Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1854/13.6TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
USUCAPIÃO
COMPROPRIEDADE
QUOTA IDEAL
PRÉDIO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONVOLAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
CONDENAÇÃO EXTRA VEL ULTRA PETITUM
CONHECIMENTO OFICIOSO
ERRO DE JULGAMENTO
CONHECIMENTO PREJUDICADO
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 11/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Na presente acção a autora peticionou o reconhecimento da aquisição por usucapião do direito sobre uma quota na compropriedade de um prédio não constituído em propriedade horizontal, com referência à área do 1.º andar.

II. Este pedido, enquanto reportado à aquisição da fracção material detida pela autora é manifestamente improcedente uma vez que, sendo a posse invocada a posse correspondente a um direito de compropriedade, consubstanciado na titularidade de meras quotas ideais sobre o imóvel, nunca poderiam os actos materiais praticados conduzir à aquisição de uma fracção material do prédio.

III. Sendo a pretensão da autora manifestamente improcedente, a Relação convolou tal pretensão para um diferente conteúdo jurídico do direito, reconhecendo a usucapião, não sobre a fracção material correspondente ao 1.º andar, mas reportando-a antes à aquisição da quota ideal do atípico “promitente comproprietário”.

IV. Não sendo a nulidade da sentença de conhecimento oficioso (cfr. art. 615.º, n.º 4 do CPC) e não tendo qualquer dos recorrentes invocado a nulidade do acórdão, designadamente por eventual condenação em objecto diferente do peticionado, encontra-se sanado o eventual vício da decisão recorrida.

V. É, porém, de conhecimento oficioso saber se a quota ideal da compropriedade do prédio dos autos, em relação à qual o acórdão recorrido reconheceu a posse da autora, é delimitável em confronto com as demais quotas dos comproprietários, uma vez que só se podem adquirir por usucapião coisas que já existam como tal e que possam ser adquiridas por outro modo.

VI. Não tendo sido feita prova da existência da coisa (no caso, a quota ideal da compropriedade) cuja aquisição por usucapião foi, inovatoriamente, reconhecida pelo acórdão recorrido, forçoso é concluir pela inviabilidade de tal reconhecimento e pela verificação de erro de julgamento, ficando prejudicada a apreciação das restantes questões recursórias respeitantes ao preenchimento dos demais requisitos da usucapião.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA intentou contra Herdeiros Incertos de BB, Herdeiros Incertos de CC, Herdeiros Incertos de DD, EE e mulher FF, GG, Herdeiros Incertos de HH, II, e JJ, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que seja reconhecida a aquisição pela A. da propriedade da quota parte do imóvel sito na Travessa da ..., n.º ..., em ..., na área correspondente ao l.º andar do mesmo, por efeito de usucapião.

Alegou, em síntese, que:

- O seu marido KK, já falecido, era empresário e dedicava-se ao comércio de antiguidades;

- Em 1987, foi-lhe proposta a aquisição do imóvel, proposta apresentada por um dos proprietários do imóvel, LL;

- A partir de Outubro de 1987, o marido da A. começou a celebrar acordos de venda, em que o preço era pago de imediato e as partes declaravam a disponibilidade para formalizar posteriormente a transmissão;

- Até Junho de 1994, o marido da A. havia pago aos proprietários do imóvel uma quantia correspondente a 67,535% do valor acordado inicialmente;

- Antes de 1989, o marido da A. instalou-se no l.º andar do imóvel;

- Passando a ter aí um local de escritório e de guarda dos seus objectos de comércio de antiguidades e tendo preparado uma divisão para servir para dormitar;

- Custeou as obras de alteração da coluna de electricidade do imóvel e celebrou contratos de abastecimento de água e de fornecimento de electricidade, bem como de instalação de telefone fixo, referente ao ...;

- A partir de 2006, após a morte do seu marido, a A. manteve a posse da fracção, mantendo no imóvel os bens que aquele ali havia armazenado;

- Quer o marido da A., quer a A., sempre exerceram a posse de forma correspondente à propriedade plena, utilizando de forma plena o imóvel, sem qualquer constrangimento, de forma totalmente pública e pacífica.

Contestaram os RR. EE e mulher, FF e GG, impugnando a matéria de facto alegada pela A. e invocando designadamente:

- Que o ... referido esteve sempre encerrado, aparentando estar abandonado, com ar sujo e poeirento;

- Que o marido da A. tornou-se amigo da antiga fruidora do l.º andar - HH - e de MM, sendo que aquela lhe facultou o acesso e lhe deu uma chave do ..., a título gracioso mas precário. Após o falecimento de HH, em 1996, o marido da A. intrometeu-se no ..., usando-o como armazém de velharias, mas actuando sempre de noite e às ocultas dos demais comproprietários.

A R. JJ contestou, invocando a excepção de ilegitimidade passiva, porquanto recebeu a herança com a obrigação de a conservar para o seu neto NN, pelo que o mesmo deveria ser chamado a intervir nos autos. Impugnou ainda a matéria de facto alegada pela A., alegando, em suma, que:

- O marido da A. se tornou amigo da antiga fruidora do ... - HH - e de MM, sendo que aquela lhe facultou o acesso e lhe deu uma chave do ..., a título gracioso mas precário. Após o falecimento de HH, em 1996, o marido da Autora intrometeu-se no ..., usando-o como armazém de velharias, mas actuando sempre de noite e sem o conhecimento dos outros comproprietários;

- O ... do prédio em apreço esteve sempre encerrado, aparentando estar abandonado, sujo e poeirento, estando as portas e janelas sempre fechadas.

Foi citado o Ministério Público, em representação de Herdeiros Incertos de BB, Herdeiros Incertos de CC, Herdeiros Incertos de DD e Herdeiros Incertos de HH.

Notificada para o efeito, a A. respondeu à excepção invocada pela R. JJ.

Por despacho de 26/06/2017 (fls. 344), foi a A. notificada a providenciar pelo suprimento da excepção e, nessa sequência, requereu a intervenção principal provocada de NN, a qual foi admitida, conforme despacho de 25/09/2017 (fls. 358).

Por sentença de 4 de Outubro de 2018 (fls. 419) foi proferida a seguinte decisão:

»Tendo em atenção as considerações expendidas e as normas legais citadas, julga-se a acção improcedente, por não provada e, em consequência absolve-se os Réus HERDEIROS INCERTOS DE BB, HERDEIROS INCERTOS DE CC, HERDEIROS INCERTOS DE DD, EE e mulher FF, GG, HERDEIROS INCERTOS DE HH, II, JJ e do interveniente principal NN do pedido formulado pela Autora AA.

Custas pela Autora, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º, n.º l e n.º 2 do Código de Processo Civil.»

Inconformada, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de ..., pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por morte do R. EE foi deduzido incidente de habilitação de herdeiros, que correu termos, vindo a ser habilitados, por decisão de 18 de Março de 2019, os seus herdeiros FF, OO e PP para ocupar o seu lugar na presente acção.

Por acórdão de 24 de Outubro de 2019, foi proferida a seguinte decisão:

«Nos termos supra expostos, acordam conceder provimento parcial ao recurso e em consequência revogam a sentença recorrida, a qual substituem por este acórdão que julga a acção parcialmente procedente, reconhecendo e declarando a aquisição pela Autora, por usucapião, da propriedade da quota parte correspondente a (19) dezanove avos do imóvel sito na Travessa da ..., n.º ..., em ....

Custas pela recorrente e pelos recorridos, na proporção de 10% para a recorrente e de 90% para os recorridos.»


2. Desta decisão do Tribunal da Relação interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça: a Autora; os RR. FF, OO e marido QQ, e PP; os RR. JJ e NN; e o R. II.

Os recursos foram admitidos por despacho do relator do tribunal a quo de 25.02.2020, vindo a ser remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça por ofício de 04.06.2020.

 Por determinação de despacho da relatora de 14.09.2020 foi solicitado esclarecimento sobre a identificação do recurso interposto por II, uma vez que tal identificação surgia em dois recursos distintos. A dúvida foi esclarecida por este Recorrente em 30.09.2020.

No recurso da A. formulam-se as seguintes conclusões:

«1. O acórdão recorrido faz coincidir a aquisição por usucapião apenas à área a que se referem os documentos a que se referem os pontos 9 e 10 da matéria provada, que formalizava a intenção de transmissão a favor do marido da Recorrente de 1/19 avos na compropriedade do prédio, com pagamento de preço;

2. Ainda nos termos do acórdão recorrido, a posse do ... e logradouro, na parte em que possa ter excedido a quota de 1/19, subsume-se ao regime do artigo 1406.º/1 e 2, presumindo-se ter ocorrido posse de coisa comum, por não ter ocorrido a inversão da posse.

3. Salvo o devido respeito, que é muito, entende-se que esta conclusão padece de vício, face à matéria de facto assumida.

4. A Recorrente desconhece a quota-parte do prédio a que corresponde a área por si utilizada, mas, face ao facto de o prédio ter cinco andares, admite que a área do ... e logradouro seja superior a 1/19 do prédio.

5. Ficou provado que a Recorrente e o seu falecido marido utilizaram o ... e o logradouro de forma exclusiva a partir de 1990.

6. Que o ... tinha acesso exclusivo ao logradouro

7. Isto é, nenhum dos vizinhos do prédio podia, mesmo querendo, aceder à área utilizada pelo marido da Recorrente e pela Recorrente – a única vez que o fizeram, foi por arrombamento da porta do andar, conforme factos assentes no procedimento cautelar.

8. Duas questões se colocam:

9. - se, face à natureza da usucapião, que decorre de uma posse efectiva de um bem, neste caso imóvel, será possível delimitar um perímetro de aquisição que releve a efectiva ocupação e remeta para um determinado documento;

10. - se ainda que assim seja, e admitindo a utilização de um bem comum, nos termos do artigo 1406.º/2, se não deveria, face ao que foi a efectiva posse do imóvel por parte da Recorrente e do seu marido, admitir que tal ocupação consubstanciou uma inversão do título

Da conformação do direito adquirido por via da usucapião pela posse subjacente

11. Em relação à primeira questão deve dizer-se decorrer do delinear da figura de usucapião que esta se constitui a partir de uma situação fáctica, isto é, a posse, exercida de forma correspondente a um determinado direito, durante um determinado tempo.

12. O douto acórdão recorrido, reconhecendo embora a aquisição fá-la apenas repercutir-se sobre um parte do prédio, delimitada em função de um documento que, no decurso da posse foi elaborado, mas que (sem prejuízo da relevância probatória fundamental que lhe é dada e que não se impugna) em nada alterou na situação fáctica subjacente.

13. A usucapião não poderá deixar de se referir à exacta medida do modo como a posse foi exercida, não sendo relevantes limitações documentais que em nada relevam para a definição do âmbito do direito adquirido por via da usucapião.

Da inversão do título da posse da área comum (1406.º/2 do CC)

14. Ainda que assim não seja, e sem conceder, admitindo-se que a área adquirida por via da usucapião se confina a 1/19 do prédio, tendo a área remanescente sido detida como coisa comum, será relevante apurar se, face ao modo como o imóvel foi usado, não se deverá admitir ter ocorrido a inversão do título para os efeitos previstos no artigo 1406.º/2.

15. Salvaguardado o devido respeito, entende-se que sim.

16. É pressuposto da aquisição por usucapião – que se reconhece ter ocorrido - a exacta actuação do agente como titular do direito de propriedade, sem ambiguidades – cfr. artigo 1287.º/1 do CC.

17. Pelo que, de algum modo, reconhecer-se a aquisição por meio de usucapião implica, por maioria de razão, reconhecer que o modo de utilização de parte “comum” configurou uma verdadeira inversão do título.

18. Assim, será forçoso concluir que a posse do imóvel no modo e pelo tempo que existiu, tem ínsita a inversão do título nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1406.º/2 do CC.

19. Pelo que se conclui que, se nada há a dizer relativamente à motivação do douto acórdão recorrido quanto à conclusão da aquisição pela usucapião, deveria ser diferente o âmbito do direito cuja constituição se reconheceu, determinando a aquisição de uma quota idêntica à área correspondente ao ... e jardim.

20. Decidindo como decidiu, o douto acórdão recorrido violou o disposto no artigo 1287.º do CC.»

Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente e, em consequência, seja alterado o acórdão recorrido de modo a que a reconhecida aquisição por usucapião se refira não a 1/19 do prédio, mas antes à quota correspondente à área ocupada pelo ... e logradouro.

Não foram apresentadas contra-alegações ao recurso da A..

Os RR. FF, OO e marido QQ, e PP formularam as seguintes conclusões:

«1= Como melhor desenvolvido está no contexto I destas alegações, a usucapião é um meio alternativo de constituição do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo através da posse, no pressuposto de que essa aquisição, em abstrato, também poderia ter lugar através de outro meio legal de aquisição, designadamente o negócio jurídico ou contrato; pois: Aquilo que a Lei não faculta a quem cumpre as regras, não pode permitir àquele que as infringe. Sob pena de perversidade do sistema!

2= Uma vez que o prédio urbano não está submetido ao regime da propriedade horizontal, é de concluir não ser usucapível “a aquisição de uma quota idêntica à área correspondente ao ... e jardim” como agora ilegalmente pretende a A., ainda por cima sem especificar sequer a área (item 19 das conclusões); nem há a violação de qualquer dos preceitos legais que esta invocou agora neste seu interposto recurso

3= Com os fundamentos fáticos e pelas razões invocadas e desenvolvidas no contexto do item I destas alegações, aqui dados reproduzidos, e, ao contrário do decidido no douto Acórdão recorrido, a Mmª Juiz “a quo” respondeu equilibrada e objetivamente à matéria de facto, tal como decidiu bem de Direito;

4= ficando ainda mais reforçado o fundamento e o acerto das respostas judiciais dadas à matéria de facto, para alem dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento desta ação principal, a matéria de facto pertinente que fixada já era nos autos de procedimento cautelar apensados a esta ação, como tudo melhor é explanado e está escrito nos itens II e III, no contexto destas alegações.

Para além disto,

E em boa verdade,

E como melhor desenvolvido está no contexto destas alegações,

5= mesmo que, por absurda e imerecida hipótese, fosse alterada a matéria de facto como a A pretende, e como sucedeu, mesmo assim, de lege, isso não poderia corresponder de forma alguma ao vencimento da ação: objetivo último da A. em razão do que explícita e fundadamente está escrito no item = I = destas alegações; e

6= já que o falecido marido da A. nunca fez uso da procuração junta como doc. 8, na p. i., cuja caducou por morte do mandante e depois do mandatário (artº. 1174º, al. c, C. C.), e

7= já que as aquisições registadas no Registo Predial, quer pelos atuais titulares/comproprietários, quer pelos imediatamente anteriores Titulares/comproprietários, estes venderam àqueles, jamais foram postas em causa pelo falecido marido da A., nem até agora por esta última;

8= É de concluir que à A. (também requerente do procedimento cautelar), tal como sucedia em vida com o seu falecido marido, não assistiu nem assiste com rigor uma titularidade de uma posse que legitime a manutenção da ocupação do ... do prédio urbano peticionado, perante os RR, e demais comproprietários, pois, além do invocado atrás (itens 1 e 2) estes últimos são até titulares de uma melhor posse do que a daqueles (art. 1278º nº 3, do C.C.), como mais e melhor desenvolto está no contexto destas alegações.»

Terminam pedindo que seja revogado o acórdão recorrido, repristinando-se a decisão da 1.ª instância.

Os RR. JJ e NN concluem nos seguintes termos:

«A - Não há razão para alterar a matéria de facto dado como provada em primeira instância, sendo certo que o STJ em matéria de facto dada como assente deve aplicar o regime jurídico considerado mais adequado (art.682º, 1 do CPC).

B - E a matéria de facto pode ser alterada pelo STJ nos termos do previsto nos artigos no artigo 682º, 2 ex vi artigo 674º, 3 todos do CPC.

C - A matéria dada como provada em primeira instância deve ser mantida, porque adequado ao que se passou no julgamento, adequado às respostas dadas por todas as testemunhas, objectiva e devidamente fundamentada.

D - Aliás, as mesmas respostas já tinham sido dadas às mesmas perguntas nos autos de procedimento cautelar apenso.

E - Mesmo com as alterações produzidas não é este o resultado de direito que a Relação deveria ter seguido, com o devido respeito.

F - A posse não foi pacífica, como resulta dos autos (providência cautelar), uma vez que o comproprietário EE e outros comproprietários, nessa qualidade, tiveram de abrir o dito ... para limpeza.

G - A posse pública como proprietário (corpo e animus) não foi provada.

H - Não foi provado que os interessados registados conhecessem ou reconhecessem qualquer direito do A. e de seus antecessores a ocupar o imóvel.

I - A ocupação fraquejou consideravelmente depois da morte da D. HH, e com a morte do Sr. KK quase se apagou a presença do marido da A. no local.

J - Também a posse de boa fé não pode ser dada como provada, uma vez que o Sr. KK, ao ocupar o ..., lesou os direitos dos comproprietários.

K - Era, uma posse não titulada e como tal de má fé (art. 1260º, 2 do CC).

L - Isso mesmo confirma o acórdão em crise ao afirmar num dos últimos parágrafos da p. 32: “No caso concreto, a A.. não ilidiu a presunção, pelo que se pode concluir, de forma segura, que a posse é de má fé”.

M - Claro que depois, nas páginas seguintes, é dito o contrário, mas a razoabilidade do trecho citado é evidente.

N - De resto, o antecessor da A. não poderia ignorar que lesava o direito de outrem ao pretender adquirir uma quota ideal sem notificação aos outros comproprietários.

O - Todos os comproprietários têm direito de preferência na alienação de uma quota.

P - Não foi provada, ou sequer alegada, qualquer notificação para preferir.

Q - E lesava também ao declara-se titular e uma parte específica do imóvel, quando apenas, até na sua tese, comprara uma “quota ideal”. Não uma fracção; não o ....

R - O valor da quota-parte dos hipotéticos vendedores é maior ou menor do que o valor do ... e quintal? Sem saber isto não há como declarar que não houve prejuízo de terceiros, ou seja os outros comproprietários, quanto mais que a posse é publica, pacífica e de boa fé.

S - Mas é possível saber, comparando o prédio com a quota que a A. declara pertencer-lhe, que o valor do ... e quintal é muito superior.

T - Nem houve publicidade nem boa fé, pois se lesaram os direitos de terceiros.

U - Acontece, que os titulares registados são possuidores de uma posse melhor, porque é titulada, como impõem o artigo 1278º, 3 do CC.

V - Por último deve dizer-se que a usucapião incide sobre coisas. Não sobre quotas ideais (v. pontos XXII e seguintes supra). E aqui não há objecto sobre o qual o direito à usucapião possa ter sido exercido.

W - Por outro lado, a procuração existente caducou com a morte do mandatário, e a mesma não cumpria os requisitos de uma procuração no interesse do mandatário.

X - Tal procuração é nula por falta de forma, como já se diz nos pontos VIII e IX supra, pelo que não pode produzir qualquer efeito.

Y - Por outro lado há discrepâncias entre o valor alegadamente pago pelo marido da A.: sinal, ou totalidade do preço? (cfr. docs. nos autos)

Z - Por isso o sumário do acórdão ao dizer “provando-se apenas que mediante o recurso ao uma procuração a benefício do mandatário”, lavra num erro, pois a procuração dos autos, nem formalmente nem materialmente reúne os requisitos de uma procuração em benefício do mandatário, ou seja, no interesse do mandatário.

AA - É um documento nulo, ou pelo menos há muito caducado.

BB - De resto tais procurações, se sobrevivem ao mandante nos termos da lei, deixam de ter qualquer valor como tal se lhe falta o mandatário. Aqui nem sequer é o caso.

CC - E tais procurações não titulam um direito de posse, como é óbvio.»

Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido e a repristinação da decisão da 1.ª instância.

O R. II formulou as seguintes conclusões:

«I) Com o presente recurso pretende-se a análise jurídica sobre se a A., e antes dela, o seu marido usucapiu. Se a detenção com base em procuração e recibo de sinal é ou não precária e se permite a usucapião. Se a posse não pública da A., permite a usucapião

II) Para a boa decisão e aplicação da Lei devem ser tidos em consideração os seguintes factos: 4 - KK faleceu em seis de Outubro de 2006. 9 - Em 16 de Junho de 1994, foi emitido documento intitulado “Procuração” por RR a favor de KK com a seguinte redacção: Procuração RR, solteiro, residente em ..., Praceta .... ... …, contribuinte fiscal ... constitui seu procurador bastante o senhor KK, casado, residente na Rua ... Nº..., no ..., portador do bilhete de identidade nº ..., contribuinte fiscal nº ..., a quem confere os poderes necessários para em nome do mandante outorgar na escritura publica de compra e venda da quota ideal de que é titular na compropriedade do prédio urbano sito na Travessa da ... nº... em ..., inscrito ma matriz predial urbana sob o artigo ... da Freguesia de ..., na proporção de dezanove avos, pelo preço de escudos 437.000$00 (quatrocentos e trinta e sete milhões – ressalvo mil escudos escritura essa que poderá ser celebrada por terceiros ou com o próprio mandatário. A presente Procuração é elaborada no interesse do mandatário, aplicando-se assim a disposto no nº 3 do artigo 265º do Código Civil (artigo 37.º da petição inicial). 10 - Em 22 de Junho de 1994, RR elaborou um documento com o seguinte teor: Recibo Recebo do Exmo. Sr. KK a quantia de 437.000$00, a título de sinal pela venda da quota ideal de 19 avos de que sou titular na compropriedade do prédio urbano sito na Travessa da ..., nº... em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.... da ....

III) Devendo igualmente ter-se em consideração os Factos não provados: l) A partir de 2006, após a morte de KK, a ora Autora manteve a posse da fracção utilizada pelo seu falecido marido (artigo 55.º da petição inicial).m) Procedendo a limpezas periódicas do imóvel, para o efeito contratando pessoal de limpeza (artigo 57.º da petição inicial). o) Utilizando de forma totalmente pública o imóvel (artigo 61.º da petição inicial).

IV) Entre o esposo da A. e o RR foi elaborados uma procuração e um recibo de quitação.

V) Tais documentos, refletem um contrato de promessa de compra e venda, pelo qual o proprietário recebeu um valor a título de sinal.

VI) Tal posse, mesmo que se considere titulada e de boa fé, não deixa de ser uma posse precária, uma vez que o possuidor sabia que agia não como proprietário, mas como possuidor até a concretização do negócio definitivo. “...Assim, tendo o promitente-vendedor acordado com o promitente-comprador, que este ocupe o prédio a partir do respectivo contrato-promessa, o seguindo passou a ser um mero detentor ou possuidor precário..” Ac. Relação ..., Proc. 1837/08...., de 04/06/2009

VII) Com o devido respeito, Douto Acórdão recorrido, de forma desacertada, entende que “é facto provado, RR, comproprietário, “vende” – através da procuração e do recebimento do preço..” quando na realidade no máximo se pode dizer que RR prometeu vender, e por isso recebeu um sinal, não o preço. “. Sr. KK a quantia de 437.000$00, a título de sinal pela venda da quota ideal de 19 avos...”

VIII) Note-se, RR prometeu vender uma quota ideal, não o ... do prédio.

IX) O art. 1290º do C.C. estipula que os detentores precários não podem adquirir para si por usucapião o direito possuído, exceto invertido o título da posse.

X) O que não aconteceu.

XI) E mesmo que se entenda que essa quota ideal permitia ao promitente comprador agir como comproprietário e ocupar o ....

XII) A posse que atingiu com o “contrato de promessa” não passa de uma detenção precária, pois sabia que a quota ideal ainda não lhe tinha sido transmitida, tendo pago somente um sinal.

XIII) O douto Acórdão recorrido, incorre ainda em outra falácia, quando considera que essa posse se manteve de 1994 até 2010.

XIV) Foram considerados não provados os seguintes factos: l) A partir de 2006, após a morte de KK, a ora Autora manteve a posse da fracção utilizada pelo seu falecido marido (artigo 55.º da petição inicial). o) Utilizando de forma totalmente pública o imóvel.

XV) Ou seja, KK faleceu em 2006, e a A. sua esposa, não logrou provar que após a sua morte manteve a posse da fracção, e que utilizava de forma totalmente pública o imóvel.

XVI) Quer isto dizer, mesmo que se entenda que KK se convenceu que ocupava o imóvel como comproprietário, essa posse não se manteve após a sua morte.

XVII) Estipula o art. 1297º que a posse for oculta, o prazo de usucapião só começa a contar quando a posse se torne pública. “...Para conduzir à usucapião, a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má fé, titulada ou não titulada) influem apenas no prazo...” Acórdão do STJ de 07-05-2009.

XVIII) A posse que vale para a usucapião tem de ser pública, durante o decurso do prazo, e não somente durante parte deste. Art. 1287º do C.C. - A posse do direito de propriedade... mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor... a usucapião...

XIX) Na realidade o ... não estava ocupado por ninguém, muito antes do falecimento de KK.

XX) Tratava-se de um espaço fechado com objecto abandonados, que a A. nunca usou e que não consegui provar que manteve a posse após o falecimento do seu marido.

XXI) E muito menos que tal posse era pública

XXII) Estipula do art. 1267º do C.C. que o possuidor perde a posse por abandono.

XXIII) Confirmado está pelos factos considerados provados e não provados que, a A. após o falecimento do seu esposo, não teve sob o imóvel uma posse pública.

XXIV) A A. não exerceu sobre o imóvel actos que permitissem ser conhecida dos restantes interessados.

XXV) Para se arrogar proprietária por usucapião a A., tinha de ter provado os elementos estruturantes deste instituto, posse pública e pacífica, o que não consegui.

XXVI) A posse da A. não foi exercida de forma a poder ser conhecida pelos interessados. – 1262º C.C.”

Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a decisão da 1.ª instância

A A. apresentou contra-alegações ao recurso de II, pugnando pela improcedência do mesmo.


3. Na pendência dos recursos, veio a ser proferido, em 22.04.2021, o seguinte despacho da relatora:

«Nada obstando à apreciação dos presentes recursos, procedeu-se à cuidadosa análise das questões neles suscitadas, verificando-se que na sua resolução se depara com a seguinte dificuldade: saber se a quota ideal da compropriedade do prédio dos autos, em relação à qual o acórdão recorrido reconheceu a posse da autora, pode ser delimitada em confronto com as demais quotas dos comproprietários constantes do registo ou de outro título. Notifique as partes para virem prestar os necessários esclarecimentos.»

Pronunciou-se a A. nos seguintes termos:

«À questão de “saber se a quota ideal da compropriedade do prédio dos autos, em relação à qual o acórdão recorrido reconheceu a posse da autora, pode ser delimitada em confronto com as demais quotas dos comproprietários constantes do registo” afigura-se que não:

A quota ideal corresponderia a uma área igual à do apartamento utilizado pela A. e a parte do logradouro adjacente».

À mesma questão vieram os RR. FF e outros responder também em sentido negativo.


4. Entretanto, tendo vindo aos autos a notícia do falecimento de AA..., ocorrida em 24.04.2020, veio a ser deduzido incidente de habilitação, o qual correu termos.

Por sentença de 19.10.2021 foram habilitados para ocupar o lugar da falecida A., no prosseguimento da acção, SS, VV, TT e UU, os quais ratificaram o anteriormente processado nos presentes autos, incluindo a resposta da A. (rectius, do mandatário da A.) constante do ponto 3. do presente acórdão.

Cumpre apreciar e decidir.


5. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção da Relação):

1 - O imóvel sito na Travessa ..., n.º ..., em ... é um prédio composto de cinco pisos (artigo 2.º da petição inicial, com correcção).

2 - O prédio não está constituído em propriedade horizontal (artigo 76.º da petição inicial).

3 - O andar tem uma referência autónoma na inscrição matricial, com área bruta privativa de 75.000m2 e área do terreno integrante de 269,5000m2 e valor patrimonial de € 48.170,00 (artigo 7.º da petição inicial).

4 - KK faleceu em seis de Outubro de 2006 (artigo 8.º da petição inicial).

5 - Tendo deixado como única herdeira a sua mulher e ora Autora (artigo 9.º da petição inicial).

6 - Na matriz o prédio encontra-se inscrito em nome de:

- EE, na proporção de 52%;

- GG, na proporção de 11,31%;

- HH, na proporção de 18,345%;

- LL, na proporção de 18,345% (artigo 20.º da petição inicial).

7- O falecido KK era empresário e dedicava-se ao comércio de antiguidades (artigo 28.º da petição inicial).

9 - Em 16 de Junho de 1994, foi emitido documento intitulado "Procuração" por RR a favor de KK com a seguinte redacção:

Procuração

RR, solteiro, residente em ..., Praceta .... ... ..., contribuinte fiscal ... constitui seu procurador bastante o senhor KK, casado, residente na Rua ... Nº..., no ..., portador do bilhete de identidade nº ..., contribuinte fiscal nº ..., a quem confere os poderes necessários para em nome do mandante outorgar na escritura pública de compra e venda da quota ideal de que é titular na compropriedade do prédio urbano sito na Travessa da ... nº... em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da Freguesia de ..., na proporção de dezanove avos, pelo preço de escudos 437.000$00 (quatrocentos e trinta e sete milhões - ressalvo mil escudos escritura essa que poderá ser celebrada por terceiros ou com o próprio mandatário. A presente Procuração é elaborada no interesse do mandatário, aplicando-se assim a disposto no nº 3 do artigo 265º do Código Civil (artigo 37.º da petição inicial).

10 - Em 22 de Junho de 1994, RR elaborou um documento com o seguinte teor:

Recibo

Recebo do Exmo. Sr. KK a quantia de 437.000$00, a título de sinal pela venda da quota ideal de 19 avos de que sou titular na compropriedade do prédio urbano sito na Travessa da ..., nº... em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.... da ... (artigo 38.º da petição inicial).

11 - A partir de data que não se pode precisar, mas posterior a 1990, KK instala-se no l.º andar do imóvel (artigo 40.º da petição inicial, com correcção).

12 - Passando aí a ter um local de escritório e de guarda dos seus objectos de comércio de antiguidades (artigo 41.º da petição inicial). 

13 - Preparou ainda uma divisão para servir para dormitar (artigo 42.º da petição inicial).

14 - Em 1 de Março de 1994 celebrou "contrato de abastecimento de água por intermédio de contador" com a EPAL referente ao l.º andar do imóvel (artigo 45.º da petição inicial).

15 - Em 18 de Março de 1994 celebrou "contrato de fornecimento de energia eléctrica" com a EDP referente ao l.º andar do imóvel (artigo 46.º da petição inicial).

16 - Em 17 de Abril de 1990 recebeu correspondência da EDP tendente à instalação de coluna de eletricidade no imóvel (artigo 47.º da petição inicial).

17 - Desde pelo Novembro de 1997 até Novembro de 2010, KK manteve um consumo regular de água canalizada no l.º andar do imóvel, sendo facturado directamente como cliente da EPAL (artigo 48.9 da petição inicial, com correcção).

18 - De igual modo, registou um consumo estável de eletricidade (artigo 49.º da petição inicial) de Fevereiro de 1996 a Agosto de 2003.

19 - Em 1996, KK contratou com a Portugal Telecom a instalação de telefone fixo no imóvel (artigo 50.º da petição inicial).

20 - Em 1997, KK foi notificado pela EDP para proceder à realização de alterações na rede elétrica do imóvel (artigo 51.º da petição inicial).

21 - Entre 2007 e 2009, a Autora assegurou o tratamento do jardim sito no logradouro do prédio (artigo 52.º da petição inicial, com correcção).

21-A - Desde a data referida em 11 e até ao seu falecimento, KK assegurava o tratamento do jardim sito no logradouro do prédio. [aditado pela Relação]

22 - Em 1996, levou a cabo uma remodelação das casas de banho do l.º andar (artigo 53.º da petição inicial).

23 - Em Fevereiro de 2004, KK participou à Câmara Municipal ... a abertura de uma janela num prédio confinante ao do imóvel (artigo 54.º da petição inicial).

24 - A partir de 2006, após a morte de KK, a Autora manteve no imóvel os bens que aquele ali havia armazenado (artigo 56.º da petição inicial).

25 - KK e a Autora utilizaram, até 2010, o l.º andar, sem qualquer constrangimento, de forma pacífica (parte dos artigos 61.º e 62 da petição inicial). 

26 - Em Janeiro de 2010, pelo menos os Réus EE e GG pretenderam tomar posse do l.º andar, alegando serem os respectivos proprietários (artigo 63.º da petição inicial).

27 - Tendo mudado a fechadura e vedado o acesso à Autora ao local (artigo 64.º da petição inicial).

28 - Tendo em vista defender os seus direitos a Autora interpôs uma acção de providência cautelar que correu termos na ... Vara, ... Secção, sob o n.º 416/10.... (artigo 65.ª da petição inicial).

29 - Na referida acção, foi pelo tribunal determinado que os Requeridos procedessem à restituição provisória da posse relativa ao l.º andar mediante a entrega à Requerente duma cópia das chaves de acesso a esse andar (artigo 66.º da petição inicial, com correcção).

30- O prédio está descrito na Conservatória de Registo Predial de ..., com o n.º 494/20..., da Freguesia de ..., aí se mostrando inscrita a aquisição, por compra, duma quota de € 40,69, a favor dos Réus EE e esposa, FF emergente da ap. n.º 4521 de 2009/11/13.

j) Em 1990, após intimação para o efeito, custeou integralmente as obras de alteração da coluna de electricidade do imóvel (artigo 43.º da petição inicial). [aditado pela Relação]


Factos dados como não provados:

Dos factos alegados, não resultaram provados os factos incompagináveis com os factos dados como provados, nomeadamente:

a) Em 1987 foi-lhe proposta a aquisição do imóvel (artigo 29.º da petição inicial).

b) A proposta foi apresentada por um dos proprietários do imóvel, General LL (artigo 30.º da petição inicial).

c) A partir do mês de Outubro de 1987, KK começa a celebrar acordos de venda (artigo 31.º da petição inicial).

d) Nesses acordos, feitos as partes estabeleciam a venda do imóvel, o preço que era pago de imediato e declaravam a disponibilidade para formalizar posteriormente a transmissão (artigo 32.º da petição inicial).

e) Assim, pagou a MM um valor correspondente ao total da sua quota, de 679.305$00 (artigo 33.º da petição inicial). 

f) Pagou a HH a importância de 437.000$00 (artigo 34.º da petição inicial).

g) Pagou a XX a importância de 226.435$00 (artigo 35.º da petição inicial).

h) No dia 7 de Janeiro de 1993, foi assinado um documento entre KK e MM e HH, com a seguinte redacção:

Acto de posse de 29,535 avos - 679.305,00$ mais 19 avos - 437.000$00 do prédio urbano sito na , nº... - 49 ..., Freguesia de ..., art.º Matricial … desta Cidade de ..., conforme preços e planos estabelecidos de comum acordo com a maioria dos Exmos. Proprietários, Exmo. Sr. General LL e outros. Aos 7 dias do mês de Janeiro de 1993 neste ... do citado prédio acima descrito respectivamente os Exmos. Senhores D. MM, viúva, BI nº ... do Arq. de Identificação de …. Contribuinte fiscal nº ..., moradora na Rua ...,  ... e HH, solteira, BI nº ..., de 04/06/1974, contribuinte fiscal nº ....

Dão como vendidas, entregues e recebidas as importâncias do Exmo. Comprador Sr. KK, casado, BI nº ... de 16/08/1971, contribuinte fiscal nº ..., morador na Rua ...Nº... - ....

O pagamento aos outros Exmos. Vendedores (não indicados na relação) será feito à medida que o Exmo. Comprador achar que a documentação esteja em ordem para a escritura notarial que será feita, com esta ou com quem ele indicar.

Os sinais do preço ajustado foram feitos em 15 de Outubro de 1987. As rendas serão recebidas na percentagem do pagamento hoje completamente feito e que dão quitação.

As procurações necessárias para os actos ligados ao prédio serão feitas logo que o comprador pedir.

..., 7 de Janeiro de 1993

Assinaturas (artigo 36.º da petição inicial).

i) Deste modo, até Junho de 1994 KK havia pago aos proprietários do imóvel uma quantia correspondente a 67,535% do valor acordado inicialmente (artigo 39.º da petição inicial).

j) [dado como provado pela Relação]

k) Em 1993 solicita orçamento para beneficiação geral da rede eléctrica do l.º andar (artigo 44.º da petição inicial).

l) A partir de 2006, após a morte de KK, a ora Autora manteve a posse da fracção utilizada pelo seu falecido marido (artigo 55.º da petição inicial). [considerado como “conclusivo” pela 1.ª instância; não impugnado]

m) Com contratação periódica de prestação de serviços nesse contexto [alterado pela Relação]

o) Utilizando de forma totalmente pública o imóvel (artigo 61.º da petição inicial). [considerado como “conclusivo” pela 1.ª instância e pela Relação]


6. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

O recurso da Autora tem como objecto as seguintes questões:

- Os pressupostos da aquisição por usucapião correspondem não à aquisição da propriedade de quota-parte “correspondente a (19) dezanove avos do imóvel”, como decidido pelo acórdão recorrido, mas à aquisição de uma quota correspondente à área ocupada pelo ... e logradouro[1].

O recurso dos RR. FF e outros tem como objecto as seguintes questões:

- O pedido da A. não pode ser concedido por violar normas relativas à propriedade horizontal;

- A decisão da matéria de facto não devia ter sido alterada pela Relação;

- Não se verificam os pressupostos da aquisição do direito por usucapião.

O recurso dos RR. JJ e outro tem como objecto as seguintes questões:

- A decisão da matéria de facto não devia ter sido alterada pela Relação;

- Não se verificam os pressupostos da aquisição do direito por usucapião; em particular por a procuração descrita no facto 9 ser nula ou ineficaz, por caducidade;

- A natureza da pretensão da A. é incompatível com a aquisição por usucapião.

O recurso do R. II tem como objecto a seguinte questão:

- Não se verificam os pressupostos da aquisição do direito por usucapião.

As questões serão apreciadas pela seguinte ordem de precedência:

- Sindicância da decisão da Relação de ... da matéria de facto [recurso dos RR. FF e outros; e recurso da R. JJ e outro];

- Questões relativas à natureza da pretensão da A.:

o Os pressupostos da aquisição por usucapião correspondem não à aquisição da propriedade de quota-parte, “correspondente a (19) dezanove avos do imóvel”, mas à aquisição de uma quota correspondente à área ocupada pelo ... e logradouro [recurso da A.];

o O pedido da A. não pode ser concedido por violar normas relativas à propriedade horizontal [recurso dos RR. FF e outros];

o A natureza da pretensão da A. é incompatível com a aquisição por usucapião [recurso da R. JJ e outro];

- Verificação dos pressupostos da aquisição do direito por usucapião [todos os recursos dos RR.].


7. Afigura-se conveniente começar por considerar os termos em que as instâncias decidiram.

A 1.ª instância julgou improcedente a acção, entendendo que:

- A factualidade provada não permite qualificar a posse da A. nem como posse titulada nem como posse de boa-fé, sendo assim aplicável o prazo de vinte anos previsto no art. 1296.º do Código Civil;

- Tal prazo não decorreu entre o início da posse, em data posterior a 1990, e o mês de Janeiro de 2010, altura em que os comproprietários EE e GG mudaram a fechadura do andar, sendo certo que, após a decisão proferida no procedimento cautelar instaurado pela A., a posse desta deixou de ser exclusiva.

Na apreciação do recurso de apelação da A., a Relação, tendo modificado pontos da matéria de facto, julgou parcialmente procedente a acção, “reconhecendo e declarando a aquisição pela Autora, por usucapião, da propriedade da quota parte correspondente a (19) dezanove avos do imóvel sito na Travessa da ..., n.º ..., em ....”. Com os seguintes fundamentos:

- A partir de 1994 – com a outorga da procuração do comproprietário RR, atribuindo ao marido da A. poderes para negociar consigo mesmo a compra da quota ideal àquele pertencente, correspondente a 19 avos do imóvel; e com o pagamento do preço dessa mesma quota ideal (cfr. factos provados 9 e 10) – o marido da A. “podia legitimamente convencer-se de que não estava a lesar o direito de outros”;

- Assim sendo, considerou ilidida a presunção de posse de má-fé inerente à falta de título, passando a posse do marido da A., continuada por esta, a ser posse de boa fé e, consequentemente, sendo aplicável ao caso o prazo de quinze anos previsto no art. 1296.º do CC;

- Contando-se tal prazo de 1994 a 2010, é de reconhecer a aquisição do direito por usucapião;

- Contudo, entendeu o tribunal a quo que tal aquisição originária respeita não à quota correspondente à área do ..., mas antes à quota ideal, correspondente a 19 avos do imóvel dos autos, não constituído em propriedade horizontal.


8. Relativamente à questão da pretendida sindicância da decisão da Relação ao alterar a matéria de facto, alega-se (nos recursos dos RR. FF e outros e dos RR. JJ e outro) que o acórdão recorrido errou ao ter procedido a essa alteração, pugnando pela manutenção da factualidade dada como provada e não provada pela 1.ª instância e considerando estar em causa a situação excepcional em que o  Supremo Tribunal de Justiça tem competência para reapreciar a matéria de facto (cfr. n.º 3 do art. 674.º do CPC).

Vejamos.

Do teor da fundamentação do acórdão recorrido (cfr. págs. 23 a 29) extrai-se que as alterações introduzidas na decisão de facto – essencialmente no que se refere à impugnação de duas alíneas da matéria de facto não provada, que passaram a provadas e ao aditamento de um novo facto – resultaram da reapreciação da prova com base em meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação.

Assim, não obstante a referência a meios de prova de valor legal, feita nas alegações dos sobreditos recursos dos RR., designadamente a respeito da titularidade do imóvel e por referência ao procedimento cautelar indicado na matéria de facto, não se vislumbram fundamentos para a sindicância da apreciação feita pela Relação, não existindo, em concreto, qualquer situação subsumível à previsão do n.º 3 do art. 674.º do CPC.

Deste modo, conclui-se pela improcedência desta pretensão do recurso dos RR. FF e outros e do recurso da R. JJ e outro.


9. No recurso da A. é suscitada unicamente a seguinte questão: os pressupostos da aquisição por usucapião correspondem não à aquisição da propriedade de quota parte, “correspondente a (19) dezanove avos do imóvel”, como foi determinado pelo acórdão recorrido, mas sim à aquisição de uma quota correspondente à área ocupada pelo ... e logradouro, como foi peticionado pela A..

Com isto se prende a apreciação daquelas outras questões, suscitadas nos recursos dos RR., relativas à compatibilidade legal da pretensão da A. (a saber: o pedido da A. não pode ser concedido por violar normas relativas à propriedade horizontal; a natureza da pretensão da A. é incompatível com a aquisição por usucapião) que, aliás, sempre seriam de conhecimento oficioso.

Impõem-se alguns esclarecimentos prévios.

A presente acção não visa a constituição da propriedade horizontal por usucapião, ao abrigo do art. 1417.º do CC, nada tendo sido alegado a respeito de ter havido uma actuação concordante nesse sentido de todos os proprietários nem quanto a estarem reunidas as condições físicas e legais necessárias à autonomização do prédio nos termos desta figura legal (a este respeito, cfr. os acórdãos deste Supremo Tribunal de 17.01.2008, proc. n.º 4599/07, e  de 04.10.2018, proc. n.º 4080/16.9T8BRG-A.G1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt).

A presente acção também não se destina ao reconhecimento da aquisição por usucapião de uma parte do imóvel, nomeadamente, de uma “fracção” autónoma não individualizada por efeito da propriedade horizontal anteriormente constituída. Nesta medida, não é aqui aplicável a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, não inteiramente uniforme, a respeito da possibilidade de aquisição por usucapião de uma parte do imóvel não constituído em propriedade horizontal [cfr., designadamente, os acórdãos de 13.12.2007 (proc. n.º 3023/07), de 16.12.2010 (proc. n.º 1727/071TVLSB.L1.S1), de 07.06.2011 (proc. n.º 3078/05.7TCLRS.L1.S1), de 20.06.2017 (proc. n.º 56/14.9T8AMD.L1.S1), de 04.10.2018 (proc. n.º 4080/16.9T8BRG-A.G1.S1) e de 19.12.2018 (proc. n.º 6115/08.OTBAMD.L1.S2), consultáveis em www.dgsi.pt].

Reconhecendo que o prédio não está constituído em propriedade horizontal, na presente acção a A.  peticionou o reconhecimento da aquisição por usucapião do direito sobre uma quota na compropriedade do mesmo prédio, na área correspondente ao ....

Este pedido, enquanto reportado à aquisição da fracção material detida pela A. é manifestamente improcedente. Na verdade, sendo a posse invocada a posse correspondente a um direito de compropriedade, consubstanciado na titularidade de meras quotas ideais sobre o imóvel, nunca poderiam os actos materiais praticados conduzir à aquisição de uma fracção material do prédio.

Além de que, resultando o animus do antepossuidor (o falecido marido da A.) da promessa atípica de alienação de uma das quotas ideais sobre o imóvel, mediante a outorga de procuração irrevogável, com o imediato pagamento do preço (cfr. factos 9 e 10), tampouco os alegados actos materiais incidentes sobre uma fracção poderiam integrar o corpus correspondente.

Acresce que, tudo indicando que o valor da fracção material ultrapassa a quota ideal em causa, sempre estaria afastada a possibilidade de a posse mantida conduzir a uma aquisição por usucapião, em detrimento do valor das quotas dos restantes comproprietários.

Deste modo, na medida em que, em sede de recurso de revista, a A. pretende fazer valer o seu pedido nos exactos termos em que o formulou na petição inicial, tal pretensão não pode proceder.


9. Aqui chegados, importa considerar a decisão do acórdão recorrido, de acordo com a qual a acção foi julgada parcialmente procedente, “reconhecendo e declarando a aquisição pela Autora, por usucapião, da propriedade da quota parte correspondente a (19) dezanove avos do imóvel sito na Travessa da ..., n.º ..., em ....

Constata-se que, sendo a pretensão inicial da A. manifestamente improcedente, a Relação convolou tal pretensão para um diferente conteúdo jurídico do direito, reconhecendo a usucapião, não sobre a fracção material correspondente ao ..., mas reportando-a antes à aquisição da quota ideal daquele comproprietário que se teria comprometido a vendê-la ao marido da A. (cfr. factos 9 e 10).

Poderia pôr-se em causa a correcção de tal convolação, mesmo na perspectiva favorável à A. da teoria do efeito prático-jurídico, perspectiva que, em última análise, se traduziu em a Relação configurar que tal convolação traduziu a condenação num minus, e não num aliud, relativamente à pretensão inicial, o que é muito discutível.

Porém, não sendo a nulidade da sentença de conhecimento oficioso (cfr. art. 615.º, n.º 4 do CPC), e não tendo qualquer dos Recorrentes invocado a nulidade do acórdão, designadamente por eventual condenação em objecto diferente do peticionado, afigura-se que tal questão ficou precludida, encontrando-se sanado um eventual vício da decisão recorrida.


10. Ainda que a eventual nulidade da decisão do acórdão recorrido não possa ser apreciada oficiosamente, já é de conhecimento oficioso a questão de saber se a quota ideal da compropriedade do prédio dos autos, em relação à qual o acórdão recorrido reconheceu a posse da autora (isto é, a quota ideal correspondente a 19 avos do direito de propriedade do imóvel) é delimitável em confronto com as demais quotas (também ideais) dos comproprietários.

Das certidões do registo predial juntas aos autos não se extrai resposta afirmativa a esta questão. Tampouco os documentos referidos nos factos provados 9 e 10 – nos quais assentou a decisão inovatória da Relação –, revestindo a natureza de simples declarações unilaterais do comproprietário com o qual o falecido marido da A. negociou um atípico “contrato-promessa”, são suficientes para dar como provada a delimitação da referida quota ideal em confronto com as demais quotas integrantes do direito de compropriedade sobre o imóvel.

Assim sendo, e conforme referido supra, no ponto 3. do presente acórdão, em 22.04.2021 foi proferido despacho da relatora com o seguinte teor:

«Nada obstando à apreciação dos presentes recursos, procedeu-se à cuidadosa análise das questões neles suscitadas, verificando-se que na sua resolução se depara com a seguinte dificuldade: saber se a quota ideal da compropriedade do prédio dos autos, em relação à qual o acórdão recorrido reconheceu a posse da autora, pode ser delimitada em confronto com as demais quotas dos comproprietários constantes do registo ou de outro título. Notifique as partes para virem prestar os necessários esclarecimentos [negrito nosso]

Vieram aos autos responder negativamente quer os sucessores habilitados da A. (ao ratificar todo o processado anteriormente) quer os RR. FF e outros.

Quid iuris?

Não estando provada a existência da coisa (a quota ideal de 19 avos do direito de compropriedade do imóvel dos autos) cuja aquisição por usucapião foi reconhecida pela Relação, falha um requisito necessário a tal aquisição. Com efeito, e como ensina Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais, 4.ª ed., Princípia, Parede, 2020, pág. 491):

«A usucapião é a aquisição do direito de propriedade (ou de outro direito) sobre uma coisa em razão da posse. Desta mesma noção resulta que só se podem adquirir por usucapião coisas que já existam como tal e que possam ser adquiridas por outro modo». [negrito nosso]

Ou, nas palavas do acórdão deste Supremo Tribunal de 04.10.2018 (proc. n.º 4080/16.9T8BRG-A.G1.S1), supra referido:

«[A] usucapião, enquanto ato jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objeto legalmente impossível, nos termos do artigo 280.º, aplicável por via do art.º 295.º, ambos do CC.».

Na medida em que não foi feita prova da existência da coisa (a quota ideal) cuja aquisição por usucapião foi inovatoriamente reconhecida pelo acórdão recorrido, forçoso é concluir pela inviabilidade desse reconhecimento e, concomitantemente, pela verificação de erro de julgamento, ficando prejudicada a apreciação das restantes questões recursórias respeitantes ao preenchimento dos demais requisitos da usucapião.


11. Pelo exposto:

a) Julga-se improcedente o recurso da Autora; e

b) Julgam-se procedentes os recursos dos Réus, ainda que com fundamento distinto dos fundamentos invocados, revogando-se o acórdão recorrido e absolvendo-se os Réus do pedido.


Custas dos recursos e na acção pelos herdeiros habilitados da Autora.


Lisboa, 30 de Novembro de 2021


Maria da Graça Trigo (relatora)

Maria Rosa Tching

Catarina Serra

_______

[1] A A. parece interpretar a referência aos 19 avos com correspondendo a 1/19 do imóvel (e daí que entenda que a quota reconhecida será muito inferior à área do … do total do prédio de 5 andares não constituído em propriedade horizontal) quando decorre da fundamentação do acórdão recorrido que esses 19 avos correspondem antes a uma percentagem ou quota de 19% na totalidade do imóvel.