Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
111/22.1T9ALD.C1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: ESCUSA
PARENTESCO
PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE
Data do Acordão: 10/01/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/RECUSA
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I - É o dever constitucional e legal de imparcialidade e independência que determina o pedido de escusa do juiz, por impor no exercício das suas funções judiciais uma transparência total de que a publicidade da audiência ou a fundamentação dos atos são apenas uma parte das exigências, e que constitui a única maneira de administrar a justiça em nome do povo – artº 205º CRP, e de os cidadãos confiarem na justiça, e que constitui a razão de ser desta.

II - Para ser escusado é necessário que a intervenção do juiz no processo e no caso concreto possa ser considerada suspeita, e que essa suspeita derive de existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

III - A existência de um diferendo judicial que a Mª Juiz foi chamada a dirimir, em que são arguidos pessoas a quem a ligam laços de parentesco, naturais da sua terra natal e dos seus pais,  onde se deslocava em visita dos familiares (seus avós) o que apesar de já não o fazer (por terem falecido) não a torna menos “daquela terra” onde nasceu e onde é conhecida e são conhecidos os seus laços familiares e a sua profissão numa pequena aldeia fronteiriça, com 295 habitantes (censos de 2021) é susceptivel de gerar sentimentos de desconfiança sobre a sua atuação, pelo que deve ser autorizada a sua não intervenção

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes Conselheiros na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.

No Recurso nº 111/22.1T9ALD.C1-A.S1a correr termos no Tribunal da Relação de Coimbra, ...Secção veio a Mª Juiz Desembargadora Drª AA, apresentar pedido de escusa, para intervir nos presentes autos de recurso,

porque lhe foi distribuído como relatora o recurso no proc. 111/22.1T9ALD.C1 em que figuram como arguidos BB e CC entre outros, existindo entre eles as seguintes relações: o primeiro é seu primo sendo a mãe deste DD irmã da mãe (EE), e o segundo, o pai deste de nome FF era primo da sua avó materna (GG).

Os factos do autos estão relacionada com prédios rústicos sitos em ..., pequena aldeia arraiana de onde é natural, e apesar de ali não ter residido e não a visitar atualmente, por já não serem vivos os seus avós, toda a sua família paterna e materna é oriunda daquela aldeia, pequena povoação onde todos se conhecem e onde estas relações de parentesco nunca passariam despercebidas. Pese embora não ter contacto com estes familiares e desconhecer os factos discutidos nos autos, considera que, dadas as circunstâncias descritas, ocorre motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Pede dispensa de intervir no processo.

Junta certidão da sentença recorrida e motivação do recurso

Colhidos os vistos, procedeu-se à conferência, com observância do formalismo legal.

Cumpre decidir.

Com interesse para a decisão há a considerar:

Para além do alegado pela Mº Juiz resulta dos documentos juntos que:

- À Mª Juiz foi distribuído como relatora o recurso no proc. 111/22.1T9ALD.C1 da Comarca de Guarda - Juízo de Competência Genérica de ... Processo Comum (Tribunal Singular) em que entre outros são arguidos BB, e CC, ambos residentes em ..., em que foram acusados da prática de em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348.º-A, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, por haverem declarado falsamente em escritura de justificação notarial ser o primeiro proprietário de um prédio rustico em ....

- os arguidos foram absolvidos de tal imputação

- Recorre a assistente, pretendendo a condenação dos arguidos;


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O incidente processual de escusa de juiz (tal como o de recusa), está previsto no art. 43º do CPP, nos termos do qual:

1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º. (…).

4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nº 1 e 2”,

e assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige também garantias de independência e imparcialidade dos seus titulares - os juízes - cuja importância foi elevada à consagração internacional - cfr. os arts. 2º, 8º, 20º, 202º e 203º da CRP; art. 4º nº 2 da LOFTJ; artºs 4º, 5º e 6º do EMJ; art. 6º § 1 da CEDH; art. 10º da DUDH; art. 14º nº 1 PIDCP e do artº 47º da CDFEU - e as regras estabelecidas em vista dessas garantias emergem também do direito de acesso aos tribunais (artº 20º 1 CRP), e constituem, atenta a sua estrutura acusatória do processo penal (art. 32 nº 5 da CRP), um meio de impor e acautelar os princípios das garantias de defesa e do juiz natural (art. 32º nºs 1 e 9 CRP).1

É o dever constitucional e legal de imparcialidade e independência que determina o pedido de escusa do juiz, por impor no exercício das suas funções judiciais uma transparência total de que a publicidade da audiência ou a fundamentação dos atos são apenas uma parte das exigências, e que constitui a única maneira de administrar a justiça em nome do povo – artº 205º CRP, e de os cidadãos confiarem na justiça, e que constitui a razão de ser desta.

Para que o Juiz possa ser escusado é necessário que a intervenção do juiz no processo e no caso concreto possa ser considerada suspeita, e que essa suspeita derive de existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

O instituto da escusa visa “Mais do que garantir uma atuação dentro da legalidade, objetividade e independência, está em causa defender todo o sistema de justiça da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, reforçando por esta via a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados, de acordo com a velha máxima inglesa not only must Justice be done; it must also be seen to be done (Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, «Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», p. 12-13). Esta é uma exigência do processo justo e equitativo.2

Mas a lei não define tais conceitos abertos (motivo sério e grave), pelo que a situação deve ser ponderada caso a caso (já que no aspecto teórico não se suscitam divergência dignas de nota).

O motivo invocado - existir um diferendo judicial que foi chamada a dirimir, em que são interessados parentes seus apesar de em grau afastado ( mas não tanto quanto isso – primo), e da terra da sua naturalidade e de onde eram os seus pais e avós que visitava, e estando em causa a propriedade rustica -, deve ser avaliado segundo uma perspectiva de natureza subjectiva, traduzido na averiguação de saber se a Mª juiz de algum modo manifestou ou tem motivo ou interesse pessoal no processo, e outro segundo uma perspectiva de natureza objectiva ou seja, saber se do ponto de vista da generalidade das pessoas, de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, tal situação cria uma desconfiança na imparcialidade e isenção do juiz.

Quanto ao primeiro aspecto, a Mª Juiz não manifesta nenhum interesse no caso nem se vê que possa existir, mas existe uma relação pessoal com as partes no processo – os arguidos – mas não tão chegada que constitua impedimento e que por si só e na perspectiva subjectiva possa constituir motivo para a escusa, face ao valor do principio do juiz natural.

Numa perspectiva objectiva, já existem razões para que ocorra uma qualquer desconfiança, desde logo se trata de pessoas a quem a ligam laços de parentesco, naturais da sua terra natal e onde se deslocava em visita dos familiares (seus avós) o que apesar de já não o fazer (por terem falecido) não a torna menos “daquela terra” onde nasceu, e os seus pais, onde certamente não deixará de ser conhecida e de serem conhecidos os seus laços familiares e a sua profissão pois se trata de uma pequena aldeia fronteiriça, com 295 habitantes (censos de 2021)3 em face do que pode gerar sentimentos de desconfiança sobre a sua atuação.

Ora o motivo invocado, de modo a escusar o Juiz de intervir, em processo que lhe foi distribuído alheatoriamente, tem de ser sério e grave e adequado a gerar desconfiança, e isto porque está em causa a exceção ao principio do juiz natural, como garantia da independência do juiz e da sua imparcialidade. As relações familiares no contexto de uma aldeia raiana com a dimensão de ... é sério, grave e adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, sendo que qualquer que fosse a decisão proferida seria pela comunidade sentida como a opção por uma das partes e em especial se fosse de manter a decisão de absolvição.

O Juiz não pode ser colocado na posição de uma das partes sentir ou suspeitar que a sua conduta não será imparcial por existirem relações familiares com um dos sujeitos processuais, pelo que existe motivo para afastar o principio do juiz natural, pois as razões que subjazem ao seu afastamento são mais forte do que a prevalência do principio do juiz natural e por isso deve ser deferido o seu pedido.


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Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça decide:

Julgar procedente o presente incidente e em consequência deferir o pedido de escusa da Mª Juiz Desembargadora Drª. AA de intervir no recurso do proc. nº 111/22.1T9ALD.C1 que lhe foi distribuído como relatora.

Sem custas.

Notifique.

Dn


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Lx e STJ, 1/10/2025

José A. Vaz Carreto

Maria Margarida Almeida

António Augusto Manso

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1. Cfr nosso ac. STJ 31/10/2024, proc. 24/20.1TRLSB-A.S1 www.dgsi.pt que seguimos de perto.

2. In ac. STJ 20/10/2022 proc 981/17.5PBMTS.P2-A.S1 www.dgsi.pt Cons. António Gama

3. https://pt.wikipedia.org/wiki/...