Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
109/12.8GDARL.E3-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
MATÉRIA DE FACTO
IDENTIDADE DE FACTOS
REABERTURA DA AUDIÊNCIA
LEI NOVA
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
RETROATIVIDADE DA LEI
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
REJEIÇÃO DE RECURSO
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 01/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: REJEITADO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I -   A exigência de oposição de julgados, de que não se pode prescindir na verificação dos pressupostos legais de admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º, n.º 1, do CPP, é de considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, de modo expresso, sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação.

II -  A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito.

III - Sendo o recurso de fixação de jurisprudência um recurso extraordinário e, por isso, excepcional, é entendimento comum do STJ que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras tal recurso, deve fazer-se com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) por essa excepcionalidade.

IV - A oposição relevante de acórdãos ocorrerá quando existam nas decisões em confronto soluções de direito antagónicas e, não apenas, contraposição de fundamentos ou de afirmações, soluções de direito expressas e não implícitas, soluções jurídicas tomadas a título principal e não secundário.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I - RELATÓRIO


1. AA vem, ao abrigo do artigo 437.º do Código de Processo Penal (CPP), interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, invocando oposição entre o acórdão proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação …, em 19-12-2019 (acórdão recorrido), e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24-09-2018, proferido no âmbito do proc. n.º 144/11.3TAPVL-F.G1, disponível em www.dgsi.pt (acórdão fundamento), sendo, nas suas palavras, o seguinte:

«Thema Decidendo:

A) – Art.º 371º-A do CPP: Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime. Essa possibilidade não fica arredada pelo facto de o trânsito em julgado da decisão condenatória ter ocorrido depois da entrada em vigor da nova lei em consequência da pendência de recurso dessa decisão, no qual nada foi referido sobre a aplicação da lei penal mais favorável ao arguido.»,

Apresentando a motivação e conclusões que se transcrevem:

«DOS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

– Da Tempestividade do Recurso (art.º 438º n.º 1 CPP) –

Nos termos do disposto no art.º 437º do CPP, é admissível recurso de fixação de jurisprudência quando um Tribunal de Relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente Relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

E, conforme estatuído no art.º 438º n.º 1 do CPP, o recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

Impõe-se, portanto que, para que seja admissível a interposição de recurso de fixação de jurisprudência, do Acórdão recorrido tenha sido proferido em último lugar, e, além do mais, não seja admissível recurso ordinário do mesmo, id est, que tenha transitado em julgado.

Ao caso sub iudice, o Acórdão do Tribunal da Relação …. no âmbito dos presentes autos, foi prolatado em 19DEZ2019.

O referido Acórdão foi notificado ao Arguido através de ofício da secretaria judicial datado de 20DEZ2019, sob a ref.ª Citius … .

Por conseguinte, o Acórdão considera-se notificado em 23DEZ2019.

Entre 22DEZ2019 e 03JAN2020 decorreram férias judiciais.

O prazo para arguir nulidade ou pedir esclarecimento de obscuridade ou ambiguidade é de 10 dias [art.º 105º n.º 1, 379º e 380º n.º 1 b), todos do CPP]; sendo igual o prazo para interpor recurso para o Tribunal Constitucional (art.º 75º n.º 1 Lei 28/82 de 15NOV).

Considerando que os sujeitos processuais podem ainda praticar os actos, independentemente de justo impedimento, nos 3 dias úteis subsequentes ao termo do prazo, mediante o pagamento de multa (art.º 107º-A do CPP), resulta portanto, que ao Arguido teria sido ainda possível reagir ao Acórdão do Tribunal da Relação …, até ao dia 16JAN2020.

Neste conspecto, em 17JAN2020 ocorreu o trânsito em julgado do Acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação … .

No sentido que vem expendido, com termo similares, cabe recordar o Acórdão do STJ, da 5ª Secção, de 22JAN2009, prolatado no proc. n.º 3449/08.

Por conseguinte, o prazo de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, legalmente fixado em 30 dias, nos termos do art.º 438º CPP, ocorre entre 17JAN2020 e o dia 17FEV2020.

Assim, vem a presente via recursal tempestiva.

De outra banda,

– Acórdão-Fundamento (art.º 438º n.º 2 CPP) –

Estatui o art.º 438º n.º 2 CPP que o Recorrente deverá identificar o Acórdão com o qual o Acórdão Recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação.

Neste concreto segmento, adianta-se que o Acórdão Recorrido conflitua com o Acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 24SET2018, no âmbito do proc. n.º 144/11.0TAPVL-F.G1, disponível em www.dgsi.pt, cuja cópia se junta como ACÓRDÃO-FUNDAMENTO.

– Do Conceito «mesma questão de direito» (art.º 437º n.º 2 e 438º n.ºs 1 e 2 CPP) –

Como mencionam SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, Editora Reis dos livros, 2008: 186-187:

“Há algum tempo atrás, o Ministério Público no STJ, no visto a que se refere o n.º 1 do art.º 440º, num recurso para fixação de jurisprudência que incidia sobre uma questão cível decidida em pedido de indemnização cível formulado em processo penal, sugeriu uma interpretação restritiva para o n.º 1 do art.º 437º, segundo a qual «a mesma questão de direito» que aí se refere, deve ser entendida como «mesma questão de direito penal ou processo penal.

Partiu-se para essa sugestão da consideração de que nos termos do mesmo n.º 1 a decisão do recurso para fixação de jurisprudência cabia ao plenário das secções criminais (tendo ainda em atenção o preceituado no art.º 28º n.º 1 al. c) da então LOTJ), constituindo jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais (art.º 445º n.º 1 parte final).

Isto quando, nos termos do Cód. Proc. Civil, as secções cíveis do STJ reunidas (n.º 3 do art.º 728 do Còd. Proc. Civil), intervindo para assegurar a uniformidade da jurisprudência, não proferiam jurisprudência obrigatória, o que competia ao plenário do STJ (art.º 763º n.º 1 do Cód. Proc. Civil e art.º 26º al. b) da LOTJ).

Poderiam, assim, as secções criminais reunidas firmar jurisprudência obrigatória, v. g., em matéria cível, quando o não poderiam fazer as secções cíveis reunidas. Por tal estar reservado ao Plenário do Tribunal, o que não se coadunava certamente com a unidade do sistema jurídico a que devia atender-se especialmente na interpretação da lei (art.º 9 n.º 1 do Código Civil).

No mesmo sentido apontava, alias, um outro argumento que se podia extrair no n.º 3 do art.º 28º LOTJ e da sua al. d), que, presumivelmente em antecipação da reforma de processo civil, atribuía as secções do STJ, segundo a sua especialização, a uniformização da jurisprudência de acordo com a lei do processo. Ora, este princípio sairia certamente maltratado numa interpretação do n.º 1 do art.º 437º, diversa da sugerida.”

Pelo que, continuam os retromencionados Autores, in op. cit., 187, “Hoje, reafirmou-se na al. c) do n.º 1 do art.º 35º da LOTFJ (lei 3/99 de 13 de Janeiro), que compete ao pleno das secções, segundo a sua especialização, uniformizar a jurisprudência, nos termos da lei de processo, pelo que a doutrina contida na interpretação sugerida será de manter.”

No que ao caso sub iudice tange, visa-se apreciar e avaliar acerca do âmbito e concretos termos de aplicação possível da norma constante do art.º 371ºA do CPP e se, de facto, a sua aplicação não fica afastada pelo facto de o trânsito em julgado da decisão condenatória ter ocorrido depois da entrada em vigor da lei nova em consequência da pendência de recurso dessa decisão, no qual nada foi referido sobre a aplicação da lei penal mais favorável.

Por conseguinte, tem-se como verificado o âmbito e alcançado o âmago da mesma questão de direito aprecianda pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça.

Outrossim,

– Dos Acórdão Opostos (art.º 438º n.ºs 1 e 2 CPP) –

Estabelece o art.º 437º n.ºs 1 e 2 do CPP que, quando, no domínio da mesma legislação, um Tribunal de Relação proferir acórdão que, relativamente à mesma questão de direito, esteja em oposição com outro, da mesma ou diferente Relação, e dele não for admissível recurso ordinário, é admissível recurso para fixação de jurisprudência.

Nessa conformidade, mais estabelece o art.º 438º n.º 2 do CPP, que o Recorrente deverá identificar o Acórdão com o qual o Acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

Ora, quanto à expressão «no domínio da mesma legislação», elaboram SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, in op. cit., 190, que:

“Estamos mais uma vez com J.A. REIS quando afirma que se deve ser aqui suficientemente generoso na integração da expressão legal em análise, por forma a abranger não apenas as situações que as palavras da lei literalmente insinuam, como ainda outras que porventura denunciem estarmos perante as mesmas regras de direito.

E conclui assim o ilustre processualista:

«Parece-nos, pois, que a frase «no domínio da mesma legislação» não deve ser entendida em termos rígidos e absolutos, de modo a excluir peremptoriamente o conflito de regras de direito que pertençam a diplomas legislativos diferentes. Há que atender a todas as condições e circunstâncias do caso. Se os elementos de que dispomos conduzem a que a regra, posto que incorporada em ordenamentos jurídicos distintos, deve ter, num e noutro, a mesma significação e o mesmo alcance, estamos no domínio da mesma legislação, no caso contrário estaremos em domínios legislativos diferentes.»

Ou seja: deve ser-se aberto na consideração do caso concreto e, em situações duvidosas, não frustrar, por aí, a possibilidade de recurso, pois é preferível pecar por excesso que pior defeito em matéria tão delicada como é a uniforme administração da Justiça.

Portanto, e em resumo, poderemos concluir que a oposição susceptível de fazer seguir o recurso pressupõe os seguintes requisitos:

- julgamento contraditório explícito da mesma questão;

- natureza de direito e não de facto da questão opostamente julgada;

- identidade (pelo menos) entre as questões debatidas em ambos os acórdãos. Esta identidade, sem prejuízo do que se referiu antes, tanto se pode traduzir, pois, em mesma questão como em questões diversas se, neste último caso, se puder afirmar que para a sua decisão os dois acórdãos assacados de contraditórios se pronunciarem de maneira oposta acerca de qualquer ponto jurídico neles discutido (isto é, verifica-se oposição ainda quando os casos concretos apreciados apresentam particularidades diferentes, se tal impede que a questão de direito em apreço nos dois acórdãos seja fundamentalmente a mesma e haja sido decidida de modo oposto);

- inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação de ambos os acórdãos conflituantes.”

E quanto ao teor da expressão “acórdãos opostos”, indicam os retrocitados Autores que: “O Prof. J. A. REIS conferiu-lhe o seguinte sentido:

«Dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas.»

E pondo o problema de saber, em tal contexto, se se tornaria necessária uma oposição expressa (que não implícita), e incidindo sobre a própria decisão (que não sobre os seus fundamentos), explicitou assim a sua tendência:

«Se um acórdão formulou abertamente solução jurídica e outro não proclamou explicitamente solução contrária, mas emitiu decisão que necessariamente implica solução oposta àquela deve entender-se que existe a oposição... Quer dizer, o recurso... pode ter por fundamento a oposição entre um julgado explícito, e um julgado implícito...»

E quanto ao segundo problema, escreveu:

«Para que seja admissível recurso não é forçoso que a oposição entre os acórdãos se manifeste na decisão, isto é, que a questão final a resolver, num e noutro caso fosse a mesma. Em primeiro lugar importa advertir que o problema da delimitação entre os fundamentos e a decisão é, por vezes, um problema delicado e angustioso; nem sempre é fácil distinguir com nitidez onde acabam os fundamentos e onde começa a decisão. Em segundo lugar convém não perder de vista esta consideração: o fundamento duma decisão final pode, por sua vez, corresponder à decisão duma questão particular. Por outras palavras: a decisão final pode ser a consequência ou o corolário lógico duma decisão anterior.»

No fundo o que interessa é saber se para a resolução do caso concreto os tribunais, em dois acórdãos diferentes, chegaram a soluções antagónicas sobre a mesma questão fundamental de direito.

Formulou, a propósito, o STJ algumas considerações de interesse. [...]

E são considerações de ordem teórica, que explicam a orientação do Supremo quanto à admissibilidade desta providência, exigindo, por isso, como seus requisitos cumulativos, a identidade dos factos e a identidade da questão de direito.”

Ora,

Serve o supra expendido para o caso sub iudice, na medida em que, de facto, se constata uma oposição entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão-Fundamento que, debruçando-se, ambos, sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, trilham por veredas opostas.

Escrutine-se.

Os termos do objecto apreciando sintetizam-se, sumariamente, nos seguintes moldes:

Com efeito, à data da prática dos factos (22JULHO2012) e à data da prolação da Sentença condenatória de 1.ª Instância (13MARÇO2014), o art.º 44º do CPenal não admitia o regime de permanência na habitação para penas superiores a um ano de prisão.

O Arguido/Recorrente foi condenado a 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.

O Arguido interpôs recurso da retromencionada Sentença, vindo a ser prolatado Acórdão pelo TR…. em 26SET2017, pelo qual resulta a nulidade da Sentença da 1.ª Instância por vícios de falta de fundamentação da matéria de facto.

Nesta data – 26SET2017 – o art.º 44º do CPenal não admitia o regime de permanência na habitação para penas superiores a um ano de prisão.

E a Sentença do Tribunal de 1.ª Instância proferida em 25JAN2018 apenas e exclusivamente vem sanar o vício apontado pelo Acórdão do TR…. de 26SET2017.

O referido aresto em parte alguma se debruça ou pondera acerca da alteração legislativa que veio introduzir um regime mais favorável no que tange à aplicação do regime de permanência na habitação a penas de prisão efectiva não superiores a dois anos.

Pelo que, a Sentença de 25JAN2018 do Tribunal de 1.ª Instância não se pronunciou sobre a aplicação do regime mais favorável resultante da entrada em vigor (90 dias após publicação, id est, em 21NOV2017) da Lei 94/2017 de 23AGO.

Outrossim, o mesmo vem a suceder com o Acórdão do TR…, prolatado em 22JAN2019, o qual também não delibera, não se pronuncia nem averigua acerca da questão ora em escrutínio.

Que dúvidas não restem: recorde-se quanto vem exarado no referido Acórdão, no título (b) Da impugnação da pena, constante de páginas 23 (de 28 páginas) do Acórdão prolatado.

Em suma, o TR…, no Acórdão prolatado em 22JAN2019, não aprecia a questão em escalpelização na presente via recursal.

Pelo que, em momento algum foi ponderada ou compulsada a aplicação da alteração legislativa da Lei 94/2017 de 23AGOSTO, que veio introduzir um regime mais favorável no que tange à aplicação do regime de permanência na habitação a penas de prisão efectiva não superiores a dois anos.

Resultando, portanto, imperiosa a ponderação da aplicação do regime mais favorável, ao abrigo do art.º 29º n.º 4 da CRepPortuguesa e art.º 2º n.º 4 do CPenal e, nesse sentido, haveria de ser dado cumprimento ao disposto no art.º 371º-A do CPP.

O que foi requerido pelo Arguido. E que foi indeferido pelo Tribunal de 1.ª Instância. Ao que se seguiu o recurso do Arguido para o Tribunal da Relação …. do dito Despacho de indeferimento.

E o Tribunal da Relação …, no ora Acórdão Recorrido, já transitado em julgado, vem entender julgar improcedente o recurso do Arguido, rejeitando a aplicação do art.º 371º-A CPP nos seguintes termos:

“Esta alteração do regime de permanência na habitação traduz a entrada em vigor de lei mais favorável.

E pode levar à reabertura da audiência, para sua aplicação, caso se verifiquem os pressupostos consagrados no mencionado artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.

Do disposto neste preceito legal decorre, como opção legislativa isenta de qualquer equívoco, que a lei mais favorável que pode ser retroactivamente aplicada é a que entra em vigor após o trânsito em julgado da condenação e antes de ter cessado a execução da pena.

Balizados por estes parâmetros, temos como evidente, face à cronologia do processo supra descrita, que não se verifica a previsão do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.

O trânsito da sentença proferida nos autos ocorreu no dia 27 de março de 2019.

A Lei n.º 94/2017 entrou em vigor em 21 de novembro de 2017 – cerca de um ano e quatro meses antes do trânsito em julgado da sentença proferida nos autos.

Todavia, porque a primeira sentença que condenou o Arguido nos presentes autos data de 13 de março de 2014 - cerca de 3 [três) anos e 8 [oito] meses antes da entrada em vigor da Lei n.º 94/2017 –, impõe-se ponderar se a tramitação do processo, mais concretamente o exercício efetivo do direito de defesa em que consiste a interposição de recurso, impediu ou não o Arguido de beneficiar de aplicação retroativa de lei penal mais favorável.

E voltando à supra descrita tramitação do processo, entendemos que o Arguido teve a possibilidade de suscitar a questão da aplicação da lei mais favorável – decorrente da alteração introduzida ao regime de permanência na habitação pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto – (i) no recurso que interpôs da sentença proferida em 25 de janeiro de 2018, e (ii) quando arguiu nulidades ao acórdão que julgou esse recurso.

O que nos permite concluir, sem necessidade de qualquer outra consideração, que não tendo a tramitação do processo prejudicado a possibilidade de o Arguido ver aplicada lei penal mais favorável, é intempestivo o requerimento que formulou, porque quando o fez se não verificavam os pressupostos consagrados no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.

A decisão recorrida não merece reparo. E o recurso improcede.

(sublinhados nossos)

Sucede porém que, a posição sufragada pelo Tribunal da Relação de Guimarães no Acórdão-Fundamento, prolatado em 24SET2018, no âmbito do proc. n.º 144/11.3TAPVL-F.G1, in www.dgsi.pt, em idênticos termos de facto e de direito, lavra por trilho diferente (transcreve-se):

“No caso vertente, aquando da prolação do acórdão pelo tribunal de primeira instância ainda não havia entrado em vigor a Lei nº 94/2017, de 23.08. Por isso, o aludido tribunal não a considerou, nem naturalmente a poderia ter considerado na sua decisão.

Porém, o referido diploma legal entretanto entrou em vigor numa altura em que se encontrava pendente o recurso interposto pelo arguido do referido acórdão. Apesar disso, certamente porque o mencionado diploma em nada contendia com o objecto do recurso – restrito à impugnação da matéria de facto - o tribunal de recurso nada disse sobre a aplicação em concreto da lei nova.

É no sobredito contexto que o arguido, aqui recorrente, após o acórdão deste Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no artigo 371º- A do CPP, requereu, perante o tribunal de 1ª instância, a aplicação da lei nova – a indicada Lei nº 94/2017, de 23.08, o que foi indeferido, sendo este o objecto do presente recurso.

Segundo o artigo 371º-A do CPP “Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”.

No entender do tribunal recorrido, o invocado artigo 371º - A do CPP não tem aplicação porque a Lei nº 94/2017, de 23.08, entrou em vigor antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, ou seja, nesse momento encontrava-se pendente recurso do aludido acórdão neste Tribunal da Relação.

Ora, desde já adiantamos não poder concordar com tal posição, a qual se baseia numa interpretação puramente literal da mencionada norma.

Na verdade, o objecto do referido recurso, como se disse, limitava-se à impugnação da matéria de facto, não tendo sido questionada a pena aplicada de 18 meses de prisão efectiva, designadamente a sua medida ou a forma da sua execução, aspectos a que se reporta a lei nova que o arguido pretende ver agora aplicada.”

Ou seja, a questão a decidir consiste em saber se a anterior pendência no Tribunal da Relação, de recurso que não se debruça sobre a questão da aplicação da lei mais favorável relativamente à condenação do Arguido, na pena única de prisão inferior a dois anos de prisão, constitui ou não obstáculo à abertura da audiência, em conformidade com o disposto no art.º 371º-A do CPP, com vista à aplicação do regime concretamente mais favorável ao arguido decorrente da entrada em vigor, na pendência daquele recurso, da Lei 94/2017 de 23AGO, em que nada foi referido sobre a aplicação de tal regime.

O Tribunal da Relação …, pelo Acórdão Recorrido, pugnou que não era admissível da aplicação do art.º 371º-A CPP.

O Tribunal da Relação de Guimarães, pelo Acórdão-Fundamento, trilhou sem sentido positivo, admitindo a abertura da audiência do art.º 371º-A CPP.

Resulta, por conseguinte, oposição de Acórdãos quanto a uma mesma questão, com idênticos pressupostos de facto e de direito, no âmbito da mesma legislação, com interpretações e decisões opostas.

Urgem, assim, a premente uniformização de jurisprudência no sentido de que a possibilidade de abertura da audiência nos termos do disposto no art.º 371º-A do CPP não fica arredada pelo facto de o trânsito em julgado da decisão condenatória ter ocorrido depois da entrada em vigor da lei nova em consequência da pendência de recurso dessa decisão, no qual nada foi referido sobre a aplicação da lei penal mais favorável ao arguido.


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É por tudo quanto supra se desenvolveu que se impõe a prolação de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência.

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Nestes termos, são a retirar as seguintes

CONCLUSÕES

1.ª

O Tribunal da Relação …. prolatou o Acórdão Recorrido, no âmbito dos presentes autos, em 19DEZ2019, o qual transitou em julgado em 17JAN2020.

2.ª

A questão a decidir consiste em saber se a anterior pendência no Tribunal da Relação, de recurso que não se debruçava sobre a questão da aplicação da lei mais favorável relativamente à condenação do Arguido, na pena única de prisão inferior a dois anos de prisão, constitui ou não obstáculo à abertura da audiência, em conformidade com o disposto no art.º 371º-A do CPP, com vista à aplicação do regime concretamente mais favorável ao arguido decorrente da entrada em vigor, na pendência daquele recurso, da Lei 94/2017 de 23AGO, em que nada foi referido sobre a aplicação de tal regime.

3.ª

O Tribunal da Relação …, no Acórdão Recorrido, pugnou que não era admissível da aplicação do art.º 371º-A CPP, em razão da extemporaneidade.

4.ª

O Tribunal da Relação de Guimarães, pelo Acórdão-Fundamento, prolatado em 24SET2018, no âmbito do proc. n.º 144/11.3TAPVL-F.G1, trilhou sem sentido positivo, admitindo a abertura da audiência do art.º 371º-A CPP, no sentido em que a anterior pendência no Tribunal da Relação, de recurso que não se debruça sobre a questão da aplicação da lei mais favorável relativamente à condenação do Arguido, na pena única de prisão inferior a dois anos de prisão, não constitui obstáculo à abertura da audiência, em conformidade com o disposto no art.º 371º-A do CPP, com vista à aplicação do regime concretamente mais favorável ao arguido decorrente da entrada em vigor, na pendência daquele recurso, da Lei 94/2017 de 23AGO, em que nada foi referido sobre a aplicação de tal regime.

5.ª

Resulta, por conseguinte, oposição de Acórdãos quanto a uma mesma questão, com idênticos pressupostos de facto e de direito, no âmbito da mesma legislação, com interpretações e decisões opostas.

6.ª

Urgem, assim, a premente uniformização de jurisprudência no sentido de que a possibilidade de abertura da audiência nos termos do disposto no art.º 371º-A do CPP não fica arredada pelo facto de o trânsito em julgado da decisão condenatória ter ocorrido depois da entrada em vigor da lei nova em consequência da pendência de recurso dessa decisão, no qual nada foi referido sobre a aplicação da lei penal mais favorável ao arguido.


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Assim, por tudo quanto se elaborou, que é a Motivação, os fundamentos e as Conclusões do presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência,

E sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., Sábios Conselheiros,

Deve ser concedido provimento ao Recurso Extraordinário para Fixação de jurisprudência interposto pelo ora Recorrente AA, nos exactos termos apresentados na Motivação e Conclusões de Recurso e, em consequência,

Proceder-se à Uniformização de Jurisprudência no sentido supra indicado.

Ao assim decidir, fará este Colendo Tribunal a devida e tão esperada JUSTIÇA!»


2. Respondeu o Ministério Público, dizendo:

«1. AA dirige requerimento ao Supremo Tribunal de justiça pretendendo, ao abrigo do disposto no art. 437° do Código de Processo Penal (CPP), interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação … de 19 de dezembro de 2019, por este, em seu entender, se mostrar em oposição com o proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 24 de setembro de 2018 (proc n.º 144/11.3TAPVL-F.G1[[1]]).

2. De harmonia com o estatuído no art. 437° do CPP, é admissível recurso extraordinário para fixação de jurisprudência quando, no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão de direito, "um tribunal de Relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça" (n.º 2).

"Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida" (n.º 3).

Só pode invocar-se, como fundamento do recurso, acórdão anterior transitado em julgado (id., n.º 4), justificando o recorrente "a oposição que origina o conflito de jurisprudência" (id., art.438°, n.°2).

De harmonia com o preceituado no n.º 1 do art. 438° do CPP, o recurso de fixação de jurisprudência "é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar."

3. A questão a apreciar consiste em saber se a anterior pendência de recurso no tribunal da Relação que não se debruça sobre a questão da aplicação da lei mais favorável relativamente a condenação de arguido em pena de prisão inferior a 2 (dois) anos, constitui ou não obstáculo à abertura da audiência para aplicação retroativa de lei penal mais favorável (art. 371 °-A, do CPP), em decorrência da entrada em vigor, na pendência daquele recurso, da Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto.

O Tribunal da Relação …, no acórdão recorrido, decidiu não ser admissível a aplicação do disposto naquele art. 371°-A, porque não se verificavam os pressupostos nele consagrados.

Já o acórdão fundamento decidiu importar ponderar sobre a possibilidade de uma pena concreta de prisão compreendida nos supra aludidos limites poder ser reapreciada, através da abertura da audiência, nos termos do dito art. 371 °-A.

4. Em conclusão: 

1.ª - Entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento ocorre, sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, oposição geradora de conflito de jurisprudência.

2.ª - Tal oposição, cuja solução/uniformização vem suscitada em tempo e por quem, para tanto, tem legitimidade e interesse em agir, justifica pronúncia, no sentido de uniformização de jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça».

3. A Ex.ma Procurador-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu o seguinte parecer (transcrição)[2]:

1. O arguido vem interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em 17.02.2020, do acórdão proferido em 19.12.2019,no processo supra referenciado, do Tribunal da Relação …, considerando que a decisão nele proferida se encontra em oposição com a decisão proferida no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24.09.2018, proferido no âmbito do processo 144/11.3TAPVL-F.S1 (dgsi.pt)

2. Alega o recorrente que a questão controvertida, ao abrigo do disposto no art.º 371º-A do CPP é a de saber se, ”após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime. Essa possibilidade não fica arredada pelo facto de o trânsito em julgado da decisão condenatória ter ocorrido depois da entrada em vigor da nova lei em consequência da pendência de recurso dessa decisão, no qual nada foi referido sobre a aplicação da lei penal mais favorável ao arguido.”

3. O Magistrado do MºPº junto do TR …. respondeu ao recurso, considerando que:

A questão a apreciar consiste em saber se a anterior pendência de recurso no tribunal da Relação que não se debruça sobre a questão da aplicação da lei mais favorável relativamente a condenação de arguido em pena de prisão inferior a 2 (dois) anos, constitui ou não obstáculo à abertura da audiência para aplicação retroativa de lei penal mais favorável (art. 371°-A do CPP), em decorrência da entrada em vigor, na pendência daquele recurso, da Lei n.º 94/2017 de 23 de agosto.

O Tribunal da Relação …, no acórdão recorrido, decidiu não ser admissível a aplicação do disposto naquele art. 371°-A, porque não se verificavam os pressupostos nele consagrados.

Já o acórdão fundamento decidiu importar ponderar sobre a possibilidade de uma pena concreta de prisão compreendida nos supra aludidos limites poder ser reapreciada, através da abertura da audiência, nos termos do dito art. 371°-A.

E considerou ocorrer, entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, oposição geradora de conflito de jurisprudência.

4. Da existência dos pressupostos formais:

4.1. Conforme resulta da certidão enviada pelo TR…, o acórdão recorrido foi notificado por termo ao MºPº e por via citius aos sujeitos processuais em 20.12.2019 (sexta feira).

Não estando em causa processo de arguido Preso, e tendo as férias judiciais de Natal decorrido de 22.12.2019 a 03.01.2020 (sexta feira, 04/01 sábado), o arguido considera-se notificado em 06.01.2020, (segunda feira).

Não admitindo o acórdão da TR…. recurso ordinário, o mesmo transitou em julgado 10 dias após a notificação ao arguido e sujeitos processuais, ou seja, em 16.01.2020.

Tendo o recurso sido interposto em 17.02.2020 (15 sábado, 16 domingo), afigura-se ter sido o mesmo tempestivamente interposto e por quem tem legitimidade, nos termos do art. 438º nº 1 e 437º, do CPP, encontra-se preenchidos os pressupostos de natureza formal de tempestividade e legitimidade para recorrer.

5. Da existência dos pressupostos substanciais

Quanto aos requisitos de natureza substancial, é jurisprudência do STJ verificar-se a oposição de julgados, quando:

a) - As asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;

b) - As decisões em oposição sejam expressas;

c) - As situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.

Mas, para além de julgado expresso, tem igualmente entendido que a existência de soluções de direito antagónicas pressupõe ainda uma identidade das situações de facto, base das decisões de direito antitéticas ou conflituantes. Isto é, a identidade ou similitude substancial dos factos constitui também condição para determinar a identidade ou a oposição de julgados.

Na expressão do Ac do STJ de 11.05.2011 (proc. 89/09.7GAGMR.G1-A.S1, 3ª S), “a exigência de oposição de julgados, de que se não pode prescindir na verificação dos pressupostos legais de admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º, n.º 1, do CPP é de considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, manifestamente de modo expresso, sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação. A estes requisitos legais, o STJ de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito – Ac. do STJ, de 10-01-2007, Proc. n.º 4042/06 - 3.ª.”

5.1. No âmbito do acórdão recorrido, proferido pelo TR...., datado de 19.12.2019, ocorreu a seguinte situação de factos/desenvolvimento processual, conforme texto do próprio acórdão:

(i) Em 13 de março de 2014 foi o Arguido AA condenado nos presentes autos, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.

(ii) Na sequência de recurso interposto pelo Arguido, o Tribunal da Relação ....., em acórdão datado de 26 de setembro de 2017, anulou a referida sentença e ordenou a sua substituição por outra onde se corrigisse a nulidade decorrente da falta de fundamentação da matéria de facto.

(iii) Em 25 de janeiro de 2018, foi proferida nova sentença onde se corrigiu a nulidade decretada e se manteve a condenação do Arguido nos termos referidos em (i).

(iv) Desta decisão o Arguido interpôs recurso, em 09.08.2018, impugnando a matéria de facto nela considerada como provada e a pena que lhe foi imposta,

Recurso que esta Relação julgou improcedente, por acórdão de 22 de janeiro de 2019.

(v) A esta decisão da Relação veio o Arguido apontar a) a nulidade decorrente de fundamentação da matéria de facto assente em prova nula – prova por reconhecimento processualmente inválido –, e b) a nulidade decorrente de omissão de pronúncia – relativa à imputação das lesões físicas suportadas pela vítima à sua conduta (do Arguido).

Arguição julgada improcedente, por acórdão datado de 19 de fevereiro de 2019.

(vi) A decisão condenatória do Arguido proferida nos autos transitou em julgado no dia 27 de março de 2019.

(vii) No dia 15 de abril de 2019, o Arguido requereu a reabertura da audiência, nos termos do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, para efeitos de aplicação de lei mais favorável – a Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, que entrou em vigor no dia 21 de novembro de 2017.    (…)

(ix) A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:

“(…) A Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto entrou em vigor no dia 21 de novembro de 2017, nos termos do seu Artigo 14.º.

A decisão condenatória transitou em julgado no dia 27-03-2019. Se por um lado é certo que a decisão de 13-03-2014 não podia contemplar a Lei 94/2017, por outro lado, e em abono da verdade, foi proferida uma nova sentença, a suprir a nulidade assacada, em 25-01-2018, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 94/2017. Deste modo, a douta sentença de 25-01-2018, confirmada pelo Trib. da Relação …, foi proferida num contexto legal em que a pena de prisão não superior a dois anos era suscetível de cumprimento em regime de permanência na habitação. Com efeito a decisão de 25-01-2018 deveria ter considerado a Lei 94/2017, de 23 de agosto, porque estava em causa o disposto no art.º 2.º, n.º 4, 1.ª parte, do Cód. Penal, “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”.

Acresce que o acórdão constante de fls. 801 a 828 incide sobre a impugnação da pena, após a entrada em vigor da Lei 94/2017 e, sobretudo, sobre a aplicação de uma pena de substituição, concluindo que “(…) se confirma a correção formal e material do processo de aplicação da pena desenvolvido na sentença e de todo o iter ali percorrido”. Conclui-se assim estar esgotado o poder jurisdicional para a apreciação da lei mais favorável nos termos pugnados pelo arguido.

De todo o modo, importará realçar que dispõe o art.º 371.º-A do Código de Processo Penal “Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”. Ora, após o trânsito em julgado não entrou em vigor nenhuma lei de conteúdo mais favorável ao arguido. Conforme veiculado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 264/2008 (Guerra Martins), “no que diz respeito às ações penais em que já exista condenação transitada em julgado, o legislador gizou um sistema dual e articulado que pressupõe: i) por um lado, a aplicação automática da “lex mitior”, mediante a cessação instantânea da execução da pena privativa de liberdade, quando, tendo a nova lei penal de conteúdo mais favorável envolvido uma diminuição do limite máximo previsto na moldura abstrata, o agente já tenha cumprido a pena correspondente a esse limite (cfr. artigo 2.º, n.º 4, “in Fine”, do CP); ii) por outro lado, a necessidade de reabertura da audiência, nos restantes casos, para efeitos de aplicação de lei penal de conteúdo mais favorável quando o arguido ainda não tenha cumprido o novo limite máximo da pena de prisão aplicável ao crime em causa (cfr. artigo 371.º-A do CPP).”.

Com efeito, não entrando em vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido e após esta ter formado caso julgado material, uma lei penal que, eventualmente, se apresente como mais favorável em concreto, não pode ser requerida a reabertura da audiência nos termos do art.º 371.º-A do C.P.P., para apreciar uma questão a decidir na sentença e, caso assim não o fosse, no recurso apresentado pelo arguido da mesma e/ou no acórdão que versou sobre aquela decisão, todos eles posteriores à nova lei.

(…) Nos termos expostos, decide-se indeferir o requerido a fls. 886 a 895. (…)»

Interposto recurso pelo arguido para o TR...., veio a ser proferido o Acórdão de 19.12.2019 (acórdão recorrido), no âmbito do qual se considerou:

“O trânsito da sentença proferida nos autos ocorreu no dia 27 de março de 2019.

A Lei n.º 94/2017 entrou em vigor em 21 de novembro de 2017 – cerca de um ano e quatro meses antes do trânsito em julgado da sentença proferida nos autos.

Todavia, porque a primeira sentença que condenou o Arguido nos presentes autos data de 13 de março de 2014 - cerca de 3 [três) anos e 8 [oito] meses antes da entrada em vigor da Lei n.º 94/2017 –, impõe-se ponderar se a tramitação do processo, mais concretamente o exercício efetivo do direito de defesa em que consiste a interposição de recurso, impediu ou não o Arguido de beneficiar de aplicação retroativa de lei penal mais favorável.


E voltando à supra descrita tramitação do processo, entendemos que o Arguido teve a possibilidade de suscitar a questão da aplicação da lei mais favorável – decorrente da alteração introduzida ao regime de permanência na habitação pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto – (i) no recurso que interpôs da sentença proferida em 25 de janeiro de 2018, e (ii) quando arguiu nulidades ao acórdão que julgou esse recurso.

O que nos permite concluir, sem necessidade de qualquer outra consideração, que não tendo a tramitação do processo prejudicado a possibilidade de o Arguido ver aplicada lei penal mais favorável, é intempestivo o requerimento que formulou, porque quando o fez se não verificavam os pressupostos consagrados no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.

E decidiu “negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a decisão recorrida.”

(sublinhados da signatária)


2. Por seu turno, no âmbito do acórdão fundamento, proferido no Tribunal da Relação de Guimarães, em 24.09.2018, é a seguinte a situação fática/processual:

Em sede de tribunal de 1ª instância, o arguido foi condenado, por acórdão de 30.05.2017, na pena única de 18 (dezoito) meses de prisão efetiva.

O arguido interpôs recurso do aludido acórdão condenatório, invocando como único fundamento a ocorrência de erro de julgamento da matéria de facto. Este recurso foi decidido por acórdão do TRG de 04.12.2017, tendo sido negado provimento ao recurso e confirmado o acórdão recorrido, nele não fazendo qualquer alusão sobre a aplicação da Lei nº 94/2017 de 23.08.

Uma vez remetidos os autos ao tribunal de primeira instância, o arguido, ao abrigo do disposto no artigo 371º-A do CPP, requereu a abertura da audiência para aplicação da lei mais favorável – Lei nº 94/2017 de 23.08, a qual entrou em vigor 90 dias após a sua publicação – o que foi indeferido por despacho datado de 05.03.2018, pelos seguintes fundamentos:

“Por requerimento de fls. 1694 e ss., veio o condenado F. G. requerer "a reabertura da audiência para aplicação da lei penal mais favorável", nos termos do disposto no art.° 371°-A do CPP.

Tendo sido condenado numa pena de 18 meses de prisão, pretende ver aplicada a disposição prevista 43° do CP, na redação da Lei n.º 94/2017, de 23.08, de modo a poder cumprir em regime de permanência na habitação a pena que lhe foi imposta.

O art.° 371°-A do CPP, sob a epígrafe "Abertura da audiência para aplicação retroactiva de lei penal mais favorável", dispõe que "Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.".

Supõe, portanto, como requisito de reabertura da audiência, que a lei penal mais favorável tenha entrado em vigor depois do trânsito em julgado da condenação.

No caso concreto, o requerente foi condenado, em primeira instância, por decisão de 30.05.2017.

Tendo interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, viu a decisão confirmada por Acórdão de 04.12.2017.

A Lei n.º 94/2017, de 23.08 - resulta do seu art.° 14° - entrou em vigor 90 dias após a sua publicação (ou seja, 90 dias após 23 de agosto de 2017).

Conclui-se, deste modo, que na data em que foi proferido o Acórdão do Tribunal da Relação de fls. 1495 e ss. e, por maioria de razão, transitou em julgado a decisão final, já estava em vigor a Lei n.º 94/2017, de 23.08, não estando deste modo reunidos os requisitos a que alude o art.° 371º-A do CPP para que seja reaberta a audiência com vista à aplicação de lei penal mais favorável.

Neste contexto, vai indeferido o requerimento de fls. 1694 e ss ...”

Interposto recurso de tal decisão, o TRG (acórdão fundamento) decidiu com os seguintes fundamentos :

“O recorrente centra o objecto do recurso na violação do disposto no artigo 29º, nº 4 da CRP, o qual estatui que “Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”.

A propósito da referida norma, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (2), “Se é proibida a aplicação retroactiva da lei penal desfavorável, já é obrigatória a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (n.º 4, 2.ª parte). Se o legislador deixa de considerar criminalmente censurável uma determinada conduta, ou passa a puni-la menos severamente, então essa nova valoração legislativa deve aproveitar a todos, mesmo aos que já tinham cometido tal crime. Este princípio compreende também duas vertentes: (a) que deixa de ser considerado crime o facto que lei posterior venha despenalizar; e (b) que um crime passa a ser menos severamente punido do que era no momento da sua prática, se lei posterior o sancionar com pena mais leve.

Não estabelecendo a Constituição qualquer excepção, a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (despenalização, penalização menor, etc.) há-de valer, ao menos ao princípio, mesmo para os casos julgados, com a consequente reapreciação da questão (…)”.

Em concretização do referido princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (lex mellior), o artigo 2º, nº 4 do CP estabelece que “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.”

No caso vertente, aquando da prolação do acórdão pelo tribunal de primeira instância ainda não havia entrado em vigor a Lei nº 94/2017, de 23.08. Por isso, o aludido tribunal não a considerou, nem naturalmente a poderia ter considerado na sua decisão.

Porém, o referido diploma legal entretanto entrou em vigor numa altura em que se encontrava pendente o recurso interposto pelo arguido do referido acórdão. Apesar disso, certamente porque o mencionado diploma em nada contendia com o objecto do recurso – restrito à impugnação da matéria de facto - o tribunal de recurso nada disse sobre a aplicação em concreto da lei nova.

É no sobredito contexto que o arguido, aqui recorrente, após o acórdão deste Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no artigo 371º- A do CPP, requereu, perante o tribunal de 1ª instância, a aplicação da lei nova – a indicada Lei nº 94/2017, de 23.08, o que foi indeferido, sendo este o objecto do presente recurso.

Segundo o artigo 371º-A do CPP “Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”.

No entender do tribunal recorrido, o invocado artigo 371º - A do CPP não tem aplicação porque a Lei nº 94/2017, de 23.08, entrou em vigor antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, ou seja, nesse momento encontrava-se pendente recurso do aludido acórdão neste Tribunal da Relação.

Ora, desde já adiantamos não poder concordar com tal posição, a qual se baseia numa interpretação puramente literal da mencionada norma.

Na verdade, o objecto do referido recurso, como se disse, limitava-se à impugnação da matéria de facto, não tendo sido questionada a pena aplicada de 18 meses de prisão efectiva, designadamente a sua medida ou a forma da sua execução, aspectos a que se reporta a lei nova que o arguido pretende ver agora aplicada.

Por isso, o tribunal de recurso estava impedido de se pronunciar sobre tal matéria, sem prejuízo naturalmente do dever de retirar da procedência do recurso as consequências legalmente impostas a toda a decisão recorrida, cfr. artigos 403º e 412º, nº 1 do CPP. O que não foi o caso, uma vez que o recurso foi julgado totalmente improcedente e, consequentemente, mantida a decisão recorrida.

É claro que não se olvida, quanto estejam em causa decisões não transitadas em julgado, o dever de aplicar, oficiosamente e imediatamente, o regime concretamente mais favorável ao arguido, em conformidade com o disposto nos artigos 13º e 29º, nº 4 da CRP e do artigo 2º, nº 4 do C.Penal.

Explicadas e contextualizadas as circunstâncias que conduziram à não ponderação da aplicação do regime da lei nova, o facto de ter ocorrido o trânsito em julgado não é disso impeditivo.

De facto, o artigo 371º-A do CPP, como é sabido, visou apenas eliminar a inconstitucionalidade decorrente de anteriormente o caso julgado impedir a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido.

Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 109/X, que deu origem à Lei nº 48/2007, de 29.08, que posteriormente aditou ao Código de Processo Penal o artigo 371º-A pode ler-se «Por fim prescreve-se a abertura de audiência para aplicar novo regime mais favorável ao condenado sempre que a lei penal mais favorável não tenha determinado a cessação da execução da pena (art. 271º-A). Esta solução é preferível à utilização espúria do recurso extraordinário de revisão ou à subversão dos critérios de competência funcional (que resultaria da atribuição de competência para julgar segundo a nova lei ao tribunal de execução de penas).».

Os pressupostos de aplicação do artigo 371º-A do CPP são: - A existência de uma sentença condenatória transitada em julgado; - A existência de uma pena em execução; e -o impulso processual do condenado.

De forma que, tal como o referido pelo Exmo Senhor Procurador - Geral Adjunto, no seu parecer, nos casos em que o arguido, como o dos presentes autos, não dispôs de um espaço processual próprio e adequado para suscitar a possibilidade de aplicação da lei nova, deverá ser possível a recurso à abertura da audiência em conformidade com o disposto no aludido preceito do CPP.

O arguido encontra-se condenado, por decisão transitada em julgado, na pena de 18 meses de prisão efectiva. O tribunal da condenação ponderou a substituição da pena de prisão pelas penas de substituição de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º do C.P.) e de suspensão da sua execução (artigo 50º do C.P.), mas afastou a aplicação de ambas, decidindo-se pela aplicação da pena de prisão efectiva.

Ora, face à dimensão da pena de 18 meses de prisão, aquando da decisão condenatória, mostravam-se esgotadas todas as possibilidades de substituição da pena de prisão.

Acontece que posteriormente entrou em vigor a Lei nº 94/2017, de 23.08, a qual além do mais, prevê a possibilidade de a pena de prisão efectiva não superior a 2 anos (este limite anteriormente era de 1 ano) seja executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, cfr. artigo 43º, nº 1 al. a) do CP.

Assim, a menos que existam outras penas de prisão em que o arguido tenha sido condenado e que importe englobar através da realização de cúmulo jurídico em que o limite dos 2 anos de prisão seja ultrapassado, importa ponderar sobre a possibilidade daquela pena de 18 meses de prisão efectiva ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, de acordo com o previsto no artigo 43º, nº 1 al. a) do CP, na redacção decorrente da entrada em vigor da Lei nº 94/97, de 23.08, através da abertura da audiência, nos termos do disposto no artigo 371º - A do CPP.

Essa possibilidade não fica arredada pelo facto de o trânsito em julgado da decisão condenatória ter ocorrido depois da entrada em vigor da lei nova em consequência da pendência de recurso dessa decisão, no qual nada foi referido sobre a aplicação da lei penal mais favorável ao arguido.

E decidiu:

“Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do TRG em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido, revogando-se o despacho recorrido, devendo o tribunal de primeira instância proceder à abertura da audiência, em conformidade com o disposto no artigo 371º-A do CPP, com vista a ponderar sobre a aplicação do regime decorrente do artigo 43º, nº 1 al. a) do C. Penal, na redacção da Lei nº 94/2017, de 23.08, sem prejuízo do apuramento de outras penas em que o arguido tenha sido condenado e em que importe proceder à realização de cúmulo jurídico com a pena dos presentes autos.

(sublinhados da signatária)


6. Da verificação de não oposição de julgados:

6.1. Como supra se referiu, no âmbito do acórdão recorrido, proferido pelo TR...., datado de 19.12.2019, a situação factual/processual foi a de, já após a entrada em vigor da Lei 94/2017 de 23.08, o arguido ter tido a possibilidade de suscitar a questão da aplicação da lei mais favorável, decorrente da alteração introduzida ao regime de permanência na habitação pela citada Lei n.º 94/2017

 i) no novo recurso que interpôs, em 09.08.2018, da sentença proferida em 1ª instância datada de 25.01.2018, tendo o arguido/recorrente impugnado matéria de facto e a medida da pena aplicada; e

(ii) quando arguiu nulidades ao acórdão do TR..... que julgou esse recurso, acórdão proferido em 22.01.2019.

Ou seja, o arguido teve duas oportunidades processuais para suscitar a aplicação da lei penal mais favorável, Lei 94/2017, nos sucessivos recursos que interpôs, já depois da entrada em vigor, em 23.11.2017, da citada Lei: no novo recurso que interpôs, em 09.08.2018, da nova sentença proferida em 1ª instância; quando arguiu nulidades do acórdão do TR..... proferido em 22.01.2019, as quais foram julgadas improcedentes por acórdão do TR..... de 19.02.2019.

Tal situação factual /processual levou o TR... a considerar que “não tendo a tramitação do processo prejudicado a possibilidade de o Arguido ver aplicada lei penal mais favorável, ser intempestivo o requerimento que formulou [em 15.04.2019], porque quando o fez se não verificavam os pressupostos consagrados no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida.”

6.2. No acórdão fundamento, do TRG, a situação factual/processual é distinta: o arguido/recorrente não teve oportunidade processual para suscitar a possibilidade de aplicação da lei mais favorável, decorrente da alteração introduzida ao regime de permanência na habitação pela Lei n.º 94/2017 de 23.08.

A sentença de 1ª instância foi proferida em 30.05.2017, ou seja antes da entrada em vigor da Lei 94/2017, que ocorreu em 23.11.2017.

O arguido interpôs recurso da sentença de 1ª instância invocando, como único fundamento, a ocorrência de erro de julgamento em sede de matéria de facto, não tendo sido questionada a pena aplicada, de 18 meses de prisão efetiva, vindo o TRG a confirmar o acórdão recorrido.

A citada Lei 94/2017, que alargou a possibilidade de “execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação para as condenações em prisão efetiva não superior a 2 anos de prisão”, entrou em vigor numa altura em que se encontrava pendente, no TRG, o recurso interposto pelo arguido da sentença de 1ª instância.

É nesse contexto que o arguido, após o acórdão do TRG de 04.12.2017, ao abrigo do disposto no art. 371º-A do CPP, requereu a aplicação da lei nova.

Ou seja, o arguido apenas teve possibilidade de suscitar tal questão, ao abrigo do disposto no art. 371º-A do CPP, após a prolação do acórdão do TRG datado de 04.12.2017 que conheceu do inicial recurso interposto do acórdão de 1ª instância proferido em 30.05.2017.

Tais distintas situações factuais levaram à prolação de distintas soluções em cada um dos acórdãos em confronto, não podendo afirmar-se a existência de oposição de julgados entre os mesmos.

Para efeitos do disposto no art. 371º-A do CPP, embora se constate, em ambos os acórdãos, ter entrado em vigor lei penal mais favorável antes do trânsito em julgado de qualquer das decisões, verifica-se existirem situações factuais/processuais distintas em cada um dos acórdãos:

a) na situação factual do acórdão recorrido (TR....), o arguido dispôs de várias oportunidades processuais para suscitar a aplicação de lei penal mais favorável decorrente da alteração introduzida ao regime de permanência na habitação pela Lei 94/2017, após a entrada em vigor da mesma, ocorrida em 23.11.2017:

i) no novo recurso que interpôs para o TR..., em 09.08.2018, da nova sentença de 1ª instância datada de 25.01.2018, em que impugnou a matéria de facto nela provada e a pena que lhe foi imposta; e

ii) quando arguiu nulidades do acórdão do TR.... proferido em 22.01.2019.

Em nenhuma dessas oportunidades processuais o arguido requereu a aplicação da lei penal mais favorável. Transitado em julgada a decisão dos autos em 27.03.2019, apenas em 15.04.2019 o arguido requereu a reabertura da audiência, nos termos do artigo 371.º-A do CPP, para efeitos de aplicação de lei mais favorável – a Lei n.º 94/2017, de 23.08, que entrou em vigor no dia 23.11. 2017.

b) no acórdão fundamento (do TRG), o arguido não dispôs de espaço processual próprio e adequado para suscitar a possibilidade de aplicação da lei penal mais favorável decorrente da alteração introduzida ao regime de permanência na habitação pela Lei n.º 94/2017 de 23.08 que entrou em vigor em 23.11.2017. O arguido apenas teve tal oportunidade processual após a prolação do acórdão do TRG de 04.12.2017, que conheceu do recurso interposto pelo arguido da sentença de 1ª instância, datada de 30.05.2017 (ocorrida antes da entrada em vigor da citada Lei 94/2017), recurso circunscrito a impugnação de matéria de facto.

Tais distintas situações factuais/processuais vieram a ditar distintas decisões em cada um dos acórdãos em confronto, não ocorrendo identidade de situações de facto.

7. Pelo exposto, por inexistência de oposição de julgados, o recurso em causa deverá, em conferência, ser rejeitado- arts.  441º nº 1 do CPP.»

4. Com dispensa de vistos e presentes os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. Enquadramento jurídico

1.1. O recurso para fixação de jurisprudência tem como objectivo a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.

O artigo 437.º do Código de Processo Penal, doravante CPP, enuncia o fundamento do recurso, dispondo:

«Artigo 437.º

Fundamento do recurso

1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou as partes civis podem recorrer, para o pleno das secções criminais, do proferido em último lugar.

2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5. O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.»

O artigo 438.º do mesmo Código dispõe sobre a interposição e o efeito deste recurso, nos seguintes termos:

«Artigo 438.º

Interposição e efeito

1. O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2. No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição e, se este estiver publicado, o lugar ad publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

3. O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.»

1.2. Destes preceitos, extrai-se que a lei faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial.

Acompanhando o acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-10-2011 (Proc. 1455/09.3TABRR.L1-A.S1 – 3.ª Secção[3],


Entre os pressupostos de natureza formal, contam-se:

- A interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido;

- A identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre e oposição;

- Se este estiver publicado, o lugar da publicação;

- O trânsito em julgado de ambas as decisões;

- A legitimidade do recorrente, restrita ao MP, ao arguido, ao assistente e às partes civis.

  Constituem pressupostos de ordem substancial:

- A justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência;

- A verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões.      


     Ainda segundo o mesmo acórdão:

«A exigência de oposição de julgados, de que não se pode prescindir na verificação dos pressupostos legais de admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º, n.º 1, do CPP, é de considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, manifestamente de modo expresso, sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação.

A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito - Acº do STJ 10-01-2007, Proc. n.º 4042/06 - 3.ª Secção.

Sendo o recurso de fixação de jurisprudência um recurso extraordinário e, por isso, excepcional, é entendimento comum deste Supremo Tribunal (v. desde logo o Ac. de 23 de Janeiro de 2003, processo n.º 1775/02-5ª), que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras tal recurso, deve fazer-se com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) por essa excepcionalidade.»

A oposição relevante de acórdãos ocorrerá quando existam nas decisões em confronto soluções de direito antagónicas e, não apenas, contraposição de fundamentos ou de afirmações, soluções de direito expressas e não implícitas, soluções jurídicas tomadas a título principal e não secundário.

Importa ainda que se esteja perante a mesma questão de direito. E isso só ocorrerá quando se recorra às mesmas normas, reclamadas para aplicar a uma certa situação fáctica, e elas forem interpretadas de modo diferente.

Interessa pois que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes, para o que releva no desencadeamento da aplicação das mesmas normas.

Como se lê no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal, de 10-02-2010 (proc. n.º 583/02.0TALRS.C.L1.A.S1 – 3.ª Secção), «a oposição relevante de acórdãos só se verifica quando, nos acórdãos em confronto, existam soluções de direito antagónicas e, não apenas, contraposição de fundamentos ou de afirmações, soluções de direito expressas e não implícitas, soluções jurídicas tomadas a título principal e não secundário».

Ao mesmo tempo, «as soluções de direito devem reportar-se a uma mesma questão fundamental de direito, no quadro da mesma legislação aplicável e de uma mesma identidade de situações de facto».

Numa síntese da doutrina que o Supremo Tribunal de Justiça vem perfilhando quanto aos requisitos substanciais, considerou-se no acórdão de 19-06-2013 (proc. n.º 140/08.8TAGVA.L1-A.S1 – 3.ª Secção) que eles se verificam quando:

- as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;

- as decisões em oposição sejam expressas;

- as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.

A expressão «soluções opostas» contida no n.º 1, do artigo 437.º do CPP, pressupõe que nos dois acórdãos a situação de facto seja idêntica uma vez que a decisão da questão de direito não pode ser desligada do substrato factual sobre a qual incide.

Daí que, justamente, se considere que a identidade ou similitude substancial dos factos constitua também condição para determinar a identidade ou a oposição de julgados.

A exigência de uma identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos em conflito decorre, aliás, de só assim ser possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito foram adoptadas soluções opostas.


2. Apreciação

 Posto isto, importa indagar da verificação dos requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto, isto é, da sua admissibilidade, do seu regime e da existência de oposição entre julgados (artigo 440.º, n.º 3, do CPP).


2.1. Pressupostos de natureza formal

Este recurso foi interposto pelo arguido que dispõe de legitimidade, nos termos do n.º 5 do artigo 437.º do CPP.

E foi interposto tempestivamente: conforme certidão emitida pelo Tribunal da Relação ..., o acórdão recorrido foi notificado por termo ao MºPº e por via citius aos sujeitos processuais em 20.12.2019. Não estando em causa processo de arguido Preso, e tendo as férias judiciais de Natal decorrido de 22.12.2019 a 03.01.2020 (sexta feira, 04/01 sábado), o arguido considera-se notificado em 06.01.2020, (segunda feira). Não admitindo o acórdão da TR ... recurso ordinário, o mesmo transitou em julgado 10 dias após a notificação ao arguido e sujeitos processuais, ou seja, em 16.01.2020.

Tendo o recurso sido interposto em 17.02.2020 (15 sábado, 16 domingo), o mesmo foi tempestivamente interposto.

 É indicado, como acórdão fundamento, o proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 24 de Setembro de 2018, no processo n.º 144/11.3TAPVL-E.G1, publicado nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, www.dgsi.pt.

Os pressupostos de natureza formal encontram-se, pois, presentes, cumprindo agora apurar da verificação dos pressupostos de natureza substancial, tarefa a empreender de seguida.


2.2. Pressupostos de natureza substancial

Importa indagar, pois, se os pressupostos de natureza substancial – oposição de acórdãos, identidade da legislação à luz da qual as respectivas decisões antagónicas foram proferidas e uma conjugação factual idêntica em ambos os acórdãos.

2.2.1. O acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação ..... no âmbito de recurso interposto pelo arguido, ora recorrente, da decisão proferida em 25 de Maio de 2019 no Juízo Local Criminal de …. – Juiz … – da Comarca de …., que indeferiu o pedido que formulara com vista à reabertura da audiência para aplicação de lei penal de conteúdo mais favorável, mais concretamente, da Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto, em vigor desde 21 de Novembro de 2017, permitindo, por via da alteração introduzida ao artigo 43.º do Código Penal, que o regime de permanência na habitação seja aplicável a penas até 2 anos quando, na anterior versão, o limite estava fixado em pena de prisão não superior a um ano.

É o seguinte o teor dessa decisão, reproduzido no acórdão recorrido:

 «Nos presentes autos o arguido encontra-se condenado numa pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão por decisão proferida em 25-01-2018 (conf. fls. 675 dos autos), a qual foi confirmada pelo acórdão do Trib. Relação …. e que veio a transitar em julgado no dia 27-03-2019. Neste conspecto importa consignar que a decisão primeiramente proferida nos autos foi anulada, conforme acórdão constante de fls. 631 a 642.

Em 15 de abril de 2019, o arguido veio requerer a aplicação da lei mais favorável alegando, em síntese, que aquando a prolação da sentença em 1.ª instância nos presentes autos ainda não havia sido publicada e tampouco entrado em vigor a Lei n.º 94/2007, de 23 de agosto e a sentença que foi proferida em 25 de janeiro de 2018 apenas supriu o vício de nulidade de sentença por falta de fundamentação da matéria de facto e também se não pronunciou ou ponderou acerca da alteração legislativa que veio introduzir a nova versão do art.º 43.º do Código Penal.

Cumpre apreciar e decidir a situação descrita.

A Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto entrou em vigor no dia 21 de novembro de 2017, nos termos do seu Artigo 14.º.

A decisão condenatória transitou em julgado no dia 27-03-2019. Se por um lado é certo que a decisão de 13-03-2014 não podia contemplar a Lei 94/2017, por outro lado, e em abono da verdade, foi proferida uma nova sentença, a suprir a nulidade assacada, em 25-01-2018, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 94/2017. Deste modo, a douta sentença de 25-01-2018, confirmada pelo Trib. da Relação …, foi proferida num contexto legal em que a pena de prisão não superior a dois anos era suscetível de cumprimento em regime de permanência na habitação. Com efeito a decisão de 25-01-2018 deveria ter considerado a Lei 94/2017, de 23 de agosto, porque estava em causa o disposto no art.º 2.º, n.º 4, 1.ª parte, do Cód. Penal, “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”. Acresce que o acórdão constante de fls. 801 a 828 incide sobre a impugnação da pena, após a entrada em vigor da Lei 94/2017 e, sobretudo, cobre a aplicação de uma pena de substituição, concluindo que “(…) se confirma a correção formal e material do processo de aplicação da pena desenvolvido na sentença e de todo o iter ali percorrido.”. Conclui-se assim estar esgotado o poder jurisdicional para a apreciação da lei mais favorável nos termos pugnados pelo arguido.

De todo o modo, importará realçar que dispõe o art.º 371.º-A do Código de Processo Penal “Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”. Ora, após o trânsito em julgado não entrou em vigor nenhuma lei de conteúdo mais favorável ao arguido. Conforme veiculado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 264/2008 (Guerra Martins), “no que diz respeito às ações penais em que já exista condenação transitada em julgado, o legislador gizou um sistema dual e articulado que pressupõe: i) por um lado, a aplicação automática da “lex mitior”, mediante a cessação instantânea da execução da pena privativa de liberdade, quando, tendo a nova lei penal de conteúdo mais favorável envolvido uma diminuição do limite máximo previsto na moldura abstrata, o agente já tenha cumprido a pena correspondente a esse limite (cfr. artigo 2.º, n.º 4, “in Fine”, do CP); ii) por outro lado, a necessidade de reabertura da audiência, nos restantes casos, para efeitos de aplicação de lei penal de conteúdo mais favorável quando o arguido ainda não tenha cumprido o novo limite máximo da pena de prisão aplicável ao crime em causa (cfr. artigo 371.º-A do CPP).”.

Com efeito, não entrando em vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido e após esta ter formado caso julgado material, uma lei penal que, eventualmente, se apresente como mais favorável em concreto, não pode ser requerida a reabertura da audiência nos termos do art.º 371.º-A do C.P.P., para apreciar uma questão a decidir na sentença e, caso assim não o fosse, no recurso apresentado pelo arguido da mesma e/ou no acórdão que versou sobre aquela decisão, todos eles posteriores à nova lei.

Aliás, conforme o acórdão do Trib. da Relação de Coimbra, de 07-12-2016, disponível in dgsi.pt, “A abertura da audiência para aplicação retroativa de lei penal mais favorável, nos termos do art.º 371.º-A do C.P.P. apenas se aplica às situações em que já ocorreu o trânsito em julgado da decisão condenatória e, antes de ter cessado a sua execução, entrou em vigor uma lei mais favorável.”

Nos termos expostos, decide-se indeferir o requerido a fls. 886 a 895.

(…)»


Importa, para a devida compreensão da situação apreciada naquela decisão, registar os seguintes elementos, igualmente condensados no acórdão recorrido:

«(i) Em 13 de março de 2014 foi o Arguido AA condenado nos presentes autos, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.

(ii) Na sequência de recurso interposto pelo Arguido, o Tribunal da Relação ...., em acórdão datado de 26 de setembro de 2017, anulou a referida sentença e ordenou a sua substituição por outra onde se corrigisse a nulidade decorrente da falta de fundamentação da matéria de facto.

(iii) Em 25 de janeiro de 2018, foi proferida nova sentença onde se corrigiu a nulidade decretada e se manteve a condenação do Arguido nos termos referidos em (i).

(iv) Desta decisão o Arguido interpôs recurso, impugnando a matéria de facto nela considerada como provada e a pena que lhe foi imposta,

Recurso que esta Relação julgou improcedente, por acórdão de 22 de janeiro de 2019.

(v) A esta decisão da Relação veio o Arguido apontar a) a nulidade decorrente de fundamentação da matéria de facto assente em prova nula – prova por reconhecimento processualmente inválido –, e b) a nulidade decorrente de omissão de pronúncia – relativa à imputação das lesões físicas suportadas pela vítima à sua conduta (do Arguido).

Arguição julgada improcedente, por acórdão datado de 19 de fevereiro de 2019.

(vi) A decisão condenatória do Arguido proferida nos autos transitou em julgado no dia 27 de março de 2019.

(vii) No dia 15 de abril de 2019, o Arguido requereu a reabertura da audiência, nos termos do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, para efeitos de aplicação de lei mais favorável – a Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, que entrou em vigor no dia 21 de novembro de 2017.

(iviii) Requerimento este a que o Ministério Público aderiu.

(ix) A decisão recorrida tem o seguinte teor [supra transcrito].

[…]

Importa ter ainda presente que no dia 21 de novembro de 2017 entrou em vigor a Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, que alterou a redação do artigo 43.º do Código Penal, por forma a que o regime de permanência na habitação fosse aplicável a penas até 2 (dois) anos de prisão.»

Conhecendo da questão, lê-se no acórdão recorrido:

«Dispõe-se no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, a propósito da reabertura da audiência para aplicação retroativa de lei penal mais favorável,

“Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”

A Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, alterou, entre o mais, o regime de permanência na habitação consagrado no Código Penal.

Na parte que nos importa, fixou-se num máximo de 2 (dois) anos a pena de prisão efetiva que pode ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização com meios técnicos de controlo à distância, sempre que o Tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir.

Até então, a pena de prisão suscetível de ser executada em regime de permanência na habitação não podia ultrapassar 1 (um) ano.

A Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto entrou em vigor no dia 21 de novembro de 2017.

Esta alteração do regime de permanência na habitação traduz a entrada em vigor de lei mais favorável.

E pode levar à reabertura da audiência, para sua aplicação, caso se verifiquem os pressupostos consagrados no mencionado artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.

Do disposto neste preceito legal decorre, como opção legislativa isenta de qualquer equívoco, que a lei mais favorável que pode ser retroativamente aplicada é a que entra em vigor após o trânsito em julgado da condenação e antes de ter cessado a execução da pena.

Balizados por estes parâmetros, temos como evidente, face à cronologia do processo supra descrita, que não se verifica a previsão do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.

O trânsito da sentença proferida nos autos ocorreu no dia 27 de março de 2019.

A Lei n.º 94/2017 entrou em vigor em 21 de novembro de 2017 – cerca de um ano e quatro meses antes do trânsito em julgado da sentença proferida nos autos.

Todavia, porque a primeira sentença que condenou o Arguido nos presentes autos data de 13 de março de 2014 - cerca de 3 [três) anos e 8 [oito] meses antes da entrada em vigor da Lei n.º 94/2017 –, impõe-se ponderar se a tramitação do processo, mais concretamente o exercício efetivo do direito de defesa em que consiste a interposição de recurso, impediu ou não o Arguido de beneficiar de aplicação retroativa de lei penal mais favorável.

E voltando à supra descrita tramitação do processo, entendemos que o Arguido teve a possibilidade de suscitar a questão da aplicação da lei mais favorável – decorrente da alteração introduzida ao regime de permanência na habitação pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto – (i) no recurso que interpôs da sentença proferida em 25 de janeiro de 2018, e (ii) quando arguiu nulidades ao acórdão que julgou esse recurso.

O que nos permite concluir, sem necessidade de qualquer outra consideração, que não tendo a tramitação do processo prejudicado a possibilidade de o Arguido ver aplicada lei penal mais favorável, é intempestivo o requerimento que formulou, porque quando o fez se não verificavam os pressupostos consagrados no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.

A decisão recorrida não merece reparo.

E o recurso improcede.»

2.2.2. O acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 24 de Setembro de 2018, respeita a arguido condenado, por acórdão de 30.05.2017, confirmado pelo acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 04.12.2017, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão efectiva.

Uma vez remetidos os autos ao tribunal de primeira instância, o identificado arguido, ao abrigo do disposto no artigo 371º-A do CPP, requereu a abertura da audiência para aplicação da lei mais favorável – Lei nº 94/2017 de 23.08, a qual entrou em vigor 90 dias após a sua publicação – o que foi indeferido.

Não se conformando com tal decisão de indeferimento, dela interpôs recurso aquele arguido.

O dito acórdão indicado como fundamento delimita a questão a decidir, consistindo a mesma em «saber se a anterior pendência, neste Tribunal da Relação, de recurso visando exclusivamente a impugnação ampla da matéria de facto, relativa à condenação do arguido, aqui recorrente, na pena única de 18 meses de prisão efectiva, constitui ou não obstáculo à abertura da audiência, em conformidade com o disposto no artigo 371º-A do CPP, com vista à aplicação do regime concretamente mais favorável ao arguido decorrente da entrada em vigor, na pendência daquele recurso, da Lei nº 94/2017, de 23.08, em que nada foi referido sobre a aplicação de tal regime».

Na sequência, lê-se no mesmo acórdão:

«2. A decisão recorrida

2.1- O despacho recorrido, datado de 05.03.2018, tem o seguinte teor [transcrição]:

“PIs. 1694 e ss.:

Por requerimento de fls. 1694 e ss., veio o condenado F. G. requerer "a reabertura da audiência para aplicação da lei penal mais favorável", nos termos do disposto no art.° 371°-A do CPP.

Tendo sido condenado numa pena de 18 meses de prisão, pretende ver aplicada a disposição prevista 43° do CP, na redação da Lei n.º 94/2017, de 23.08, de modo a poder cumprir em regime de permanência na habitação a pena que lhe foi imposta.

Vejamos.

O art.° 371°-A do CPP, sob a epígrafe "Abertura da audiência para aplicação retroactiva de lei penal mais favorável", dispõe que "Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.".

Supõe, portanto, como requisito de reabertura da audiência, que a lei penal mais favorável tenha entrado em vigor depois do trânsito em julgado da condenação.

No caso concreto, o requerente foi condenado, em primeira instância, por decisão de 30.05.2017 (cfr. fls. 1206 e ss.).

Tendo interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, viu a decisão confirmada por Acórdão de 04.12.2017 (cfr. fls. 1495 e ss.).

A Lei n.º 94/2017, de 23.08 - resulta do seu art.° 14° - entrou em vigor 90 dias após a sua publicação (ou seja, 90 dias após 23 de agosto de 2017).

Conclui-se, deste modo, que na data em que foi proferido o Acórdão do Tribunal da Relação de fls. 1495 e ss. e, por maioria de razão, transitou em julgado a decisão final, já estava em vigor a Lei n.º 94/2017, de 23.08, não estando deste modo reunidos os requisitos a que alude o art.° 371º-A do CPP para que seja reaberta a audiência com vista à aplicação de lei penal mais favorável.


*


Neste contexto, vai indeferido o requerimento de fls. 1694 e ss ...”

2.2 - Com relevância para a decisão do objecto do presente recurso, importa ter presente, para além do mais, os seguintes elementos do processo (cfr. fls. 4 a 32).

2.2.1 - No processo do qual foi extraído o presente recurso, o arguido, aqui recorrente, por acórdão de 30.05.2017, foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 18 meses de prisão efectiva (cfr. 33 a 46).

2.2.2 - O arguido, aqui recorrente, interpôs recurso do aludido acórdão condenatório, invocando com único fundamento a ocorrência de erro de julgamento da matéria de facto. Este recurso foi admitido e decidido por acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 04.12.2017, tendo sido negado provimento ao recuso e confirmado o acórdão recorrido, nele não fazendo qualquer alusão sobre a aplicação da Lei nº 94/2017 de 23.08.


3 - Apreciação do recurso

3.1 - Vejamos então a questão colocada no presente recurso.

O recorrente centra o objecto do recurso na violação do disposto no artigo 29º, nº 4 da CRP, o qual estatui que “Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”.

A propósito da referida norma, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira [[4]], “Se é proibida a aplicação retroactiva da lei penal desfavorável, já é obrigatória a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (n.º 4, 2.ª parte). Se o legislador deixa de considerar criminalmente censurável uma determinada conduta, ou passa a puni-la menos severamente, então essa nova valoração legislativa deve aproveitar a todos, mesmo aos que já tinham cometido tal crime. Este princípio compreende também duas vertentes: (a) que deixa de ser considerado crime o facto que lei posterior venha despenalizar; e (b) que um crime passa a ser menos severamente punido do que era no momento da sua prática, se lei posterior o sancionar com pena mais leve.

Não estabelecendo a Constituição qualquer excepção, a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (despenalização, penalização menor, etc.) há-de valer, ao menos ao princípio, mesmo para os casos julgados, com a consequente reapreciação da questão (…)”.

Em concretização do referido princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (lex mellior), o artigo 2º, nº 4 do CP estabelece que “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.”

No caso vertente, aquando da prolação do acórdão pelo tribunal de primeira instância ainda não havia entrado em vigor a Lei nº 94/2017, de 23.08. Por isso, o aludido tribunal não a considerou, nem naturalmente a poderia ter considerado na sua decisão.

Porém, o referido diploma legal entretanto entrou em vigor numa altura em que se encontrava pendente o recurso interposto pelo arguido do referido acórdão. Apesar disso, certamente porque o mencionado diploma em nada contendia com o objecto do recurso – restrito à impugnação da matéria de facto - o tribunal de recurso nada disse sobre a aplicação em concreto da lei nova.

É no sobredito contexto que o arguido, aqui recorrente, após o acórdão deste Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no artigo 371º-A do CPP, requereu, perante o tribunal de 1ª instância, a aplicação da lei nova – a indicada Lei nº 94/2017, de 23.08, o que foi indeferido, sendo este o objecto do presente recurso.

Segundo o artigo 371º-A do CPP “Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”.

No entender do tribunal recorrido, o invocado artigo 371º-A do CPP não tem aplicação porque a Lei nº 94/2017, de 23.08, entrou em vigor antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, ou seja, nesse momento encontrava-se pendente recurso do aludido acórdão neste Tribunal da Relação.

Ora, desde já adiantamos não poder concordar com tal posição, a qual se baseia numa interpretação puramente literal da mencionada norma.

Na verdade, o objecto do referido recurso, como se disse, limitava-se à impugnação da matéria de facto, não tendo sido questionada a pena aplicada de 18 meses de prisão efectiva, designadamente a sua medida ou a forma da sua execução, aspectos a que se reporta a lei nova que o arguido pretende ver agora aplicada.

Por isso, o tribunal de recurso estava impedido de se pronunciar sobre tal matéria, sem prejuízo naturalmente do dever de retirar da procedência do recurso as consequências legalmente impostas a toda a decisão recorrida, cfr. artigos 403º e 412º, nº 1 do CPP. O que não foi o caso, uma vez que o recurso foi julgado totalmente improcedente e, consequentemente, mantida a decisão recorrida.

É claro que não se olvida, quanto estejam em causa decisões não transitadas em julgado, o dever de aplicar, oficiosamente e imediatamente, o regime concretamente mais favorável ao arguido, em conformidade com o disposto nos artigos 13º e 29º, nº 4 da CRP e do artigo 2º, nº 4 do C.Penal.

Explicadas e contextualizadas as circunstâncias que conduziram à não ponderação da aplicação do regime da lei nova, o facto de ter ocorrido o transito em julgado não é disso impeditivo.

De facto, o artigo 371º-A do CPP, como é sabido, visou apenas eliminar a inconstitucionalidade decorrente de anteriormente o caso julgado impedir a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido [[5](3).

Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 109/X, que deu origem à Lei nº 48/2007, de 29.08, que posteriormente aditou ao Código de Processo Penal o artigo 371º-A pode ler-se «Por fim prescreve-se a abertura de audiência para aplicar novo regime mais favorável ao condenado sempre que a lei penal mais favorável não tenha determinado a cessação da execução da pena (art. 271º-A). Esta solução é preferível à utilização espúria do recurso extraordinário de revisão ou à subversão dos critérios de competência funcional (que resultaria da atribuição de competência para julgar segundo a nova lei ao tribunal de execução de penas).».

Os pressupostos de aplicação do artigo 371º-A do CPP são:

- A existência de uma sentença condenatória transitada em julgado;

- A existência de uma pena em execução; e o

- O impulso processual do condenado.

De forma que, tal como o referido pelo Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, nos casos em que o arguido, como o dos presentes autos, não dispôs de um espaço processual próprio e adequado para suscitar a possibilidade de aplicação da lei nova, deverá ser possível a recurso à abertura da audiência em conformidade com o disposto no aludido preceito do CPP.

O arguido encontra-se condenado, por decisão transitada em julgado, na pena de 18 meses de prisão efectiva. O tribunal da condenação ponderou a substituição da pena de prisão pelas penas de substituição de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º do C.P.) e de suspensão da sua execução (artigo 50º do C.P.), mas afastou a aplicação de ambas, decidindo-se pela aplicação da pena de prisão efectiva.

Ora, face à dimensão da pena de 18 meses de prisão, aquando da decisão condenatória, mostravam-se esgotadas todas as possibilidades de substituição da pena de prisão.

Acontece que posteriormente entrou em vigor a Lei nº 94/2017, de 23.08, a qual além do mais, prevê a possibilidade de a pena de prisão efectiva não superior a 2 anos (este limite anteriormente era de 1 ano) seja executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, cfr. artigo 43º, nº 1 al. a) do CP.

Assim, a menos que existam outras penas de prisão em que o arguido tenha sido condenado e que importe englobar através da realização de cúmulo jurídico em que o limite dos 2 anos de prisão seja ultrapassado, importa ponderar sobre a possibilidade daquela pena de 18 meses de prisão efectiva ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, de acordo com o previsto no artigo 43º, nº 1 al. a) do CP, na redacção decorrente da entrada em vigor da Lei nº 94/97, de 23.08, através da abertura da audiência, nos termos do disposto no artigo 371º - A do CPP.

Essa possibilidade não fica arredada pelo facto de o trânsito em julgado da decisão condenatória ter ocorrido depois da entrada em vigor da lei nova em consequência da pendência de recurso dessa decisão, no qual nada foi referido sobre a aplicação da lei penal mais favorável ao arguido.»

2.3. Do confronto dos acórdãos recorrido e fundamento resulta clara a inexistência de oposição entre eles relevante para a sustentação do presente recurso extraordinário.

O sedimento fáctico presente no acórdão recorrido não é idêntico àquele em que assenta a decisão proferida no acórdão fundamento.

Como sustenta a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no seu proficiente parecer, a situação factual relevante para a decisão proferida no acórdão recorrido foi a de que o arguido, já após a entrada em vigor da Lei n.º 94/2017 de 23.08, ter tido a possibilidade de suscitar a questão da aplicação da lei mais favorável, decorrente da alteração introduzida ao regime de permanência na habitação.

Possibilidade verificada:

i) no novo recurso que interpôs, em 09.08.2018, da sentença proferida em 1ª instância datada de 25.01.2018, tendo o arguido/recorrente impugnado matéria de facto e a medida da pena aplicada; e

(ii) quando arguiu nulidades ao acórdão do TR..... que julgou esse recurso, acórdão proferido em 22.01.2019.


Ou seja, o arguido teve duas oportunidades processuais para suscitar a aplicação da lei penal mais favorável, Lei 94/2017, nos sucessivos recursos que interpôs, já depois da entrada em vigor, em 23.11.2017, da citada Lei: no novo recurso que interpôs, em 09.08.2018, da nova sentença proferida em 1ª instância; quando arguiu nulidades do acórdão do TR.... proferido em 22.01.2019, as quais foram julgadas improcedentes por acórdão do TR.... de 19.02.2019.

Tal situação factual /processual levou o TR.... a considerar que “não tendo a tramitação do processo prejudicado a possibilidade de o Arguido ver aplicada lei penal mais favorável, ser intempestivo o requerimento que formulou [em 15.04.2019], porque quando o fez se não verificavam os pressupostos consagrados no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida.”

Já no acórdão fundamento, a situação factual/processual que lhe subjaz é distinta: o aí recorrente, como aí expressamente se consigna, «o arguido, como o dos presentes autos, não dispôs de um espaço processual próprio e adequado para suscitar a possibilidade de aplicação da lei nova, deverá ser possível a recurso à abertura da audiência em conformidade com o disposto no aludido preceito do CPP [do artigo 371.º-A do CPP]».

Efectivamente, na situação examinada no acórdão fundamento, a sentença de 1ª instância foi proferida em 30.05.2017, ou seja antes da entrada em vigor da Lei n.º 94/2017, que ocorreu em 23.11.2017.

O arguido interpôs recurso da sentença de 1ª instância invocando, como único fundamento, a ocorrência de erro de julgamento em sede de matéria de facto, não tendo sido questionada a pena aplicada, de 18 meses de prisão efetiva, vindo o Tribunal da Relação de Guimarães a confirmar o acórdão recorrido.

A citada Lei n.º 94/2017, que alargou a possibilidade de “execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação para as condenações em prisão efetiva não superior a 2 anos de prisão”, entrou em vigor numa altura em que se encontrava pendente, no TRG, o recurso interposto pelo arguido da sentença de 1ª instância.

É nesse contexto que o arguido, após o acórdão do TRG de 04.12.2017, ao abrigo do disposto no artigo 371º-A do CPP, requereu a aplicação da lei nova.

Ou seja, o arguido apenas teve possibilidade de suscitar tal questão, ao abrigo do disposto no art. 371º-A do CPP, após a prolação do acórdão do TRG datado de 04.12.2017 que conheceu do inicial recurso interposto do acórdão de 1ª instância proferido em 30.05.2017.

Como bem considera a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, tais distintas situações factuais levaram à prolação de distintas soluções em cada um dos acórdãos em confronto, não podendo afirmar-se a existência de oposição de julgados entre os mesmos.

Para efeitos do disposto no art. 371º-A do CPP, embora se constate, em ambos os acórdãos, ter entrado em vigor lei penal mais favorável antes do trânsito em julgado de qualquer das decisões, verifica-se existirem situações factuais /processuais distintas em cada um dos acórdãos:

a) na situação factual do acórdão recorrido (TR....), o arguido dispôs de várias oportunidades processuais para suscitar a aplicação de lei penal mais favorável decorrente da alteração introduzida ao regime de permanência na habitação pela Lei 94/2017, após a entrada em vigor da mesma, ocorrida em 23.11.2017:

i) no novo recurso que interpôs para o TR..., em 09.08.2018, da nova sentença de 1ª instância datada de 25.01.2018, em que impugnou a matéria de facto nela provada e a pena que lhe foi imposta; e

ii) quando arguiu nulidades do acórdão do TR... proferido em 22.01.2019.

Em nenhuma dessas oportunidades processuais o arguido requereu a aplicação da lei penal mais favorável. Transitado em julgado a decisão dos autos em 27.03.2019, apenas em 15.04.2019 o arguido requereu a reabertura da audiência, nos termos do artigo 371.º-A do CPP, para efeitos de aplicação de lei mais favorável – a Lei n.º 94/2017, de 23.08, que entrou em vigor no dia 23.11. 2017.

b) no acórdão fundamento (do TRG), o arguido não dispôs de espaço processual próprio e adequado para suscitar a possibilidade de aplicação da lei penal mais favorável decorrente da alteração introduzida ao regime de permanência na habitação pela Lei n.º 94/2017 de 23.08 que entrou em vigor em 23.11.2017. O arguido apenas teve tal oportunidade processual após a prolação do acórdão do TRG de 04.12.2017, que conheceu do recurso interposto pelo arguido da sentença de 1ª instância, datada de 30.05.2017 (ocorrida antes da entrada em vigor da citada Lei 94/2017), recurso circunscrito a impugnação de matéria de facto.

Tais distintas situações factuais/processuais vieram a ditar distintas decisões em cada um dos acórdãos em confronto, não ocorrendo identidade de situações de facto.

Consideramos que o substrato factual presente num e noutro dos acórdãos apontados como discrepantes é diferente reclamando, naturalmente, um tratamento jurídico próprio.

As decisões apresentadas pelo recorrente não são conflituantes pois as bases factuais em que assentam, por serem distintas, inviabilizam a similitude dos enquadramentos jurídicos operados em cada uma delas.

Reafirmando considerações já expostas, a oposição tem de ser expressa, e não meramente tácita, e pressupõe igualmente uma identidade essencial da situação de facto de ambos os acórdãos em confronto.

Como se decidiu no acórdão de 07-03-2018, proferido no processo n.º 98/17.2YFLSB – 3.ª Secção, que o ora relator subscreveu como adjunto:

«O requisito de oposição de acórdãos, para efeito de divergência normativa positiva tendente a uma pronúncia uniformizadora (de jurisprudência), comporta, irredutivelmente, a necessidade de o quadro factual de que se faz emergir, ou em que se fundeia a subsunção jurídico-normativa, ser idêntico, ou seja possua a mesma, e/ou similar, configuração fáctico-realística. O quadro factual em que se embasa e donde procederá a questão jurídico-normativa que servirá para delimitar e definir a questão axial e fulcral da contradição de jurisprudência tem de se prefigurar com contornos lógico-perceptivos e compreensivos isonómicos. Vale dizer que a questão de direito tem de derivar ou promanar de um similar quadro lógico-factual.

À similitude lógico-factual não pode deixar de corresponder uma teleologia de sentido funcional-processual, ou seja uma inferência de alcance e dimensão compreensiva que se contém no momento em que se coloca em tela de juízo a questão jurídico-normativa que se aprecia e decide. Por outras palavras, a oposição de decisões para que possa vir a ser processualmente capaz e apta a validar e preencher o requisito exigido pela norma adrede tem de se inserir e integrar num quadro teleológico similar e idêntico para ambas as decisões. Vale por dizer que o pressuposto discursivo e lógico-funcional em que as decisões, tomadas como contraditórias, assentam e impostam têm de servir o mesmo fim correlativo de análise e sentido teleológico».

Acompanhando o acórdão deste Supremo Tribunal de 11-02-2015, proferido no processo n.º 740/14.7TFLSB.L1-A.S1 - 3.ª Secção:

«[…] segundo a doutrina seguida no STJ, os requisitos substanciais [de admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência] ocorrem quando: - as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; - as decisões em oposição sejam expressas; - as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões idênticos.

II - No recurso de fixação de jurisprudência é mister que apreciemos soluções de direito dadas a situações de facto idênticas. Uma coisa é a solução definida por uma questão de direito, ou seja, a decisão que envolve um silogismo no qual as respectivas premissas conduzem à conclusão e outra, totalmente distinta, são as premissas ou referências, utilizadas em termos argumentativos como justificadores da mesma decisão.»

Ora, os pressupostos objectivos e lógico-racionais de que deriva o percurso analítico e o alcance teleológico de cada um dos acórdãos apontados como em oposição são distintos.

Há, pois, que concluir pela inexistência de oposição de julgados já que não se vislumbra uma relevante divergência na interpretação e aplicação das normas implicadas, mas apenas uma apreciação diferenciada de duas realidades factuais distintas.

O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto não tem fundamento legal pelo que é rejeitado (artigo 441.º, n.º 1, do CPP).


III – DECISÃO

Com base no exposto, acordam os Juízes da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar, por falta de fundamento, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto por AA.

Custas pelo recorrente com 4 UC de taxa de justiça.


(Processado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP, que assina digitalmente).

Tem voto de conformidade da Ex.ma Conselheira Adjunta Conceição Gomes.

           

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Janeiro de 2021


Manuel Augusto de Matos (Relator)

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[1] Publicado no sítio www.dgsi.pt/jtrg.
[2] Trechos destacados e sublinhados no original.
[3] Disponível nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt, tal como os demais acórdãos que se citarem sem outra indicação quanto à fonte.
[4] In Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, pág. 496.
[5] Assim, vide Taipa de Carvalho, in Direito Penal, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Porto, 3ª edição, pág. 203 e 204, que, como bem salienta, a alteração da parte final do nº 4 do artigo 2º do CP, operada pela Lei nº 59/2007 “não eliminava a inconstitucionalidade do obstáculo do caso julgado à redeterminação da pena principal (nomeadamente, a pena de prisão) com base na L.N. mais favorável”