ºs 1 al. c) e 2 e 434º, do CPP) -, sem prejuízo de se poder recorrer com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410º do CPP - art.º 432º, n.º 1, al. c), parte final, (na redacção dada pela Lei 94/2021, de 21.12).

2.2.2. Levando em conta as conclusões da motivação de recurso, as questões a decidir, prendem-se com (i)a violação do princípio da proibição da dupla valoração, (ii)a medida das penas parcelares e pena única.

2.2.2.1. Dupla valoração. Penas Parcelares.

a.Defende o arguido/recorrente que “a idade da menor foi valorada duas vezes, primeiro como circunstância agravante do crime de abuso sexual e depois como circunstância agravante geral da medida da pena” - (conclusões 4.ª a 7.ª).

Mais refere que admitiu «alguns dos factos» manifestando uma «evidente assunção de culpa e (…) interiorização do desvalor da sua conduta», que não foram encontradas «inclinações» ou «quaisquer circunstâncias que consubstanciem uma qualquer propensão ou tendência (…) para a prática de tais factos ou ilícitos semelhantes no futuro», que «não tem antecedentes criminais, tendo um percurso de vida associado à inserção familiar e laboral», que «tem actualmente, 33 anos de idade» e «encontra-se laboralmente activo» em ambiente prisional – conclusão. 8ª.

Pede, em consequência, a alteração das penas parcelares e da pena única – conclusão 12ª.

b.Como afloramento do princípio geral de Direito Penal “ne bis in idem”, o princípio da proibição da dupla valoração impede que a mesma circunstância agravativa seja valorada por duas vezes, ora como agravante modificativa do tipo de crime, com a consequente alteração da moldura da pena abstrata, ora como agravante de natureza geral, para fundamentar a pena concreta aplicada mais elevada do que seria sem ela, ou não fora esta agravante1.

Determina o artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.

Em obediência a este princípio, como ensina o Prof. Figueiredo Dias2, “não devem ser tomadas em consideração, na medida da pena, as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime: nisto se traduz o essencial do princípio da dupla valoração. Sob esta sua mais simples formulação, o princípio tem uma justificação quase evidente: não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto; e portanto não apenas os elementos do tipo-de-ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena”.

No caso presente, o arguido recorrente foi condenado pela prática de 15 (quinze) crimes de abuso sexual de crianças (artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal) agravados pela existência de uma relação de afinidade com a vítima (artigo 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal) e pelo aproveitamento da sua relação familiar e de coabitação com a vítima (artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal).

E não pela particular vulnerabilidade da criança/vítima, agravante esta, que vem, também, expressamente prevista no artigo 177.º, n.º 1, mas na alínea c), do Código Penal.

Pelo que não assiste qualquer razão ao recorrente quando afirma que houve uma duplicação indevida da ponderação da idade e particular vulnerabilidade da criança/vítima.

c.Todavia, verificada que esteja uma dessas circunstâncias que determina a agravação da moldura penal abstracta, quando se procede à determinação da medida concreta da pena, do "quantum" da pena, há que ponderar o seu grau de intensidade, pois, dentro desse quadro, pode ser maior ou menor.

O que não impede, como se lê no Ac. do STJ de 24.10.20063, que “em qualquer destas hipóteses indicadas, se verifique a circunstância que o legislador indicou como modificativa da moldura penal, pois o facto cabe no tipo especial de ilicitude enumerado taxativamente. O que existe é uma diferença de grau ou de intensidade da ilicitude, apesar de já agravada, com reflexo na pena concreta. Assim, não se está a fazer uma dupla valoração da circunstância agravativa, mas a proceder a análises diferentes, a primeira de ordem qualitativa para saber se a circunstância é uma das que estão enumeradas na lei, a segunda de ordem quantitativa para apurar a sua ordem de grandeza no quadro já definido. A violação da proibição de dupla valoração só existe se a apreciação da circunstância modificativa for feita mais do que uma vez sob a mesma perspectiva, qualitativa ou quantitativa, em prejuízo do arguido.”

Assim, ainda que assistisse razão ao arguido recorrente, a proibição da dupla valoração não obstaria a que a medida da pena fosse aumentada ou diminuída, “em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso”4.

“Orientação que”, como refere, no seu parecer, o Exmo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal, “transposta para o caso dos autos, confirma que também não existiria qualquer impedimento à consideração da idade da vítima na determinação do quantum da pena porquanto, como é óbvio, não é indiferente abusar sexualmente de uma criança de 13 anos ou de uma criança de 10 e 11 anos (como a vítima).”

Pelo que, mesmo nesta hipótese, não haveria violação do princípio da dupla valoração se determinada circunstância fosse analisada qualitativamente e fosse julgada como integradora da enumeração legal do crime de abuso sexual de criança agravado e se, posteriormente, a mesma circunstância fosse avaliada quantitativamente, constituindo então o seu grau elevado ou muito elevado, no quadro desse crime agravado, uma circunstância agravante de natureza geral5.

d.Não se verifica, assim, violação do princípio da proibição da dupla valoração nem o previsto nos arts. 40.º, 71.º n.º 1 e n.º 2, ambos do Código Penal.

Com efeito, em desfavor do arguido recorrente há que ter em conta o elevado grau de ilicitude dos factos, o modo de execução dos mesmos, a sua frequência e repetição e a idade da ofendida.

São prementes as exigências de prevenção geral neste tipo de crimes que são objecto de manifesta e unânime reprovação, e o dolo é directo e intenso. Mostram-se, pois, justas equilibradas e proporcionais as penas aplicadas, satisfazendo as exigências de prevenção geral e especial, sem exceder a medida da culpa.

Não havendo violação do princípio da proibição da dupla valoração, nem razões para alterar as medidas das penas em que foi condenado o recorrente, improcede deste modo o recurso do arguido neste particular.

2.2.2.2. Pena única.

a.Diga-se antes de mais que o recurso se apresenta como um “remédio jurídico”, pelo que, “a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração de factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”6.

E que a fundamentação é nestes casos bem menos exigente, incidindo sobre outra decisão que motivou a convicção, não directamente sobre o objecto do processo.

b.Defende o arguido recorrente que atento o previsto no art.º 77.º do Código Penal, a pena única em que o arguido foi condenado se afigura desajustada e excessiva no caso concreto, resultando assim a violação do previsto nos art.ºs 40.º, 71.º n.º1 e n.º 2 e 77.º, ambos, do Código Penal.

Conclui que deve assim igualmente, por aplicação do previsto nos arts. 40.º, 71.º n.º1 e n.º 2 e 77.º todos do CP, em tal situação, ser revogada a pena única de oito anos e quatro meses de prisão em que o arguido foi condenado, e ser substituída por uma pena que se entende justa, adequada e proporcional, de seis anos e seis meses de prisão (setenta e oito meses).

c.Encontradas as penas em que foi condenado o arguido pela prática de 15 crimes de abuso sexual de criança, agravado, previstos e punidos pelos art.ºs 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP haverá de ser condenado numa pena única encontrada não cumulando materialmente as penas parcelares, mas segundo o principio do cúmulo jurídico.

A moldura penal do concurso, é obtida a partir das penas parcelares, que, por sua vez, são obtidas seguindo o procedimento normal de determinação e escolha das penas.

A moldura da pena abstracta aplicável aos crimes em concurso, tem como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e, como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, sem ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e 900 dias, tratando-se de pena de multa - artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal.

No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com os critérios legais.

Assim, em termos gerais, obtida a moldura penal, há a considerar no processo de determinação da medida concreta da pena as finalidades da punição, constantes do art.º 40.ºdo Código Penal, e os comandos para determinação da medida concreta da pena dentro dos limites da lei, a que se refere o art.º 71º do CPP.

E, “como critério especial, rege o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, sobre as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), dispondo que, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, formada a partir da moldura do concurso, para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção atrás mencionados (artigo 71.º), são considerados, em conjunto, e como critério especial, os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do artigo 77.º, in fine), com respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração.

Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas, familiares e sociais, como a sua inserção na sociedade na comunidade em que reside e a situação laboral, reveladoras das necessidades de socialização, a receptividade das penas, a capacidade de mudança em consequência, a suscetibilidade de por elas ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta licita”7.

Vem sendo jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça que, com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, em termos gerais, mas também, especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento.

“Na determinação da pena única a aplicar, há que fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, pois só dessa forma se abandonará um caminho puramente aritmético da medida da pena para se procurar antes, adequá-la à personalidade unitária que nos factos se revelou”8.

“A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção – dentro da moldura legal – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes9.

Em tudo devem ainda considerar-se “os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso”10, que deve presidir à fixação da pena conjunta11.

“Tudo se deve passar como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só, uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”, como ensina o Prof. Figueiredo Dias12.

As conexões ou ligações fundamentais, na avaliação da gravidade do ilícito global, são as que emergem do tipo e número de crimes; da maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; da igualdade ou diversidade de bens jurídicos protegidos violados; da motivação subjacente; do modo de execução, homogéneo ou diferenciado; das suas consequências e da distância temporal entre os factos – tudo analisado na perspetiva da interconexão entre todos os factos praticados e a personalidade global de quem os cometeu, de modo a destrinçar se o mesmo tem propensão para o crime, ou se, na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, devendo a pena conjunta refletir essas singularidades da personalidade do agente13.

A pena deve, ainda, servir finalidades exclusivamente de prevenção geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena, não podendo ultrapassá-la”14.

E, para além dos factos praticados, importa, ainda, ponderar as condições pessoais e económicas do agente, a sua recetividade à pena e a suscetibilidade de ser por ela influenciado, elementos particularmente relevantes para apuramento das exigências de prevenção15.

Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

d.No acórdão recorrido pode ler-se quanto ao cúmulo jurídico, que considerando a natureza das penas parcelares - de prisão (da mesma natureza)- aplicadas ao arguido, importa encontrar a medida da pena única a aplicar.

(…) Assim, nos termos do referido art. 77.º do CP, considerando:

- o número de crimes – quinze -, o facto de o arguido ter agido em todos eles com dolo directo, revela flagrante desprezo pelos bens jurídicos, pelos sentimentos, pela saúde física e psíquica da menor BB;

- a ilicitude elevada, entendida como juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento por este lesar e pôr em perigo bens jurídico-criminais, no caso, como se disse, idênticos. Os crimes por si praticados reflectem, pois, acentuada gravidade objectiva e são merecedores de relevante juízo de censura penal. São, pois, assinaláveis, nos termos já acima aludidos, os valores jurídico-penais de natureza pessoal aqui transversalmente objecto de ofensa. A ideia de reificação ou coisificação (redução a objecto, a meio) neste tipo de crimes sem dúvida ecoará, em pano de fundo, o contraste com o imperativo ético kantiano “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como meio.” Na verdade, pode afirmar-se que tais condutas implicam despersonalização da vítima, feita objecto, e não fim da acção. Confiscam-lhe a qualidade de plena pessoa, pois a vítima é desapossada violentamente da mesma pelo agressor – sendo objecto de prazer sexual alheio – não sendo de ignorar, pois, as consequências na vítima menor/na formação da sua personalidade;

- que os fins de prevenção geral são elevados. Os crimes de abuso sexual de crianças não só causam repulsa e do alarme socias profundos na comunidade circundante, como sendo mediatamente noticiados, criam no conjunto da sociedade sentimentos de anomia. Além disso, não se trata apenas de sentimentos subjectivo ou de comoção de massas de algum modo superficial, mas, pelo contrário, estão em causa bens jurídicos valiosos, que constituem insofismavelmente pilares da ordem jurídica que importa preservar;

- o espaço de tempo que mediou entre a comissão dos crimes em causa. Analisando a globalidade do universo de factos em concurso, verifica-se que os mesmos se encontram clarissimamente conexionados entre si, apresentando uma evidente relação de continuidade temporal, de contextualização que permitiu a sua sucessiva prática (na privacidade do lar – do local onde residiam), de valores jurídico–penais colocados em causa pelas múltiplas actuações, e também na forma da reiterada execução das mesmas, conexão que passa também pelo alvo da criminosa actuação do arguido, pois que todas as actuações incidiram sobre a pessoa da mesma menor: a BB, sua enteada e que residia consigo. A imagem global da conduta do arguido revelou uma clara e firme determinação criminosa, mantida e reiteradamente executada de forma profusa ao longo de vários meses (em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre o mês de Julho de 2022 e o dia 6 de Dezembro de 2023). A personalidade do arguido, espelhada nos factos que praticou e na sua postura perante a tipologia criminal abstracta, mostra-se a de um indivíduo com facilidade em delinquir nesse âmbito, sem entraves de consciência nem preocupação com as consequências dos seus actos. O que se reflecte, pois, na avaliação da personalidade do arguido reflectida nessa sua actuação globalmente considerada, pois que a assinalada evidente determinação criminosa com uma tendência ao cometimento delituoso (uma parafilia) – uma tendência criminosa - de actos da natureza daqueles aqui em causa. Na reiteração criminosa, o arguido não encontrará “meia desculpa”, antes pelo, contrário, teve muitas ocasiões para reflectir e evitar a prática de novos crimes. Não o fez;

- ao medianas exigências de prevenção especial – sem antecedentes criminais, tendo um percurso de vida associado à inserção familiar e laboral;

-e, finalmente, as condições actuais pessoais do arguido – actualmente, com 33 anos de idade, privado da liberdade em cumprimento de medida de coação, no meio prisional, encontra-se laboralmente activo na reciclagem, circunstâncias passíveis de servir de factor de ponderação na pena a definir, não apagando o mal dos crimes, e não servindo de um propósito optimista quanto ao futuro da sua vida em sociedade.

Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do arguido, é necessário, adequado e proporcional, fixar a pena única em oito anos e quatro meses de prisão.

E o Exmo PGA neste Supremo Tribunal, é de parecer que … “quanto ao mais, importa salientar que a confissão dos factos, tendo sido parcial e limitada aos de menor gravidade [segundo consta do segmento dedicado à indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, o arguido declarou que em Portugal, por quatro vezes, «pediu à BB para se despir da cintura para baixo, que ele nunca se despia (só desabotoava a calça e tirava o órgão genital para fora), que se masturbava e que, após, se ausentava do local, dirigindo-se à casa de banho, para ejacular», que em todas as circunstâncias «a BB não via o que ele estava a fazer» pois «pedia-lhe para virar o rosto, o que esta fazia» e que no dia 6 de dezembro de 2023 «tocou com a mão na vulva da BB, sem introdução do pénis/dedos»], compromete a alegação quanto à «interiorização do desvalor da sua conduta» por parte do arguido, que a ausência de antecedentes criminais e o percurso de vida «associado à inserção familiar e laboral», nos crimes de abuso sexual de crianças, escasso ou nulo relevo assumem «já que é muito frequente a prática desses ilícitos por parte de pessoas bem inseridas e apresentando-se, sob a generalidade dos pontos de vista, como cidadãos normais e cumpridores das regras legais e sociais» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de setembro de 2008, processo 2032/08, relatado pelo conselheiro Eduardo Maia Costa, e que, enfim, alguém que para satisfazer os seus impulsos sexuais, ao longo de quinze meses, assedia sexualmente uma criança de 10/11 anos de idade, acariciando-lhe a vulva (em quinze ocasiões), passando-lhe com o pénis ereto pela vulva (em duas ocasiões), fazendo-a masturbá-lo (em duas ocasiões) e fazendo-a lamber-lhe o pénis (em duas ocasiões), não é merecedor da redução das penas, parcelares e/ou única, fixadas, com alguma parcimónia, diga-se, pela 1.ª instância.”

e.Neste caso, concorrem para o cúmulo jurídico:

1-a pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

2-a pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses, como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

3-a pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

4-a pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

5-a pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses)como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

6-a pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

7-a pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

8-a pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

9-a pena de um ano e dez meses de prisão (vinte e dois meses)como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

10-a pena de dois anos de prisão (vinte e quatro meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

11-a pena de dois anos de prisão (vinte e quatro meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

12-a pena de dois anos e dois meses de prisão (vinte e seis meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

13-a pena de dois anos e dois meses de prisão (vinte e seis meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

14-a pena de dois anos e seis meses de prisão (trinta meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP;

15-a pena de dois anos e seis meses de prisão (trinta meses), como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos art.s 171.º, n.º1, e 177.º, n.º1, alíneas a) e b), do CP.

A moldura penal tem, assim, como limite mínimo, 2 anos e 6 meses (pena parcelar mais alta das penas concretamente aplicadas aos vários crimes), e como limite máximo, 25 anos (pois a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes de vinte e nove anos e dez meses ultrapassa 25 anos).

São 15 os crimes praticados, pelo arguido, entre julho de 2022 e o dia 06 de dezembro de 2023.

São crimes de perigo abstracto, que atentam contra bens jurídicos pessoais, ou seja, a autodeterminação sexual, face a condutas sexuais que, mesmo sem constrangimento, podem prejudicar o livre desenvolvimento da personalidade do menor, em particular na esfera sexual16.

Embora não seja possível falar-se de uma “carreira criminosa”, desde logo pela ausência de antecedentes criminais do arguido recorrente, a sua conduta indicia uma apetência pela prática deste tipo de crimes.

As necessidades de prevenção geral são elevadas dada a frequência deste tipo de criminalidade e o sentimento de insegurança que gera nos membros da comunidade, conduzindo à perda de confiança dos cidadãos nas instâncias judiciais e na validade das normas.

Na avaliação da imagem global dos factos importa sopesar a natureza dos diversos crimes, o respetivo grau de dolo e a ilicitude e respetivo modo de execução, o desvalor do resultado e dos efeitos reais ou potenciais para os bens jurídicos tutelados pelos tipos criminais violados, tudo concorrendo para elevadas necessidades de prevenção geral.

Como supra se diz, sobre as condições pessoais, o arguido recorrente não tem antecedentes criminais, tem um percurso de vida associado à inserção familiar e laboral, conta com 33 anos de idade, no meio prisional encontra-se laboralmente activo na reciclagem, circunstancias que não apagando o mal dos crimes, são passíveis de servir de factor de ponderação na pena a definir.

O modo de execução e gravidade dos factos pelos quais foi condenado, requerem exigências preventivas de socialização, embora indicie, estar a responder positivamente.

Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto todos os factos em presença, a sua relacionação com a personalidade do recorrente e os fins das penas, entendemos adequada a pena única conjunta de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão em que foi condenado pelo acórdão recorrido que está dentro daqueles parâmetros que vimos referindo e em consonância com a jurisprudência deste Tribunal.

É, pois, equilibrada, proporcional e ajusta-se aos critérios emergentes dos art.ºs. 40º, 71.º e 77.º, n.º 1, parte final, todos do Código Penal, normas que não foram violadas, não se justificando a intervenção corretiva deste Tribunal.

Improcede, assim, o recurso.

3. Decisão.

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, acorda em:

-negar provimento ao recurso do arguido AA, confirmando, antes, o acórdão recorrido.

-Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UC`s, (artigo 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).


*

Lisboa, 14 de Maio de 2025

António Augusto Manso (Relator)

José A. Vaz Carreto (Adjunto)

Antero Luis (Adjunto)

________

1-Ac. do STJ, de 24.10.2006, proferido no processo n.º 06P3136, Conselheiro Santos Carvalho.

2-Direito Penal Português, Parte Geral, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, página 234

3-Ac. do STJ, de 24.10.2006, proferido no processo n.º 06P3136, Conselheiro Santos Carvalho.

4-Jorge Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 235.

5-Ac. do STJ, de 24.10.2006, proferido no processo n.º 06P3136, Conselheiro Santos Carvalho.

6-Ac. do STJ de 19.05.2021, proc. 10/18.1PELRA.S1. No mesmo sentido Ac. do STJ de 3.11.2021, proc. 206/18.6JELSB.L2.S1, ambos in http://www.dgsi.pt).

7-Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248 e segs, e os acs. de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S, e de 16.2.2022, Proc.160/20.4GAMGL.S1, www.dgsi.pt, citados no ac. do STJ de 21.02.2024, proc. 1553/22.8PBPDL.L1.S1.

8-Ac. do STJ de 19.05.2021, proc. n.º 36/20.5GCTND.C1.S1, www.dgsi.pt

9-10-Ac. do STJ de 31.03.2011, proc. n.º 169/09.9SYLSB.S1, www.dgsi.pt.

11-Neste sentido, podem ver-se aplicações concretas nos acórdãos de 21-11-2006, processo n.º 3126/06-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228, de 14-05-2009, no processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 10-09-2009, no processo n.º 26/05. 8SOLSB-A.S1, como se lê no ac. do STJ de 14.12.2023, proferido no processo n.º 130/18.2JAPTM.2.S1, in www.dgsi.pt, citando o ac. do STJ de 31.03.2011, proc. n.º 169/09.9SYLSB.S1.

12-Citado no Ac. do STJ de 25.09.2024, proferido no proc. 3109/24.1T8PRT, 3ª secção, e v. ainda, o acórdão de 25.10.2023, Proc. 3761/20.7T9LSB.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele mencionada.

13-Ac. do STJ de 14.12.2023, proferido no processo n.º 130/18.2JAPTM.2.S1, in www.dgsi.pt

14-Ac. do STJ de 06.01.2021, proferido no proc. n.º 634/15.9PAOLH.S2, in www.dgsi.pt

15-Ac. do STJ de 14.12.2023, proferido no processo n.º 130/18.2JAPTM.2.S1, in www.dgsi.pt

16-M. Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, Notas e Comentários, Almedina, Coimbra, 2014, p. 719.