Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1148/04.8TCGMR-A.G2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: DECISÃO JUDICIAL
INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
CASO JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
CONDENAÇÃO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
A interpretação da sentença objecto de liquidação, tal como realizada pelo acórdão recorrido, respeita o âmbito objectivo do caso julgado formado com a sentença condenatória, incluindo a parte da fundamentação em que, de modo impróprio, o tribunal afirma que os autores limitaram o seu pedido à quantia de €15.000,00, um segmento que não poderá ser considerado atomisticamente, antes deverá ser interpretado de forma conjugada com a restante fundamentação de direito, à luz do objecto processual tal como configurado pelos autores.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. No âmbito do presente incidente de liquidação de sentença proposto por AA e mulher BB contra Sirdoal – Empreendimentos e Gestão de Imóveis, S.A., vem a requerida interpor recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que julgou parcialmente procedente o recurso interposto quanto à quantia de € 171.641,85 (cento e setenta e um mil, seiscentos e quarenta e um euros e oitenta e cinco cêntimos), mantendo a sentença quanto ao demais.

A sentença da 1.ª instância liquidou a indemnização cujo montante foi relegado para incidente de liquidação de sentença na quantia de € 1.398.545,00 (um milhão, trezentos e noventa e oito mil, quinhentos e quarenta e cinco euros), acrescida de juros de mora, contados à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento.

2. Formula a recorrente as seguintes conclusões:

«1ª- Por causa dos fundamentos especificados na página 18 do corpo das alegações, impõe-se que seja rectificado o erro ou lapso: «pense-se nos referidos € 132.692,44 que os requerentes pagaram de multa», constante da fundamentação de direito do acórdão recorrido, e que esse erro ou lapso seja rectificado para: «A não outorga da competente escritura de alteração da propriedade horizontal arrasta-se desde 2022 e a sociedade R..., Lda, com base a falta de licenças de utilização para o comércio de restauração e afins, intentou no dia 23/03/2004 uma ação de condenação em que os aqui autores foram condenados no pagamento da quantia de € 132.692,44, acrescida de juros », porque é o que consta do facto do ponto 18. da alínea C), fixado pelo acórdão recorrido.

2ª- Transitadas em julgado decisões judiciais, os limites objectivos do caso julgado material que sobre elas se formou, previsto no nº 1 do artigo 619º do Código de Processo Civil, abrangem os fundamentos das respectivas decisões que com elas estejam estruturalmente conexionados por constituírem seus antecedentes lógicos e necessários.

3ª- Decisões judiciais transitadas em julgado, com os limites objectivos de caso julgado material nos termos da precedente conclusão, impõe-se às respectivas partes e aos tribunais.

4ª- Decisões judiciais, transitadas em julgado nos termos das precedentes conclusões, passam a constituir normas positivadas para as respectivas partes e para os tribunais.

5ª- A interpretação das decisões judiciais, transitadas em julgado, nos termos das antecedentes conclusões, obedecem às regras básicas da interpretação, previstas no artigo 9º e no nº 1 do artigo 236º, ambos do Código Civil.

6ª- Na interpretação das decisões judiciais, transitadas em julgado nos termos das precedentes conclusões, está vedado aos tribunais interpretá-las fora daquelas regras básicas e em sentido diverso do caso julgado material sobre elas formado, sobpena dessa interpretação se traduzir em acto de legislar, e constituir interpretação, materialmente, inconstitucional, violadora dos princípios constitucionais da separação de poderes, da exclusiva competência para aplicá-las na administração da justiça, da intangibilidade do caso julgado material formado, e da segurança jurídica, consagrados, respectivamente, no artigo 2º, no nº 1 do artigo 202º, no artigo 204º e no nº 2 do artigo 205º, todos da Constituição da República Portuguesa, e violar o disposto no nº 1 do artigo 619º do Código de Processo Civil.

7ª- Por causa dos fundamentos especificados, desde a página 19 à página 25 do corpo das alegações, que aqui se dão por reproduzidos, a interpretação que a fundamentação de direito do acórdão recorrido fez, relativamente às quantias de € 132.692,44 e de € 1.094.210,71 da sentença proferida no dia 27 de Agosto de 2023 no incidente de liquidação, violou o disposto no nº 1 do artigo 619º do Código de Processo Civil, quanto aos limites objectivos do caso material dos fundamentos da sentença, proferida no dia 16 de Maio de 2013 e transitada em julgado na acção ordinária nº 1148/04.8TCGMR, que constam da alínea E) dos factos fixados pelo acórdão recorrido e que o contraria.

8ª- E essa interpretação da fundamentação de direito do acórdão recorrido, além de ter violado as regras básicas da interpretação, previstas no artigo 9º e no nº 1 do artigo 236º, ambos do Código Civil, é, materialmente, inconstitucional, porque violou os princípios constitucionais da separação de poderes, da exclusiva competência para aplicar esse caso julgado material, o da sua intangibilidade e o da sua segurança jurídica, consagrados no artigo 2º, no nº 1 do artigo 202º, no artigo 204º e no nº 2 do artigo 205º, todos da Constituição da República Portuguesa, por traduzir acto de legislar, relativamente àqueles limites objectivos do caso julgado material formado.

9ª- Em consequência, por violação dos limites objectivos do caso julgado material, formado sobre os fundamentos da decisão da sentença, proferida no dia 16 de Maio de 2013 e transitada em julgado na acção ordinária nº 1148/04.8TCGMR, e previsto no nº 1 do artigo 619º do Código de Processo Civil, impõe-se que a decisão do acórdão recorrido, relativamente às quantias de € 132.692,44 e de € 1.094.210,17, seja revogada e substituída por decisão que as reduza à quantia de € 15.000,00, na liquidação da sentença, proferida no dia 27 de Agosto de 2023 no incidente de liquidação.».

3. Os recorridos contra-alegaram, concluindo nos termos seguintes:

«1. Analisadas cuidadosamente as alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, verifica-se que as mesmas não apresentam quaisquer argumentos válidos que determinem uma alteração ao douto Acórdão recorrido, nos termos ali referidos, face à relação material controvertida que foi levada à sua consideração.

2. O pedido inicial formulado pelos Recorridos nos autos principais (processo n.º 1148/04.8TCGMR) foi:

“Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis que V/exa. se dignar suprir, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e em consequência:

a) Ser a Ré condenada a outorgar a escritura de alteração da propriedade horizontal do prédio devidamente descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...74/....89 da freguesia de S. ..., de que é condómina juntamente com os Autores.

b) Ser a Ré condenada a pagar à Autora, todos os prejuízos que advieram aos Autores, em virtude da recusa por parte da Ré em outorgar a escritura de alteração da propriedade horizontal, designadamente, preparos e custas judiciais e honorários de advogados e outros na presente acção e na acção que corre termos pela 1ª Vara Cível desta Comarca com o nº 340/04.0..., e bem assim todos os prejuízos que a recusa causar».

3. O transcrito pedido inicial formulado nos autos principais a que os presentes autos se encontram apensados, não ficou restringido ou limitado a qualquer montante, muito menos ao montante de € 15.000,00 (quinze mil euros),

4. Daí que, apesar de o valor atribuído à ação a que estes autos são apensos ser de € 15.000,00 (quinze mil euros), tal valor foi, apenas e só, o valor indicado na ação como sendo o valor da ação e que, neste caso, correspondia à alçada do Tribunal da Relação, e nunca ao valor do pedido formulado!

5. Por outro lado, a douta sentença da 1ª instância (fls. 558) repristinada pelo não menos douto aresto do Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1004), decidiu definitivamente:

Julgar a acção procedente quanto ao pedido de condenação da ré a indemnizar os autores, com base em responsabilidade pré-contratual e, consequentemente, condenar a ré a pagar aos autores:

a) a quantia que vier a apurar-se em incidente de liquidação;

b) juros de mora sobre esta quantia, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

6. Este acertamento jurídico reconhece, assim, o direito dos autores em serem indemnizados, sendo que, o dispositivo vindo de transcrever, não faz qualquer referência a qualquer limite de valor a indemnizar,

7. Pelo que, jamais se pode conceber, que o quantum indemnizatório devido aos Recorridos esteja limitado a qualquer montante, mormente o valor de € 15.000,00, que não está!

8. Por outro lado, a Decisão a quo¸ prolatada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, reconhecendo o direito dos Recorridos em serem indemnizados nos exatos termos fixados no dispositivo da douta sentença da 1ª instância (fls. 558), repristinada pelo não menos douto aresto do Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1004), elenca a factualidade dada por assente e, no que aqui importa, estabeleceu como provado, nos ponto C-16 a ponto C-20 dos Factos Provados, que a recusa da Recorrente em outorgar a escritura pública de alteração da propriedade horizontal teve como consequência direta e necessária:

III) A condenação dos Recorridos na quantia de € 132.692,44, acrescida de juros, na ação judicial que lhes foi movida pela sociedade R..., Lda, com base a falta de licenças de utilização para o comércio de restauração e afins;

E

IV) Não poderem os Recorridos proceder ao arrendamento das frações autónomas de que são proprietários, o que lhe causa prejuízo, concretizado neste incidente em € 1.094.210,71.

9. É, assim, identificado e dado por provado na sentença proferida na ação ordinária n.º 1148/04.8TCGMR – acolhida tal factualidade da Decisão a quo – a CAUSA/O FACTO JURÍDICO – a recusa da Recorrente em outorgar a escritura pública de alteração da propriedade horizontal – e a CONSEQUÊNCIA/O DANO - a condenação dos Recorridos na quantia de € 132.692,44, acrescida de juros, na ação judicial que lhes foi movida pela sociedade R..., Lda e a impossibilidade dos Recorridos procederem ao arrendamento das frações autónomas de que são proprietários, o que lhe causa prejuízo,

10. Sendo que, entre um e outro existe um evidente nexo de causalidade adequada – que se impõe seja quantificado/liquidado no presente incidente. Vide ponto C – 16 a ponto C 20 dos factos dados por provados.

11. A Decisão a quo não só não reconhece factualidade diversa daquela que foi dada por provada no decurso dos autos de processo n.º 1148/04.8TCGMR, como também não confere aos Recorridos qualquer direito de crédito acrescido para além daquele que resulta da condenação genérica expressa no dispositivo da sentença proferida nos sobreditos autos.

12. Pelo contrário, apenas líquida a condenação genérica que ressuma do dispositivo da sentença proferida nos autos de processo n.º 1148/04.8TCGMR, concretizando o objeto da condenação a que a Recorrente foi sujeita, alicerçando-se sempre na matéria de facto dada por provada naqueles autos.

13. Quer isto dizer, portanto, que a quantificação/liquidação destes dois itens, reconhecidos na Decisão a quo, está alicerçado na factualidade dada por assente, que os reconhece como um Danos sofrido pelos Recorridos, em virtude da conduta inadimplente da Recorrente.

14. Como tal, é claro e cristalino que não se verifica qualquer violação do Caso Julgado, seja formal ou material, nos termos do art. 619.º ou 620.º do CPC.

15. Além disso, é apodítico que não se encontra limitado o valor a liquidar no presente incidente ao montante de € 15.000,00.

16. Assim, dúvidas não podem subsistir de que a decisão a quo fez a devida ponderação da prova produzida, identificando a factualidade que da mesma emerge, subsumindo-a ao direito que lhe é aplicável, concretizando dessa forma a sentença genérica prolatada nos autos de processo n.º 1148/04.8TCGMR,

17. Destarte, deve a decisão a quo manter-se nos precisos termos (...)».

II – Admissibilidade do recurso

Tendo a presente acção sido proposta antes de 01-01-2008 – considerando, que com o incidente de liquidação, não se inicia uma nova instância adjectiva, antes, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 358.º do Código de Processo Civil, se renova a original (cfr., neste sentido, o acórdão deste Supremo Tribunal de 12-05-2011 (proc. n.º 2562/04.4TVLSB.L1.S1), não publicado, proferido por referência ao n.º 2 do art. 378.º do CPC de 1961, que apresentava uma redacção equiparável à da norma actual) –, mas estando em causa o recurso de uma decisão proferida após a entrada em vigor do CPC de 2013, aplica-se à aferição da admissibilidade da revista o regime processual previsto no Código em vigor, com excepção do disposto no n.º 3 do art. 671.º do CPC, não valendo, por isso, o obstáculo da dupla conformidade entre as decisões das instâncias (cfr. art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho).

Tendo em conta o valor da causa, o valor da sucumbência, a legitimidade da recorrente, a natureza do acórdão recorrido e, bem assim, a tempestividade da impugnação, conclui-se pela admissibilidade do recurso de revista apresentado pela requerida, nos termos do disposto nos arts. 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 671.º, n.º 1 e 674.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Civil.

De qualquer modo, o recurso sempre seria admissível, ao abrigo do previsto no art. 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, com base na invocada ofensa de caso julgado, ainda que circunscrito a este fundamento.

III – Objecto do recurso

Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do CPC, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto a seguinte questão:

• Saber se a liquidação dos danos correspondentes às quantias €132.692,44 e €1.094.210,71 violou o caso julgado inerente à sentença objecto de liquidação.

IV – Fundamentação de facto

Pelo Tribunal da Relação foram considerados provados os seguintes factos (mantêm-se a ordenação e a respectiva formulação linguística, salvo quanto à correcção das palavras estrema e estremas):

A) Em 11 de dezembro de 2014 foi prolatado acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, devidamente transitado em julgado, que revogou o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães na sequência de recurso da sentença prolatada na ação ordinária nº 1148/04.8TCGMR e que repristinou esta.

B) Na petição inicial da referida ação, instaurada no dia 25 de novembro de 2004, pelos requerentes, nela autores, contra a requerida, nela ré, e a que atribuíram o valor de €15.000,00, que se manteve inalterado, nela formularam, apenas, os dois pedidos seguintes de condenação:

a) Ser a ré condenada a outorgar a escritura de alteração da propriedade horizontal do prédio devidamente descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...74/....89 da freguesia de S. ..., de que é condómina juntamente com os autores.

b) Ser a ré condenada a pagar à autora, todos os prejuízos que advieram aos autores, em virtude da recusa por parte da ré em outorgar a escritura de alteração da propriedade horizontal, designadamente, preparos e custas judiciais e honorários de advogados e outros na presente ação e na ação que corre termos pela 1ª Vara Cível desta comarca com o nº 340/04.0..., e bem assim todos os prejuízos que a recusa causar.

C) Na referida sentença proferida na ação ordinária nº 1148/04.8TCGMR foram considerados provados os seguintes factos:

1. Os Autores foram os promotores do prédio urbano, edifício de cave, rés-do-chão, 1º, 2º e 3º andar ou águas furtadas – 465 m2 – integrado pelas frações “A”

a “AM”, sito na Rua de ..., na cidade de .... (alínea A) dos factos assentes).

2. Da globalidade do prédio os Autores só não são proprietários das seguintes frações:

- Lugares de garagem na cave do edifício com os números 8-S; 9-S; 10-S; 11-S; 12-S e 13-S descritos na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...74-H; ...74-I; ...74-J; ...74-L; ...74-M; e ...74-AM.

- E da loja n.º 5 – S e loja n.º 6 – S, descritas na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ... sob os n.ºs ...74-R e ...74-S. (alínea B) dos factos assentes).

3. Que são propriedade atualmente de Sirdoal – Empreendimentos e Gestão de Imóveis, S.A., as quais foram originariamente dadas em permuta à firma C..., Lda, como contrapartida pela servidão constituída a favor do prédio dos Autores, no prédio contíguo ao destes e propriedade da dita sociedade. (alínea C) dos factos assentes).

4. O prédio está devidamente descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...74/....89 da freguesia de S. .... (alínea D) dos factos assentes).

5. Todas as frações, que compõem a respetiva propriedade horizontal em que se transformou o prédio, estão registadas a favor dos Autores, e bem assim, encontram-se registadas a favor da Ré, as frações identificadas em 2., tudo conforme melhor se pode aquilatar pela leitura da Certidão emitida pela 2.ª Conservatória e referente às mesmas. (alínea E) dos factos assentes).

6. Em 1989 os Autores construíram o prédio supra descrito, tendo nessa mesma altura efetuado a integração arquitetónica com o prédio propriedade da sociedade C..., Lda, que deu origem à atual Ré. (alínea F) dos factos assentes).

7. Por contrato celebrado no dia 18 de outubro de 1989, acordaram Autores e a sociedade C..., Lda, em não construir qualquer tipo de parede nas estremas norte/sul dos respetivos prédios, de forma a que, entre os mesmos, nessa estrema e após a conclusão dos prédios respetivos, não existisse qualquer separação por paredes ou muros. (alínea G) dos factos assentes).

8. No encosto das paredes entre ambos os prédios, e também que a sociedade C..., Lda, garantia o livre acesso às lojas e garagens pertencentes aos Autores, tudo conforme consta do contrato celebrado entre Autores e a dita sociedade. (alínea H) dos factos assentes).

9. Em 2001, Autores e Ré resolveram construir três salas de cinema, facto este que veio alterar as áreas e logo a permilagem de cada um dos prédios, sendo certo que, tal obriga à retificação/alteração da propriedade horizontal dos mesmos e, designadamente do prédio supra-identificado. (alínea I) dos factos assentes).

10. Estas alterações refletem-se na distribuição espacial de ambos os prédios, e consequentemente acarretam a alteração física dos mesmos, implicando assim necessariamente a obrigação de retificar/alterar a propriedade horizontal, mais a mais, que sem a dita retificação, não é sequer possível aos Autores requererem as competentes licenças de utilização. (alínea J) dos factos assentes).

11. A Ré já procedeu à retificação/alteração da propriedade horizontal do seu prédio, tudo como melhor consta da certidão emitida pela 2.ª Conservatória do Registo Predial de .... (alínea L) dos factos assentes).

12. As alterações ocorridas no prédio de que Autores e Ré são condóminos, foram planeadas e executadas de comum acordo entre uns e outra, tudo como melhor resulta do acordo firmado entre a Ré e Autor marido em 15 de outubro de 2001 e de dois faxes que se juntam, remetidos em 1 e 17 de julho de 2002, pelo administrador Dr. CC, para a Sr.ª D.ª DD, pessoa que estava encarregue de proceder à alteração da propriedade horizontal. (alínea M) dos factos assentes).

13. A maior parte do custo das obras foi pago pela Ré, a qual conjuntamente com os Autores, contratou o empreiteiro que as fez. (alínea N) dos factos assentes).

14. A Ré ao mandar proceder às obras no prédio com o n.º de polícia 119, inscrito na matriz sob o artigo .11 e descrito na Conservatória sob o n.º ...48, de ... ..., designado Centro Comercial ..., já constituído em propriedade horizontal com 49 frações autónomas “A” a “AM”, mandando fazer os projetos, contratando o empreiteiro e acompanhando o seu andamento, sabia e não podia ignorar, que as mesmas implicavam a necessária alteração do título da propriedade horizontal existente. (alínea O) dos factos assentes).

15. Tendo todas as obras sido realizadas com a concordância e anuência da Ré, foi tal projeto objeto de negociação entre a Ré o Autor marido, bem sabendo a Ré, que se tornava necessário proceder à alteração da propriedade horizontal, pelo que estava como está obrigada a proceder segundo os ditames da boa-fé. (alínea P) dos factos assentes)

16. Recusa-se a Ré designadamente o seu administrador Dr. CC, a outorgar a escritura pública de alteração da propriedade horizontal. (resposta ao artigo 1º da base instrutória).

17. Todas as obras foram efetuadas de comum acordo. (resposta ao artigo 2º da base instrutória).

18. A não outorga da competente escritura de alteração da propriedade horizontal arrasta-se desde 2002 e a sociedade R..., Lda, com base a falta de licenças de utilização para o comércio de restauração e afins, intentou no dia 23/03/2004 uma ação de condenação em que os aqui autores foram condenados no pagamento da quantia de €132.692,44, acrescida de juros (resposta ao artigo 3º da base instrutória).

19. A não outorga da escritura de alteração implica que os autores não possam pedir as competentes licenças de utilização, pelo que não podem proceder ao arrendamento das frações autónomas de que são proprietários. (resposta ao artigo 4º da base instrutória).

20. Este facto implica para os autores prejuízos que, no presente momento, não podem ser concretizados com rigor (resposta ao artigo 5º da base instrutória).

21. Com a realização das obras referidas na resposta em 17. foi criada uma situação irreversível, porquanto nunca mais o prédio pode voltar a ter a configuração anterior, por forma a não necessitar de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. (resposta ao artigo 6º da base instrutória).

22. A construção dos cinemas abrangeu dois prédios juridicamente distintos; o descrito sob o nº.00074, propriedade dos AA. e Ré e o descrito sob o nº.00148 propriedade exclusiva da Ré (resposta ao artigo 9º da base instrutória).

23. Os AA. e Ré concordaram construir os cinemas, e isso no pressuposto da alteração das respetivas propriedades horizontais dos dois prédios, acordando ainda a manutenção da permilagem de cada uma das partes, depois das obras concluídas em ambos os prédios (resposta ao artigo 10º da base instrutória).

24. As obras efetuadas provocaram alterações profundas nos dois prédios (resposta ao artigo 11º da base instrutória).

25. Para ser efetuada a escritura pretendida é necessário identificar concretamente no prédio quais as alterações efetuadas, mantendo-se as permilagens anteriormente existentes, conforme acordado entre autores e ré. (resposta aos artigos 12º e 13º da base instrutória).

D) Na referida sentença prolatada em 16 de maio de 2013, nessa ação ordinária nº 1148/04.8TCGMR, e transitada em julgado nos sobreditos termos, foi decidido:

1. Julgar a ação improcedente quanto ao pedido de condenação da ré na outorga da escritura de alteração da propriedade horizontal do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...74/....89, da freguesia de ..., absolvendo a ré deste pedido;

2. Julgar a ação procedente quanto ao pedido de condenação da ré a indemnizar os autores, com base em responsabilidade pré-contratual e, consequentemente, condenar a ré a pagar aos autores:

a) A quantia que vier a apurar-se em incidente de liquidação;

b) Juros de mora sobre esta quantia, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

3. Condenar ambas as partes, provisoriamente, no pagamento das custas da ação em partes iguais.

E) Na sentença proferida na ação ordinária nº 1148/04.8TCGMR, de que este incidente de liquidação é apenso, consta, além do mais:

“Os danos causados aos autores pela injustificada recusa da ré em contratar não se encontram ainda perfeitamente concretizados, de tal forma que os próprios autores relegam a sua liquidação para momento posterior.

Mas logrou, desde já, obter-se uma primeira aproximação concretizadora de tais danos.

A título de interesse contratual negativo temos, desde logo:

- o próprio valor despendido pelos autores na realização das obras de alteração do centro comercial;

- as indemnizações cujo pagamento lhes advém da ausência de licenças de utilização das frações que deu de arrendamento (havendo já uma sua condenação, com trânsito em julgado na quantia de €132.692,44 acrescida de juros);

A título de interesse contratual positivo temos o evidente provento económico que os autores retirariam da normal exploração (designadamente por via de arrendamento comercial) das frações de que são proprietários no centro comercial e que, presentemente, se lhes encontra vedada.

Tendo os autores, no entanto, limitado o seu pedido à quantia de €15.000,00 acrescida de juros desde a citação, e não podendo este tribunal condenar em quantia superior à pedida (artigo 661º, nº 1, do CPC), mais não resta do que, como aliás pedido, relegar a concretização do montante destes danos indemnizáveis para incidente de liquidação.”.

F) O tribunal recorrido não fixou neste incidente de liquidação matéria de facto provada, limitando-se a escrever:

“Consideram-se aqui reproduzidos, por confessados ou provados por documento escrito, os factos articulados pelos requerentes e não contestados, nos termos das disposições constantes dos artigos 567º, nºs 1 e 3 e 568º, alínea d), ambos do Código de Processo Civil.”.

V – Fundamentação de direito

1. Recorde-se que o presente recurso tem unicamente como objecto a questão de saber se a liquidação dos danos correspondentes às quantias € 132.692,44 e € 1.094.210,71 violou o caso julgado inerente à sentença objecto de liquidação.

Invoca a recorrente que a interpretação que o acórdão recorrido fez quanto à liquidação das quantias de € 132.692,44 e de € 1.094.210,71 viola o disposto no n.º 1 do art. 619.º do CPC, quanto aos limites objectivos do caso julgado material inerente aos fundamentos da sentença, proferida a 16-05-2013, no processo principal ao qual estes autos correm por apenso.

Argumenta que, como se extrai do ponto E) da materialidade assente, a interpretação da sentença objecto de liquidação conduz à conclusão de que o pedido efectuado nos autos se encontra limitado pelo valor de € 15.000,00, montante ao qual, consequentemente, se deverá circunscrever o presente incidente de liquidação.

Analisando esta questão, afirmou o tribunal a quo:

“Como supra se referiu, a liquidação é um incidente que na sequência do reconhecimento da existência de um crédito, que não foi quantificado, quer por não ter sido possível, quer por o autor ter formulado um pedido ilíquido ou genérico, se destina a concretizar o objeto dessa condenação genérica. É esta última a situação que se verifica quanta a esta quantia. Com efeito, os ora requerentes alegaram, na petição inicial, que entre os danos que sofreram (ou que previsivelmente iriam sofrer) se inclui a indemnização a pagar a um terceiro, pretendendo, assim, em sede de regresso, imputar o respetivo montante na esfera jurídica da ora requerida. Não liquidaram esse dano e, consequentemente, fizeram corresponder-lhe um pedido de condenação genérica. A sentença julgou verificado o dano, indicando, na sua fundamentação, o seu montante líquido. Em termos decisórios, todavia, ficou-se por uma condenação genérica – a liquidar em momento ulterior. Compreende-se que assim tenha sido, uma vez que o julgador estava limitado pelo pedido feito, não podendo condenar em objeto diverso. É isto que justifica que aos requerentes também visem a liquidação deste segmento decisório através do presente incidente, não obstante o dano estar já quantificado na sentença, a qual aqui se impõe como antecedente lógico por via do efeito positivo do caso julgado.

Assim, está assente que na ação ordinária nº 340/04.0..., e como consta do ponto 18 dos factos provados da ação ordinária nº 1148/04.8TCGMR, os aqui requerentes foram condenados ao pagamento de tal quantia. Esta, está já perfeitamente definida. Não há, por isso, que discutir a liquidação quanto à mesma, mas apenas que a fazer refletir em termos decisórios, como fez o tribunal a quo.

A questão da liquidação dos danos, e como resulta do segmento da sentença referida na alínea E) dos factos provados, prende-se também com aqueles que acrescem ao montante já fixado e que resultam do interesse contratual positivo, concretamente decorrentes do “provento económico que os autores retirariam da normal exploração (designadamente por via de arrendamento comercial) das frações de que são proprietários no centro comercial e que, presentemente, se lhes encontra vedada.” É relativamente a esta soma, a este montante global, que a questão da liquidação se coloca.”.

Vejamos.

O incidente de liquidação encontra-se previsto nos arts. 358.º a 361.º do CPC e, quando deduzido ao abrigo dos arts. 358.º, n.º 2, e 609.º, n.º 2, do CPC - como foi o caso - visa tornar líquida a obrigação em cujo cumprimento o devedor já foi condenado por decisão judicial prévia.

Dispõe o n.º 2 do art. 358.º do CPC que “o incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, e, caso seja admitido, a instância extinta considera-se renovada”, estatuindo o n.º 2 do art. 609.º do mesmo diploma que, “se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.”.

Como observa Salvador da Costa (Os Incidentes da Instância, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2023, págs. 223-224), “a finalidade essencial deste incidente de liquidação, previsto nos artigos 358º a 361º, é a de fixação do âmbito da obrigação genérica e a quantificação da obrigação ilíquida. A sua estrutura sofreu significativa alteração por via do DL no 38/2003, de 8 de março, na medida em que passou a abranger a liquidação de condenações genéricas posteriormente à sentença final. Assim, o pedido genérico e o pedido ilíquido, se possível, devem ser liquidados no âmbito da ação declarativa de condenação, na sentença final, e a liquidação da condenação genérica, prevista no n.º 2 do artigo 609.º deve operar no incidente previsto no nº 2 do artigo 358º, depois de proferida a referida sentença.”.

A liquidação da sentença apenas se destina a concretizar o objecto da condenação genérica ou ilíquida, com observância do respectivo caso julgado, respeitando o dispositivo da sentença (cfr. Salvador da Costa, ob. cit., pág. 223).

Com efeito, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sublinhado a necessidade de o incidente de liquidação observar o caso julgado formado pela inerente sentença condenatória, como resulta dos sumários dos seguintes acórdãos, que se transcrevem na parte relevante:

- Acórdão de 14-01-2021 (proc. n.º 5623/06.1TBLRA.1.C1.S1), não publicado: “A liquidação é um incidente da instância declarativa com estreita ligação à ação onde se reconheceu a existência da obrigação, pelo que a concretização do objeto da condenação deve respeitar o caso julgado emergente da sentença condenatória”;

- Acórdão de 16-12-2021 (proc. 970/18.2T8PFR.P1.S1), disponível em www.dgsi-pt: “A liquidação da sentença destina-se tão somente a ver concretizado o objecto da sua condenação (genérica), mas, obviamente, sempre respeitando (ou nunca ultrapassando) o caso julgado formado na mesma sentença condenatória a liquidar. Ou seja, tem, forçosamente, de obedecer ao que foi decidido no dispositivo da sentença”;

- Acórdão de 18-01-2022 (proc. n.º 3396/14.3T8GMR.2.G1.S1), disponível em: “I - O incidente de liquidação previsto no n.º 2 do art. 358. do CPC é um incidente da instância declarativa com estreita e indissociável ligação à acção onde a sentença foi proferida e se reconheceu a existência do crédito, decretando uma condenação genérica, e destina-se somente à concretização do objecto dessa condenação, com respeito pelo caso julgado, não sendo permitido às partes tomar uma posição diferente ou mais favorável do que a já assumida na mesma acção. II - Para interpretar o sentido, e alcance da sentença, coberta pelo caso julgado, há que recorrer à respectiva fundamentação, segundo as regras de interpretação dos negócios jurídicos, pois assim decorre do disposto no art. 295.º do CC.”;

- Acórdão de 21-06-2022 (proc. n.º 158/04.0TMPRT-G.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt: “I - Uma obrigação é líquida quando tem por objeto uma prestação cujo quantitativo está apurado. II - A liquidação pós-sentença visa tão só concretizar o objeto da ação declarativa, funcionando como um complemento da anterior sentença, esta sim condenatória, estando o resultado daquela delimitado pelos termos do pedido formulado na ação declarativa, no preciso teor em que esse pedido mereceu acolhimento, não sendo possível às partes tomar uma posição diferente ou mais favorável do que a já assumida na ação declarativa. III - Constituindo a sentença caso julgado nos precisos termos em que julga, o respetivo alcance depende da interpretação das decisões judiciais, merecendo consenso o entendimento que se consubstanciam num ato jurídico, a que se aplicam, por analogia, as regras reguladoras dos negócios jurídicos”;

- Acórdão de 27-04-2023 (proc. n.º 386/20.0T8SCR.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt: “A liquidação da sentença visa assim, tão-só, a concretização do objeto da condenação, com respeito pelo caso julgado decorrente da acção declarativa, ou seja, a determinação do objecto da causa, o mesmo é dizer, a existência do dano não é relegável para o referido incidente”.

Na alegação de ofensa do caso julgado apresentada pela recorrente está em causa, não a excepção dilatória de caso julgado, mas, diversamente, a infracção do efeito de autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida no processo principal.

Importa, pois, e num plano preliminar de análise, delimitar o alcance do caso julgado formado pela decisão condenatória em causa para apreciar se os danos liquidados pelo acórdão recorrido se integram no seu âmbito.

Ora, a determinação do perímetro do caso julgado depende da interpretação da respectiva decisão judicial. É, pois, exacto, na linha do sustentado pela recorrente, que embora, via de regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, o mesmo possa abranger, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à prolação da parte dispositiva do julgado. Cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 22-02-2018 (proc. n.º 3747/13.8T2SNT.L1.S1), de 27-09-2018 (proc. n.º 10248/16.0T8PRT.P1.S1), de 28-03-2019 (proc. n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1), de 26-11-2020 (proc. n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1) e de 19-10-2021 (proc. n.º 34666/15.2T8LSB.L2.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Nas palavras de Castro Mendes (Limites objectivos do caso julgado em processo civil, Edições Ática, Lisboa, 1968 págs. 253-254), “a determinação do conteúdo de pensamento que imediatamente é pela sentença tornado indiscutível é algo a fazer, caso a caso, mediante a interpretação da decisão judicial. Nessa interpretação cremos importantíssima a regra segundo a qual o acto jurídico se presume regular, corolário, do velho princípio ‘homo praesumitur bónus’: presume-se que o homem, quando age, o faz segundo a lei. E como factor da regularidade (em certa medida até da validade) da sentença é a adequação da sentença ao pedido e à causa de pedir, e a adequação da sentença aos seus próprios fundamentos, daqui resulta que pedido, causa de pedir e fundamentos são importantes elementos de interpretação da sentença.”.

Remédio Marques («Em torno da interpretação das decisões judiciais O limite temporal final para a definição dos direitos conferidos ao trabalhador no quadro das remunerações intercalares por despedimento ilícito», in Lusíada, n.ºs 7 e 8, Porto, 2013, págs. 87-88) enuncia, de forma tópica, um conjunto de directrizes interpretativas dirigidas a captar o sentido e o alcance de uma decisão judicial:

“Em primeiro lugar, perante o texto da decisão judicial o intérprete deve começar por perceber, segundo as regras linguísticas comuns e da lógica, o seu sentido objectivo. A interpretação das decisões judiciais, como qualquer interpretação começa assim pelo exame do texto a interpretar. Esse é o seu ponto de partida (…) Em segundo lugar — e talvez esta seja a constatação mais importante no que às directrizes interpretativas das decisões judiciais diz respeito —, a mens objectivada deste tipo de decisões judiciais e do juízo decisório que lhes é inerente não pode ser logrado senão através do iter genético dessas mesmas decisões E esta tarefa interpretativa terá que ser realizada retrospectivamente, post factum finitum, em particular se a concreta decisão interpretanda já transitou em julgado. Se o texto da decisão é o ponto de partida da interpretação, o ponto de chegada é o iter genético dessa mesma decisão. Este iter não corresponde, já se vê, ao itinerário psicológico e interior do magistrado: a identificação do objecto do juízo não pode ser reconstruído a esta luz, mas sim, e pelo contrário, à luz do iter objectivo (…) Em terceiro — e de um modo decisivo para esta tarefa interpretativa dirigida à reconstrução da génese do juízo objectivado na decisão judicial — alça-se o elemento mais importante para a identificação do objecto desse juízo. E este elemento é determinado pelo princípio do pedido (espécie do princípio do dispositivo), no sentido em que deve existir uma necessária correspondência entre o pedido do autor (ou do réu reconvinte) e a pronúncia ínsita na decisão judicial. O tribunal não pode decidir sobre objecto diferente do pedido ou omitir a resolução de questões que lhe foram pedidas pelo autor.”.

2. Tendo presentes estas orientações, consideremos que o presente incidente visa a liquidação de montantes indemnizatórios que, com base em responsabilidade pré-contratual, a ré, ora recorrente foi condenada a pagar, defendendo esta que, de acordo com o teor da decisão condenatória, a liquidação se terá de cingir à quantia de € 15.000,00.

Do dispositivo da sentença dada à liquidação extrai-se, de modo inequívoco, que a acção foi julgada improcedente quanto ao pedido de condenação da ré na outorga da escritura de alteração da propriedade horizontal e procedente quanto ao pedido de condenação da ré a indemnizar os autores, com base em responsabilidade pré-contratual, condenando-a a pagar, para além de juros de mora, a quantia a apurar em incidente de liquidação (cfr. ponto D dos factos provados).

Todavia, este último segmento decisório não é determinante quanto ao limite máximo da liquidação. Para perscrutar a existência ou inexistência do limite invocado pela recorrente há que, aderindo à tese do continuum entre a fundamentação e a decisão (cfr. Remédio Marques, ob. cit., págs. 90-93), convocar o conteúdo da fundamentação da decisão e aferir da delimitação do objecto do processo, tal como configurado pelo autor. E isto porque a eficácia própria do caso julgado opera, desde logo, com o pedido do autor: “a extensão objectiva do caso julgado é definida pelo pedido e pela causa de pedir, embora não seja indiferente a interpretação que o tribunal faça da extensão de um ou de outra.” (Remédio Marques, ob. cit., pág. 96).

Na fundamentação da decisão objecto de liquidação, com relevância para a análise da questão decidenda, pode ler-se o seguinte (cfr. ponto E da materialidade assente):

“Os danos causados aos autores pela injustificada recusa da ré em contratar não se encontram ainda perfeitamente concretizados, de tal forma que os próprios autores relegam a sua liquidação para momento posterior. Mas logrou, desde já, obter-se uma primeira aproximação concretizadora de tais danos. A título de interesse contratual negativo temos, desde logo:

- o próprio valor despendido pelos autores na realização das obras de alteração do centro comercial;

- as indemnizações cujo pagamento lhes advém da ausência de licenças de utilização das frações que deu de arrendamento (havendo já uma sua condenação, com trânsito em julgado na quantia de € 132.692,44 acrescida de juros);

A título de interesse contratual positivo temos o evidente provento económico que os autores retirariam da normal exploração (designadamente por via de arrendamento comercial) das frações de que são proprietários no centro comercial e que, presentemente, se lhes encontra vedada.

Tendo os autores, no entanto, limitado o seu pedido à quantia de € 15.000,00 acrescida de juros desde a citação, e não podendo este tribunal condenar em quantia superior à pedida (artigo 661º, nº 1, do CPC), mais não resta do que, como aliás pedido, relegar a concretização do montante destes danos indemnizáveis para incidente de liquidação.”.

Ainda que se conceda que existe um segmento da fundamentação – respeitante à afirmação de que os autores limitaram o seu pedido “à quantia de € 15.000,00 acrescida de juros desde a citação, e não podendo este tribunal condenar em quantia superior à pedida (artigo 661º, nº 1, do CPC)” –, que é algo ambíguo, a interpretação integrada da sentença afasta o sentido que a recorrente pretende extrair da mesma, isto é, o estabelecimento do referido montante de €15.000,00 como limite da liquidação a efectuar.

Impõe-se, pois, uma análise mais profunda e sistemática da peça decisória, nos moldes efectuados pelo acórdão recorrido.

De facto, como, de forma impressiva, se sintetizou no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de 01-07-2021 (proc. n.º 726/15.4T8PTM.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt: “III. Para alcançarmos o verdadeiro sentido de uma sentença, a sua interpretação não pode assentar exclusivamente no teor literal da respetiva parte decisória, impondo-se também considerar e analisar todos os antecedentes lógicos, que a suportam e a pressupõem, dada a sua íntima interdependência bem como outras circunstâncias, mesmo posteriores à respetiva elaboração. IV. O pedido, a causa de pedir e os fundamentos de facto e de direito da sentença são importantes meios auxiliares da sua interpretação, na medida em que permitem retirar uma conclusão sobre o sentido que se lhe quis emprestar. V. Na interpretação da sentença deve ainda atentar-se na regra de que «o acto jurídico se presume regular» e partir-se do princípio de que a mesma visou um resultado razoável e não impossível ou que conduziria ao esvaziamento de um direito.”.

Se interpretarmos a sentença objecto de liquidação de acordo com um critério teleológico ou funcional, fundado num padrão de objectividade e razoabilidade (cfr., a este respeito, o acórdão deste Supremo Tribunal de 13-02-2014, proc. n.º 2081/09.2TBPDL.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt), verificamos que é a própria decisão que sublinha existirem quantias já determinadas a título de interesse contratual negativo, - como seja a quantia de €132.692,44, acrescida de juros, proveniente de uma condenação já transitada em julgado -, ressalvando a sentença que outros montantes deveriam ser apurados, inerentes ao interesse contratual positivo, relacionados com o provento económico que os autores retirariam da normal exploração das fracções de que são proprietários no centro comercial.

Ora, se perfilhássemos a tese da recorrente – de que, em obediência ao princípio do pedido, a liquidação dos danos não poderia ultrapassar os € 15.000,00 –, nenhum motivo teria a sentença para não condenar a ré imediatamente naquele valor, proferindo uma condenação líquida correspondente a tal montante, já que uma das parcelas liquidadas daquele dano já ultrapassava, por si só, tal quantia.

Numa outra formulação: só se detecta um sentido útil na decisão de relegar para incidente de liquidação a determinação do quantitativo da indemnização objecto de condenação se interpretarmos a sentença no sentido de admitir uma liquidação superior a €15.000,00, posto que uma das parcelas indemnizatórias já liquidadas apresentava, só por si, um valor superior àquele. Tal sentido, que ora se advoga, apresenta suficiente suporte no texto da decisão, uma vez que a sentença é expressa ao considerar que, embora exista uma parcela dos danos já quantificada em montante superior a € 15.000,00, haveria, ainda assim, “como aliás pedido, [que] relegar a concretização do montante destes danos indemnizáveis para incidente de liquidação”.

Mas não só: se apelarmos ao elemento coadjuvante de interpretação contido no pedido formulado pelos autores na petição inicial, verificamos que estes peticionam que se relegue para momento posterior a liquidação dos danos invocados pela injustificada recusa da ré em contratar. Como se depreende da leitura do ponto B) dos factos provados, os autores formularam, pois, um pedido de condenação genérico, pugnando pela condenação da ré no pagamento “de todos os prejuízos que advieram aos autores, em virtude da recusa por parte da ré em outorgar a escritura de alteração da propriedade horizontal, designadamente, preparos e custas judiciais e honorários de advogados e outros na presente ação e na ação que corre termos pela 1ª Vara Cível desta comarca com o nº 340/04.0..., e bem assim todos os prejuízos que a recusa causar.”.

O sentido que resulta de tal declaração, revelado pelo seu teor literal, exclui que se configure o pedido deduzido como limitado ao valor de € 15.000,00.

A interpretação da sentença objecto de liquidação, tal como realizada pelo acórdão recorrido, respeita o âmbito objectivo do caso julgado formado com a sentença condenatória, incluindo a parte da fundamentação em que, de modo impróprio, o tribunal afirma que os autores limitaram o seu pedido à quantia de € 15.000,00 – um segmento que, de todo o modo, não poderá ser considerado atomisticamente, antes deverá ser interpretado de forma conjugada com a restante fundamentação de direito, à luz do objecto processual tal como configurado pelos autores.

Por outro lado, a interpretação normativa do tribunal recorrido, que ora se acolhe, foi integrada numa decisão judicial proferida pelo órgão ao qual a Constituição comete tal tarefa. Dificilmente se alcança, por isso, a alegação da recorrente – formulada, de todo o modo, em termos genéricos e não suficientemente caracterizados –, no sentido de que que tal interpretação infringe “os princípios constitucionais da separação de poderes, da exclusiva competência para aplicar esse caso julgado material, o da sua intangibilidade e o da sua segurança jurídica, consagrados no artigo 2º, no nº 1 do artigo 202º, no artigo 204º e no nº 2 do artigo 205º, todos da Constituição da República Portuguesa por traduzir acto de legislar, relativamente àqueles limites objectivos do caso julgado material formado.”.

O montante de € 15.000,00 identifica-se, sim, como o valor atribuído à causa pelos demandantes; o qual, como é com propriedade realçado pelo acórdão recorrido, não se confunde com o âmbito do pedido formulado na acção. Como sublinhou este aresto, “tal como agora (atual artº 296º do CPC), o valor da causa relevava, além do mais, para determinar a competência do tribunal, a forma de processo aplicável, a relação da causa com a alçada do tribunal, concretamente para aferir da recorribilidade das decisões, e para cálculo das custas e demais encargos devidos. Todavia, tal não contende com o princípio do pedido, designadamente estabelecendo um teto máximo equivalente ao valor da ação.”.

Conclui-se, pois, que a liquidação dos danos correspondentes às quantias de €132.692,44 e €1.094.210,71 não viola o âmbito objectivo do caso julgado formado pela sentença condenatória genérica proferida nos autos principais.

3. A recorrente invoca ainda a necessidade de rectificação do acórdão recorrido, no segmento em que no mesmo se afirma “pense-se nos referidos € 132.692,44 que os requerentes pagaram de multa”, para a expressão “A não outorga da competente escritura de alteração da propriedade horizontal arrasta-se desde 2022 e a sociedade R..., Lda, com base a falta de licenças de utilização para o comércio de restauração e afins, intentou no dia 23/03/2004 uma ação de condenação em que os aqui autores foram condenados no pagamento da quantia de € 132.692,44, acrescida de juros”, argumentando que é esta a expressão que consta do ponto 18. da alínea C) dos factos provados.

Em sede de acórdão da conferência, o Tribunal da Relação concedeu parcial razão à recorrente, determinando a substituição, por existência de lapso manifesto na exposição do raciocínio argumentativo, da expressão “pense-se nos referidos € 132.692,44 que os requerentes pagaram de multa”, pela expressão “foram condenados a pagar”.

O tribunal a quo indeferiu a restante pretensão, fazendo notar que “a reclamante pretende que o dispositivo seja complementado com a redação que alegou, ou seja, não está aqui em causa nenhuma das hipóteses legais previstas no artº 616º do CPC, mas somente uma questão de redação que o reclamante reputa de mais adequada. A reclamante/recorrente pode não concordar com a redação, mas a deliberação compete em exclusivo aos juízes que a subscrevem, que utilizam a redação que entendem adequada.”.

Nenhuma censura nos merece este entendimento, sendo que não se vislumbra que o acórdão recorrido, para além do segmento rectificado, contenha erros de escrita ou qualquer inexactidão devida a omissão ou lapso manifesto, que cumpra rectificar nos termos do n.º 2 do art. 614.º do CPC (aplicável por remissão do disposto no art. 666.º, n.º 1, do CPC). A pretensão da recorrente vai para além deste plano de correcção meramente formal, reportando-se à redacção da própria fundamentação de direito, embora sem reflexos no âmbito do julgado.

O recurso deve assim improceder na sua integralidade.

VI – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 4 de Julho de 2024

Maria da Graça Trigo (relatora)

Emídio Santos

Afonso Henrique