Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
Relator: | GABRIEL CATARINO | ||
Descritores: | FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO OMISSÃO DE PRONÚNCIA QUESTÃO NOVA HOMICÍDIO QUALIFICADO | ||
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Data do Acordão: | 11/30/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | JULGADO IMPROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO / JULGADO PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – JULGAMENTO / SENTENÇA / REQUISITOS DA SENTENÇA. DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA. DIREITO PROCESSUAL CIVIL –PROCESSO EM GERAL / ATOS PROCESSUAIS / ATOS DE MAGISTRADOS. DIREITO CONSTITUCIONAL – ORGANIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO / TRIBUNAIS / DECISÕES DOS TRIBUNAIS. | ||
Doutrina: | - Américo Taipa de Carvalho, Prevenção, Culpa e Pena – Um concepção preventivo-ética do direito penal, Liber Discipulorum, Coimbra Editora, p.317 e ss.; - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal I, 5.ª Edição revista e actualizada, Editorial Verbo, 2008, p. 374; - Gunther Jakobs, Derecho Penal, Parte General, Fundamentos y Teoria de la Imputación, 2.ª Edición, Marcial Pons, Barcelona, p. 8; - Hermenegildo Borges, Vida, Razão e Justiça, Racionalidade argumentativa na Motivação Judiciária, Minerva Editora, Coimbra, 2005, p.177; - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição actualizada, Universidade Católica Portuguesa, p. 875; - Robert Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica – A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica, Landy Editora, 2001, p. 100; - Taruffo, Michele, Paginas sobre Justicia Civil, Processo e Direito, Marcial Pons, Madrid, 2009, p. 516 e 517. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 374.º, N.º 2. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 131.º E 132.º, N.º 2, ALÍNEAS H) E J). CÓDIGO PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 154.º. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 205.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 11/2013, DE 12-06-2013, IN DR N.º 138, SERIE I, DE 19-07-2013; - DE 20-04-2006; - DE 11-10-2007, PROCESSO N.º 07P3240; - DE 29-11-2011; - DE 21-03-2013, PROCESSO N.º 2014/08.0PAPRM.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 22-04-2015, RELATOR SOUSA FONTE. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: - ACÓRDÃO N.º 27/2007, PROCESSO N.º 784/05. | ||
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Sumário : | I - A obrigação de motivação dos actos judiciais está consagrada constitucionalmente e tem o seu vazamento em todos os ordenamentos jurídico-adjectivos. O art. 374.º, do CPP, ao referir-se, no n.º 2, à obrigação de fundamentação da decisão terá querido inculcar uma função fundamentadora, com explicitação dos motivos em que assentam e radicam as premissas, lógico-dedutivas, que justificam as razões pelas quais o proponente (juiz) assume o juízo valorativo em que se irá verter a solução adoptada. II - A falta de fundamentação não se confunde, ou não pode ter a mesma dimensão compreensiva, da falta de convencimento que essa fundamentação opera no destinatário. Para este a fundamentação pode não ser suficiente para os fins que prossegue e que anseia da decisão do órgão jurisdicional, mas esta perspectiva não pode obumbrar o fim constitucional do dever de fundamentação enquanto dever geral e comum de percepção do sentido das decisões por todos aqueles que delas tomem conhecimento ou que delas sejam destinatários. III - O tribunal não justifica, por uma argumentação positiva e convincente, as penas conjuntas a que se alcandorou. Fê-lo, de forma negativa, no momento de apreciação dos recursos dos arguidos, anunciando que as penas aplicadas pelo tribunal de 1.ª instância eram reduzidas pelo que, atenta a especial censurabilidade da conduta não seriam de manter. Esta falta, ou carência, de fundamentação, porém, não impedirá que, uma vez constatada, o tribunal de recurso não conheça do recurso, sobrepujando a anomalia e repondo a legalidade quanto ao dever omitido – n.º 2 do art. 379.º do CPP – ou com mais pormenor e arrimo jusprocessual – art. 684.º, n.º 1, do CPC. IV - Para que a decisão adquira pregnância e do mesmo passo validade formal torna-se necessário que se confira uma identidade entre o que é pedido e o que é julgado, entre o que o tribunal elegeu e definiu, na interpretação que fez do conjunto dos factos alinhados pelos sujeitos nas respectivas peças processuais, com o que a final veio a tomar conhecimento e a dar pronúncia. Na eleição das questões de direito o juiz não pode ir além do que está contido nos factos aportados pelos sujeitos, mas não está limitado pela enunciação que delas façam as partes. Sendo que o acórdão recorrido não deixou de se pronunciar sobre questão que o recorrente tivesse, expressamente, suscitado ao tribunal para conhecer. V - A alteração do tema do processo não é de programação variável e os recorrentes não podem suprir as deficiências e incapacidade de alegação por via de recurso. O que delimita o recurso e constitui o seu ponto de cognoscibilidade é a decisão impugnada não podendo, o respectivo âmbito, exceder o que foi fixado e delimitado pela actividade cognoscente do órgão jurisdicional. VI - A pronúncia do tribunal de recurso sobre uma questão – que tivesse sido impulsionada no recurso interposto da decisão de 1.ª instância – constituiria um excesso de pronúncia por recair sobre uma questão não debatida na decisão sob recurso nem estar abrangida pelo tema do processo, tal como o tribunal e os sujeitos processuais o haviam configurado e corroborado. Sendo uma questão nova deve ser extirpada e banida do âmbito de cognoscibilidade do tribunal de recurso. VII – O arguido ao, juntamente com o pai da companheira ter desferido golpes com os instrumentos (machada, faca e instrumento pontiagudo) usou de meios gravemente particularmente perigosos para tirar a vida da vítima. Do mesmo modo os 3 arguidos (companheira, arguido e pai da companheira) terão gizado atrair a vítima para um espaço favorável aos seus propósitos. Pelo que, em nosso juízo, as agravativas contidas nos exemplos normativos contidas nas als. h) e j) do n.º 2 do art. 132.º do CP encontram-se plenamente justificadas. | ||
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Decisão Texto Integral: |
I. – Relatório Após despacho de pronúncia foram submetidos a julgamento: - AA, [...], actualmente detida no estabelecimento prisional de Santa Cruz do Bispo; - BB, [...], actualmente detido no estabelecimento prisional do Porto; e, - CC, natural da [...], actualmente detido no estabelecimento prisional do Porto; pela imputação da prática, em co-autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 26º, 131º, 132º, nºs. 1 e 2, alíneas b), h) e j) e de um crime de profanação de cadáver ou lugar fúnebre, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal. O Ministério Público deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, em nome do menor EE, filho da vítima, nos termos do disposto nos artigos 71º, 76º, n? 3 e 77º, nº 1 todos do Código Penal e 3º, nº 1, alínea a) do Estatuto do Ministério Público, pedindo a condenação dos mesmos no pagamento da quantia de €125.000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais pela perda da vida de DD, nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 1195 e seguintes. Os arguidos AA e BB apresentaram contestação, nos termos constantes de fls. 1481 e seguintes, 1472 e seguintes, respectivamente, oferecendo o merecimento dos autos. Por seu turno o arguido CC, apresentou contestação nos termos constantes de fls. 1478 e seguintes, oferecendo o que em seu favor resultar da audiência de julgamento e imputando a prática dos factos ao co-arguido BB. Após julgamento, foi decidido julgar parcialmente procedente a imputação criminosa formulada contra os arguidos e, em consequência: a) absolver a arguida AA, da prática de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2 alíneas b), h) e j) do Código Penal; b) condenar a arguida AA, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de homicídio, p.p. pelo artigo 131º do Código Penal, na pena de 10 (dez) anos e 2 (dois) meses de prisão; c) condenar a arguida AA, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de profanação de cadáver, p.p pelo artigo 254°, nº 1 alínea a) do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão; d) Em cúmulo jurídico das penas descritas em b) e c) condenar a arguida AA na pena única de 10 (dez) anos e 5 (cinco) meses de prisão nos termos do disposto no artigo 77º do Código Penal. e) absolver o arguido BB, da prática de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2 alíneas b), h) e j) do Código Penal; f) condenar o arguido BB, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de homicídio, p.p. pelo artigo 131º do Código Penal, na pena de 13 (treze) anos e 7 (sete) meses de prisão; g) condenar o arguido BB, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de profanação de cadáver, p.p pelo artigo 254º, nº 1 alínea a) do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; h) Em cúmulo jurídico das penas descritas em f) e g) condenar o arguido BB na pena única de 14 (catorze) anos e 2 (dois) meses de prisão nos termos do disposto no artigo 77º do Código Penal. i) absolver o arguido CC, da prática de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131º,132º, nºs 1 e 2 alíneas b), h) e j) do Código Penal; j) condenar o arguido CC, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de homicídio, p.p. pelo artigo 131º do Código Penal, na pena de 13 (treze) anos e 7 (sete) meses de prisão; k) condenar o arguido CC, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de profanação de cadáver, p.p pelo artigo 254º, nº 1 alínea a) do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão; I) Em cúmulo jurídico das penas descritas em j) e k) condenar o arguido CC na pena única de 13 (treze) anos e 10 (dez) meses de prisão - nos termos do disposto no artigo 77° do Código Penal. m) Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo Ministério Público em representação do menor EE e, em consequência condenar os demandados AA, BB e CC, no pagamento solidário ao mesmo da quantia de € 50.000 (cinquenta mil euros) na qualidade de herdeiro de DD, por danos não patrimoniais por aquele sofridos e €8.000,00 (oito mil euros) por danos não patrimoniais por si próprio sofridos, em virtude da conduta dos demandados, acrescidos de juros vincendos desde a notificação da presente decisão e até efectivo e integral pagamento. n) Absolver os demandados do remanescente do pedido contra si formulado.” No recurso interposto da decisão referida veio o Tribunal da Relação a julgar (sic): “(…) procedente o recurso interposto pelo MP e Assistente, pelo que vão condenados os arguidos: - AA por um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos art.º 131º,132º n.º 1 e 2 alínea b), h) e j) do CP, na pena de 13 anos e 8 meses de prisão; - BB, por um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos art.º 131º, 132º n.º 1 e 2, alínea h) e j) do CP, na pena de 15 anos e 6 meses de prisão; - CC, por um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos art.º 131º, 132º n.º 1 e 2, alínea h) e j) do CP, na pena de 15 anos e 6 meses de prisão. Em cúmulo jurídico, nos termos do art.º 77.º do CP, com a pena aplicada pelo crime de profanação de cadáver p. e p. pelo art.º 254º n.º1 al. a) do CP, não contestada, vão os arguidos condenados na pena única de: - AA, na pena de 14 anos de prisão; - BB, na pena de 16 anos de prisão; - CC, na pena de 16 anos de prisão. Do decidido trazem o arguido, CC e o Ministério, o presente recurso, tendo dessumido as respectivas fundamentações nos sumários conclusivos sequentes: 1.a) – QUADRO CONCLUSIVO. (Respeitante ao recurso do arguido CC) Por seu turno, o Ministério Público junto do Tribunal da Relação, contramina a posição do arguido e fundamenta a sua pretensão com a argumentação constante de fls. 2417 a 2430 de que extrai a síntese conclusiva que a seguir queda extractada. “1.O douto acórdão, ora, recorrido, julgando improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos AA, BB e CC, que impugnavam esse segmento da decisão, confirmou integralmente a matéria de facto dada como provada em 1ª instância. 2. Relativamente à qualificação jurídica dos factos, o Tribunal da Relação acolheu, em boa parte, a pretensão formulada no recurso interposto, pelo Ministério Público, da decisão da 1ª instância, julgando verificadas as circunstâncias qualificativas do crime de homicídio previstas nas alíneas b), h) e j) do nº 2 do artigo 132º do C. Penal. 3. Em consequência – alterando a decisão no que toca à medida das penas referentes ao crime de homicídio, bem como das penas únicas resultantes da reformulação do cúmulo daquelas novas penas com as penas respeitantes ao crime de profanação de cadáver, estas mantidas inalteradas relativamente aos três arguidos – o tribunal a quo aplicou as seguintes penas: - AA - 13 anos e 8 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. b), h) e j), do C. Penal; - 8 meses de prisão, pela prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, al. a), do C. Penal (pena da 1ª instância, confirmada); - 14 anos de prisão, pena única. - BB - 15 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. h) e j), do C. Penal; - 10 meses de prisão, pela prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, al. a), do C. Penal (pena da 1ª instância, confirmada); - 16 anos de prisão, pena única. - CC - 15 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. h) e j), do C. Penal; - 8 meses de prisão, pela prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, al. a), do C. Penal (pena da 1ª instância, confirmada); - 16 anos de prisão, pena única. 4. O quantum das penas, parcelares (respeitantes ao crime de homicídio qualificado) e únicas, assim aplicadas, não nos parece nem adequado, nem proporcionado, nem justo. 5. Em particular no que se refere à punição dos arguidos pela prática do crime de homicídio qualificado – atentas as finalidades das penas, previstas no artigo 40º, do C. Penal, e os critérios legais definidos no artigo 71º para a sua concreta determinação, e tendo em conta as molduras abstractas aplicáveis e as circunstâncias a considerar –, parece-nos que devem ser mais gravosas as penas a aplicar definitivamente. 6. Com efeito, perante a matéria de facto apurada, e agora insindicável, temos por inquestionável que a conduta dos três arguidos preenche efectivamente a tipicidade objectiva e subjectiva de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1, e 132º, nºs 1 e 2, alíneas h), j) e i), do C. Penal. 7. É, igualmente, certo que é muito elevado o grau de ilicitude dos factos, referenciado, desde logo, pela forma como o crime foi cometido, as múltiplas agressões, em diversas partes do corpo, com especial incidência na cabeça, e com a utilização de diversos instrumentos (uma machada, uma faca e um instrumento pontiagudo), encontrando-se a vítima numa situação de “desvantagem” face aos agressores, e a existência de um plano arquitetado para a emboscar. 8. A profunda censurabilidade das condutas (traduzida nas circunstâncias em que foi praticado o crime e no evidente e chocante desprezo da dignidade humana da pessoa vítima), o dolo directo e intenso (traduzido na vontade persistente de praticar o crime), assim como a ausência de arrependimento ou de qualquer sentimento dos arguidos em relação à vítima, a juventude desta e as consequências irreparáveis do crime, exigem punição mais severa. 9. A morte infligida pelos arguidos, no contexto factual dado como provado, representa o recurso à violência como forma de ultrapassar vicissitudes do comportamento relacional entre a vítima e a arguida AA, com desprezo pelo recurso aos mecanismos de justiça e claramente desproporcionada relativamente ao comportamento da vítima, quando ameaçava a arguida (filha do arguido BB e, à data dos factos, namorada do arguido CC) de que a matava e lhe retirava o filho, situação que se agudizou nos dias imediatamente anteriores ao crime, mesmo que esse comportamento pudesse ser tido por provocatório. 10. Relevam, também, as necessidades de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca o crime de homicídio, em que está em causa o valor nuclear da vida humana, sendo imperioso fazer saber a todos, dissipando qualquer dúvida, através de uma sanção enérgica, que a regra penal que protege a vida humana se mantem em vigor e que as violações dos laços mais básicos e essenciais da relação social não podem ser banalizadas. 11. Só um adequado número de anos de prisão, que seja capaz de traduzir a verdade do crime e a imperiosa necessidade de respeitar a vida humana, assegurará a justiça e a virtude persuasiva da pena. 12. Por outro lado, a actuação da arguida AA foi de tal modo preponderante na criação das condições para que os seus co-arguidos pudessem abordar e atacar a vítima com êxito, que, do ponto de vista da materialidade das condutas e da realização da justiça, não se vislumbra nenhuma razão, relacionada com menor ilicitude da sua conduta ou outra, que justifique que se lhe aplique (como fez o tribunal a quo) uma pena concreta menos severa do que aos seus co-arguidos, pela prática do crime de homicídio qualificado. 13. Tanto mais que, relativamente à arguida AA, e já não aos seus co-arguidos, milita a qualificativa prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 132º, concretizada no facto de a mesma ter vivido maritalmente com a vítima durante cerca de 7 anos e de se ter valido dessa anterior relação afectiva – baseada, como é normal, em cumplicidade e nos deveres de respeito mútuo, reforçados pela existência de um filho, de 3/4 anos de idade, que mantinha com ambos bom relacionamento e contactos regulares com a vítima – para atraí-la ao local do crime, com ela entabular conversa e distraí-la para que fosse surpreendida pelos co-arguidos. 14. Assim, e tendo em conta que a moldura penal aplicável varia entre o mínimo de 12 anos e o máximo e 25 anos de prisão, cremos que uma pena inferior a 17 anos de prisão, para cada um dos arguidos, pela prática do crime de homicídio qualificado que lhes é imputado, não satisfará já minimamente, nem as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização – influência concreta sobre o agente – nem de prevenção geral de tutela do ordenamento jurídico – influência sobre a comunidade, no sentido de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida. 15. No que respeita às penas relativas ao crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, al. a), do C. Penal, estão as mesmas fixadas em 8 meses de prisão, para os arguidos AA e CC, e em 10 meses de prisão para o arguido BB, penas essas que, não tendo sido contestadas, e não sendo já susceptíveis de recurso (artigo 400º, nº 1, al. f), do C. P. Penal), se têm por definitivas. 16. Fixadas, nos termos referidos, para cada um dos arguidos, as penas parcelares relativas aos crimes de homicídio qualificado e de profanação de cadáver, considerando a moldura abstracta aplicável (que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso – ou seja, 17 anos e 8 meses para os arguidos AA e CC, e 17 anos e 10 meses para o arguido BB – e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares concretamente aplicadas, ou seja, 17 anos para os três arguidos) e apreciando os factos na globalidade de que fazem parte e a personalidade dos arguidos neles reflectida, a inexistência de histórico criminal e as condições de inserção social e familiar de cada um deles, será de aplicar penas unitárias não inferiores a 17 anos e 4 meses de prisão, para os arguidos AA e CC, e de 17 anos e 6 meses, para o arguido BB. 17. A ausência de fundamentação especial da pena única, que tenha em conta a reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade dos arguidos, verificada no caso em apreço, fere de nulidade o acórdão recorrido, nessa parte (artigos 379º, nº 1, al. a), e 374, nº 2, do C. P. Penal). 18. É, ademais, incompreensível, face ao teor da decisão, que o tribunal a quo tenha aplicado a mesma pena unitária (16 anos de prisão) aos arguidos BB e CC, quando é certo que manteve inalteradas as penas individuais pelo crime de profanação de cadáver aplicadas em 1ª instância àqueles arguidos (10 meses de prisão ao arguido BB e 8 meses de prisão ao arguido CC). 19. Por outro lado, o tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão da verificação (ou não) da circunstância qualificativa prevista na alínea i) do nº 2 do artigo 132º do C. Penal [utilização … de meio insidioso], – não constante da acusação/pronúncia, mas invocada no recurso interposto pelo Ministério Público da decisão da 1ª instância –, omissão que configura a nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal; 20. Sendo certo que o preenchimento dessa qualificava resulta, ao que nos parece, da matéria provada, a qual revela que, ao ser traiçoeiramente atraída, como foi, ao local do crime, mediante telefonema efectuado pela arguida AA, conforme previamente combinado pelos três arguidos, a vítima caiu numa armadilha por eles criada precisamente com o objectivo de lhe tirarem a vida, armadilha que a surpreendeu e apanhou completamente desprevenida, confiante que estava nas boas intenções da arguida, manifestadas no aludido telefonema. 21. O douto acórdão recorrido violou, pois, os artigos 40º, 71º, 77º, nº 1, e 132º, nº 2, alínea i), do C. Penal, e 374º, nº 2 e 379º, nº 1, als. a) e c), do C. P. Penal. Pelo exposto, deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que, supridas as apontadas anomalias, condene: - a arguida AA, como co-autora material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1, e 132º, nºs 1 e 2, alíneas b), h), j) e i), do C. Penal, em pena não inferior a 17 anos de prisão; - os arguidos BB e CC, como co-autores de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1, e 132º, nºs 1 e 2, alíneas h), j) e i), do C. Penal, cada um deles, em pena não inferior a 17 anos de prisão; - efectuado o cúmulo jurídico das referidas penas com as penas individualmente aplicadas pelo crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, al. a), do C. Penal, sejam aplicadas penas unitárias não inferiores a 17 anos e 4 meses de prisão, para os arguidos AA e CC, e de 17 anos e 6 meses de prisão, para o arguido BB.” O Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto contraveio à fundamentação constante do recurso do arguido CC – cfr. fls. 2568 a 2571 – em que conclui que o acórdão será para manter, afora o facto de vir a proceder o recurso interposto pelo Ministério Público. “a) Tendo o Tribunal da Relação confirmado integralmente o quadro de facto dado por assente pela 1ª instância, é inquestionável que o arguido/recorrente CC, com a sua conduta, preencheu os elementos, objectivo e subjectivo, do crime de homicídio qualificado por que foi condenado; b) Improcedem, pois, todos os fundamentos do recurso, quando por via dele se pretende ver condenado o arguido pela prática de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º, do C. Penal; c) O douto acórdão recorrido é de confirmar nos seus precisos termos, se não for de alterar, por via da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.” A assistente, FF, revidou ao recurso do arguido CC- cfr. fls. 2598 a 2609 – tendo condensado a respectiva argumentação no epítome conclusivo que a seguir queda transcrito. “I. O recurso interposto pelo arguido CC versa apenas sobre matéria de direito, em virtude da imposição legal constante do artigo 432º do C.P.P. II. A assistente vem exercer o seu direito de resposta, tendo em conta que não concorda com a motivação e com as conclusões do recurso interposto pelo arguido CC. III. O comportamento dos arguidos - máxime do arguido CC -, não foi motivado por circunstâncias excepcionais, eivados pelo transtorno. Se assim fosse, não teriam planeado e distribuído tarefas com o claro intuito de matar a vítima DD, outrossim, teriam agido de forma instintiva, procurando acabar com o transtorno que os apoquentava de forma imediata e sem qualquer tipo de reflexão sobre os meios empregues. IV. Resulta da matéria de facto dada como provada, mais concretamente, no ponto 24, que os arguidos já se encontravam munidos de pelo menos, uma machada, uma faca e um instrumento pontiagudo, não concretamente apurado, aquando da chegada da vítima ao local do crime. V. Destarte, não se pode afastar a especial perversidade ou censurabilidade, apenas tendo como base as características dos instrumentos utilizados. VI. É verdade que os supra aludidos instrumentos estavam na garagem da habitação dos arguidos BB e AA, e que o seu uso habitual seria para ofícios ligados a serralharia e outros análogos. Não obstante, certo é, que a machada, a faca e o instrumento pontiagudo, quando utilizados com o fim de produzir a morte de alguém, são bastante perigosos e cumprem plenamente esse fim. VII. O processo reflexivo levado a cabo pelos arguidos, revela que os mesmos - aquando da elaboração do plano -, escolheram os instrumentos que achavam mais adequados a produzir a morte da vítima DD, independentemente das características de tais instrumentos. VIII. As circunstâncias em que os arguidos praticaram este crime são reveladores de um desrespeito acrescido e de um desprezo aterrorizante pelo bem jurídico protegido, revelando um elevado grau de perigosidade por parte dos autores do crime. IX. Tais factos se podem comprovar pela quantidade infindável de lesões provocadas na vítima, com especial incidência na cabeça, tal como se pode aferir pelo artigo 18.° do presente documento. X. Quanto à circunstância qualificativa da alínea j), do nº 2, do artigo 132º, do C.P, é bem clara a sua verificação tendo em conta a matéria de facto dada como provada. XI. As três circunstâncias qualificativas insertas na alínea j), do nº 2, do artigo 132º, do C.P, não constituem requisitos cumulativos para a verificação da premeditação, sendo qualquer um deles, por si mesmo, susceptível de indiciar um tipo de culpa agravado. XII. Quanto à frieza de ânimo por parte dos arguidos, releva o plano previamente gizado pelos mesmos, com a repartição de funções que foram na íntegra cumpridas, apanhando a vítima totalmente desprevenida e desferindo variados golpes no crânio da mesma. XIII. Deverá tomar-se em linha de conta o facto de todo o plano ter sido executado e consumado na residência dos arguidos BB e AA, na presença do filho desta e do seu irmão, filho de BB, ambos menores, embora não resulte da prova produzida qualquer indício que os mesmos tenham assistido aos factos, ainda assim, revela a vil e lamentável frieza dos arguidos. XIV. Quanto à reflexão sobre os meios empregados, releva o plano orquestrado pelos arguidos, com o telefonema da arguida AA para a vítima DD, marcando um encontro na residência dos arguidos BB e AA. Aquando da chegada da vítima ao local do crime, a arguida AA entabulou conversa, distraindo a vítima, enquanto os arguidos BB e CC se insurgiram dos seus esconderijos - já munidos das armas do crime-, surpreendendo fatalmente a vítima. (Cfr. Ponto 18,19,23 e 24 dos factos provados). XV. Resulta da matéria de facto dada como provada, designadamente dos pontos 18, 19, 21 e 23, que os arguidos gizaram um plano para matar a vítima DD, e que o mesmo consistia em atraí-lo ao local do crime, mediante telefonema efectuado pela arguida AA, tendo sido o factor surpresa preponderante na produção da morte da vítima DD. XVI. Ora tal circunstância subsume-se na íntegra na alínea i), do n.º 2, do artigo 132.º, do C.P. XVII. No que concerne à medida da pena, no entender da assistente - acompanhando a posição vertida pelo Digno Magistrado do Ministério Público no seu recurso para este Venerando Tribunal -, a pena não é exagerada, podendo até ser considerada insuficiente, tendo em conta as necessidades de prevenção geral. XVIII. Ora, quanto a nós, o grau de ilicitude aqui presente é bastante elevado, tendo em conta as circunstâncias e a forma em que o crime foi cometido, as inúmeras lesões que os arguidos infligiram na vítima, tudo fruto de um plano previamente orquestrado para produzir a morte da vítima DD. (…) deverá o recurso do arguido CC ser julgado totalmente improcedente e a decisão recorrida deve ser pelo menos mantida por se julgar adequada face às necessidades do caso em concreto, sem prejuízo da posição assumida pelo digno Magistrado do Ministério Público, com a qual expressamente concordamos.” Não deixou o arguido, CC, de repontar à pretensão recursiva do Ministério Público – cfr. fls. 2611 a 2619 – tendo dessumido a respectiva argumentação no sumário conclusivo que se deixa extractado. Neste Supremo Tribunal, a distinta magistrada do Ministério Público, ajaezou o parecer que a seguir se deixa transcrito. “1. Do recurso/breve relatório: 1.1 – Os arguidos (i) AA, (ii) BB e (iii) CC, todos com os demais sinais dos autos, foram submetidos a julgamento pelo Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal de Penafiel – J2, da Comarca do Porto Este, findo o qual, e datado de 23 de Fevereiro de 2017, foi proferido acórdão final que decidiu, para além do mais [[1]], condená-los nas penas únicas, respectivamente, de dez (10) anos e cinco (5) meses de prisão, catorze (14) anos e dois (2) meses de prisão e treze (13) anos e sete (7) meses de prisão, tudo resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas pela prática, em co-autoria material e concurso efectivo, dos também seguintes crimes: – A arguida AA: a) Dez (10) anos e dois (2) meses de prisão, por um crime de homicídio simples, da previsão do art. 131.º do Código Penal; b) Oito (8) meses de prisão, por um crime de profanação de cadáver, da previsão do art. 254.º, n.º 1 do Código Penal; – O arguido BB: a) Treze (13) anos e sete (7) meses de prisão, por um crime de homicídio simples, da previsão do art. 131.º do Código Penal; b) Dez (10) meses de prisão, por um crime de profanação de cadáver, da previsão do art. 254.º, n.º 1 do Código Penal; – O arguido CC: a) Treze (13) anos e sete (7) meses de prisão, por um crime de homicídio simples, da previsão do art. 131.º do Código Penal; b) Oito (8) meses de prisão, por um crime de profanação de cadáver, da previsão do art. 254.º, n.º 1 do Código Penal; 1.2 – Desta decisão interpuseram recurso, para o Tribunal da Relação do Porto, os seguintes sujeitos processuais: (i) O Ministério Público, bem como a assistente, FF, em cujas motivações questionaram apenas, por um lado a qualificação jurídica do acervo factual dado como provado, ponto em que pugnaram pela condenação dos arguidos no quadro do homicídio qualificado pelas agravantes densificadas nas alíneas b), i) e j) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal; e por outro a medida concreta da pena parcelar pelo crime de homicídio e, nessa medida, também da pena única do concurso, pontos em que pugnam, em qualquer dos quadros, pela sua agravação; (ii) Todos os arguidos, em cujas motivações colocaram por seu turno questões que se prendiam, quer com a matéria de facto, quer com a decisão de direito proferida. 1.3 – Admitidos os recursos, todos para a Relação do Porto, foram os autos subsequentemente remetidos àquele Tribunal onde, por Acórdão de 12 de Julho de 2017, exarado a fls. 2340 e segs., e no que para o caso importa reter, se decidiu o seguinte: A – Negar provimento ao recurso dos arguidos; B – Conceder provimento, parcial, ao recurso do Ministério Público e da assistente, em consequência do que se revogou, nos segmentos impugnados, aquele veredicto da 1.ª Instância, condenando agora cada um dos arguidos nos termos seguintes: B.1 – A arguida AA por um crime de homicídio qualificado, da previsão dos arts. 131º, 132º n.º 1 e 2 alínea b), h) e j) do Código Penal, na pena de 13 anos e 8 meses de prisão; B.2 – O arguido BB, por um crime de homicídio qualificado, da previsão dos arts. 131º, 132º n.º 1 e 2, alínea h) e j) do Código Penal, na pena de 15 anos e 6 meses de prisão; B.3 – O arguido CC, por um crime de homicídio qualificado, da previsão dos arts. 131º, 132º n.º 1 e 2, alínea h) e j) do Código Penal, na pena de 15 anos e 6 meses de prisão. B.3 – E em cúmulo jurídico, nos termos do art.º 77.º do Código Penal, com a pena aplicada pelo crime de profanação de cadáver, esta não contestada, nas penas únicas, respectivamente, de 14 anos de prisão [a arguida AA] e de 16 anos de prisão [os arguidos BB e CC]. 1.4 – É esta última decisão que, ainda irresignados, (i) o arguido CC e (ii) o Ministério Público trazem agora, em recurso, à consideração deste Supremo Tribunal, e em cujas motivações colocam, cada um dos recorrentes, as seguintes questões: 1.4.1 – O arguido CC pretende, em suma, que seja revogada a decisão da Relação e repristinada a da 1.ª Instância, o mesmo é dizer que visa a sua condenação apenas no quadro do homicídio simples e nas penas, parcelares e única, ali cominadas, contestando em todo o caso, mesmo no quadro do homicídio qualificado, a medida das penas aplicadas pelo aresto recorrido, pugnando pela sua redução, posto que sem dizer em que dimensão; 1.4.2 – O Ministério Público por seu turno, por um lado, convocando o disposto no art. 379.º, n.º 1/c) do CPP, argui a nulidade do Acórdão recorrido, da Relação, no segmento em que, apesar de a questão lhe ter sido colocada no recurso interposto da decisão da 1.ª Instância, se absteve de emitir pronúncia, como devia, sobre a verificação, ou não, da agravante qualificativa prevista na alínea i) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal [utilização de meio insidioso], e por outro, neste ponto sob invocação dos preceitos contidos nos arts. 40.º, 71.º, 77.º, n.º 1 do Código Penal, e 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1/a) do CPP, contesta, mesmo no quadro das demais agravantes qualificativas do homicídio, a medida concreta das penas ora aplicadas aos arguidos, as parcelares pelo homicídio e a pena única do concurso, pugnando pela condenação de cada um deles nos termos seguintes: (A) A arguida AA, como co-autora material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1, e 132º, nºs 1 e 2, alíneas b), h), j) e i), do C. Penal, em pena não inferior a 17 anos de prisão; (B) Os arguidos BB e CC, como co-autores de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1, e 132º, nºs 1 e 2, alíneas h), j) e i), do C. Penal, cada um deles, em pena não inferior a 17 anos de prisão; (C) E em cúmulo jurídico destas novas penas com as penas individualmente aplicadas pelo crime de profanação de cadáver, devem ser aplicadas aos arguidos penas unitárias não inferiores a 17 anos e 4 meses de prisão, para os arguidos AA e CC, e de 17 anos e 6 meses de prisão, para o arguido BB. 2 – Do mérito dos recursos: Emitindo parecer, como nos cumpre, cabe dizer o seguinte: 2.1 – Quanto ao recurso do arguido CC: Começa o recorrente por afirmar que o acervo factual definitivamente fixado pelas Instâncias – [e que, como ele próprio reconhece, não é pois, nesta sede, já passível de reexame] – mais não permitiria do que a sua condenação no quadro do homicídio simples, sendo de afastar por conseguinte as circunstâncias modificativas previstas nas alíneas h) [[2]] e j) [[3]] do n.º 2 do art. 132.º do CP. A pretensão do recorrente não resiste porém, convenhamos, à simples e singela leitura dos pontos 17.º a 24.º da decisão de facto proferida. Não valerá, pois, a pena a insistência do recorrente no sentido da defesa da tese por que, sobre o ponto em equação, havia optado a 1.ª Instância. E isto, tal como bem contrapõe, na sua resposta, o magistrado do Ministério Público junto da Relação, na esteira aliás da fundamentação aduzida no aresto recorrido, no que respeita à qualificativa da alínea h) – [praticar o facto com, pelo menos, mais duas pessoas] – porque estamos sem qualquer dúvida perante um crime planeado e executado, em acção concertada, pelos três co-arguidos, que formaram um projecto criminoso, distribuíram tarefas entre si, criando condições materiais para que não falhassem os seus intentos e assim revelando claramente uma culpa especialmente agravada. Ao que acresce que, como lucidamente evidencia, neste ponto, a decisão - [matéria que, diga-se, o recorrente não ousou sequer enfrentar na motivação que ofereceu] -, citamos, «[…] a actuação da arguida AA foi condição necessária para a produção da morte da vítima DD, pois resulta da matéria de facto dada como provada que o plano foi elaborado pelos três arguidos, estando a arguida AA encarregue de atrair o DD à sua residência, encenando uma conversa para depois os outros dois arguidos o atacarem, causando-lhe a morte. Vimos que a morte da vitima se deveu a vários factores e condições dependentes umas das outras, pois cada arguido tinha o seu papel e que com a conjugação dos seus esforços seria a única forma de atingir o resultado pretendido, sendo que o factor surpresa essencial para a consumação dos factos, bem como a superioridade numérica dos arguidos para a produção do resultado desejado. Ora, esta circunstância prevista na mencionada alínea h) baseia-se essencialmente na colocação da vítima numa dificuldade particular de se defender, pois a vítima foi colocada numa situação em que lhe era particularmente difícil defender-se, desde logo pela surpresa do ataque, ocorrido num local que lhe era conhecido e familiar. Por outro lado, a arguida AA atraí-o para aquele local, por forma a que os co-arguidos o apanhassem de surpresa, e dada a superioridade numérica, o dominarem, manietando-o e provocarem-lhe a morte com inúmeros golpes de machada e faca, entre outros]». Não restando assim quaisquer dúvidas, a esta luz, que foi a actuação conjunta e concertada dos três arguidos, assumindo a arguida AA, no momento crucial da fase executiva, um papel ativo no sentido de garantir o êxito do plano, qual seja o de distrair a vítima para que esta fosse surpreendida pelos co-arguidos, não pode deixar de ter-se por verificada a cláusula de especial censurabilidade densificada no apontado segmento normativo. Por outro lado, e quanto à qualificativa da alínea j) – [agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados] – porque, como bem discorre também a decisão impugnada, e voltamos a citar, «[…]Em relação à qualificativa da alínea j), constatamos também a sua verificação, pois sendo os motivos que conduziram ao crime, prévios à sua execução e tendo esta sido previamente preparada com a escolha do local e da hora do encontro com a vítima e das armas (uma machada, uma faca e um instrumento pontiagudo), colocando a vítima numa situação que a impossibilitava de fugir ou de se defender, estamos perante uma ponderada reflexão sobre os meios empregados no cometimento do homicídio reveladora de especial censurabilidade e perversidade. Ora, a frieza de ânimo por parte dos arguidos, releva o plano previamente gizado pelos mesmos, com a repartição de funções que foram na íntegra cumpridas, apanhando a vítima totalmente desprevenida e desferindo variados golpes no crânio da mesma, tendo o plano sido executado e consumado na residência dos arguidos BB e AA, onde residiam o filho desta e o seu irmão, filho de BB, ambos menores […]». Ora, nos termos do segmento normativo em causa [alínea j) do n.º 2 do art. 132.º do CP], e tal como pode ler-se, entre outros, nos Acórdãos do STJ de 14-02-2003, Processo n.º 03P2024[4], e de 23-02-2005, Processo n.º 4302/04[5], 3.ª, a "frieza de ânimo" revela e manifesta-se na preparação e na racionalização da execução e na crua ausência de sensibilidade perante as consequências para a vítima e o sofrimento desta, e traduz uma deficiência de carácter, com manifestações acentuadamente desvaliosas na composição e revelação da personalidade do agente. Do mesmo passo que a “reflexão sobre os meios empregados ou a persistência na intenção” constituem, por seu lado, refracções da insensibilidade que está presente na frieza de ânimo e manifestam-se numa acção do agente do facto que foi pensada, reflectida, ponderada, e em que se revela tenacidade de propósito. A reflexão nos meios empregados há-de consistir, pois, num estudo aprofundado dos meios de execução, na escolha dos que mais idóneos se mostrem à execução do crime, maior êxito trazendo à sua realização, por forma que enfraqueça, vulnerabilize a capacidade de defesa da vítima, suprimindo-lhe ou reduzindo-lhe a capacidade de defesa. A esta luz, e também quanto à apontada qualificativa, há então que enfatizar que nos revemos inteiramente no enunciado das circunstâncias da prática do homicídio a este propósito feito pelo acórdão recorrida, dele extraindo igualmente, aliás de acordo com a jurisprudência e doutrina acima citadas, mostrar-se verificada a censurabilidade acrescida que é pressuposto da convocação ao caso desta agravante qualificativa. A ponderação das circunstâncias concretas da prática do homicídio serão portanto, também em nosso juízo, de molde a inculcar a ideia daquela diferença essencial de grau susceptível de, como diz Teresa Serra, preencher também o chamado Leitbild deste exemplos-padrão. Claudica pois em toda a linha, e em nosso juízo, qualquer destas pretensões do recorrente. E também por isso, no quadro da apontada qualificação jurídica, não pode igualmente deixar de claudicar, como veremos de seguida, a pretensão alternativa do recorrente, no sentido da redução das correspondentes reacções criminais. 2.2 – Quanto ao recurso do Ministério Público: 2.2.1 – Antes de mais – [e excepcionando apenas, desde já, a questão que se prende com a arguição de nulidade por omissão de pronúncia, contida na 19.ª conclusão] –, cabe dizer que acompanhamos e secundamos, quanto ao mais, as considerações aduzidas pelo Exmo. magistrado do MP recorrente, na motivação por si oferecida, que consta da peça processual exarada a fls. 2416/2430 e está subsequente, e pertinentemente, densificada nas doze conclusões seguintes: […] 4. O quantum das penas, parcelares (respeitantes ao crime de homicídio qualificado) e únicas, assim aplicadas, não nos parece nem adequado, nem proporcionado, nem justo. 5. Em particular no que se refere à punição dos arguidos pela prática do crime de homicídio qualificado – atentas as finalidades das penas, previstas no artigo 40º, do C. Penal, e os critérios legais definidos no artigo 71º para a sua concreta determinação, e tendo em conta as molduras abstractas aplicáveis e as circunstâncias a considerar –, parece-nos que devem ser mais gravosas as penas a aplicar definitivamente. […] 7. É, igualmente, certo que é muito elevado o grau de ilicitude dos factos, referenciado, desde logo, pela forma como o crime foi cometido, as múltiplas agressões, em diversas partes do corpo, com especial incidência na cabeça, e com a utilização de diversos instrumentos (uma machada, uma faca e um instrumento pontiagudo), encontrando-se a vítima numa situação de “desvantagem” face aos agressores, e a existência de um plano arquitectado para a emboscar. 8. A profunda censurabilidade das condutas (traduzida nas circunstâncias em que foi praticado o crime e no evidente e chocante desprezo da dignidade humana da pessoa vítima), o dolo directo e intenso (traduzido na vontade persistente de praticar o crime), assim como a ausência de arrependimento ou de qualquer sentimento dos arguidos em relação à vítima, a juventude desta e as consequências irreparáveis do crime, exigem punição mais severa. 9. A morte infligida pelos arguidos, no contexto factual dado como provado, representa o recurso à violência como forma de ultrapassar vicissitudes do comportamento relacional entre a vítima e a arguida AA, com desprezo pelo recurso aos mecanismos de justiça e claramente desproporcionada relativamente ao comportamento da vítima, quando ameaçava a arguida (filha do arguido BB e, à data dos factos, namorada do arguido CC) de que a matava e lhe retirava o filho, situação que se agudizou nos dias imediatamente anteriores ao crime, mesmo que esse comportamento pudesse ser tido por provocatório. 10. Relevam, também, as necessidades de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca o crime de homicídio, em que está em causa o valor nuclear da vida humana, sendo imperioso fazer saber a todos, dissipando qualquer dúvida, através de uma sanção enérgica, que a regra penal que protege a vida humana se mantem em vigor e que as violações dos laços mais básicos e essenciais da relação social não podem ser banalizadas. 11. Só um adequado número de anos de prisão, que seja capaz de traduzir a verdade do crime e a imperiosa necessidade de respeitar a vida humana, assegurará a justiça e a virtude persuasiva da pena. 12. Por outro lado, a actuação da arguida AA foi de tal modo preponderante na criação das condições para que os seus co-arguidos pudessem abordar e atacar a vítima com êxito, que, do ponto de vista da materialidade das condutas e da realização da justiça, não se vislumbra nenhuma razão, relacionada com menor ilicitude da sua conduta ou outra, que justifique que se lhe aplique (como fez o tribunal a quo) uma pena concreta menos severa do que aos seus co-arguidos, pela prática do crime de homicídio qualificado. 13.Tanto mais que, relativamente à arguida AA, e já não aos seus coarguidos, milita a qualificativa prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 132º, concretizada no facto de a mesma ter vivido maritalmente com a vítima durante cerca de 7 anos e de se ter valido dessa anterior relação afectiva – baseada, como é normal, em cumplicidade e nos deveres de respeito mútuo, reforçados pela existência de um filho, de 3/4 anos de idade, que mantinha com ambos bom relacionamento e contactos regulares com a vítima – para atraí-la ao local do crime, com ela entabular conversa e distraí-la para que fosse surpreendida pelos co-arguidos. 14. Assim, e tendo em conta que a moldura penal aplicável varia entre o mínimo de 12 anos e o máximo e 25 anos de prisão, cremos que uma pena inferior a 17 anos de prisão, para cada um dos arguidos, pela prática do crime de homicídio qualificado que lhes é imputado, não satisfará já minimamente, nem as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização – influência concreta sobre o agente – nem de prevenção geral de tutela do ordenamento jurídico – influência sobre a comunidade, no sentido de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida. […]. 16. Fixadas, nos termos referidos, para cada um dos arguidos, as penas parcelares relativas aos crimes de homicídio qualificado e de profanação de cadáver, considerando a moldura abstracta aplicável (que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso – ou seja, 17 anos e 8 meses para os arguidos AA e CC, e 17 anos e 10 meses para o arguido BB – e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares concretamente aplicadas, ou seja, 17 anos para os três arguidos) e apreciando os factos na globalidade de que fazem parte e a personalidade dos arguidos neles reflectida, a inexistência de histórico criminal e as condições de inserção social e familiar de cada um deles, será de aplicar penas unitárias não inferiores a 17 anos e 4 meses de prisão, para os arguidos AA e CC, e de 17 anos e 6 meses, para o arguido BB. […]. 18. É, ademais, incompreensível, face ao teor da decisão, que o tribunal a quo tenha aplicado a mesma pena unitária (16 anos de prisão) aos arguidos BB e CC, quando é certo que manteve inalteradas as penas individuais pelo crime de profanação de cadáver aplicadas em 1ª instância àqueles arguidos (10 meses de prisão ao arguido BB e 8 meses de prisão ao arguido CC) […]]». E porque nos revemos, nesta parte, na clareza e pertinência da argumentação ali desenvolvida, bem como nos fundamentos e elementos (nomeadamente factuais e normativos) aduzidos – nos quais inteiramente nos louvamos, dir-se-á desde já também que nos dispensaremos, porque de todo desnecessário e redundante, do aditamento de mais desenvolvidos considerandos em defesa da sua pretensão [[6]]. 2.2.2 – Apenas num ponto concreto, como acima já deixámos consignado, nos não revemos inteiramente na sua posição: o que se reporta, repete-se, à arguição de nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia sobre a verificação, ou não, da agravante qualificativa prevista na alínea i) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal [utilização de meio insidioso] [[7]]. E isto porque, e quanto a este segmento do decidido, se bem lermos a fundamentação aduzida a propósito do efectivo preenchimento das outras duas cláusulas de especial censurabilidade que teve por preenchidas, a da alínea j) e, sobretudo, da alínea h), não podemos deixar de concluir que, na perspectiva do acórdão recorrido [e tal como meridianamente decorre dos excertos acima transcritos em 2.1], a “armadilha” montada pelos arguidos para atrair a vítima ao local da execução do crime, cujo papel essencial foi desempenhado pela arguida AA, fez parte integrante do plano gizado, sendo que coube a esta, na fase executiva propriamente dita, apenas esse papel: atrair a vítima ao local e, uma vez ali chegado, distraí-lo para mais facilmente poder ser surpreendido pelos co-arguidos. Foi, pois, por via desta acção concertada que o Tribunal teve por verificada pelo menos a circunstância da alínea h) que no caso em equação, e como é sabido, pressupõe a actuação conjunta de, pelo menos, 3 agentes. Compreende-se por isso, neste quadro, que, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, o tribunal tenha afastado, posto que de forma implícita, a circunstância qualificativa da convocada alínea i), tanto mais que se tratava de matéria não constante nem da acusação e da pronúncia, e nem sequer invocada em sede de audiência de julgamento em 1.ª Instância. Ademais, e ex abundante, deve ainda enfatizar-se que, como vimos, a questão não deixou de ser enfrentada, bem ou mal, pelo acórdão recorrido quando, à luz do acervo factual fixado, se debruçou sobre as circunstâncias qualificativas do homicídio que teve por preenchidas, no âmbito das quais inseriu, em nosso juízo, o segmento “insidioso” [[8]] da actuação dos arguidos, mormente ao sublinhar, relembre-se, que, citamos, «[…]esta circunstância prevista na mencionada alínea h) baseia-se essencialmente na colocação da vítima numa dificuldade particular de se defender, pois a vítima foi colocada numa situação em que lhe era particularmente difícil defender-se, desde logo pela surpresa do ataque, ocorrido num local que lhe era conhecido e familiar. Por outro lado, a arguida AA atraí-o para aquele local, por forma a que os co-arguidos o apanhassem de surpresa, e dada a superioridade numérica, o dominarem, manietando-o e provocarem-lhe a morte […]». O que aconteceu, pois, foi que não acolheu a pretensão neste ponto colocada pelo recorrente. E, como também é por demais sabido, a nulidade em causa só existe se o Tribunal não resolver todas as questões que deva apreciar, sendo que essas questões não se confundem com os argumentos, as razões ou os pressupostos em que as partes fundam as suas posições na controvérsia[9]. O mesmo é dizer que os tribunais têm de conhecer de questões[10] e não de argumentos. 2.3 – Parecer: TERMOS EM QUE, e sem necessidade de mais desenvolvidos considerandos, se emite parecer no sentido de que: A) É de negar provimento ao recurso do arguido CC; B) E de dar provimento, parcial, ao recurso do Ministério Público, condenando os arguidos nos termos e penas seguintes: B.1 – A arguida AA, como co-autora material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1, e 132º, nºs 1 e 2, alíneas b), h), j), do C. Penal, em pena não inferior a 17 anos de prisão; B.2 – Os arguidos BB e CC, como co-autores de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1, e 132º, nºs 1 e 2, alíneas h) e j), do C. Penal, cada um deles, em pena não inferior a 17 anos de prisão; B.3 – E em cúmulo jurídico destas novas penas com as penas individualmente aplicadas pelo crime de profanação de cadáver, devem ser aplicadas aos arguidos penas unitárias não inferiores a 17 anos e 4 meses de prisão, para os arguidos AA e CC, e de 17 anos e 6 meses de prisão, para o arguido BB.” Na resposta, o arguido CC, refere que “como o é referido pelo Digmo. Magistrado do Ministério Público, sendo o presente recurso de cognição apenas da matéria de direito, não valerá, pois, a insistência do Recorrente na sua tese de defesa desde a 1ª instância, refere a sua não participação no crime de homicídio. Assim, a única solução para o Recorrido será, após o transito da decisão deste Supremo Tribunal de Justiça, interpor recurso extraordinário de revisão de sentença com fundamento nos artigos 29º, nº 6 da Constituição da República Portuguesa e 449º, nº 1, al. d) do Código Processo Penal. Os novos meios de prova, nos quais irá o arguido fundamentar o recurso de revisão, são as declarações dos co-arguidos. Ambos os arguidos se mostram agora arrependidos por não terem revelado no Tribunal de 1ª instância a ausência da participação dos factos do aqui arguido. Por um lado, a arguida AA que em audiência de julgamento se remeteu ao silêncio e por outro, o arguido BB que em audiência de Julgamento atribuiu ao aqui arguido os factos por si perpetrados, e por esse motivo foi o arguido e por isso foi injustamente condenado. Na verdade, os dois co-arguidos, ao constatarem a dura condenação de um inocente, o arguido CC, decidiram confessar a verdade, através de cartas que enviaram ao aqui arguido, referindo n que estão arrependidos do que fizeram, ou não fizeram - in casu, dizer a verdade - e estão dispostos agora a fazê-lo para repor a Justiça.” I.b) - QUESTÕES A MERECER APRECIAÇÃO. As pretensões recursivas, convocam para as respectivas soluções: a) Relativamente ao recurso do Ministério Público: a.1.) – Nulidade do acórdão por falta de fundamentação da pena única (“que tenha em conta a reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade dos arguidos, verificada no caso em apreço, fere de nulidade o acórdão recorrido, nessa parte (artigos 379º, nº 1, al. a), e 374º, nº 2, do C. P. Penal); a.2.) – Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (“sobre a questão da verificação (ou não) da circunstância qualificativa prevista na alínea i) do nº 2 do artigo 132º do C. Penal [utilização … de meio insidioso], – não constante da acusação/pronúncia, mas invocada no recurso interposto pelo Ministério Público da decisão da 1ª instância – artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal); a.3.) – Individualização judicial da pena parcelar (a impor pela prática do crime de homicídio qualificado) e, correlatamente, da pena conjunta; b) – Relativamente ao recurso do arguido CC: b.1) – Qualificação da conduta perpetrada pelo arguido que deveria ser qualificado como (“homicídio simples, sendo de afastar por conseguinte as circunstâncias modificativas previstas nas alíneas h) [[11]] e j) [[12]] do n.º 2 do art. 132.º do CP.”); b.2.) – Individualização judicial da pena. II. – FUNDAMENTAÇÃO. II.A. – DE FACTO. De relevante para a decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto: “1. A arguida AA e a vítima DD, viveram durante cerca de sete anos um relacionamento amoroso, fruto do qual nasceu, em 27.12.2011, EE, à data da prática dos factos com 3 anos de idade. 2. O casal separou-se em Maio de 2013, tendo a vítima abandonado a casa onde residiam com os pais da arguida AA, o arguido BB e GG, falecida em Maio de 2015. O filho do casal ficou à guarda da mãe. 3. Em data não concretamente determinada, mas entre Julho e Agosto de 2015, a arguida AA começou a trabalhar na empresa "2BF DIAM", sita em ..., onde conheceu o arguido CC, de nacionalidade tunisina, encarregado naquela empresa e com quem iniciou um relacionamento amoroso. 4. O arguido CC, começou a frequentar e a pernoitar na casa da arguida AA, sita na .... 5. Por sua vez, o arguido BB, pai da arguida AA, pese embora residisse com a arguida AA, trabalhava em ..., na empresa "...", e vinha a casa apenas em alguns fins-de-semana. 6. Apesar da separação, a vítima DD perseguia a arguida AA e rondava a casa, numa tentativa de a controlar e a quem lá estivesse. 7. Na noite de 30 de Setembro para 1 de Outubro de 2015, o arguido CC, pernoitou em casa da arguida AA, deixando o seu veículo automóvel de marca Seat, modelo Ibiza, de matrícula ..., de cor branca, estacionado à porta de casa, o que foi visto pela vítima DD, que por ali passou cerca das 05H30M. 8. Tendo notado a presença de DD junto à entrada de acesso à garagem da sua residência, no interior de um veículo, a arguida AA, em altura não concretamente apurada, deu conhecimento ao arguido CC e ligou para a GNR de ... por receio que a vítima lhes fizesse algum mal. 9. Já na madrugada do dia 01.10.2015, entre as 05H41M e as 06H16M, DD ligou para o telemóvel da arguida AA cerca de vinte vezes, chamadas que esta não atendeu. 10. Cerca das 07H15M, o arguido CC e a arguida AA abandonaram a residência, cada um no seu veículo automóvel, sendo que a arguida se fazia acompanhar pelo filho EE. 11. Durante o percurso, DD cruzou-se com o veículo da arguida seguindo no seu encalço, obrigando-a a imobilizar a viatura junto do cemitério de .... 12. Já fora do carro DD abordou a arguida AA, ameaçou-a de morte e disse-lhe que iria retirar-lhe o filho. 13. Nesse mesmo dia, às 19H33M, a arguida AA participou o ocorrido à GNR de ... 14. Na sequência deste episódio, a arguida AA telefonou para o arguido BB, seu pai, que se encontrava a trabalhar em ..., a quem relatou o sucedido. 15. No sábado seguinte, dia 3 de Outubro de 2015, foram efectuados vários contactos telefónicos entre DD e AA, tendo esta enviado o número de telefone do DD ao arguido CC, via SMS. 16. Cerca das 18h00, a arguida AA conduzindo a sua viatura automóvel da marca Opel, com a matrícula ..., fui buscar o arguido CC, e transportou-o para a sua residência, onde já se encontrava o arguido BB. 17. Em momento não concretamente apurado, os arguidos gizaram um plano para matar DD, acordando quanto ao papel que cada um desempenharia e a forma como o executariam, o qual passava por atraí-lo àquela residência, para o emboscarem e matarem. 18. Acordaram, assim, que a arguida AA telefonaria a DD marcando com ele um encontro naquela residência, combinando que os arguidos CC e BB permaneceriam escondidos, de forma a apanharem a vítima de surpresa. 19. No âmbito dos contactos telefónicos referidos em 15, a arguida AA, marcou com o ofendido DD um encontro para essa noite, em sua casa. 20. Na noite de 3 para 4 de outubro de 2015, pelas 23H30, DD saiu da Associação ...., onde trabalhava, fazendo-se transportar na viatura de HH, um Opel Corsa de cor branca, ligeiro de mercadorias, de matrícula ... para ir comprar uns Kebab, com uma nota de €10,00 que aquele lhe entregou, a umas roulottes estacionadas na zona de .... 21. Porém, conforme previamente combinado com a arguida AA, DD dirigiu-se à casa dos arguidos sita na Rua ..., local a que chegou em hora não concretamente apurada, mas cerca das 24H00. 22. Deixou a viatura que conduzia estacionada nas proximidades da casa dos arguidos, seguindo até à residência apeado. 23. Ao aperceber-se da presença de DD, a arguida AA saiu de casa e foi na sua direcção entabulando conversa, distraindo-o para que fosse surpreendido pelos arguidos BB e CC. 24. Após, em circunstâncias não concretamente apuradas, mas no logradouro junto à garagem, os arguidos BB e CC munidos com pelo menos, uma machada, uma faca e um instrumento pontiagudo, não concretamente apurado, desferiram no ofendido DD vários golpes/pancadas com aqueles objectos, atingindo-o em todo o corpo, mas com maior incidência na cabeça e no tronco, ao mesmo tempo que a arguida AA se refugiou no interior da habitação, local onde se encontrava o filho e o seu irmão, II, ambos menores. 25. Acto contínuo, já depois de DD se encontrar em condições de não se defender, prostrado no chão, os arguidos CC e BB, com recurso a uma fita adesiva filamentosa, marca 3M, com 2,5 cm de largura, que o arguido BB trouxe da "...", amordaçaram e ataram as mãos e as pernas (o terço inferior) de DD, tendo igualmente amarrado as pernas daquele com umas calças de fato de treino de criança (3-4 anos de idade), pertencentes ao filho de DD e AA, EE, que se encontravam depositadas numa caixa de panos velhos na garagem. 26. Para cortar a fita adesiva com que amarraram DD os arguidos usaram uma tesoura da marca "Maped", que posteriormente colocaram na garagem pendurada no sítio destinado às ferramentas. 27. Em seguida, com o fito de se livrarem do corpo de DD os arguidos envolveram-no em lençóis e introduziram-no em dois sacos de plásticos azuis, com aproximadamente um metro cada, que o arguido BB trouxe da empresa para a qual trabalha, de forma a não deixar vestígios de sangue na viatura em que pretendiam transportá-lo. 28. Para efeitos de transportar o corpo de DD o arguido BB, retirou as chaves do automóvel que este usara para se deslocar ao local e que o mesmo trazia consigo, foi buscá-lo e estacionou-o de marcha atrás na rampa de acesso à garagem. 29. Os arguidos CC e BB carregaram o corpo de DD para a mala do veículo e, em acto contínuo, o arguido BB ocupou a posição de condutor, abandonando aquele local, tendo sido seguido pelos arguidos CC e AA, que fazendo-se transportar na viatura de matrícula 20-02-0T, conduzida pela arguida, seguiram atrás do arguido BB. 30. Os arguidos conduziram os veículos até à ponte de ..., local onde, os arguidos retiraram da mala o cadáver de DD e atiraram-no ao rio .... 31. Logo após, e com objectivo de se desfazerem da viatura usada pela vítima, o arguido BB seguido pelos arguidos CC e AA, voltou a conduzir a viatura até à ..., local onde abandonaram o veículo fechado à chave. 32. No regresso a casa, os arguidos abandonaram os pertences da vítima num contentor do lixo que encontraram pelo caminho e uns metros à frente atiraram pela janela a chave do carro usado por DD. 33. Já em casa, os arguidos limparam com água o local onde ocorreram as agressões, de forma a eliminar os vestígios do crime que acabavam de cometer e esconderam na casa da lenha da residência a machada, a faca que usaram para agredir a vítima bem como a fita adesiva que usaram para a atar e amordaçar. 34. No dia 06 de Outubro de 2015, cerca das 18H30M, a viatura usada por DD foi encontrada, abandonada e fechada à chave no ..., no acesso à pedreira ..., local onde os arguidos a abandonaram. 35. No dia 8 de Outubro de 2015, cerca das 18H15M, o cadáver de DD foi encontrado nas águas do ..., por JJ e o marido LL, numa levada junto à propriedade onde residem, sita na ..., amarrado e apresentando várias lesões. 36. Na sequência da agressão de que foi vítima DD sofreu várias lesões, resultantes de traumatismo de natureza cortante, contundente, corto-contundente, corto-perfurante e perfuro-contundente que se encontram descritas no relatório de autópsia médico-legal, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, designadamente, além do mais: 37. Na cabeça: - solução de continuidade, de bordos lisos e regulares, com visualização da calote craniana, localizada na região frontal, oblíqua, da direita para a esquerda, de cima para baixo, cuja extremidade inferior se encontra a 2,4 cm do epicanto medial do olho esquerdo e a 3,5 cm do lóbulo da orelha esquerda; 38. - solução de continuidade, de bordos ligeiramente irregulares, com pontes de tecido, localizada na região frontoparietal direita, com 2.7 centímetros de comprimento, localizada a 8.5 cm do epicanto medial do olho direito e a 14 cm do lóbulo da orelha direita; 39. - solução de continuidade, de bordos irregulares, com pontes de tecido, localizada ao nível do terço anterior da região frontoparietal direita e esquerda, segundo aproximadamente o plano coronal, com 4.7 cm de comprimento, localizada a 11 cm do epicanto medial do olho esquerdo e a 17 cm do lóbulo da orelha esquerda; 40. - solução de continuidade, de bordos irregulares, com pontes de tecido, em forma de estrela com 3 ramos, localizada ao nível da sutura sagital, ao nível da região parietal, sutura sagital, medindo o ramo esquerdo 0.7 cm, o ramo direito 1 cm e o ramo posterior 0.7 cm, estando a 15.5 cm do epicanto medial do olho esquerdo e a 19.5 cm do lóbulo da orelha esquerda; 41. - solução de continuidade, de bordos irregulares, com pontes de tecido, superficial, localizada na região frontoparietal esquerda, com 1 cm de comprimento, localizada a 10.5 cm do epicanto medial do olho esquerdo e a 13.5 cm do lóbulo da orelha esquerda; 42. - solução de continuidade, de bordos irregulares, com pontes de tecido, superficial, localizada na região parietal esquerda, em forma de estrela com 3 ramos, medindo o ramo anterior 0.5 cm o ramo direito 1 cm e o ramo posterior 1.0 cm, localizada a 14.5 cm do epicanto medial do olho esquerdo e a 15.5 cm do lóbulo da orelha esquerda; 43. - posterolateralmente à lesão 6, a 1.3 cm dessa solução de continuidade, observa-se solução de continuidade, de bordos irregulares, com pontes de tecido, superficial, localizada na região parietal esquerda, com 1.2 cm de comprimento, que dista 13 cm do epicanto medial do olho esquerdo e 12.5 cm do lóbulo da orelha esquerda; 44. - solução de continuidade, de bordos irregulares com pontes de tecido, localizada na região parietal direita, com 1.5 cm de comprimento, distando 16 cm do epicanto medial do olho direito e 16 cm do lóbulo da orelha direita; 45. - solução de continuidade, de bordos irregulares, com pontes de tecido, localizada ao nível do terço posterior da sutura sagital (região parietal), com 1.8 cm de comprimento, distando 19.5 cm do epicanto medial do olho esquerdo e 21 cm do lóbulo da orelha esquerda; 46. - solução de continuidade, de bordos lisos e regulares, com visualização da tábua externa da calote craniana (que apresenta fractura), localizada ao nível da região parietoccipital direita, com 5 cm de comprimento, distando, 11 cm do lóbulo da orelha direita e 7.5 cm da linha da sutura sagital; 47.- solução de continuidade, com dois ramos, em forma de "V", disposta segundo um plano horizontal, com o vértice na face anterior, de bordos lisos e regulares, localizada na região temporoccipital direita, com 5 cm de comprimento o ramo mais superior e o 3 cm de comprimento o ramo mais inferior; esta solução de continuidade tem continuidade com uma solução de continuidade, de bordos lisos e regulares, localizada no terço médio da orelha direita, com 3 cm de comprimento; 48. - solução de continuidade, de bordos lisos e regulares, com visualização do músculo temporal direito, que se estende da região localizada lateralmente à sobrancelha direita até à região temporal direita, com 7.2 cm de comprimento, distando 4 cm de comprimento do epicanto medial do olho direito e 9 cm da orelha direita; 49. - solução de continuidade, de bordos lisos e regulares, localizado lateralmente à narina direita, oblíqua, de baixo para cima, da direita para a esquerda, com 2 cm de comprimento; 50. - solução de continuidade, de bordos irregulares, com pontes de tecido, vertical, localizada na região mentoniana direita, com atingimento do lábio superior, com 0.5 cm de comprimento, com atingimento dos dentes 12 e 41, que apresentam pequenas fracturas; 51. - solução de continuidade, de bordos lisos e regulares, localizada ao nível do terço lateral da metade esquerda do lábio superior, aproximadamente horizontal, com 2.5 cm de comprimento, com visualização de fratura do dente 23, em continuidade com a solução de continuidade; 52. - falso sulco em correspondência com a localização da fita adesiva, horizontal, localizado na hemiface direita e na hemiface esquerda, observando-se nesta última dois falsos sulcos; 53. - área de pelada, localizada no terço superior da região occipital, com 5 por 1.5 cm de maiores dimensões; No pescoço:- falso sulco, horizontal em correspondência com a localização da fita adesiva, localizado na face posterior do pescoço; - duplo falso sulco, horizontal em correspondência com a localização da fita adesiva, localizado na face lateral esquerda do pescoço; falso sulco, horizontal em correspondência com a localização da fita adesiva, localizado na face anterior do pescoço; - solução de continuidade, de bordos irregulares, com pontes de tecido, oblíqua, de baixo para cima, da direita para a esquerda, com 7.3 cm de comprimento; - solução de continuidade arredondada, de bordos ligeiramente irregulares, localizada no terço médio da metade direita do pescoço, com 1.5 cm de diâmetro; - 5 soluções de continuidade, localizadas na face posterior do pescoço, da direita para a esquerda: A - solução de continuidade, de bordos irregulares, localizada no terço médio da face lateral direita do pescoço, horizontal, com 2.5 cm de comprimento; B - solução de continuidade, de bordos lisos e regulares, localizada no terço médio da face lateral direita do pescoço, a 2 cm da lesão A; C- solução de continuidade, de bordos irregulares, com pontes de tecido, localizada no terço médio da face lateral direita do pescoço, a 1.4 cm da lesão A; O - solução de continuidade, de bordos regulares, localizada lateralmente à lesão C (apenas separadas por uma ponte de tecido de cerca de 2 mm), com 3.8 cm de comprimento; solução de continuidade, de bordos ligeiramente irregulares, localizada na metade posterior esquerda do pescoço, a 5.5 cm da lesão A, com 2.6 cm de comprimento; No Tórax:- solução de continuidade, de bordos lisos e regulares, horizontal, com extremidade romba lateralmente e extremidade angulosa medialmente, localizada inferiormente à omoplata esquerda, com 3 cm de comprimento; - solução de continuidade, de bordos regulares, localizada na região dorsolombar esquerda, oblíqua, de baixo para cima, da esquerda para a direita, com extremidade romba medialmente e superiormente e extremidade angulosa inferiormente e lateralmente, com 6 cm de comprimento; No Abdómen:- solução de continuidade, de bordos irregulares, vertical, localizada no hipocôndrio direito, com 7.5 centímetros; - solução de continuidade, de bordos irregulares vertical, localizada no hipocôndrio direito, a 2.3 cm lateralmente à lesão número 19, com 7.7 cm de comprimento; - solução de continuidade, de bordos irregulares, vertical, localizada no epigastro, a 4 cm da lesão número 20, com 3.3 cm de comprimento; - solução de continuidade, de bordos irregulares, com visualização de ansas intestinais, localizada na metade esquerda da região periumbilical esquerda, com 8.5 cm de comprimento; - solução de continuidade, de bordos irregulares, oblíqua, de baixo para cima, da esquerda para a direita, localizada na região lombar direita, com 7.3 cm de comprimento; - solução de continuidade, de bordos irregulares, oblíqua de baixo para cima, da esquerda para a direita, localizada no flanco esquerdo, com 7.5 cm de comprimento - solução de continuidade, de bordos irregulares, superficial, localizada na face superior do ombro direito, com 1.5 cm de comprimento; - solução de continuidade, localizada no terço médio da face dorsal do 2°, 3° e 4° dedos, com fratura da F2 do 2° dedo, incompleta e traço de fratura da F3 do 3° dedo Membro inferior esquerdo: - duas soluções de continuidade arredondadas, de bordos irregulares, com equimose circundante, localizadas no terço superior da face lateral da coxa esquerda, com respectivamente 0.4 cm e 0.8 cm de diâmetro, distando 8 cm uma da outra; Exame do Hábito Interno: Na cabeça:- fractura do osso frontal com forma de T; - fractura da tábua externa do osso frontal com perda óssea, com 2,5 por 0.5 cm de comprimento; - fractura da calote craniana, de bordos irregulares com 5 por 0.5cm de maiores dimensões, dos ossos parietal direito e occipital com visualização do tecido encefálico; desta partem dois traços de fractura: um em direcção anterior ao osso parietal direito, com 6 cm de comprimento e outro em direcção posterior, para o osso occipital, com 6 cm de comprimento; - fractura cominutiva do osso temporal direito, com 3 por 1 cm de maiores dimensões; - fractura da calote craniana, no osso temporal direito com traço de fractura que irradia inferiormente e posteriormente com 3,5 cm de comprimento. Meninges: soluções de continuidade, localizada na dura mater; No pescoço:- soluções de continuidade em correspondência com as descritas na face posterior do pescoço; solução de continuidade, do tecido celular subcutâneo; Osso Hióide: fractura do corno superior direito e do corno superior esquerdo do osso hióide com infiltração sanguínea subjacente; Tais lesões foram causa directa e necessária da sua morte. 79. Ao actuarem do modo descrito, atraindo a vítima para a residência onde se encontravam, emboscando-a e desferindo-lhe vários golpes com objectos cujas características bem conheciam e sabiam ser adequadas a produzir a morte, os arguidos agiram com o propósito concretizado de tirar a vida de DD. Os arguidos agiram em conjugação de esforços e mediante a execução de um plano previamente traçado pelos arguidos, valendo-se da sua superioridade numérica e dos instrumentos que usaram e do facto de terem surpreendido a vítima. 81. Agiram todos os arguidos com o propósito de se desfazerem do corpo de DD, atirando-o ao rio, evitando que dessa forma fosse encontrado e fossem associados ao crime que acabavam de cometer. 82. Agiram livre, voluntaria e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei. 83. A arguida AA tem um filho de 5 anos de idade que se encontra a residir com uns tios maternos, o qual a visita todas as semanas. 84. A arguida completou o 12º ano em ambiente prisional. 85. A arguida encontra-se bem inserida socialmente, sendo considerada na comunidade vicinal pelos laços de cordialidade estabelecidos, prevalecendo a imagem de pessoa responsável e organizada. 86. A arguida encontra-se bem inserida familiarmente, sendo o seu relacionamento com os familiares tido como harmonioso e de coesão, manifestando estes disponibilidade para a apoiar, quer no actual período de reclusão quer em liberdade, ao nível de enquadramento habitacional e apoio económico. 87. Em ambiente prisional tem mantido uma atitude de conformidade ao disciplinado exigido, apostando na sua formação profissional e ocupando-se também nas oficinas. 88. Os laços familiares têm sido mantidos através de contactos telefónicos e por um regime regular de visitas efectuadas pelos familiares próximos. 89. Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida. 90. 0 arguido BB abandonou a escolarização após a conclusão do 1° ciclo de ensino, iniciando o seu percurso laboral aos 14 anos de idade. 91. O arguido foi emigrante em França cerca de 10 anos, tendo amealhado algumas economias. 92. Regressado a Portugal, nos últimos 30 anos, sempre se manteve empregado, não lhe sendo conhecidas manifestações de traços agressivos ou observação de condutas anti-sociais. 93. Além da arguida AA o arguido BB tem um filho actualmente com 15 anos de idade, o qual se encontra aos cuidados de tios maternos. 94. O arguido congrega o apoio de familiares ascendentes, colaterais e descendentes em tudo o que tem sido e venha a ser necessário à sua subsistência. 95. O arguido é visto em meio laboral como um funcionário e uma pessoa excelente podendo retomar as respectivas funções e assegurar o seu próprio sustento. 96. Em meio prisional o arguido mantem uma conduta adequada e de ocupação com a responsabilidade pela gestão quotidiana da unidade onde está inserido. 97. A rede vicinal referencia o arguido e a sua família como trabalhadores, pessoas idóneas, solidárias e muito educadas. 98. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido. 99. O arguido CC é casado e tem três filhos que se encontram na Tunísia. 100. O arguido é engenheiro mecânico tendo mantido sempre actividade laboral. 101. Veio para Portugal em Maio de 2015 na sequência da estratégia de constituição da empresa “... Lda.". 102. O arguido é visto como trabalhador, calmo, solícito e muito educado no trato relacional. 103. O arguido tem recebido apoio dos familiares, com quem mantém contacto, tendo solicitado e sido autorizado a receber encomendas vindas do país de origem, o que ocorreu em pelo menos duas ocasiões. 104. O arguido tinha solicitado a 21.09.2015 prorrogação de permanência em Portugal, que veio a merecer despacho de indeferimento, estando o seu passaporte caducado desde 01.08.2016. 105. No meio prisional tem-se apresentado com respeito ao regulamento interno e adaptado no relacionamento interpessoal. 106. Encontra-se bem inserido laboralmente em meio prisional. 107. O arguido manifesta grande preocupação com o seu agregado familiar, em termos de subsistência, a qual era assegurada com o seu rendimento laboral, actualmente substituído pelo apoio económico da irmã da cônjuge, professora emigrada nos Emirados Árabes Unidos. 108. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido. 109. DD morreu no estado de solteiro, não lhe sendo conhecidos outros filhos que não o menor EE. 110. Na data da morte DD gozava de boa saúde e mantinha com o menor um bom relacionamento visitando-o com periodicidade. 111 . A sua morte veio privar o menor do convívio com o pai e de crescer na sua companhia e afecto. 2.2. Matéria de facto não provada Nenhum outro facto constante da acusação e com relevância para a causa resultou provado, nomeadamente: Aquando do descrito em 10. os arguidos CC e AA saíram da residência aproveitando que o DD se havia ausentado do local. No telefonema referido em 14. a arguida AA pediu ao arguido BB que viesse a casa nesse fim de semana por receio que algum mal lhe pudesse acontecer e para que este os ajudasse a resolver o diferendo com DD. Aquando do descrito em 15. o arguido CC pediu à arguida AA o número de telemóvel do DD a fim de marcar um encontro "a três", que a vítima terá declinado. O plano descrito em 17. foi gizado no momento descrito em 16. e no mesmo o arguido CC ficaria escondido na casa de banho junto aos anexos da garagem e o arguido BB junto à casa da sua mãe, distando da residência cerca de 50 metros. O encontro referido em 19. foi marcado antes do jantar. Aquando do descrito em 22. DD deixou a viatura que conduzia junto aos contentores do lixo existentes no entroncamento da ..., que dista cerca de 100 metros da casa dos arguidos, entrou pela rampa de acesso à garagem e continuou o seu percurso até ao coberto ali existente para se abrigar da chuva. As chaves referidas em 28. estavam no interior da bolsa a tiracolo que a vítima usava. h) O plano descrito em 81. foi minuciosamente traçado pelos arguidos.” II. – DIREITO. Com antelação à apreciação a efectuar, e porque as questões pertinentes aos respectivos recursos atinam com temas de direito calcorreados pelo acórdão recorrido no seu iter fundamentador, maxime a qualificação do ilícito típico e a individualização judicial das penas impostas, não será despiciendo aportar, como quadro performativo e delimitador, as linhas de argumentação que serviram o juízo conviccional pronunciador, troço adrede do acórdão recorrido. Assim, afirmou o tribunal recorrido, no apartado concernente (sic): “Qualificação jurídica dos factos Homicídio privilegiado. Os arguidos AA e BB, entendem que o tribunal qualificou erradamente os factos, pois consideram que deviam ser condenados pelo crime de homicídio privilegiado. Dispõe o art. 133º do Código Penal (Homicídio privilegiado) que «Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos». Alega a arguida AA e o arguido BB terem agido dominados "pelo desespero e medo que a conduta da vítima lhe provocou ", circunstâncias que lhes teriam diminuído sensivelmente a sua culpa. Estará, pois, em causa a verificação dos elementos «compreensível emoção violenta» e «desespero» constitutivos do crime de homicídio privilegiado. Sabemos que o crime de homicídio, como se diz nos autos, pode ser simples, que é o padrão, mas também ser praticado com culpa diminuída (crime privilegiado), ou com culpa agravada (homicídio qualificado). Ora, neste caso não se pode defender que existe uma diminuição da culpa da arguida, pois tal não encontra qualquer reflexo nos factos provados, sendo exigível a qualquer pessoa algum controlo sobre os sentimentos por ela desencadeados, sob pena de ser uma retaliação pela ofensa ou provocação sofrida, que a lei proíbe. Admitindo que há um contexto de medo e desespero em que se encontravam os arguidos AA e BB, o certo é que foi dado como provado a existência de um plano (n.º 17 dos factos provados), o que é susceptível de demonstrar, concordamos com o MP, que não existe conexão entre a emoção e o crime, e que o arguido foi atraído ao local do homicídio por um telefonema da arguida AA, necessariamente antecedente à sua chegada, pois há um espaço temporal entre os factos descritos sob os pontos 7 a 13, imediatamente antecedentes aos actos praticados no dia 3 de Outubro, e estes. Quer dizer, não há uma relação directa entre o estado de emoção provocado pelas ameaças, e a prática dos factos conducentes à morte do DD. A reflexão, a situação em que, entre o início da emoção violenta e o momento em que o agente pratica o crime, decorre determinado período de tempo, durante o qual, o agente reflecte sobre a prática do crime, é susceptível de excluir a "emoção" como factor de diminuição da culpa. Assim, repetimos, tal emoção não é "violenta", porque entre o último facto gerador da mesma, as perseguições e ameaças retratadas em 7. a 13., e a actuação da arguida imediatamente anterior ao "ataque" dos co-arguidos, indo ao encontro da vítima, no logradouro de sua casa, com o objectivo de o distrair (n.º 23.), medeiam mais de 48 horas, tempo suficiente para o homem médio, se não vencer a emoção, pelo menos atenuá-la significativamente. A recorrente refere mesmo nas suas alegações que quando telefonou ao DD foi para conversar, pelo que a emoção violenta na sua própria explicação estaria ultrapassada, face à intenção conciliadora que refere, sendo certo que não havia qualquer perigo eminente, real ou imaginário, no momento em que AA combina um encontro com DD. Por outro lado, o ofendido não praticou qualquer acto que, em concreto indiciasse que iria pôr fim à vida de qualquer dos arguidos, ou que fosse sua intenção levar a cabo as prometidas ameaças. Ainda de acordo com o depoimento do arguido BB, a recorrente AA tinha conhecimento que a vítima viria no dia do crime, pelas 23.00 a sua casa, pelo que deste depoimento apenas decorre que ele achava que a AA pensava que o CC apenas queria conversar, e que achava que tinha sido apenas com este propósito que a AA havia telefonado. Ora, o arguido BB limitou-se a emitir um juízo de valor, uma opinião, pelo que não tem qualquer valor probatório, porquanto não se trata de factos que tenha presenciado, mas apenas, e tão só, um juízo de valor, com base em conclusões por si próprio extraídas. Como dissemos, os dados do exame pericial ao telemóvel da arguida AA confirmam a existência de diversas chamadas da AA para o DD, com especial ênfase para uma chamada com a duração de 42 minutos, e outra com a duração de 17 minutos, sempre efectuadas do telemóvel da AA para o do DD. A própria arguida admite que efectuou uma chamada (pelo menos) para a vítima DD, ainda que (na sua perspectiva), na tentativa de colocar cobro às perseguições movidas pelo DD, e que combinou um encontro com este. Tudo isto parece ser uma reacção por antecipação, sem que o ofendido tenha praticado qualquer acto que, em concreto indiciasse que iria pôr fim à vida de qualquer dos arguidos, ou que fosse sua intenção levar a cabo as prometidas ameaças, nem é compatível com um estado violento de emoção, ou desespero, a preparação de uma emboscada ao ofendido. Assim, estando demonstrado que os recorrentes, AA e BB agiram na concretização de um projecto pensado e preparado, deliberada, livre e conscientemente (cfr. pontos 17, 18, 19, 79 e 80 da matéria provada), é de afastar a ideia de que possam ter agido dominados por uma «compreensível emoção violenta», susceptível de diminuir acentuadamente a sua culpa. Nada há que nos diga que não se pudesse exigir aos arguidos - como a qualquer cidadão normal encontrado na mesma situação - o controlo dos seus sentimentos e a adopção de uma conduta diferente da que levou a cabo. Por isso, como refere o MP, não é compatível com um estado violento de emoção, ou desespero, a preparação de uma emboscada ao ofendido, nem o facto de os arguidos, terem elaborado um plano com vista a atrair o ofendido a um local que lhe era familiar, a fim de aí, portando objectos de que previamente se haviam munido, lhe tirarem a vida, como haviam planeado. Improcedem, pois, os recursos da arguida AA e BB, também, no que respeita à censurada subsunção jurídico-penal dos factos provados. Medida da pena Nos termos do artigo 40º, n.º1 do CP, a finalidade das penas é a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, designados como prevenção geral positiva ou de integração e prevenção especial de socialização, traduzindo, por um lado, o reforço da consciência comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma legal; e, por outro lado, a necessidade de um juízo de prognose do julgador quanto aos efeitos da pena na futura conduta do delinquente. A medida concreta da pena encontrar-se-á em função da culpa do arguido, tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial que se pretendem cumprir com a mesma. Assim, a culpa do arguido fixa o limite máximo da pena (cfr. artigo 40°, n.º 2), e o seu limite mínimo é determinado pelas exigências de prevenção geral, sendo que a prevenção especial justificará a fixação, dentro dos limites expostos, do quantum da pena, sendo que o artigo 71º, n.º 1 do CP refere que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Ora, no caso concreto, o tribunal recorrido considera que o grau de ilicitude dos factos, é elevadíssimo face ao modo como foram praticados, a utilização de uma multiplicidade de instrumentos, a existência de um plano prévio (que como supra exposto não fundamenta a qualificativa do crime, mas tem de ser devidamente valorado a nível da medida concreta da pena), ao facto de ter sido praticado por mais do que um agente, à multiplicidade de lesões provocadas em diferentes partes do corpo, e com especial incidência na cabeça e tronco; o dolo é directo; atendeu ao contexto em que os crimes foram praticados, numa altura em que a vítima, DD, ameaçava a arguida AA (filha e, à data, namorada dos arguidos BB e CC respectivamente), de que a matava e retirava o filho, situação que se agudizou nos dias imediatamente anteriores ao crime; à ausência de antecedentes criminais dos arguidos e boa inserção familiar, social e profissional dos mesmos; o que atenua as necessidades de prevenção especial e às necessidades de prevenção geral, associadas ao grande alarme social que reveste este tipo de criminalidade. As exigências de prevenção geral são determinantes na fixação da medida da pena, face à necessidade de reafirmação da validade das normas, defendendo o ordenamento jurídico e assegurando segurança à comunidade, para que esta sinta confiança e protecção pela norma, apesar de violada. Estes valores têm de ser coordenados com as exigências de prevenção especial, evitando a reincidência, e possibilitando a socialização do agente com vista a respeitar os valores comunitários fundamentais tutelados pelos bens jurídico-criminais, sem esquecer que foi violado o maior valor jurídico, que é a vida humana. Assim, temos que é elevadíssimo o grau de ilicitude, a multiplicidade de instrumentos, o agir de acordo com um plano previamente delineado, e a forma como ocorreram as agressões, o que leva a concluir que seria inaceitável para a reposição da confiança comunitária na validade da norma, uma pena que se situasse aquém da medida imposta pelo tribunal a quo, pelo que neste ponto, improcede o recurso dos três arguidos. Vejamos agora o mérito dos recursos interpostos pelo MP e pela Assistente que suscitam, como vimos, as seguintes questões: Qualificação jurídica dos factos provados; medida da pena, ou seja, consideram que o crime de homicídio é qualificado, devendo as penas, consequentemente, serem agravadas. Vimos que o Tribunal a quo baseou a sua decisão, em relação ao crime de homicídio, na inexistência de especial censurabilidade e perversidade nas condutas dos arguidos aquando da prática dos factos que conduziram à morte da vítima DD. Ora, os arguidos vinham acusados de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelo artigo 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas b.), h.) e j.) do C.P, tendo o tribunal a quo entendido que a norma legal aplicável ao caso em concreto é a constante do artigo 131.º do C.P., sustentando que os arguidos cometeram tais factos, movidos pelo medo e receio que tinham da vítima DD, sem lhes poder ser atribuída a especial censurabilidade e perversidade do artigo 132.º do C.P, uma vez que os já referidos estados emocionais os levaram a cometer tal ilícito. O artigo 132º, n.º 1 refere que «se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos». O artigo 131º constitui o tipo fundamental dos crimes contra a vida, sendo a partir dele que a lei edifica os restantes tipos de crimes contra a vida, designadamente o crime de homicídio qualificado. No n.º 2 do artigo 132º refere-se que «é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente», descrevendo, depois, uma série de condutas. Vejamos agora o caso concreto. Sabemos que no cumprimento do plano traçado pelos arguidos, os arguidos BB e CC muniram-se de objectos, nomeadamente machada e faca, para surpreenderem a vítima e lhe retirarem a vida. Atento o local do crime, o logradouro da residência dos arguidos AA e BB, os arguidos muniram-se deles previamente, recolhendo-os na garagem da habitação, e montaram uma emboscada à vítima, aproveitando-se do factor surpresa, que com a arguida AA haviam acordado. Por isso, há uma efectiva premeditação quanto ao uso de meios, em ordem a potenciar o objectivo a que se haviam proposto. Assim, atenta a matéria de facto provada, os arguidos resolveram preparar uma cilada à vítima, atraí-lo a um local que lhe era conhecido, e onde sabia residir o seu filho, e aí, distraído pela presença da arguida AA, os arguidos BB e CC surpreenderam a vítima, ou seja, fez parte do plano atrair a vítima, de forma enganadora e dissimulada, a um local que não lhe gerasse desconfiança em relação ao motivo pretendido. Para isso, a arguida AA telefonou à vítima DD, marcando um encontro na sua residência com o mesmo, enquanto que os arguidos CC e BB, permaneceriam escondidos na residência, com o intuito de surpreenderem a vítima DD aquando da sua chegada. Do ponto 23 e 24 da matéria de facto dada como provada, resulta que a arguida AA, ao aperceber-se da chegada da vítima DD às imediações da sua residência, caminhou na sua direcção, distraindo-o, tal como previamente combinado com os co-arguidos, altura em que os arguidos CC e BB irromperam dos seus esconderijos, surpreendendo a vítima DD, sendo que os arguidos já estavam munidos das armas do crime, indo a arguida AA refugiar-se no interior da residência, onde se encontravam o seu filho e o seu irmão, ambos menores. Por outro lado, resulta ainda da matéria de facto dada como provada, concretamente nos pontos 1. e 2., que a arguida AA e a vítima DD, viveram em união de facto durante sete anos, tendo resultado desse relacionamento amoroso um filho, pelo que a vítima DD era para a arguida AA mais do que uma relação amorosa falhada, pois era progenitor de um filho comum e tinha sido o seu companheiro durante sete anos. Assim sendo, os laços familiares existentes entre a arguida AA e a vítima DD, deveriam funcionar como um travão para adopção deste tipo de comportamentos criminais, não devendo este tipo de comportamentos ser justificado apenas com o medo e receio que arguida AA tinha da vítima. A arguida AA sabia que a vítima era o pai do seu filho, que visitava o menor, não tendo pensado nas consequências que tais factos poderiam acarretar para o menor. Ora, o medo e o receio invocados, devem levar antes, a que as pessoas se dirijam às autoridades competentes e as deixem tratar do assunto e não tentar fazer justiça pelas próprias mãos. Por isso, é revelador de especial censurabilidade e perversidade o facto deste comportamento da arguida AA ter como causa desentendimentos resultantes da anterior união entre a vítima e a arguida, da qual resultou um filho comum que à data dos factos contava três anos de idade, que a arguida sabia deixar órfão, O facto de a vitima ter perseguido a arguida nas circunstâncias descritas nos pontos 9 a 13, a ter ameaçado que lhe retirava o filho e que a matava, ocorridos dois dias antes do homicídio (depois de tais factos a própria AA telefonou ao DD), não constituem circunstâncias extraordinárias que compensem ou justifiquem o seu comportamento, como dissemos. não obstante o ciúme e a perseguição que a vítima exercia sobre a arguida, em virtude da relação que ela tinha com o co-arguido CC. Porém, a circunstância qualificativa da alínea b), relativa ao vínculo familiar da arguida AA com a vítima DD, não é comunicável aos demais arguidos, porque valora uma especial relação pessoal entre a vítima e o arguido. Assim sendo, verifica-se a qualificativa da alínea h), pois estamos perante um crime planeado e executado, em acção concertada, pelos três co-arguidos, que formaram um projecto criminoso, distribuíram tarefas entre si, criando condições materiais para que não falhassem os seus intentos e assim revelando claramente uma culpa especialmente agravada, embora não tenha sido provado que a arguida AA tenha desferido algum golpe na vítima DD, mas sem a sua actuação tal morte nunca se poderia ter produzido. Aliás, a actuação da arguida AA foi condição necessária para a produção da morte da vítima DD, pois resulta da matéria de facto dada como provada que o plano foi elaborado pelos três arguidos, estando a arguida AA encarregue de atrair o DD à sua residência, encenando uma conversa para depois os outros dois arguidos o atacarem, causando-lhe a morte. Vimos que a morte da vitima se deveu a vários factores e condições dependentes umas das outras, pois cada arguido tinha o seu papel e que com a conjugação dos seus esforços seria a única forma de atingir o resultado pretendido, sendo que o factor surpresa essencial para a consumação dos factos, bem como a superioridade numérica dos arguidos para a produção do resultado desejado. Ora, esta circunstância prevista na mencionada alínea h) baseia-se essencialmente na colocação da vítima numa dificuldade particular de se defender, pois a vítima foi colocada numa situação em que lhe era particularmente difícil defender-se, desde logo pela surpresa do ataque, ocorrido num local que lhe era conhecido e familiar. Por outro lado, a arguida AA atraí-o para aquele local, por forma a que os co-arguidos o apanhassem de surpresa, e dada a superioridade numérica, o dominarem, manietando-o e provocarem-lhe a morte com inúmeros golpes de machada e faca, entre outros. Em relação à qualificativa da alínea j), constatamos também a sua verificação, pois sendo os motivos que conduziram ao crime, prévios à sua execução e tendo esta sido previamente preparada com a escolha do local e da hora do encontro com a vítima e das armas (uma machada, uma faca e um instrumento pontiagudo), colocando a vítima numa situação que a impossibilitava de fugir ou de se defender, estamos perante uma ponderada reflexão sobre os meios empregados no cometimento do homicídio reveladora de especial censurabilidade e perversidade. Ora, a frieza de ânimo por parte dos arguidos, releva o plano previamente gizado pelos mesmos, com a repartição de funções que foram na íntegra cumpridas, apanhando a vítima totalmente desprevenida e desferindo variados golpes no crânio da mesma, tendo o plano sido executado e consumado na residência dos arguidos BB e AA, onde residiam o filho desta e o seu irmão, filho de BB, ambos menores. Por isso, a personalidade dos agentes, reflectida na prática dos factos, revela uma particular crueldade patente nos inúmeros golpes em diversas partes do corpo, Assim, atenta a matéria de facto, com a descrição dos instrumentos do crime, o motivo, bem como o local e hora, é imperativo ter como especialmente censurável tal conduta. Tudo isto revela na personalidade dos agentes, reflectida na prática dos factos, uma particular crueldade face aos inúmeros golpes em diversas partes do corpo.” II.1. – Recurso do Ministério Público. II.1.a). – Nulidade do acórdão por falta de fundamentação da pena única (“que tenha em conta a reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade dos arguidos, verificada no caso em apreço, fere de nulidade o acórdão recorrido, nessa parte (artigos 379º, nº 1, al. a), e 374, nº 2, do C. P. Penal). Invectiva o Ministério Público o acórdão recorrido por (sic): “a ausência de fundamentação especial da pena única, que tenha em conta a reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade dos arguidos, verificada no caso em apreço, fere de nulidade o acórdão recorrido, nessa parte (artigos 379º, nº 1, al. a), e 374, nº 2, do C. P. Penal). É, ademais, incompreensível, face ao teor da decisão, que o tribunal a quo tenha aplicado a mesma pena unitária (16 anos de prisão) aos arguidos BB e CC, quando é certo que manteve inalteradas as penas individuais pelo crime de profanação de cadáver aplicadas em 1ª instância àqueles arguidos (10 meses de prisão ao arguido BB e 8 meses de prisão ao arguido CC).” Discreteando sobre a decisão judicial, Luís Benéytez Merino, magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal Supremo (do reino de Espanha), estima que na primeira linha das considerações a ponderar é “a circunstância de que a decisão judicial se pronuncia sempre perante pessoas: o mandato jurídico , em que ao fim e ao cabo se resume a sentença, tem como termino ou destinatário uma pessoa, que resulta especialmente obrigada ou afectada per ele; assim, para pôr um exemplo, no processo penal a sentença condena ou absolve uma pessoa, contra a qual se desenvolveu o processo, sem prejuízo de que, ao mesmo tempo, a sentença afecte de maneira considerável outras pessoas, como o possível prejudicado, assim como a quem haja, eventualmente, actuado como acusador particular, e, desde logo, afecta a sociedade em geral, sempre interessada na correcção da sentença penal, que, por isso, tem como valedor permanente no processo o Ministério Público. O mesmo se pode dizer das demais manifestações do processo. O facto de a sentença se pronuncie perante cidadãos, que ostentam a dignidade de pessoas é a origem e fundamento dessa série de exigências éticas (…). A dignidade da pessoa, que é qualidade inerente aqueles que vão a suportar as consequências da decisão judicial consiste em que se trata de seres humanos dotados de consciência moral, que dizer seres racionais, que possuem inteligência e vontade com a possibilidade consequente de decidir-se a obrar sob o pressuposto da liberdade.” O mandato jurídico em que a sentença se transverte “exige que o dito mandato seja racionalmente aceitável, congruente com o actuado no processo e proferido com clareza suficiente de forma a resultar plenamente inteligível, pois todas essas qualidades da decisão são necessárias para que se produza esse assentimento racional ao mandato da sentença e com ele a consequência do seu acatamento e espontâneo cumprimento.” [[13]] É consabido, e não é demais afirmá-lo, que é através da sentença que o tribunal procede à reconstituição/interpretação de factos históricos, procedendo, depois, à sua integração/valoração à luz de normas jurídicas pré-existentes, concluindo dessa operação com o veredicto jurisdicional que deve ser acatado por aqueles a quem, ou contra quem, o dictum é proferido. Neste proceder/refazer histórico, o tribunal socorre-se de regras de experiência e de métodos lógico – racionais que possibilitem demonstrar a verosimilhança da situação reconstituída com o real acontecido – cfr. Paolo Tonini, La prova Penale, Cedam, 200, apg. 27 e segs. e Winfried Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal, Bosch, pag. 179 e segs.(Na acepção deste segundo Autor a reconstituição do sucedido prende-se com o princípio da verdade material e da racionalidade do direito da prova e, ainda, da essência da compreensão (aqui nas vertentes da compreensão cénica e da compreensão textual). No dizer de Andrea António Dália e Marzia Ferraioli “a sentença tem um duplo conteúdo, porque é, a um tempo uma declaração de vontade e um acto de inteligência: exprime a aplicação da norma no caso concreto e dá razão de tal aplicação” – Manuale di Diritto Processuale Penale, Cedam, pag. 749. É com base nas provas que foram adquiridas para o processo (ou no decurso do processo), que o juiz reconstitui o facto histórico cometido pelo imputado (mottivi “in fatto”); logo (a seguir) interpreta a lei e precisa o “fatto típico”, previsto na norma penal incriminadora (mottivi “in diritto”), finalmente valora (aprecia) se o facto histórico “rientra” no facto típico (giudizio di conformitá) – op. loc. cit. pag. 28. O tribunal tem a obrigação de expor as razões de facto e de direito que enformam a sua convicção e justificam a sua decisão, num ou noutro dos sentidos possíveis que qualquer situação histórica pode conter. Não pode o tribunal bastar-se com alusões pervagantes dos momentos probatórios em que se vazou a actividade probatória, nem em asserções apodícticas de juízos adquiridos em concepções pré – estabelecidas. Deve o tribunal expor as razões da sua convicção adquirida num “ragionamento” objectivo, lógico e arrimado às regras comummente assimiladas pelo proceder do homem em sociedade e segundo padrões de razoabilidade e bom senso. A obrigação de motivação dos actos judiciais está consagrada constitucionalmente e tem o seu vazamento em todos os ordenamentos jurídico-adjectivos.(“O juiz deve dar conta dos resultados probatórios adquiridos e dos critérios com base nos quais valorou tais resultados. Deve, portanto, proceder à exposição concisa, mas exaustiva, dos motivos de facto e de direito sobre os quais funda a decisão, com indicação dos elementos de prova que lhe estiveram na base e a enunciação das razões que o induziram a julgar não atendíveis os elementos de prova contrários”). [[18]] Deve, pois, o julgador, quando obtém, e depois propõe e assume, uma determinada convicção, elucidar as pessoas a quem se dirige quais foram os caminhos percorridos para chegar até ela e os meios de prova que valorou e quais desbordou para se alçar à decisão conviccional que verteu no texto decisório. Não basta uma simplista e cómoda alusão que, em relação a um determinado facto ou a um conjunto, mais ou menos alargado de matéria factual, bem com a vaga indicação de que ocorreu ausência de prova. Exige-se que o julgador joeire a prova, indique pontos de convergência e de divergência, suscite e convoque os dissídios entre os distintos elementos probatórios em confronto, procure estabelecer a plataforma de consenso que, razoavelmente, e de acordo com as regras normais do proceder e do agir humano e societário, naquela concreta e histórica situação se apresentam como mais plausíveis, aceitáveis e credíveis, por forma a que a verdade histórica e processual fique inconcussa e se perfile como logicamente compreensível. [[19]] É necessário que aquele que tem a função de julgar, em obediência e com arrimo à lei e ao direito, procure explicitar as razões das suas decisões e, mais ainda, que dê a conhecer o iter racional e lógico por que chegou aquela e não a outra decisão. T. Sauvel, citado por Chaim Perelman, num artigo denominado “Histoire du jugement motivé”, considera que “motivar uma decisão é expressar-lhe as razões. É, deste modo, obrigar quem a toma a tê-las. É afastar toda a arbitrariedade. Somente graças á motivação aquele que perdeu um processo sabe como e porquê. A motivação convida-o a compreender a sentença e não o deixa entregar-se por muito tempo a amargo prazer de “maldizer os juízes”. [[20]] É ainda este autor quem, impressivamente, incute a ideia de que “a sentença motivada substitui a afirmação por um raciocínio e o simples exercício de autoridade por uma tentativa de persuasão. Desempenha, desta forma, no que poderíamos chamar de equilíbrio jurídico e moral do país, um papel absolutamente necessário”. Através da motivação judiciária associa-se a demonstração e a justificação das decisões judiciais, “afirmando-se um lugar onde para usarmos a terminologia de Robert Alexy, se exprime a justificação interna da decisão ou da justeza do dispositivo da aplicação do direito, de feição demonstrativa, e a justificação externa da decisão, justificação propriamente dita dos motivos que determinaram as escolhas, de feição mais argumentativa e que constitui o paradigma de fundamentação de fundamentação em Filosofia”. [[21]] “A justificação judicial pode, portanto, cumprir outras funções: “Trata-se de tratar um ser humano racionalmente, isto é, como um ser racional, explicando-lhe, através das razões porque se pode chegar a uma decisão que afecta adversamente os seus interesses. O próprio Luhman considera necessário “que os não participantes cheguem a uma convicção de que nada de estranho está acontecendo, de que a verdade e a justiça estão sendo estabelecidos com esforço sério, sincero e árduo e que eles também, se for necessário, terão assegurado os seus direitos pelo recurso a esta instituição”. [[22]] A motivação é informada, ou perpassada, por um princípio basilar, qual seja o da completude. Finca-se este princípio na necessidade de uma justificação cabal de todas as razões que determinaram a valoração (lógico-racional), tanto de facto como de direito, em que o Juiz se escorou para conferir determinada opção ou eleição decisória. No ensino de Michele Taruffo o princípio da completude comporta duas implicações. “[A] primeira implicação é que a motivação completa deve incluir tanto a chamada justificação interna, que atende à conexão lógica entre premissas de Direito e premissa de facto (a chamada subsunção do facto à norma) que sustenta a decisão final, como a justificação externa, quer dizer, a justificação das eleições das premissas das quais deriva a decisão final. A justificação externa da premissa de facto da decisão concerne às razões pelas quais o juiz reconstruiu e determinou de uma dada maneira os factos da causa: estas razões referem-se, essencialmente, às provas das quais o juiz se serviu para decidir acerca da verdade ou falsidade dos factos.” [[25]] No entanto, como adverte este autor, torna-se necessário eliminar um equívoco, consistente em considerar que a motivação é uma espécie de registo do razoamento que o juiz desenvolveu para chegar à decisão. “[P]elo que respeita à motivação do juízo de facto, a motivação seria então uma espécie de narrativa (recuento) do que o juiz havia pensado ao praticar as provas, ao valorá-las e ao derivar delas a decisão final. Trata-se de uma concepção errada: há que distinguir entre o razoamento com que o juiz chegou a uma decisão e o razoamento com que o juiz a justifica. O primeiro razoamento tem um carácter heurístico, procede por hipóteses verificadas e falseadas, inclui inferências abdutivas e articula-se numa sequência de eleições até à eleição final sobre a verdade ou falsidade dos factos. A motivação da decisão consiste num razoamento justificado que - por assim dizer - pressupõe a decisão e está dirigida a mostrar que há «boas razões» e argumentos logicamente correctos, para a considerar válida e aceitável. Naturalmente, pode suceder que haja pontos de contacto entre as duas fases do razoamento do Juiz: o juiz que sabe que deve motivar estará induzido a razoar correctamente ainda quando está valorando as provas e formulando a decisão. O mesmo juiz ao redactar a motivação, poderá completar argumentos e inferências que formulou ao valorar as provas e ao configurar a decisão final. Isto não demonstra, sem embargo, que as duas fases de razoamento do juiz tenham a mesma estrutura e a mesma função, nem muito menos que uma possa considerar-se como uma espécie de reprodução da outra,” [[26]/[27]] Assim é que, por exemplo, quando um tribunal procede à reapreciação da decisão de facto deve motivar a sua decisão, conformando e satisfazendo a exigência constitucional imposta aqueles a quem a lei confere o poder de administrar a justiça, e como forma de esse poder aparecer aos olhos dos destinatários de veredicto judiciário legitimado e reconhecido pela racionalidade e vinculação a valores de justiça e não por assumir decisões fundadas na discricionariedade, na irrazoabilidade e no arbítrio. Os destinatários da decisão, porque, de ordinário, são por ela afectados na sua esfera de interesses, devem poder conhecer as razões e motivos porque o tribunal assumiu, ou elegeu, uma determinada opção em detrimento de outra. A realização de um juízo de justiça deve, assim, ser suportada pelo razoamento e pela explicitação dos motivos e razões que determinaram um órgão investidos do poder de julgar opcionou num determinado sentido factual e/ou jurídico. E isto, como se deixou aflorado deve ser assumido tanto na sua vertente endoprocessual como extraprocessual, confirmando desta forma uma das funções determinantes da acção jurisdicional na legitimação interna e externa do processo. [[28]] Entre os aspectos determinantes da função extraprocessual da motivação, Michele Taruffo assinala a instrumentalidade que caracteriza a obrigação constitucional da motivação “[c]om respeito às garantias fundamentais relativas á administração da Justiça: é mediante a motivação, com efeito, que se torna possível controlar se em cada caso se cumpriram efectivamente princípios como o da legalidade ou os atinentes ao “devido processo”. “Outro aspecto relevante de la función de la motivación, que está en el lundamenta de su obligatoriedad, es que induce al juez a demostrar, justificando su decisión, que hay razones válidas para considerar la decisión misma como coherente con el sistema jurídico en el que se inserta. En este sentido, la motivación desarrolla una función de legitimación de la decisión, em cuanto muestra que responde a critérios que guían el ordenamiento y gobiernan la muestra la actividad del juez”. [[29]] Discorrendo sobre a natureza da motivação este autor assevera que não será correcta a ideia que parece querer impor-se de que o juiz deveria reproduzir o percurso lógico e psicológico da decisão que tomou “[a] a decisão estaria motivada sobre a base de uma espécie de explicação, quer dizer sobre a base de momentos e passagens mediante os quais a decisão se foi formando na mente do juiz”. “Este modo de entender la motivación como un discurso que desenhe la formación de la decisión está bastante difundido pero es impropio y está sustancialmente equivocado por varias razones que se pueden indicar sinteticamente.” [[30]] A primeira é que a psicologia da decisão e a estrutura da sentença não são coisas qualitativamente diferentes e deve ser evitada a confusão entre elas. Por outro lado parece óbvia a impossibilidade de, para o juiz, redactar uma espécie de registo ou reconto das suas próprias passagens mentais para explicar como chegou á decisão: “[el] procedimiento mental del juez se desarrolla em vários momentos en el curso del proceso, y sóIo al flnal lleva a cabo la decisión final.” “En otros términos lo que se exige al juez cuando se le impone la obligación de motivación, es suministrar una justificación racional de su decisión, es decir, desarrollar un conjunto de argumentaciones que hagan que su decisión resulte justificada sobre la base de critérios y estándares intersubjetivos de razonamiento. Si se acoge, como parece necesario, la concepción «legalracional» de la justicia, em los términos que han sido establecidos claramente por ejemplo, por Jerzy WROBLEWSKI con referencia a ordenamientos que – como el nuestro – están marcados por el principio de la legalidad, resulta evidente que la motivación de la sentencia consiste precisamente en un discurso justificativo en el que el juez enuncia y desarrolla las «buenas razones» que fundamentan la legitimidad e la racionalidad de la decisón”. [[31]] Arrancando destes ensinamentos, o juiz que reaprecia a prova, em via de recurso, deve “[S]iempre y cuando eI juez haya motivado su razonamiento probatório, el juez ad quem podrá revisar las declaraciones prestadas por los sujetos del proceso, y comprobar que efectivamente eran coherentes, estaban corroboradas, contextualizadas y no contenían detalles oportunistas, siempre que cada uno de esos aspectos sea relevante en el caso concreto, […] El juez de apelación, finalmente, puede hacer algo más que descubrir los errores en el razonamiento probatório de la forma indicada. También puede, a raiz del descubrimiento de dichos errores, valorar conjuntamente toda la prueba practicada y extraer una versión diferente a la afirmada por el juez a quo.” [[32]] Já quanto ao razoamento necessário e institucionalmente validante de uma decisão judicial este Mestre processualista italiano refere que o razoamento do juiz – para aqueles que, como ele, inculcavam à fundamentação (motivação da decisão judicial) uma distinção entre razoamento decisório e razoamento justificativo – se devia desdobrar em dois planos, pois “uma coisa é o procedimento através do qual o juiz chega a formular a decisão final, mediante uma concatenação de eleições, de hipóteses constatadas como falsas ou confirmadas, de mutações que intervêm no curso do processo, de elaborações e valorações que desembocam na decisão final; e outra coisa é o razoamento com o qual o juiz, após haver formulado a decisão final, organiza um razoamento justificativo no qual expõe as «boas razões» em função das quais a sua decisão deveria ser aceitada como válida e compatível.” Refere o autor que esta distinção e forma de enquadrar o razoamento judicial, se equivale ao context of discovery: “que tinha características estruturais próprias: articula-se no tempo, implica a síntese de diversos factores, procede através de abduções e de trial and error, percorre caminhos que logo são abandonados, inclui a influencia de factores psicológicos e ideológicos, implica juízos de valor, e pode inclusivamente compreender a participação de várias pessoas, como ocorre em todas as hipóteses nas quais a decisão é tomada por um colégio de juízes.” Por outra parte o equivalente do context of justification apresentar-se-ia como sendo verdadeiramente como a motivação da sentença. Esta motivação configurar-se-ia como sendo aquela que surge quando a fase decisória já está esgotada e a decisão final já foi assumida “não tem a função de formular eleições, mas sim mostrar que as eleições que se realizaram foram «boas»; tem uma estrutura argumentativa e não heurística; tem uma função justificativa ; é um discurso – e, portanto uma entidade linguística – e não um iter psicológico; funda-se em argumentos com valência tendencialmente intersubjectivo; está estruturada logicamente: pode incluir inferências dedutivas e indutivas, mas não de abdução, e assim sucessivamente.” [[33]] Se não se pode saber com o juiz tomou uma decisão, ou seja quais são «as razões reais» pelas quais o juiz elegeu um determinado vector decisório e logo o assumiu como decisão (definitiva), poderá sempre ficar-se a saber quais as «boas razões» que justificam a decisão tomada, se a justificação que for assumida lograr uma concatenação lógico-racional que permita ao destinatário percepcionar e compreender, de forma inteligível, clara e válida que as «boas razões» que estiveram na base e por detrás da decisão tomada se articulam num contexto de sentido racional aceitável e admissível à luz de valorações e princípios comummente aceites pelo substrato ideológico prevalente num determinado e dado contexto societário. A motivação (justificativa) deve ser entendida, no ensino do Mestre que vimos citando, “como um discurso elaborado pelo juiz com o intento de tornar evidente (“volver manifesto”) um conjunto de significados: isso significa, para além disso, que a motivação deve ser configurada como um instrumento de comunicação que se insere (“inserta”) num procedimento comunicativo, que tem a sua origem no juiz e que está encaminhado para informar as partes, e também ao público em geral, aquilo que o juiz pretende expressar.” “A motivação não deve ser vista como um todo unitário e homogéneo, mas sim como um conjunto de entidades que, sob certos aspectos, são heterogéneos entre si: tratando-se de um discurso, entendido com um conjunto de proposições, poder-se-ia definir a motivação como o conjunto de signos linguísticos, quer dizer, como um signo complexo, dependendo do que se queira evidenciar a variedade das suas componentes, ou ainda a sua inserção (“ubicación”) num mesmo conjunto” [[34]] Quando falte, ou contenha de forma não suficientemente explicita, compreensível ou perceptível, qualquer uma das exigências fundantes da estruturação e composição da sentença, a decisão proferida não cumpre o fim para que tende na sua necessária relação comunicacional com os destinatários, a saber os sujeitos processuais, em primeira linha, e o público ou a comunidade em geral, em derradeira função da administração da Justiça. [[37]] De forma apodíctica, a fundamentação deve servir, no dizer de Chaïm Perelman, para convencer os destinatários do veredicto do órgão decisório da coerência interna do raciocínio lógico seguido pelo julgador no processo de formação da sua convicção e na justificação do ato decisório que desse processo emana, tendo em linha de conta a vivência normal dos indivíduos numa determinada sociedade, histórico-socialmente situada e as regras de direito aplicáveis ao caso. Ainda para este autor, in Lógica Jurídica, Martins Fontes, S. Paulo, p. 238, “as decisões de justiça devem satisfazer três auditórios diferentes, de um lado as partes em litigio, a seguir, os profissionais do foro e, por fim, a opinião pública, que se manifestará pela imprensa e pelas reacções legislativas ás decisões dos tribunais”. Ainda para este autor “motivar uma decisão é expressar-lhe as razões. É, deste modo, obrigar quem a toma a tê-las. É afastar toda a arbitrariedade”.[[38]] “O dever de fundamentação cumpre, no essencial, a ideia de que o tribunal “administra a Justiça”, tal qual ela se deve precipitar, concretamente, num certo juízo jurisdicional. O que significa que, no concreto juízo jurisdicional, deve estar suficientemente demonstrado que a decisão final tomou em devida consideração todos os argumentos (de facto e de direito) aduzidos pelas “partes” na audiência de julgamento (o que, no nosso processo penal, significa uma decisão fundamentada quanto ao que “resta” de um conflito penal. Assim, este dever de demonstração implica (agora para o processo penal), a possibilidade de reconhecimento de que o concreto juízo jurisdicional corresponde a uma decisão sobre todas as questões cuja apreciação foi solicitada ao tribunal, por parte os sujeitos processuais”, [[39]] “o dever de fundamentação cumpre, no caso de decisão condenatória, não só uma função de garantia perante o arguido (a de que este é condenado, por um juízo que demonstre, através de uma fundamentação, que foram tomados em consideração todos os contributos – as suas declarações e os meios de prova que apresentou), mas representa também a garantia “institucional” de uma condenação que não deixa margem para quaisquer dúvidas, por tal forma que a concreta decisão se afirme como “aceitável” nas suas premissas de facto e de direito”. [[40]] Na sequência do que entende por dever de fundamentação e dever de motivação, este autor escreve, mais adiante que “o dever de motivação cessa necessariamente onde esteja em causa o princípio da livre apreciação da prova – ou, talvez melhor de livre apreciação das provas. Este aspecto merece alguma atenção, pois que, o dever de motivação levado a extremos, pode implicar a reconsideração do princípio de livre apreciação das provas. Se, de facto, ao tribunal compete necessariamente dar conta das provas decisivas para a decisão (o que, por si, é já um limite à tradicional consideração do princípio da livre apreciação), exigir-se uma motivação profunda que conduza a uma espécie de discurso justificativo sobre toda as operações mentais que levaram o tribunal a dar um “facto” como provado, para além de deparar com dificuldades inerentes à composição dos tribunais colegiais e à sua forma de deliberação, poderia transformar o tribunal de recurso – quando o recurso fosse pensado a partir de uma efectiva “motivação” – num “substitutivo” do sistema de provas legais (por tal forma que o tribunal de recurso fizesse, ele próprio, uma valoração da prova, acabando, ao invés de censurar a decisão, por proceder a um juízo, mas com inversão das regras de audiência de julgamento) ou, então, numa espécie de juízo por parâmetros. Aquilo que o tribunal de recurso pode essencialmente censurar, é a violação de todo o conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação das provas (que limitam o arbítrio na sua apreciação), exactamente: as regras [[41]] de experiência comum, o princípio in dubio pro reo, o princípio da presunção de inocência e, em especial, aquele que está directamente ligado à afirmação de uma culpabilidade pelo facto isenta de qualquer referência a características pessoais do arguido”. Será, pois, nestes precisos limites que o dever de fundamentação se deverá expressar e não já, como parece querer exigir o recorrente, entrar na intima ou interior convicção do julgador, seja ela medida ou aferida por esquemas mentais explorados por Habermas ou Florescu, [[42]] seja mesmo pela exigência de escandir e pontualizar todos os momentos psicológicos que intervieram na formação da convicção. O processo de formação da convicção não é um processo linear e passível de ser descrito sem intervenção e apelo a soluções exteriores, porque interiormente acumuladas com o saber e a experiência de quem decide, sendo passível de serem encontradas fissuras ou descompensações intelectivas que, contudo não podem abalar a compreensão de quem analisa e contextualiza a explicação critica apresentada numa decisão. O processo de formação de um juízo de probabilidade acima de uma dúvida razoável e cerca da certeza histórica constitui-se como um proceder entretecido e entramado de pontos essenciais, que congraçados com alguns outros de menor densidade real/material, se concitam num núcleo mental arrimado a uma realidade histórica que se nos prefigura como plausível e adequada ao acontecer histórico normal e comum. A falta de fundamentação não se confunde, ou não pode ter a mesma dimensão compreensiva, da falta de convencimento que essa fundamentação opera no destinatário. Para este a fundamentação pode não ser suficiente para os fins que prossegue e que anseia da decisão do órgão jurisdicional, mas esta perspectiva não pode obumbrar o fim constitucional do dever de fundamentação enquanto dever geral e comum de percepção do sentido das decisões por todos aqueles que delas tomem conhecimento ou que delas sejam destinatários. Do troço do aresto recorrido supra extractado, é possível constatar que o tribunal recorrido não procedeu a uma exposição avantajada e munificente dos motivos por que impunha as penas que acabou por impor. No entanto, sempre foi adiantando que (sic): “Nos termos do artigo 40°, n.º1 do CP, a finalidade das penas é a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, designados como prevenção geral positiva ou de integração e prevenção especial de socialização, traduzindo, por um lado, o reforço da consciência comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma legal; e, por outro lado, a necessidade de um juízo de prognose do julgador quanto aos efeitos da pena na futura conduta do delinquente. A medida concreta da pena encontrar-se-á em função da culpa do arguido, tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial que se pretendem cumprir com a mesma. Assim, a culpa do arguido fixa o limite máximo da pena (cfr. artigo 40°, n.º 2), e o seu limite mínimo é determinado pelas exigências de prevenção geral, sendo que a prevenção especial justificará a fixação, dentro dos limites expostos, do quantum da pena, sendo que o artigo 71°, n.º 1 do CP refere que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Ora, no caso concreto, o tribunal recorrido considera que o grau de ilicitude dos factos, é elevadíssimo face ao modo como foram praticados, a utilização de uma multiplicidade de instrumentos, a existência de um plano prévio (que como supra exposto não fundamenta a qualificativa do crime, mas tem de ser devidamente valorado a nível da medida concreta da pena), ao facto de ter sido praticado por mais do que um agente, à multiplicidade de lesões provocadas em diferentes partes do corpo, e com especial incidência na cabeça e tronco; o dolo é directo; atendeu ao contexto em que os crimes foram praticados, numa altura em que a vítima, DD, ameaçava a arguida AA (filha e, à data, namorada dos arguidos BB e CC respectivamente), de que a matava e retirava o filho, situação que se agudizou nos dias imediatamente anteriores ao crime; à ausência de antecedentes criminais dos arguidos e boa inserção familiar, social e profissional dos mesmos; o que atenua as necessidades de prevenção especial e às necessidades de prevenção geral, associadas ao grande alarme social que reveste este tipo de criminalidade. As exigências de prevenção geral são determinantes na fixação da medida da pena, face à necessidade de reafirmação da validade das normas, defendendo o ordenamento jurídico e assegurando segurança à comunidade, para que esta sinta confiança e protecção pela norma, apesar de violada. Estes valores têm de ser coordenados com as exigências de prevenção especial, evitando a reincidência, e possibilitando a socialização do agente com vista a respeitar os valores comunitários fundamentais tutelados pelos bens jurídico-criminais, sem esquecer que foi violado o maior valor jurídico, que é a vida humana. Assim, temos que é elevadíssimo o grau de ilicitude, a multiplicidade de instrumentos, o agir de acordo com um plano previamente delineado, e a forma como ocorreram as agressões, o que leva a concluir que seria inaceitável para a reposição da confiança comunitária na validade da norma, uma pena que se situasse aquém da medida imposta pelo tribunal a quo, pelo que neste ponto, improcede o recurso dos três arguidos.” A esqualidez do raciocínio é patente e admiramo-nos como num tribunal superior se proceda de forma tão despojada. De facto o tribunal não justifica, por uma argumentação positiva e convincente, as penas conjuntas a que se alcandorou. Fê-lo, de forma negativa, no momento de apreciação dos recursos dos arguidos, anunciando que os penas aplicadas pelo tribunal de primeira (1ª) instância eram reduzidas pelo que, atenta a especial censurabilidade da conduta não seriam de manter. Esta falta, ou carência, de fundamentação, porém, não impedirá que, uma vez constatada, o tribunal de recurso não conheça do recurso, sobrepujando a anomalia e repondo a legalidade quanto ao dever omitido – cfr. nº 2 do artigo 379º do Código Processo Penal - ou com mais pormenor e arrimo jusprocessual – cfr. o disposto no artigo 684º, nº 1 do Código Processo Civil. Por ser assim, o tribunal suprirá esta carência, pensamos, de forma mais proficiente, no momento adequado, qual seja o de proceder à individualização da pena e à determinação da sua medida concreta. II.1.b) – Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (“sobre a questão da verificação (ou não) da circunstância qualificativa prevista na alínea i) do nº 2 do artigo 132º do C. Penal [utilização … de meio insidioso], – não constante da acusação/pronúncia, mas invocada no recurso interposto pelo Ministério Público da decisão da 1ª instância – artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal). A objurgação itera-se quando se acoima o aresto de omissão de pronúncia “(…) sobre a questão da verificação (ou não) da circunstância qualificativa prevista na alínea i) do nº 2 do artigo 132º do C. Penal [utilização … de meio insidioso], – não constante da acusação/pronúncia, mas invocada no recurso interposto pelo Ministério Público da decisão da 1ª instância –, omissão que configura a nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal; Sendo certo que o preenchimento dessa qualificava resulta, ao que nos parece, da matéria provada, a qual revela que, ao ser traiçoeiramente atraída, como foi, ao local do crime, mediante telefonema efectuado pela arguida AA, conforme previamente combinado pelos três arguidos, a vítima caiu numa armadilha por eles criada precisamente com o objectivo de lhe tirarem a vida, armadilha que a surpreendeu e apanhou completamente desprevenida, confiante que estava nas boas intenções da arguida, manifestadas no aludido telefonema.” Em expressa pronúncia sobre a suscitada nulidade da decisão recorrida, perorou o Distinto Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça (sic): “o que se reporta, repete-se, à arguição de nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia sobre a verificação, ou não, da agravante qualificativa prevista na alínea i) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal [utilização de meio insidioso] [[43]]. E isto porque, e quanto a este segmento do decidido, se bem lermos a fundamentação aduzida a propósito do efectivo preenchimento das outras duas cláusulas de especial censurabilidade que teve por preenchidas, a da alínea j) e, sobretudo, da alínea h), não podemos deixar de concluir que, na perspectiva do acórdão recorrido [e tal como meridianamente decorre dos excertos acima transcritos em 2.1], a “armadilha” montada pelos arguidos para atrair a vítima ao local da execução do crime, cujo papel essencial foi desempenhado pela arguida AA, fez parte integrante do plano gizado, sendo que coube a esta, na fase executiva propriamente dita, apenas esse papel: atrair a vítima ao local e, uma vez ali chegado, distraí-lo para mais facilmente poder ser surpreendido pelos co-arguidos. Foi, pois, por via desta acção concertada que o Tribunal teve por verificada, pelo menos a circunstância da alínea h), que no caso em equação, e como é sabido, pressupõe a actuação conjunta de, pelo menos, 3 agentes. Compreende-se por isso, neste quadro, que, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, o tribunal tenha afastado, posto que de forma implícita, a circunstância qualificativa da convocada alínea i), tanto mais que se tratava de matéria não constante nem da acusação e da pronúncia, e nem sequer invocada em sede de audiência de julgamento em 1.ª Instância. (O sublinhado, nesta parte, é nosso). Ademais, e ex abundante, deve ainda enfatizar-se que, como vimos, a questão não deixou de ser enfrentada, bem ou mal, pelo acórdão recorrido quando, à luz do acervo factual fixado, se debruçou sobre as circunstâncias qualificativas do homicídio que teve por preenchidas, no âmbito das quais inseriu, em nosso juízo, o segmento “insidioso” [[44]] da actuação dos arguidos, mormente ao sublinhar, relembre-se, que, citamos, «[…] esta circunstância prevista na mencionada alínea h) baseia-se essencialmente na colocação da vítima numa dificuldade particular de se defender, pois a vítima foi colocada numa situação em que lhe era particularmente difícil defender-se, desde logo pela surpresa do ataque, ocorrido num local que lhe era conhecido e familiar. Por outro lado, a arguida AA atraí-o para aquele local, por forma a que os co-arguidos o apanhassem de surpresa, e dada a superioridade numérica, o dominarem, manietando-o e provocarem-lhe a morte […]». O que aconteceu, pois, foi que não acolheu a pretensão neste ponto colocada pelo recorrente. E, como também é por demais sabido, a nulidade em causa só existe se o Tribunal não resolver todas as questões que deva apreciar, sendo que essas questões não se confundem com os argumentos, as razões ou os pressupostos em que as partes fundam as suas posições na controvérsia [[45]]. O mesmo é dizer que os tribunais têm de conhecer de questões [[46]] e não de argumentos. A congruência – princípio adoptado de forma expressa no ordenamento jurídico processual espanhol (cfr. artigo 218.º da Lei de Enjuiciamento Civil) – enquanto princípio referente ao desenvolvimento do processo, expressa os limites do juízo jurisdicional, isto é, o âmbito que se deve alcançar e que a sentença não deve ultrapassar, fundamentalmente no aspecto do pronunciamento do veredicto, mas também no intelectual e lógico (fundamentos da decisão). O mencionado principio, que no ordenamento jurídico processual civil indígena colhe assento nos artigos 5.º e 609.º, nº 2 do Código Processo Civil, desdobra-se em três vertentes ou assume-se como polarizador de três proposições paradigmáticas, a saber: adequação da sentença às pretensões das partes, de maneira que aquela dê arrimada resposta a todas estas; correlação entre as petições de tutela e os pronunciamentos da decisão; harmonia entre o solicitado e o decidido. A congruência de uma sentença atina com uma qualidade que se refere, não à relação entre si das distintas partes e elementos da sentença, mas sim à relação da sentença com a pretensão dos litigantes. Uma sentença é congruente na medida em que decide na coerência interna do processo e é incongruente, ainda que revelando coerência na sua argumentação lógico-racional, se se afasta da estrutura performativa que resulta ou decorre da composição de interesses postos em tela de juízo na causa. Podem ocorrer incongruências quando na sentença deixam de se fazer declarações que as pretensões exigem ou omitem declarações ou decisões sobre pontos litigiosos. A doutrina alemã e austríaca falam, neste caso, no chamado “instituto do procedimento da integração”. Neste caso, se ocorre omissão de pronúncia não existe violação do princípio da congruência ou seja que a sentença não deve taxar-se de incongruente. Do que se trata é de uma sentença incompleta e o que haverá é que completá-la, mediante petição da parte. Segundo uma corrente chamar-se-ia a este vício “incongruência omissiva”, em violação do que se chama princípio da exaustividade. A regra ou princípio da incongruência ou incoerência, que, itera-se, deve cumprir-se entre as alegações de facto, não se aplica relativamente às alegações de direito da acção ou da contestação, já que pode ocorrer divergência e desconformidade entre estas alegações e a decisão, por o tribunal não estar sujeito e vinculado às alegações jurídicas ou indicações normativas que as partes forneçam. Na verdade o tribunal está vinculado ao fundamento, não pela fundamentação, e a fundamentação inclui não só a forma de apresentar os argumentos, mas também os concretos elementos jurídicos aduzidos: os preceitos legais e os princípios jurídicos citados e o entendimento que deles as partes fazem. Consubstancia-se neste procedimento a regra “iura novit curia” – o tribunal conhece do direito e isto porque o direito não tem que ser provado; o tribunal pode e deve aplicar o direito que conhece como estime mais acertado, desde que se atenha á causa de pedir, que dizer, ao genuíno fundamento – não à fundamentação – da pretensão. O pressuposto da correcta aplicação da regra “iura novit curia” é dupla: 1.º que o tribunal respeite, na sua essência a causa petendi da pretensão do litigante; 2.º que os demais litigantes tenham podido, do mesmo passo que o tribunal, conhecer e afrontar esse genuíno fundamento da pretensão, o que equivale à observância dos princípios da igualdade das partes e da audiência ou do contraditório. Recortada a questão da nulidade da decisão por omissão de pronúncia e dando entrada ao tema suscitado pelo recorrente, temos que o acórdão não deixou de se pronunciar sobre questão que o recorrente tivesse, expressamente, suscitado ao tribunal para conhecer. Adrega, no caso em apreço, que i) a acusação não continha a imputação aos arguidos da qualificativa referenciada na alínea i) do nº 1 do artigo 132º do Código Penal; ii) o ora recorrente ou quem esteve presente no tribunal de primeira instância não requereu –nem o tribunal de 1ª instância o fez oficiosamente – a alteração da qualificação jurídica que havia sido consignada/consagrada na acusação. Escreveu-se no acórdão de uniformização nº 11/2013, de 12 de Junho de 2013, publicado no Diário da República nº 138, Serie I, de 19 de Julho de 2013(sic): “O desiderato garantístico exposto tem natureza e consagração constitucionais, pois que como se sabe, nos termos do artº 32º da Constituição Política da Republica Portuguesa: 1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. […] 5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório. 2. Como J.J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA elucidam: “O princípio acusatório (n° 5, 1ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório). A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador. O princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cfr. AcsTC nºs 219/89 e 124/90).” 3. TERESA PIZARRO BELEZA, com a colaboração de Frederico Isasca e Rui Sá Gomes, refere: - “O Código de Processo Penal estabelece que quem dirige a investigação é o Ministério Público, e é ele que acusa. Pode haver uma segunda fase de investigação que é a fase de instrução em que já há um juiz a presidir; mas o juiz do julgamento será sempre uma pessoa diferente destas. O juiz do julgamento é necessariamente um juiz, (não só em termos institucionais mas a própria pessoa tem de ser) diferente do juiz que presidiu à instrução. Neste sentido, a estrutura do Processo Penal Português têm claramente uma estrutura acusatória. Mas não é suficiente uma diferença de identidade entre quem acusa e quem julga para se poder dizer que um processo tem uma estrutura acusatória. Independentemente do sentido histórico que a estrutura acusatória assume há pelo menos um outro aspecto que deriva aliás, do primeiro, em relação ao qual podemos dizer que, a estrutura acusatória do processo é ou não evidente. Se deve haver uma entidade diferente a investigar e a acusar da entidade que julga, se a entidade que julga pudesse à vontade investigar e procurar factos novos para decidir determinada causa, poderia dizer-se que a estrutura acusatória era puramente formal e que de facto o juiz acabava por ter poderes para se pronunciar sobre os factos que entendesse. Isto não pode acontecer no Direito Português isto é, a estrutura acusatória do processo implica também aquilo que normalmente se define em termos restritos como o Princípio da Acusação ou Princípio da Vinculação temática. O Juiz que julga está tematicamente vinculado aos factos que lhe são trazidos pela entidade que acusa. É por isso que é muito importante verificar quando, em que momento, e como é que no processo português se fixa o objecto do processo. Quando o Ministério Público deduz acusação ou, em alternativa, quando é requerida a abertura da instrução pelo assistente, nesse momento fixam-se os factos dos quais o juiz do julgamento vai poder conhecer. Isto é, a estrutura acusatória do processo implica também, além da diferença de identidade entre acusador e julgador, que o julgador está vinculado ao tema do processo que lhe é trazido pelo acusador. O juiz do julgamento só pode pronunciar-se sobre os factos que lhe são trazidos, em princípio pelo Ministério Público. É nesse sentido que se diz que a estrutura acusatória do processo implica também o princípio da acusação ou o princípio da vinculação temática.” 4. Quanto ao princípio do contraditório, refere FIGUEIREDO DIAS. “O princípio do contraditório opõe-se, decerto, a uma estrutura puramente inquisitória do processo penal, em que o juiz pudesse proferir a decisão sem previamente ter confrontado o arguido com as provas que contra ele houvesse recolhido -e não faltaram exemplos históricos de processos penais assim estrutura dos - ou sem lhe ter dado, em geral, qualquer possibilidade de contestação da acusação contra ele formulada. Excepção feita, porém, a casos de estrutura mais asperamente inquisitória, o princípio, encabeçado sobretudo na pessoa do arguido, mereceu sempre geral aceitação - nos direitos antigos (tanto no grego como no romano) como nos medievais (após a recepção do direito romano, logo em seguida obscurecida, como se sabe, pelo processo inquisitório) e, de forma inquestionável, nos processos penais «reformados» consequentes à Revolução Francesa. Esta persistência e geral aceitação explica-se, ao que cremos, pela circunstância de o princípio do contraditório, com os fundamentos apontados, surgir dotado de uma natureza acentuadamente formal e quase privado de conteúdo e sentido autónomos.” D -A dimensão factual do objecto do processo e o direito de defesa 1. Quer a estrutura acusatória, quer o princípio do contraditório se circunscrevem no - e integram o - objecto do processo, vinculado ao chamado princípio da unidade ou indivisibilidade, segundo o qual “deve o tribunal conhecer e julgar o objecto que lhe foi proposto («Thema decidendum» e «Thema probandum») na sua totalidade, isto é, unitária e indivisivelmente.” como assinala MÁRIO PAULO DA SILVA TENREIRO [[51]] Como refere este Autor. [[52]] Se pensarmos, como EDUARDO CORREIA, que o objecto do processo é afinal uma concreta e hipotética violação jurídico-criminal acusada teremos que a identidade do mesmo coincide com a do direito substantivo. E acrescenta [[53]] “Para FIGUEIREDO DIAS o objecto do processo não é já a «concreta e hipotética infracção acusada», mas não é tão-pouco «o facto na sua existência histórica, que importa averiguar no decurso do processo» (CAVALEIRO FERREIRA, representante da concepção naturalística em Portugal), e em relação ao qual a identidade teria de se estabelecer com base na conexão naturalística. O objecto do processo será antes um recorte, um pedaço da vida, um conjunto de factos em conexão natural (e não já naturalística, por tal conexão não ser estabelecida com base em meros juízos procedentes de uma racionalidade própria das ciências da natureza) analisados em toda a sua possível relevância jurídica, ou seja, à luz de todos os juízos jurídicos pertinentes. O objecto do processo será assim uma questão-de-facto integrada por todas as possíveis questões-de-direito que possa suscitar.” 2. Aliás, como acentua FIGUEIREDO DIAS [[54]] "Segundo o princípio da acusação […] a actividade cognitória e decisória do tribunal está estritamente limitada pelo objecto da acusação. Deve pois afirmar-se que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo esta que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade cognitória […]) e a extensão do caso julgado (actividade decisória […]) É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal.” 3. Mas na esteira do ensinamento de MÁRIO PAULO DA SILVA TENREIRO, [[55]] o exposto não arreda a necessidade de assegurar “um efectivo direito de defesa ao arguido face às alterações operadas no objecto, tal qual ele fora considerado na acusação, uma vez que insignificantes alterações dos factos podem pôr em causa toda a defesa do arguido. Mas também quando se trata de uma mera alteração na qualificação jurídica (independentemente de qualquer alteração nos factos) o contraditório deve ser assegurado, não podendo o arguido ser surpreendido na sentença com uma incriminação diversa da acusada. É isto mesmo que diz LUDWIG, citado por EDUARDO CORREIA: «Uma condenação com base em preceitos penais diferentes dos enunciados na acusação só será admissível depois que o arguido seja especialmente prevenido de tal modificação de ponto de vista jurídico e lhe seja dada oportunidade para o esclarecer» O respeito pelo direito de defesa do arguido pode bastar-se com a simples prevenção dos interessados acerca dos novos aspectos (de facto ou de direito) que vão ser encarados. A mais disso pode contudo exigir um adiamento ou uma interrupção da audiência a fim de permitir o carreamento para o processo de novo material que permita a contradição dos novos elementos que o tribunal pretende considerar. Só assim se respeitará o princípio do contraditório, constitucionalmente garantido, que consiste, na lição de FIOUEIREDO DIAS, na «oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo». Oportunidade essa que terá de ser efectiva e eficaz e que, por isso, terá de respeitar as condições mínimas (de tempo, de meios) que possibilitem uma afirmação do princípio em termos não meramente platónicos.” 4. “Efectivamente, o problema central do objecto do processo penal é o da procura do equilíbrio entre o interesse público da aplicação do direito criminal, mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos, e o direito impostergável do arguido a um processo penal que assegure todas as garantias de defesa. Assim, “a identidade do objecto do processo não poderá definir-se tão rígida e estreitamente que impeça um esclarecimento suficientemente amplo e adequado da infracção imputada e da correlativa responsabilidade, mas não deverá também ter limites tão largos ou tão indeterminados que anule a garantia implicada pelo princípio acusatório e que a definição do objecto do processo se propõe justamente realizar” (castanheira neves, Sumários Criminais, apud M. Simas Santos e M. Leal Henriques, Código de Processo Penal, II vol., pág. 413). Ora, ao privilegiar as máximas da identidade (o objecto do processo deve manter-se idêntico da acusação à sentença definitiva) e da consunção (a decisão sobre o objecto do processo deve considerar-se como tendo definido jurídico-criminalmente a situação em tudo o que podia e devia ser conhecido) e a celeridade, sobrelevando a segurança e a paz jurídica do arguido relativamente à busca da verdade material, o legislador ordinário não rompeu de modo manifesto esse equilíbrio, movendo-se no espaço de discricionariedade legislativa constitucionalmente consentido”. [[56]] 5. “A circunstância de os factos novos não autonomizáveis surgirem para o processo apenas na fase de julgamento tanto poderá resultar de opção ou de incúria do titular da acção penal ou dos órgãos de polícia criminal, como de vicissitudes da investigação que estes não tenham podido dominar (confissão do arguido, novas declarações de testemunhas ou do ofendido, meios de prova até então desconhecidos, etc.). O inexorável sacrifício parcial do conhecimento da verdade material que daí decorre é consequência comportável – embora não necessária ou inevitável – da "orientação para a defesa" do processo penal e da posição diferenciada dos sujeitos processuais, designadamente a que decorre da estrutura acusatória do processo. Que o consequente deficit de realização do direito penal substantivo seja o resultado de opções ou contingências da actuação do Ministério Público (e dos órgãos de polícia criminal na fase em que o Ministério Público dirige o processo) é inerente ao modelo de processo penal e de separação funcional das magistraturas que decorre da Constituição. É certo que em audiência se revelarão factos, relevantes sob a perspectiva da prossecução das finalidades do processo penal da verdade material e da defesa dos interesses colectivos, cuja desconsideração definitiva poderá comportar desvio objectivo ao princípio da legalidade da promoção da acção penal. Mas só um repudiado modelo inquisitório, que deixasse até ao último momento em aberto o objecto do processo, seria eficaz para evitar totalmente esse risco. No processo de estrutura acusatória, as funções de acusador e de julgador haverão de ser exercidas por órgãos diferenciados e autónomos, e o julgador, nos quadros da dialéctica processual decorrente do próprio princípio do acusatório, sempre haverá de estar confinado ao solucionamento da questão penal tal como ela lhe é proposta pelo Ministério Público ou pela parte acusadora privada. A opção do legislador que está em análise, ainda que não fosse a única compatível com a Constituição (recorde-se o acórdão n.º 237/2007), coaduna-se com a qualidade do Ministério Público como titular da acção penal, ao qual compete deduzir a pretensão punitiva do Estado e assumir a correspondente responsabilidade funcional pelos termos desse exercício (artigo 219.º, n.º1, da Constituição)” [[57]] E – Factualidade e qualificação jurídica 1. Como assinala FREDERICO ISASCA na Revista Portuguesa de Ciência Criminal: [[58]] Tudo aponta no sentido de que o momento processualmente adequado para o tribunal de julgamento se pronunciar sobre a qualificação jurídica do objecto do processo é necessariamente posterior à decisão sobre a factualidade imputada. E, debruçando-se sobre a questão da qualificação jurídica, escreve: “Face ao C.P.P. vigente e em estreita relação com o conceito de alteração dos factos, seja esta substancial ou não, a questão que se coloca e a de saber se o tribunal é livre no exercício da qualificação, ou se, pelo contrário, alguma limitação se lhe impõe naquela sua função. A resposta, qualquer que ela seja, deverá surgir das disposições legais e ser, num segundo momento, apreciada a luz dos princípios fundamentais do nosso Direito Processual Penal. Um primeiro ponto importa, porém, desde já esclarecer. O do objecto da qualificação jurídica. Objecto da qualificação jurídica são factos. São os factos que formam um acontecimento da vida: debilitado no espaço e no tempo, e que se imputam a certo sujeito Objecto da qualificação jurídica é, portanto, o facto processual, i. e, o objecto do processo. Qualificar um determinado facto do ponto de vista jurídico-penal é subsumir um determinado acontecimento na descrição abstracta de uma preposição penal, i. e, verificar se aquele comportamento concreto daquele agente, corresponde ou não, ao comportamento abstractamente descrito numa dada lei penal como constituindo um crime. Nisto e só nisto consiste a qualificação jurídico-penal. [[59]] A liberdade do tribunal, no que concerne à apreciação da questão de direito, é, numa outra perspectiva, uma decorrência lógica do dever que sobre ele impende de uma apreciação esgotante de todo o objecto do processo. A posição que quanto a esta questão aqui se tome, terá os seus reflexos na questão do âmbito e dos efeitos do caso julgado. Entendemos pois, que só uma apreciação esgotante da matéria de facto, i. e, a sua apreciação sob todos os pontos de vista jurídicos possíveis, é compatível com a posição que acolhemos em sede de caso julgado e por sua vez coerente com a liberdade de qualificação que aqui se defende.”. 2. Por isso, como salienta GERMANO MARQUES da SILVA: [[60]] A partir do momento em que a lei deixou de presumir o conhecimento da lei incriminadora ou pelo menos deixou de considerar irrelevante para efeitos de punição o seu desconhecimento e considera que a consciência da ilicitude é elemento essencial da culpabilidade, entende-se também a necessidade da indicação da lei aplicável na própria acusação e no despacho de pronúncia, sob pena de nulidade. É que, agora, contrariamente ao regime do Código Penal anterior, a consciência da ilicitude é essencial para a punibilidade do facto e, por isso, a existência dessa consciência tem de ser objecto de acusação e de prova, é pressuposto da punição e, portanto, faz parte também do objecto do processo. Como assertivamente este Autor esclarece: [[61]]: “I. O objecto do processo corresponde à matéria sobre que ele versa, ao quid sobre que recai. O processo, nas suas fases declarativas, recai também sobre a qualificação jurídica dos factos. A valoração ou qualificação jurídica vai-se progressivamente elaborando no decurso do procedimento, sendo algum tanto fluida (como aliás, a matéria de facto) até à acusação, mas devendo estabilizar-se na acusação (arts. 283.° a 285.°) ou no requerimento de instrução (em caso de este ser deduzido na sequência de arquivamento do inquérito - art. 287.°, n.º 2). Ora, se assim é, e tendo presente que da qualificação jurídica dos factos depende ou pode depender não só a pena a aplicar como a própria responsabilidade penal do agente, não se entenderia a razão pela qual a lei cercaria de garantias a delimitação do pressuposto factual objectivo do crime e do processo e havia de deixar inteira liberdade ao tribunal no que concerne à qualificação jurídica, o que representaria, ultima ratio, a irrelevância para o processo do pressuposto factual subjectivo consistente na consciência da ilicitude, em clara contradição com as exigências do direito substantivo. Não há razão para tal assimetria. Sobretudo não há razão quando se considere, como deve agora, perante o direito penal substantivo emergente do Código Penal vigente, que a consciência da ilicitude do comportamento por parte do arguido é elemento da culpabilidade, não bastando já a simples possibilidade de conhecer, de distinguir o bem do mal, o lícito do ilícito, a mera susceptibilidade de imputação, como foi a orientação predominante em face da lei penal anterior ao Código Penal de 1982.” 3. E sobre a problemática de que a qualificação jurídica dos factos pode e deve ser encarada numa perspectiva de facto, adianta: “Com efeito, enquanto a consciência da ilicitude do facto é agora elemento essencial da culpabilidade e a culpabilidade é pressuposto essencial da punibilidade, a consciência da ilicitude é também um elemento do crime que há-de ser objecto da prova, e é também um facto processual incluído no thema probandi. Os factos jurídico-processuais que hão-de constar da acusação são, por isso, todos os que integram os pressupostos necessários à procedência do pedido (a aplicação da sanção solicitada). O agente, para poder ser punido a título de dolo, há-de ter tido consciência da ilicitude do seu comportamento. Esta consciência da ilicitude é, por isso, também pressuposto da punição a esse título e necessariamente objecto de prova no processo. Ora, em muitos casos, a ilicitude do comportamento só pode aferir-se por referência às normas incriminadoras e daí a necessidade, sob pena de nulidade, de essas normas serem indicadas na acusação. A norma incriminadora não faz parte do facto, como já referimos, mas é a referência à norma que dá ao facto o concreto sentido de ilicitude. O facto com relevância penal é o facto com significado e esse significado é-lhe dado pela referência à norma incriminadora. Por isso que a alteração da norma incriminadora pode alterar a significação do facto, logo a sua relevância jurídico-penal. A referência à norma revela o interesse tutelado e os limites em que o bem jurídico é tutelado pelo direito penal e o que a lei penal exige é o conhecimento da protecção penal desse interesse, e dos termos em que é protegido, do desvalor jurídico do comportamento objecto da acusação. Ora, para esse conhecimento, para que o agente tenha consciência da ilicitude do seu comportamento, não é de exigir necessariamente o conhecimento da norma proibitiva, mas basta a consciência da existência da protecção penal do interesse violado. A norma indicada na acusação dá o critério de valoração, revela ao acusado que é em função do desvalor penal que aquela norma traduz que é requerido o seu julgamento. Enquanto a variação do tipo incriminador não implicar alteração do critério essencial de valoração do interesse, o arguido não fica defraudado no seu direito de defesa”. [[62]] 4. Nesta medida se compreende o conteúdo do no nº 4 do artº 339º do CPP: supra referido, nomeadamente no que ora se realça em itálico “- Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369” Como salienta a propósito, PAULO PINTO de ALBUQUERQUE: [[63]] “A Lei nº 59/98, de 25.8, introduziu o novo nº 4. Ela visa rejeitar as teses herdeiras da teoria do fait qualifié, que vinculam o objecto do processo à incriminação da acusação ou da pronúncia. O objecto do processo não é constituído pela incriminação imputada ao arguido, mas antes pelos factos que lhe são imputados, O legislador nacional quis, portanto, verter para o direito português a norma, segundo a qual “a investigação e a decisão abrangem o facto descrito na acusação e as pessoas imputadas pela acusação. Dentro destes limites estão os tribunais autorizados e obrigados a uma actividade autónoma e, em especial, eles não estão vinculados na aplicação da lei penal aos requerimentos feitos” […] Ou seja, o tribunal está apenas vinculado tematicamente pelo “facto histórico unitário” descrito na acusação (prozessualer Tatbegriff, CLAUS ROXIN / HANS ACHENBACH, 2006:146), não pela qualificação jurídica dada ao facto na acusação. Portanto, o MP, o arguido e o assistente têm o direito de discutir a qualificação jurídica dos factos sem quaisquer restrições durante a audiência e o juiz tem o dever de suscitar essa discussão, caso pondere como plausível uma qualificação jurídica dos factos distinta da que consta da acusação ou da pronúncia.” 5. Em suma, como observa o mesmo Autor, [[64]] “A solução da imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento judicial dos autos é a única consentânea com a proibição da sindicância do uso pelo Ministério Público da faculdade do artigo 16º, nº 3, por via da sindicância da imputação penal feita na acusação […] Em síntese, o legislador quis que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia fosse discutida na audiência de julgamento e só nesse momento (acórdão do TC nº 518798), podendo então os sujeitos processuais proceder a essa discussão jurídica sem quaisquer restrições ou vinculações à qualificação feita em momento anterior. Razão pela qual o juiz, aquando da prolação do despacho do artigo 311º, não deve rejeitar a acusação e devolvê-la ao MP para as corrigir erros “claros” de qualificação jurídica dos factos, sendo certo que a “clareza” do direito não é indiscutível. O tribunal não pode, no início da audiência de julgamento, proferir despacho a alterar a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação […] Esta conclusão não prejudica o exercício do poder do tribunal durante a audiência nos termos do artº 358º nº 3. [[65]] O juiz não pode, no início da audiência, proferir despacho que implique o conhecimento do mérito da causa quanto ás questões relacionadas com a matéria de facto, por exemplo, considerando que não estão indiciados suficientemente certos factos atinentes à especial censurabilidade e convertendo, por isso, a imputação de um crime de ofensa à integridade física qualificado num crime simples (acórdão do STJ, de 20.11.1997, in BMJ, […])”[[66]] 6. Como claramente refere o supra citado acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2008, de 25-06-2008: “O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender. Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido – n.º 1 do artigo 32º consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado. Assim e atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido – artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República – o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para preparação da defesa. Por isso, se considera que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou “menos agravado”, quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou “menos agravado”, ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado. O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave do que o da acusação ou da pronúncia em consequência de redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação. Tal acontece, ainda, face a alteração decorrente da requalificação da participação do agente de co-autoria para autoria, bem como perante alteração resultante da requalificação da culpa do agente de dolo directo para dolo eventual. […] A qualificação jurídica dos factos em sede de acusação não se circunscreve à indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes que aqueles preenchem. Com efeito, a lei – alínea f) do n.º 3 do artigo 283º – impõe a indicação das disposições legais aplicáveis, ou seja, de todas as disposições legais aplicáveis. Deste modo, para além da indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes, terão de ser indicadas as normas que estabelecem a respectiva punição, ou seja, a espécie e a medida das sanções aplicáveis. Pretende a lei que ao arguido seja dado conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, ou seja, da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se assim expressão aos princípios da comunicação da acusação e da protecção global e completa dos direitos defesa, este último estabelecido no n.º 1 do artigo 32º da Constituição Política, princípios a que já fizemos referência. Só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada. É que o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante E esta para ser eficaz pressupõe que o arguido tenha conhecimento do exacto significado jurídico-criminal da acusação, o que implica, evidentemente, lhe seja dado conhecimento preciso das disposições legais que irão ser aplicadas. Por isso, qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou na pronúncia (com excepção dos casos atrás referidos), nomeadamente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o favor defensionis. Por outro lado, como deixámos assinalado nas considerações preliminares tecidas, a declaração do direito do caso penal concreto é tarefa conjunta do tribunal e dos sujeitos processuais, na qual o arguido é também chamado a intervir, porém, para isso terá de participar e de ser ouvido, nos diversos actos processuais, de acordo com o quadro jurídico pelo qual vai ser julgado e não com base noutro quadro jurídico. Assim, se o quadro jurídico que lhe foi dado a conhecer através da comunicação da acusação ou da pronúncia é alterado, disso terá de ser informado para que possa influir, se assim o entender, na declaração do direito. Aliás, o processo penal é um processo equitativo e justo, não sendo configurável, num Estado de direito, a possibilidade de ao arguido ser aplicada uma pena sem que disso seja prevenido, isto é, sem que lhe seja dado oportuno conhecimento da possibilidade de que nela pode vir a ser condenado. “ Neste sentido, de forma reflexa, em tal âmbito, sobre a alteração de factos em audiência, o Acórdão do Tribunal Constitucional: n.º 90/2013, de 7 de Fevereiro de 2013, [[67]] veio decidir […], “p) Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 358.º, 360.º e 361.º, do Código de Processo Penal, interpretados com o sentido de que é possível proceder à alteração dos factos da pronúncia até ao encerramento da audiência de julgamento, após terem sido produzidas as alegações orais, sem a verificação de circunstâncias de excecionalidade ou superveniência.” 7. Em síntese, e como bem acentua o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo, em suas doutas alegações: “Ora, tendo em conta a inserção sistemática do preceito [o artº 358º do CPP] no capítulo que define as regras e princípios que regulam a actividade da produção de prova, não se suscitam grandes dúvidas de que o mecanismo da alteração da qualificação jurídica do artigo 358.º n.º 3 do CPP foi previsto e tem aplicação já após a discussão da causa, após produção de prova. Na verdade, a alteração da qualificação jurídica poderá ocorrer em duas situações: no decurso de uma alteração dos factos (não substancial); e no caso em que, não obstante os factos resultantes da prova produzida em julgamento serem coincidentes com os da acusação ou pronúncia, o tribunal discorda dessa qualificação jurídica. Ora, considerando que o referido nº 3 é uma norma integrada no contexto global do mecanismo da “alteração não substancial dos factos”, prevista no artº 358º CPP, e que a alteração dos factos (n.º 1) só pode ocorrer, necessariamente, após produção de prova, estabelecendo o nº 3 que aquele n.º 1 “é correspondentemente aplicável” à alteração da qualificação jurídica, não faria sentido que a alteração da qualificação jurídica pudesse ocorrer em momento processual diferente. […] Ora, considerando que a acusação, definidora do objecto do processo, integra, para além dos factos, as disposições legais aplicáveis, ou seja, a qualificação jurídica (um dos requisitos obrigatórios da acusação cuja omissão acarreta rejeição - artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do CPP), a alteração da qualificação efectuada pelo juiz de julgamento mais não é do que um proibido controlo substantivo da acusação. De resto, se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, certamente que o legislador não teria atribuído à sua omissão uma consequência tão grave como a rejeição. É verdade que o despacho judicial que procedeu à alteração da qualificação, não se fundamentou em diferente apreciação da prova, antes decidindo perante o próprio texto da acusação. No entanto, ao enquadrar os factos da acusação numa determinada qualificação jurídica, está a formular um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação. Em conclusão, recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz-se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo-se exclusivamente por critérios de legalidade e de objectividade. Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correcção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos. Por último, saliente-se que a tese do acórdão recorrido conduz a uma solução, a nosso ver, inadmissível, pois a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público seria mero exercício anódino. O juiz, previamente ao julgamento do mérito, passaria a poder ingerir-se em competências alheias, estruturando substancialmente a acusação, elegendo e impondo aos sujeitos do processo a qualificação correcta, que nenhum previamente (na fase própria) contestara. Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que actuar no momento processual que lhe compete. E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto.” [[68]] Atinados com o ensinamento que ressuma do excerto do douto aresto, temos que não era legítimo – ainda que como refere o recorrente a questão tivesse resultado da matéria de facto provada – a suscitação da questão em sede de recurso, sob pena de violação dos anunciados princípios (da estrutura acusatória do processo penal e da estrita vinculação temática a que o tribunal de julgamento se tem que ater na reconstituição dos factos de que o arguido foi acusado e que sugerem a imputação jurídico-criminal). A assumpção da questão por banda do tribunal de recurso, sem que tivesse ocorrido uma alteração da qualificação jurídica dos factos e da possibilidade de defesa dos arguidos, sorvaria o acórdão e conferir-lhe-ia o estatuto de nulo, por conhecer de questão (nova) de que não poderia conhecer, sob pena de excesso de pronúncia. Mutatis mutandis – e as regras de processo não diferem muito, se devidamente balizadas e conectadas ao fim que pretendem cumprir na especificidade própria de cada ramo do direito – no processo civil rege a regra do princípio da disponibilidade segundo o qual ao autor está cometida a função de alegar os factos que conlevam o direito para cujo se requesta a tutela jurisdicional. Assim no processo penal em que o Ministério Público, ou o assistente, têm o dever de alegar, na acusação, os factos que entendem dever ser subsumidos a uma norma incriminadora que protege o bem jurídico que se presume ter sido violado pela conduta/acção (comissiva ou omissiva) do responsável (autor do acto antijurídico) e para o qual pedem a tutela do Direito. As nulidades da sentença conectam-se, inextricavelmente, com a estruturação/formação de uma decisão/resolução judicial – cfr. artigo 607.º do Código Processo Civil Na formatação conceptual-constitutiva de uma decisão judicial reverberam os princípios basilares e estruturantes-materiais do direito processual civil e que malgrado a elasticidade funcional-pragmática com que os vão moldando e erodindo ainda conservam um inarredável referente jusprocessual na hora de definir funções axiais do processo. Neste âmbito, sobressai o princípio dispositivo que soe ser definido pela doutrina como o referente conformador e delimitador da actividade das partes tanto quanto ao estímulo da função judicial como da aportação dos materiais probatórios sobre os quais há-de versar a decisão do juiz. A vigência deste princípio manifesta-se pela: i) a iniciativa do procedimento adrede só pode ser desencadeada por um sujeito (singular ou colectivo e/ou institucional, por exemplo, neste caso, o Ministério Público) - (nemo iudex sine actore; ne procedat iudex ex oficio); ii) após o início do procedimento o tribunal deixa de dispor o poder de determinar a sorte da acção, v. g. da sua materialidade jurídica ou substantiva (direito controvertido), cabendo às partes a possibilidade de modificação ou extinção da relação jurídico-material que se discute no procedimento; iii) a iniciativa processual, isto é, o despoletamento e desenvolvimento dos termos, momentos e períodos processuais em que se a lide se cadencia e repercute fica dependente do impulso processual que as partes queiram propinar ao procedimento; iv) às partes cumpre definir, expressar e delimitar o que pretendem que o tribunal decida e resolva para uma solução do caso litigioso em que as partes pleiteiam e nessa delimitação/definição se conleva a capacidade de cognoscibilidade em que o tribunal tem de conter e percintar; v) na decorrência do impulso e iniciativa inerentes ao princípio do dispositivo caberá às partes aportarem para o processo todos os elementos perceptivos e de compreensão da existência (real, razoável e plausível) dos factos em que sustentam e baseiam a radicação do direito que se arrogam. Nas palavras de Mariana França Gouveia [[69]], “o princípio dispositivo é a tradução processual do princípio constitucional do direito à propriedade privada e da autonomia da vontade. Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na sua propositura em tribunal. O interesse público, neste âmbito, limita-se à correta aplicação do seu Direito para que haja segurança e paz nas relações privadas. Assim, o exacto limite da intervenção estadual é fixado pelas partes que não só têm a exclusiva iniciativa de propor a acção (e de se defender), como delimitam o seu objecto. O princípio dispositivo traduz-se, assim, na liberdade das partes de decisão sobre a propositura da acção, sobre os exactos limites do seu objecto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às excepções peremptórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transaccionar). No fundo, é um princípio que estabelece os limites de decisão do juiz — aquilo que, dentro do âmbito de disponibilidade das partes, estas lhe pediram que decidisse. Só dentro desta limitação se admite a decisão. O princípio dispositivo é, repito, uma consequência do respeito pela propriedade privada e liberdade das partes em agir privadamente, em nada se relaciona com uma visão retrógrada do processo civil, pelo contrário, é um princípio que existe em todos os ordenamentos jurídico-processuais ocidentais democráticos. (…) Na senda da tradição ocidental, Montero Aroca define claramente a importância do princípio dispositivo como consequência directa da natureza privada do direito subjectivo cuja tutela se pede. Desse princípio decorrem as diversas e importantíssimas regras já referidas: a actividade judicial só pode iniciar-se a pedido das partes; a fixação do objecto do processo cabe exclusivamente às partes; os tribunais, quando chamados a decidir, têm de fazê-lo nos limites das pretensões formuladas; as partes podem terminar o processo caso acordem nesse sentido. (…) Permitiria ao juiz julgar o que lhe apetece e não o que lhe é pedido.” Em definitivo, o principio dispositivo inculca e injunge a significação de que corresponde às partes iniciar o juízo formulando a demanda e proporcionar os elementos para a sua decisão (petição, contestação, aportação de provas, alegações de direito, após a produção de prova em audiência de julgamento), o que vale dizer que a iniciativa de todos os actos em que o processo se tramita e desenvolve e ainda que o juiz deve ater-se exclusivamente à actividade externa e forânea, vale dizer externas ao poder de conformação do tribunal, sem a este seja permitido tomar iniciativas destinadas reconhecer a veracidade da factualidade aportada, aduzindo elementos que a possam confirmar ou infirmar. [[70]] Decorre do enunciado princípio – conexionado com os subprincípios da alegabilidade dos factos e da formulação do pedido – que o processo se deve desenvolver segundo um ritual e uma cadência estrutural que não pode ser modificado sem que o tribunal conceda aos sujeitos processuais o direito de defesa. No caso estando o tribunal de recurso confinado à decisão impugnada (de 1ª instância) e não tendo corrido uma alteração da qualificação jurídica com que o arguidos foram confrontados em julgamento não seria possível o tribunal de recurso conhecer de uma questão que se apresentava como nova para a lide e sem que os sujeitos processuais tivessem tido possibilidade de, no momento adequado – julgamento em primeira (1ª) instância – tido o direito a defesa. Não basta, em nosso juízo, que os sujeitos processuais tenham tido possibilidade de responder nas contra-alegações de recurso. Como se escreveu, de forma lidimar e irrepreensível no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2011, “I - Constitui princípio básico e elementar em matéria de recursos o de que a impugnação de decisão judicial visa a modificação da mesma, por via do reexame da matéria nela apreciada, e não a criação de decisão sobre matéria nova, estando o tribunal de recurso limitado nos seus poderes de cognição às questões que, tendo sido ou devendo ter sido objecto da decisão recorrida, sejam submetidas à sua apreciação, isto é, constituam objecto da impugnação, o qual em processo penal se define e delimita através das conclusões formuladas na motivação de recurso. II - Há que excepcionar, obviamente, as questões de conhecimento oficioso: destas o tribunal de recurso tem o dever de conhecer independentemente de alegação e independentemente do concreto conteúdo da decisão recorrida, quer digam respeito à relação processual, quer à relação material objecto do processo. III - Está vedado ao tribunal de recurso pronunciar-se sobre questões que, muito embora hajam sido decididas no processo, não tenham sido objecto de conhecimento na decisão impugnada, sendo que a fazê-lo incorre em nulidade por excesso de pronúncia - art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP. IV - Resultando do exame da motivação de recurso que o arguido ali arguiu duas invalidades processuais, uma decorrente, segundo alega, de omissão de deferimento ou indeferimento pelo Tribunal da Relação de pedido de prorrogação de prazo para aperfeiçoamento da motivação do recurso interposto da decisão de 1.ª instância e formulação de conclusões, a outra resultante da omissão de deferimento ou indeferimento, em tempo útil, de pedido de reagendamento da data da audiência naquele Tribunal da Relação, mas não incluiu a arguição dessas duas supostas nulidades nas conclusões que extraiu da motivação de recurso, os poderes de cognição do tribunal de recurso estão limitados, por um lado, pelas conclusões formuladas, e, por outro, pelo conteúdo e âmbito da decisão impugnada, já que aquelas nulidades são estranhas à decisão impugnada, por supostamente terem ocorrido em momento anterior à prolação da decisão. V - Por outro lado, se a única questão que o arguido validamente suscita e submete à apreciação deste tribunal - a de a decisão proferida sobre a matéria de facto violar o princípio constitucional do art. 32.º da CRP, com fundamento na incorrecta valoração e interpretação da prova feita pelas instâncias e na respectiva decisão de facto - não foi por si colocada à apreciação do Tribunal da Relação no recurso para ali interposto, não pode a mesma ser apreciada.” [[71]] II.1.c).) – Individualização judicial da pena parcelar (pelo crime de homicídio na forma agravada) e da pena conjunta. II.2. – Relativamente ao recurso do arguido CC: II.2.a) – Qualificação da conduta perpetrada pelo arguido que deveria ser qualificado como “homicídio simples (“sendo de afastar por conseguinte as circunstâncias modificativas previstas nas alíneas h) [[73]] e j) [[74]] do n.º 2 do art. 132.º do CP.”). Para o recorrente, o crime por que deveria ter sido condenado deveria ser reconduzido ao suposto normativo contido no artigo 131º do Código Penal e não à previsão efectuada pelo tribunal de recurso – alíneas h) e j) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal. “Il diritto alla vita costituisce nel nostro ordenamento personalístico, il bene-fine primario.” [[75]] Como bem-pressuposto da Constituição, ele deve ser assumido num tríplice significado: “1) que o ordenamento personalístico-solidarístico coloca, exactamente no centro, a pessoa humana, na sua unitariedade físico-psíquica e na sua dimensão individual-social reconhecendo-lhe o direito inviolável e favorecendo-lhe o pleno desenvolvimento mediante a imposição, à República, as remoções dos obstáculos, limitativos, de ordem económicos e sociais e, aos particulares, o adimplemento dos deveres inderrogáveis de solidariedade politica, económica e social; 2) que o reconhecimento e a tutela do direito à vida são pressuposto e suporte da manifestação e do desenvolvimento da personalidade humana, enquanto “senza di essi” ainda o reconhecimento, da tutela a o exercício de todos os demais direitos individuais e sociais, «di» e «da», da personalidade humana, e a imposição da remoção dos ditos obstáculos e do adimplemento dos ditos deveres restariam abstractos enunciações privada de efectividade: a começar pelo próprio direito de liberdade, porque para poder ser livre ocorre estar antes de mais («innanzitutto») sujeitos vivos; 3) que qa hierarquização entre bem-fim e bem-meio tem um sentido funcional, sobretudo, da postulada tutela da vida o bem-fim supremo.” [[76]] “O direito à incolumidade individual constitui, também ele, um bem-fim primário, ainda que de rango inferior ao da vida. A incolumidade está entendida em relação: a) à incindível unitariedade da pessoa, no seu significado global, de integridade física e psíquica funcional e estética; b) à sua variabilidade de pessoa para pessoa: no seu significado, absoluto e abstracto, de condições óptimas de funcionalidade psicofísica ou de esteticidade individual, ou pelo menos, de funcionalidade e esteticidade médio-normal.” O elemento objectivo da conduta consiste: “em qualquer comportamento idóneo a causar a morte, pois que essa é tipificada exclusivamente em função de tal idoneidade causal, quedando indiferente, aos fins da subsistência do delito, a própria modalidade, que assumem, ainda assim, relevância tão somente para fim de agravamento da pena”, seja através da acção ou da omissão. [[77]] O objecto material é: “1) um homem, isto é, um ser humano, não na fase de «concepito» (objecto este de tutela autónoma); “mas como já ficou dito: a) vindo à existência através da fecundação sexuada, assexuada ou extraespecifica e desenvolvido em qualquer ambiente idóneo que o conduza à maturação (corpo humano feminino ou masculino, corpo animal ou «madre mecânica»); b) capaz de vida autónoma, seja esse saído ou pelo menos no corpo materno (constitui duplo homicídio a morte, por isso, mediante veneno ou incidente estradal, da mãe e do concebido ainda não nascido, mas capaz de vida autónoma”; 2) um homem vivente, isto é, vindo à existência e não morto, ainda que não necessariamente, vital; 3) um qualquer homem, pois que o principio personalístico-igualitário não tolera qualquer discriminação de tutela ao bem supremo da vida, pro qualquer razão; 4) um homem diverso do sujeito do agente; O evento é a morte do homem, isto é, a morte clinica que consiste na perda, total e irreversível, da capacidade do organismo manter, autonomamente, a própria unidade funcional, coincidente com a chamada ou dita morte encefálica; O nexo causal naturalístico , no caso de acção, e normativo, em caso e omissão, deve subsistir entre a conduta e o evento da morte. O objecto jurídico é a vida, que assume uma tutela, antes de mais, como direito individual; A ofensa é a destruição do bem da vida, tornando-se perfeita com o momento da morte.” [[78]/[79]] “Ai fini dell’individuazione del bene giuridico tutelato, si può dire, quindi, che la legge penale tutela la vita «individuale» anche contro la volontà del singolo, ed a prescindere da questa. Per convincersene basterà considerare non soltanto le norme che puniscono l’agevolazione dell’altrui suicídio (art. 580), oppure l´omicidio del consenziente (art. 579), ma anche che il delito di omissione de soccorso (art. 505) – ad esempio – si configura, come delito contro la vita e l’incolimità individuale, anche nell’ipotesi in cui venga rinvenuto um corpo umano che «sia o sembri inanimato» e si tratti – ad esempio – de un mancato suicida.” [[80]] “O bem jurídico protegido é a vida humana desde o momento do nascimento até à morte. O homicídio é um delito de lesão que requer a efectiva lesão do interesse protegido para a sua consumação. “ [[81]] A conduta típica do homicídio, constituído como delito de resultado, impõe que para a consumação do delito não se torne suficiente “com a realização da conduta por parte do sujeito activo, mas sim que seja necessário que se produza a morte do sujeito passivo. Em consequência, deve verificar-se a relação causal entre a acção do sujeito activo e o resultado da morte, isto é, a morte deve ser imputável objectivamente à conduta do autor. Para além disso, este tipo penal admite tanto a modalidade activa como a omissiva ou a comissão por omissão.” [[82]] Para que a previsão contida na norma se materialize no plano da intencionalidade ou voluntariedade do querer de agir de uma determinada maneira e com vista a um determinado fim “não basta a previsão do evento e a sua vontade, mas é necessário que o sujeito preveja a agressão ao bem tutelado e intencionalmente a realiza como consequência do próprio comportamento. O sujeito, «cioè», deve perspectivar o resultado lesivo da sua acção e realizá-lo intencionalmente como consequência da sua conduta.” [[83]] (Tradução nossa). “O dolo exige o conhecimento e a vontade de realizar as circunstâncias do tipo objectivo, quer dizer, saber que se mata outra pessoa e querer fazê-lo.” [[84]] A lei parte do tipo simples – homicídio (artigo 131º do Código Penal – para o homicídio complexo ou densificado, caracterizado e qualificado contido no artigo 132º, nºs 1 e 2 do mesmo livro de leis, usando a exemplificação se situações fáctico-emotivas e posicionais em que o agente se pode colocar perante a vítima, ou no ambiente vivencial em que se desenvolve a acção, para caracterizar a intencionalidade e a intensidade da volitiva com que a acção se desencadeou e desenvolveu. A realização/consumação do tipo de ilícito contido no artigo 131º do Código Penal, basta-se, como já apontamos supra, com a supressão, em consequência de acção (comissiva, ou omissiva ou comissiva por omissão) da vida de uma pessoa humana, de um individuo dotado de vida. [[85]] Para o preenchimento do tipo de ilícito complexo ou exasperado contido no artigo 132º exige o legislador que a morte seja produzida em circunstâncias que revelem especial i) censurabilidade; ou ii) perversidade. O que há-de entender-se por especial censurabilidade ou perversidade é tarefa a desenhar, preencher e densificar pelo intérprete. A censura é um juízo social e/ou de consciência ética, ou ético-jurídica, consistente na assumpção, consciente e motivada, de uma aversão, repulsa ou rechaço de uma acção, ou omissão, que se prefigura e posiciona contra o que socialmente se encontra estabelecido e prevalentemente considerado como adequado modo de ser e agir. Já a perversidade deve ser aferida tendo como referente um modo de agir que socialmente já deve ser tido como inadequado e reprovável, mas que pela intensidade de realização intencional do facto desvalioso pode ser considerada como um comportamento qualificado e quantificado como de reduzido nível de consideração para com valores desprezados e tidos como censuráveis. [[86]/[87]/[88]] A propósito do tipo de ilícito previsto no artigo 132º do Código Penal escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.2006 (sic): “Este art.º 132.º reporta-se ao homicídio qualificado e nele o legislador não quis organizar as circunstâncias qualificativas de uma forma taxativa, antes optou por uma fórmula aberta, embora cingida a certos parâmetros, que deixa ao aplicador uma margem de ponderação das circunstâncias, por forma a casuisticamente determinar se este ou aquele facto integra o conceito legal de homicídio qualificado. Trata-se de um tipo de culpa, que começa por enunciar no seu n.º 1 uma cláusula geral ou um critério generalizador, com recurso a elementos atinentes à culpa: "Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos". Mas aliou-se essa formulação genérica à "chamada técnica dos exemplos-padrão, que funcionam como critério especializador, em que a cláusula geral é concretizada por diversas circunstâncias enumeradas no n.º 2, mas de forma exemplificativa, que não taxativa (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, p. 25 e ss. e TERESA SERRA, Homicídio Qualificado - Tipo De Culpa E Medida Da Pena, 2000, p. 15). Alguns desses exemplos-padrão, estão formulados no n.º 2 do art.º 132.º deste modo: «É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima; b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; c) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima; d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil; e) Ser determinado por ódio racial, religioso ou político; f) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime; g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum; h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso; i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;...». Que estas circunstâncias estão enunciadas a título meramente exemplificativo, é uma afirmação inequívoca, pois resulta directamente da lei, quando refere que são essas, «entre outras», as circunstâncias que podem concretizar a especial censurabilidade ou perversidade. E, como não podia deixar de ser, é essa a Jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal (Acs. STJ de 2002/11/14, proc. 3316/02, de 1991/12/12, proc. 42640, de 1992/05/06, proc. n.º 43109, de 1997/12/16, proc. n.º 102/98, de 1990/12/20, proc. 41848, etc., todos eles in www. dgsi.pt.). Mas a técnica legislativa resultante da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 do art.º 132.º leva a que possa ocorrer um homicídio em que se verifique alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 e, contudo, não se tratar de um homicídio qualificado, pois, no caso concreto, aquela circunstância pode não revelar "especial censurabilidade ou perversidade" (n.º 1), como pode suceder o contrário: a circunstância não estar prevista no n.º 2, mas poder ser substancialmente análoga a qualquer delas (Comentário...,p. 26) e poder integrar-se no tipo especial de culpa. Vem a doutrina entendendo, embora dividida, que os exemplos-padrão se prendem essencialmente com a questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram a um maior desvalor da conduta (por exemplo, o homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa Leal Henriques e Simas Santos assinalam no "Código Penal Anotado", II, pág. 61 e segs., que não é exacta a afirmação do Ac. do STJ de 1990/06/06 de que "no caso de parricídio a regra é a de que se verifica especial censurabilidade ou perversidade", pois esta tem de ser sempre comprovada). Como se diz no Acórdão deste STJ de 11/12/1996, proc. n.º 188/97 (www.dgsi.pt), "A qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do artigo 132.º do CP. Essencial é que as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples». Importa precisar o que é a especial censurabilidade ou perversidade. Permitimo-nos aqui citar, mais uma vez, Teresa Serra (ob. cit., págs. 63 a 65): No caso dos autos há uma especial censurabilidade, pois, em primeiro lugar, a arguida BB era ascendente da menor, tendo o especial dever de não cometer o crime e até de evitar o resultado por meio de acção adequada, por força de um especial dever de garante (Cf. TAIPA DE CARVALHO, Comentário ..., p. 846 e ss.) e em segundo lugar, porque ambos os arguidos praticaram o crime contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, pois trata-se de pessoas adultas que agrediram, com violência e repetidamente, uma criança que em Setembro de 2004, tinha 8 anos, sendo magra e com altura entre 1,20 metros e 1,40 metros. A isso acresce, e no que diz respeito ao arguido AA, o facto de ser tio da menor, o que, por um lado, lhe conferia um dever especial, embora não equiparável ao da mãe, de zelar pela saúde e bem-estar da sobrinha, por outro, conferia-lhe uma autoridade familiar sobre a mesma. Acentue-se ainda que agiram os dois contra a menor, praticando actos de considerável violência sobre ela. Esse circunstancialismo, aliado às circunstâncias previstas nos exemplos-padrão (alíneas a) e b) do n.º 2, no caso da arguida BB, e alínea b), no caso do arguido AA, revelam uma especial censurabilidade, uma culpa acrescida que qualificam o crime de homicídio, mas só pelas referidas alíneas, que não também pela alínea d), como foi decidido pelo tribunal «a quo», pois, não se sabendo qual o motivo que levou à prática do crime, não pode esse motivo ignorado ser qualificado de fútil ou torpe. O crime de homicídio qualificado, sendo punível apenas a título de dolo, compatibiliza-se com este em qualquer das suas formas e, portanto, também com o dolo eventual, como acentua FIGUEIREDO DIAS no citado Comentário Conimbricense: «O homicídio qualificado é, tal como o homicídio simples, um tipo unicamente punível a título de dolo sob qualquer uma das suas formas inscritas no art. 14.º: intencional, directo ou eventual». Isto, muito embora se não desconheçam certas vozes discordantes, como a de MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA, Direito Penal II - Os Homicídios, apontamentos das aulas teóricas dadas ao 5.º ano 96/97, Lisboa, 1998, p. 71 e 72. Aliás, já assim foi decidido por este Supremo Tribunal, por exemplo nos Acórdãos de 11/12/97, Proc. n.º 1050/97 - 3ª, relatado pelo Cons. Oliveira Guimarães, e de 21/4/05, Proc. n.º 3975/04 - 5ª, este do mesmo relator deste processo.” [[89]] “I - O crime de homicídio constitui uma violação do bem mais precioso de qualquer pessoa que é a própria vida e, como tal, será sempre inadmissível. Porém, o processo causal que leva à consumação de tal crime, isto é, a dinâmica de emoções e sentimentos que lhe está associada assume uma policromia por tal forma plurifacetada que, necessariamente, terá de lhe corresponder uma maior ou menor compreensão da sua génese. II - O art. 132.º do CP define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação ao tipo do art. 131.º do mesmo diploma. Com efeito, o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no art. 131.º, funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão. III - A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contém elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa.” Recenseando os factos que relevam para caracterização da culpa dos agentes temos que, (i) foi gizado, pelos três arguidos, um plano para tirar a vida ao DD; (ii) os arguidos definiram as tarefas que executariam no plano gizado; (iii) A arguida AA telefonaria à vítima para o trazer até junto da casa onde ambos tinham vivido; (iv) quando a vítima aí chegasse seria atacada, de surpresa, pelos arguido BB e CC, que se manteriam de atalaia; (v) na noite de 3 para 4 de Outubro de 2105, a vítima acercou-se do local previamente combinado com a arguida AA (residência desta); (vi) a arguida saiu de casa e entabulou conversa com a vítima; (vii) enquanto se encontravam a conversar os dois arguidos, BB e CC atacaram a vítima com uma machada, uma faca e um instrumento pontiagudo; (viii) os arguidos, BB e CC desferiram golpes com os objectos (armas) de que se tinham munido no corpo da vítima, atingindo-o na cabeça e no tronco; (ix) com a vítima prostrada no chão e incapaz de esboçar defesa, os arguidos, BB e CC “com recurso a uma fita adesiva filamentosa, marca 3M, com 2,5 cm de largura, que o arguido BB trouxe da "...", amordaçaram e ataram as mãos e as pernas (o terço inferior) de DD, tendo igualmente amarrado as pernas daquele com umas calças de fato de treino de criança”; (x) “com o fito de se livrarem do corpo de DD os arguidos envolveram-no em lençóis e introduziram-no em dois sacos de plásticos azuis, (…) de forma a não deixar vestígios de sangue na viatura em que pretendiam transportá-lo”; (xi) “Os arguidos CC e BB carregaram o corpo de DD para a mala do veículo e, em acto contínuo, o arguido BB ocupou a posição de condutor, abandonando aquele local, tendo sido seguido pelos arguidos CC e AA, que fazendo-se transportar na viatura de matrícula ..., conduzida pela arguida, seguiram atrás do arguido BB”; (xii) “Os arguidos conduziram os veículos até à ponte de ..., local onde, os arguidos retiraram da mala o cadáver de DD e atiraram-no ao rio ...”; (xiii) “com objectivo de se desfazerem da viatura usada pela vítima, o arguido BB seguido pelos arguidos CC e AA, voltou a conduzir a viatura até à..., local onde abandonaram o veículo fechado à chave.” As circunstâncias qualificativas que a decisão recorrida accionou, em face da factualidade adquirida foram: (i) “praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de um crime comum”; e (ii) “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas” – cfr. artigo 132º, nº 2, alíneas h) e j) do Código Penal. Dando passo ao que foi doutrinado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Outubro de 2003, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar “O crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132º do Código Penal, é uma forma agravada de homicídio, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no nº 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do nº 2 do artigo 132º. O critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral. Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza. Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado. A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. FIGUEIREDO DIAS, "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, págs. 27-28). O modelo de construção do tipo qualificado pelo especial tipo de culpa - através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, por seu lado, salvo afectação do princípio da legalidade, «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto [...] ou de uma situação valorativamente análoga» (cfr. idem, pág. 28). A decisão sobre a integração do crime qualificado exige que se proceda à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana. 7. A integração da actuação do arguido na definição jurídico-penal que lhe caiba há-de ser determinada pelos factos provados, os quais, no caso, sendo, como são, suficientes e isentos de vícios lógicos, constituem a inultrapassável base de decisão. O crime de homicídio apenas pode ser qualificado e integrar o crime do artigo 132º do Código Penal se, como se referiu, a atitude do agente manifestada no facto, e medida e mediada pela valoração inscrita nas circunstâncias enunciadas na lei através dos exemplos-padrão, se apresentar especialmente censurável ou a revelar e a expor externamente especial perversidade. Os factos provados, tal como se apresentam, não revelam uma atitude do arguido que se possa qualificar como de especial censurabilidade, particularmente por relação com a gravidade e intensa censurabilidade que se manifesta em todo o crime de homicídio em que se afecta o bem mais intensamente valioso, inerente à própria existência do género humano: a vida, como valor sobre todos os valores, inviolável, como proclama o artigo 24º, nº 1, da Constituição. Com efeito, e começando pela alínea g) do artigo 132º, a interpretação e integração efectuada pelo acórdão recorrido não merece qualquer reparo. O meio utilizado (arma de fogo) é perigoso pela potencialidade específica que tem para causar dano à integridade física ou à vida. A lei refere-se, porém, não apenas a meio perigoso, mas a meio particularmente perigoso. Este há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente (cfr., v. g., o acórdão do STJ, na CJ (STJ), ano VIII (2000), pág. 241). Estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão. Saliente-se, nesta perspectiva, o essencial dos factos provados, que apenas permitem salientar que a vida conjugal do arguido e da sua ex-mulher (a assistente) foi «marcada por agressões físicas» e «ameaças»; que no dia 1 de Agosto de 2001 o arguido escreveu que, «por ter descoberto com quem a sua ex-mulher tinha alegadamente um relacionamento amoroso», o que para si era «imperdoável», «preferia matá-la»; dirigiu-se ao local de trabalho da assistente, e quando esta regressava de uma saída abordou-a «dizendo-lhe que precisava de falar com ela». Nessa ocasião, o arguido «munido de uma arma de fogo», «aproximou-se até menos de um metro da assistente», dizendo-lhe, após troca de palavras, «benze-te, que eu vou-te matar», e de aquela lhe dizer «para ter calma que mais tarde falariam», disparou a arma atingindo a assistente. Apenas por esta descrição, os factos provados não revelam, no que respeita ao meio utilizado (uma arma de defesa), uma especial censurabilidade ou perversidade do arguido. O meio utilizado, nas circunstâncias em que o foi, perigoso como a maioria dos meios com que se praticam crimes de homicídio, não é daqueles a que a lei se quer especialmente referir com a noção de "particularmente perigoso". 8. Por isso mesmo, também não apresenta autonomia o facto de a arma com que o arguido disparou ser ilegalmente detida, mesmo que a detenção constituísse um crime que o acórdão recorrido qualifica como de perigo comum. O meio que constitua um crime de perigo comum, a que se refere a alínea g) do artigo 132º, está manifestamente relacionado com a definição dos crimes típicos de perigo comum como tal enunciados, previstos e classificados na sistemática do Código Penal: os crimes previstos nos artigos 272º a 286º, e especialmente, o incêndio, a explosão, e outras condutas especialmente perigosas, ou danos em instalações. A mera detenção da arma, que não tem autonomia configurativa em relação ao meio utilizado, não revela, por si e nas respectivas circunstâncias de utilização, a especial censurabilidade que se manifesta na prática de um crime de perigo comum e que está pressuposta na qualificação do crime de homicídio. 9. As circunstâncias de facto provadas também não mostram que o arguido tenha agido com "frieza de ânimo" ou "reflexão sobre os meios empregados", no sentido suposto pela alínea i) do artigo 132º como revelador de especial censurabilidade. A "frieza de ânimo" deve entender-se como um estado ou uma atitude interna do agente, que manifesta forte insensibilidade e pensado domínio sobre o desvalor da acção, praticando o facto sem qualquer sentimento de inibição ou de apreensão de carácter perante o sofrimento da vítima. Mais do que anomia perante os valores do direito, revela e manifesta-se na preparação e na racionalização da execução e na crua ausência de sensibilidade perante as consequências para a vítima e o sofrimento desta; a "frieza de ânimo" traduz uma deficiência de carácter, com manifestações acentuadamente desvaliosas na composição e revelação da personalidade. A reflexão sobre os meios empregados ou a persistência na intenção constituem, por seu lado, refracções da insensibilidade que está presente na frieza de ânimo. Manifestam-se numa acção do agente do facto que foi pensada, reflectida, ponderada, e em que se revela tenacidade de propósito; o agente, tendo tido no tempo precedente da acção ou na sequência plurifactual desta, oportunidade de representar o desvalor da conduta e de se deixar tocar pelos contra-estímulos das oportunidades de representação do desvalor da acção, manteve o propósito, manifestando na permanência do estado de espírito contra os valores uma personalidade que refracta uma indiferença altamente censurável em relação a valores comunitários fundamentais, a revelar, por isso, especial censurabilidade ou perversidade.” [[90]] Ajaezados com os aportes jurisprudenciais e doutrinais citados e valendo-nos do quadro factológico recenseado, temos para nós que o arguido ao, juntamente com o pai da companheira, ter desferido golpes com os instrumentos (machada, faca e instrumento pontiagudo) usou de meios gravemente particularmente perigosos para tirar a vida da vítima. Do mesmo passo, o modo como os três arguidos terão gizado, ou conjecturado, atrair a vítima para um espaço favorável aos seus propósitos, na medida em que saberiam que naquele espaço a vítima não teria meios de se defender e apelar a auxilio, bem como apanhando-o de surpresa retiravam, ou diminuíam, a possibilidade de gizar uma reacção ou acção defensiva, é de molde a criar a ideia de que o propósito de tirar a vida à vítima foi planeado com antelação e preparado de modo a evitar que a vítima lograsse espaço para se defender, ou pelo menos, de esboçar uma defesa que lhe permitisse escapulir-seda trama para que havia sido embaído. Em nosso juízo, as agravativas contidas nos exemplos normativos contidas nas alíneas h) e j) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal encontram-se plenamente justificada na materialidade que está adquirida para este processo. Improcederá nesta parte o recurso do arguido. II.2.b) – Individualização judicial da pena. Pugna o Ministério Público no seu recurso por uma agravamento da pena, nos termos que sucintamente se deixam recenseados (sic): “6. Com efeito, perante a matéria de facto apurada, e agora insindicável, temos por inquestionável que a conduta dos três arguidos preenche efectivamente a tipicidade objectiva e subjectiva de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1, e 132º, nºs 1 e 2, alíneas h), j) e i), do C. Penal. 7. É, igualmente, certo que é muito elevado o grau de ilicitude dos factos, referenciado, desde logo, pela forma como o crime foi cometido, as múltiplas agressões, em diversas partes do corpo, com especial incidência na cabeça, e com a utilização de diversos instrumentos (uma machada, uma faca e um instrumento pontiagudo), encontrando-se a vítima numa situação de “desvantagem” face aos agressores, e a existência de um plano arquitetado para a emboscar. 8. A profunda censurabilidade das condutas (traduzida nas circunstâncias em que foi praticado o crime e no evidente e chocante desprezo da dignidade humana da pessoa vítima), o dolo directo e intenso (traduzido na vontade persistente de praticar o crime), assim como a ausência de arrependimento ou de qualquer sentimento dos arguidos em relação à vítima, a juventude desta e as consequências irreparáveis do crime, exigem punição mais severa. 9. A morte infligida pelos arguidos, no contexto factual dado como provado, representa o recurso à violência como forma de ultrapassar vicissitudes do comportamento relacional entre a vítima e a arguida AA, com desprezo pelo recurso aos mecanismos de justiça e claramente desproporcionada relativamente ao comportamento da vítima, quando ameaçava a arguida (filha do arguido BB e, à data dos factos, namorada do arguido CC) de que a matava e lhe retirava o filho, situação que se agudizou nos dias imediatamente anteriores ao crime, mesmo que esse comportamento pudesse ser tido por provocatório. 10. Relevam, também, as necessidades de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca o crime de homicídio, em que está em causa o valor nuclear da vida humana, sendo imperioso fazer saber a todos, dissipando qualquer dúvida, através de uma sanção enérgica, que a regra penal que protege a vida humana se mantem em vigor e que as violações dos laços mais básicos e essenciais da relação social não podem ser banalizadas. 11. Só um adequado número de anos de prisão, que seja capaz de traduzir a verdade do crime e a imperiosa necessidade de respeitar a vida humana, assegurará a justiça e a virtude persuasiva da pena. 12. Por outro lado, a actuação da arguida AA foi de tal modo preponderante na criação das condições para que os seus co-arguidos pudessem abordar e atacar a vítima com êxito, que, do ponto de vista da materialidade das condutas e da realização da justiça, não se vislumbra nenhuma razão, relacionada com menor ilicitude da sua conduta ou outra, que justifique que se lhe aplique (como fez o tribunal a quo) uma pena concreta menos severa do que aos seus co-arguidos, pela prática do crime de homicídio qualificado. 13. Tanto mais que, relativamente à arguida AA, e já não aos seus co-arguidos, milita a qualificativa prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 132º, concretizada no facto de a mesma ter vivido maritalmente com a vítima durante cerca de 7 anos e de se ter valido dessa anterior relação afectiva – baseada, como é normal, em cumplicidade e nos deveres de respeito mútuo, reforçados pela existência de um filho, de 3/4 anos de idade, que mantinha com ambos bom relacionamento e contactos regulares com a vítima – para atraí-la ao local do crime, com ela entabular conversa e distraí-la para que fosse surpreendida pelos co-arguidos. 14. Assim, e tendo em conta que a moldura penal aplicável varia entre o mínimo de 12 anos e o máximo e 25 anos de prisão, cremos que uma pena inferior a 17 anos de prisão, para cada um dos arguidos, pela prática do crime de homicídio qualificado que lhes é imputado, não satisfará já minimamente, nem as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização – influência concreta sobre o agente – nem de prevenção geral de tutela do ordenamento jurídico – influência sobre a comunidade, no sentido de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.” A questão da individualização judicial da pena, ainda que não se confunda com o conceito de “determinação legal da pena”, [[91]] atina com problemas da dogmática jurídico-penal como sejam o fundamento, significado [[92]], legitimação [[93]], limitação, função e fins das penas. Ainda que com divertidas matizes e, sem curarmos de sermos exaustivos quanto às teorias, que desde o século passado se vêm debruçando sobre esta problemática, desde as teorias retributivas, radicadas na filosofia kantiana e de Hegel ou a retribuição divina que vão desde S. Tomas a Sthal, passando pelas teorias da prevenção especial, de Fuerbach, até às mais actuais, e actuantes, teorias da prevenção geral, nas suas vertentes negativa e positiva [[94]], e nesta, ainda nos diversos modelos em que se vem enformando esta corrente da dogmática jurídico-penal, que têm como epígonos Hellmuth Mayer com a denominada “força configuradora dos costumes”, Claus Roxin com a denominada “prevenção da integração” até chegar ao entendimento sociológico-jurídico-normativo de Günther Jakobs, para só falar dos mais significativos, poder-se-ia definir a pena “como uma privação ou restrição de bens jurídicos, prevista na lei, e imposta pelos órgãos jurisdicionais competentes ao autor do facto delitivo” [[95]]. Também Günther Jakobs refere que, apesar das diferenças que é possível surpreender nos distintos entendimentos quanto a esta problemática, notas comuns são passíveis de ser colimadas num conceito unitário de pena, conferindo a esta “uma função de reacção ante uma infracção de uma norma; que mediante a reacção sempre “se pone de manifesto” que há-de observar-se a norma; e que a reacção demonstrativa sempre tem lugar á custa do responsável por haver infringido a norma (por “a costa de” se entiende en este contexto la pérdida de cualqier bien)” [[96]] (tradução nossa). (As teorias da retribuição têm vindo a assumir um papel crescente na moderna teoria das penas, com o incremento na Alemanha, através de uma variante, a teoria da proporcionalidade pelo facto ou da pena proporcional ao facto, devido à “decepção e consequente desconfiança perante o sistema de prevenção especial baseado na ressocialização do delinquente constatado em distintos países como a Holanda, Suécia, Noruega e Estados Unidos conduziu a que se repristinasse o sistema neoclássico o que significava volver “a uma estrita vinculação com os princípios liberais clássicos (vinculados tradicionalmente à teoria da prevenção geral) de previsibilidade, segurança jurídica e estrita proporcionalidade que a ideologia da ressocialização tinha interdito.” [[97]] Uma das epígonas da teoria do neoproporcionalismo é Hörnle, que “estabelece uma orientação da determinação da pena à teoria do delito ou ao injusto culpável, considerando que a determinação da pena se deve fazer depender somente da gravidade do facto, quer dizer, da dimensão do desvalor do facto. O decisivo, pois, passa por identificar os factores que em casos concretos permitem realizar adequadamente o desvalor do facto delitivo. Como assinala a autora, a orientação ao sistema do delito a) facilita teoricamente a fundamentação de porquê um determinado factor de determinação da pena deve ser introduzido no catálogo dos dados a tomar em consideração, b) permite a normativização dos factores de determinação da pena e, c) para além disso, ajuda a aproveitar o grau de desenvolvimento que haja alcançado a teoria jurídica do delito.” Deficiência doutrinal é que a teoria desenvolvida exaspera de forma excessiva a produção do resultado típico ou a medida do desvalor do resultado em detrimento, por um lado, dos elementos expressivos ou comunicativos do injusto (do facto) que ela assume como ponto de partida e, por outro lado, dos elementos que tem a ver com a culpabilidade. O problema desta teoria é que praticamente identifica gravidade ou desvalor do facto com gravidade ou desvalor do resultado”) [[98]] Consignada a pena nos preditos moldes, a figura da “determinação legal da pena, ainda que para a operação de individualização judicial da pena não nos possamos alhear deste conceito, por constituir o limite que o legislador consignou como sendo aquele que protege de forma prevalente e eficaz, e num dado momento histórico, um determinado bem jurídico”, procuraremos indagar quais os critérios e justificações que deverão guiar e lastrar a determinação da medida concreta de uma pena, o que vale por dizer quais serão ou deverão ser os princípios rectores em que poderá ancorar-se uma adequada valoração da conduta de um agente infractora norma protectora de bens jurídicos. [[99]] Para Claus Roxin, op. loc.cit., pag. 185, concluindo as suas reflexões politico-criminais sobre o princípio da culpabilidade afirma que: 1º - a problemática da relação entre culpabilidade não se pode abordar depurando a culpabilidade de todos os elementos dos fins das penas, para poder contrapor os conceitos em antítese limpa. Antes bem, a culpabilidade, em tanto possa ser constatada na praxis forense, torna-se determinada no seu conteúdo por critérios preventivos; 2º - Nem tão pouco se pode incluir na culpabilidade, como se tentou recentemente invertendo as posições anteriores, todos os pontos de vista preventivos o só os preventivos gerais, fazendo desaparecer com isso o carácter antinómico de culpabilidade e prevenção; 3º - Para melhor se há-de reconhecer que conceito jurídico-penal de culpabilidade contém certamente em si alguns aspectos preventivos, mas precisamente não outros, pelo que se produzem, por isso, recíprocas limitações do poder punitivo que ocupam lugares distintos segundo se trata da fundamentação ou da determinação da pena; 4º - pelo que se refere à culpabilidade como fundamento da pena, em numerosos casos devem acrescentar-se requisitos preventivos, para desencadear uma responsabilidade jurídico-penal. Com isso, o castigo do comportamento culpável – contra o que constituía a opinião tradicional – será limitado precisamente pela necessidade preventiva, o que do ponto de vistas dogmático jurídico-penal produzirá consequências transcendentais, ainda somente vislumbradas (…); 5º - No que se refere á culpabilidade a determinação da pena, por outro lado aparece em primeiro plano o efeito limitador da culpabilidade sem prejuízo da sua congruência com as necessidades de uma prevenção integradora motivada criminalmente; já que na sua graduação limita em virtude da liberdade individual, qualquer tipo de prevenção geral intimidatória e qualquer tipo de prevenção especial dirigida a tratamento. Não obstante, também os prementes mandatos da prevenção especial limitam, ao inverso, o grau da pena, no entanto, contra o que sucede na praxis, pode-se impor no caso concreto uma pena inferior à correspondente ao limite que vem previamente dado pela magnitude da culpabilidade, quando só deste modo se possa evitar o perigo de uma maior dessocialização. Já para Winfried Hassemer, in op. loc. cit.,pag.127, “a decisão de determinar a pena são relevantes, entre outros, os seguintes elementos da realidade: a culpabilidade do sujeito; os efeitos da pena que são esperáveis que se produzam na sua vida futura em sociedade; seus motivos e fins, a consciência que o facto revela da vida anterior; as suas relações sociais e económicas e o se comportamento posterior ao delito”, do mesmo passo que para Jakobs o conteúdo tradicional da culpabilidade, constitui-se numa culpabilidade fundada em si mesma, sendo preenchido pela prevenção geral, Para este autor, “a transgressão da norma constitui em maior ou menor medida uma perturbação da confiança da generalidade na validade da norma. Por isso a segurança existencial necessária no tráfico social deve restabelecer-se mediante a estabilização da norma à custa do autor. A culpabilidade esvazia-se aqui de conteúdo, o qual dependerá de factores externos”. [[100]] “A um autor que actua de determinado modo e que conhece, ou pelo menos devia conhecer, os elementos do seu comportamento, exige-se-lhe («se le imputa») que considere ao seu comportamento como a conformação normativa. Esta imputação tem lugar através da responsabilidade pela própria motivação: se o autor se tivesse motivado predominantemente pelos elementos relevantes para evitar um comportamento, ter-se-ia comportado de outro modo; assim, pois, o comportamento executado patenteia («pone de manifesto») que o autor nesse momento não lhe importava de forma prevalente evitar o comportamento mantido. [[101]] Na doutrina espanhola, Jesús-Maria Silva Sánchez, na esteira de Hörnle (Determinación de la Pena y Culpabilidad, Buenos Aires, 2003) a individualização da pena pressupõe as seguintes premissas. “Em primeiro lugar, que o marco penal abstractamente previsto se configura como reposta preconstituida para um conjunto de factos que coincidem em constituir um determinado tipo de injusto penal, culpável e punível, no qual se contêm os elementos que fundamentam o merecimento e a necessidade de aquela pena-marco. Em segundo lugar, que injusto e culpabilidade (assim como punibilidade) constituem magnitudes graduáveis. Por isso, o marco penal abstracto pode ver-se como a união de um conjunto de cominações penais mais detalhadas (submarcos) que assinalariam medidas diversas de pena às distintas subclasses de realizações (subtipos), mais ou menos graves, do injusto culpável e punível expressado no tipo. E, em terceiro lugar, que, desde esta perspectiva, o acto de determinação judicial da pena se configura essencialmente como aquele em virtude do qual se constata o concreto conteúdo de injusto, culpabilidade e punibilidade de um determinado facto, traduzindo-o numa determinada medida da pena. O que reitera o já expresso de forma concisa: a única politica criminal que deve realizar o juiz é a que discorre por um curso das categorias dogmáticas. (…) No entanto, o facto de que a única politica criminal que o juiz deva realizar seja a que decorre pelo curso das categorias dogmáticas não implica deixar de atender aos critérios preventivos. Isso porque precisamente as ditas categorias dogmáticas podem e devem ser reconstruídas no conchavo (“en clave”) politico-criminal considerando as finalidades preventivas e de garantia que legitimam o recurso ao direito penal. A teoria do delito configurar-se-á assim como um sistema de regras que permitem estabelecer com a maior segurança possível o sim e o não dos tais merecimento e necessidade de pena. E a teoria da determinação da pena como teoria da concreção do conteúdo delitivo do facto implicará, por sua vez, o estabelecimento do quantum do seu merecimento e necessidade politico-criminal de pena.” (a tradução é da nossa lavra) [[102]] No ordenamento jurídico-penal português, e com as alterações introduzidas pela revisão do Código Penal em 1995, ficou consagrada uma concepção preventivo-ética da pena, quando se estatuí que “as finalidades da pena (e da medida de segurança) são exclusivamente preventivas, desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite da pena”. [[103]] Para este Professor, que parece defender uma posição próxima daquela que é defendida por Eduardo Demétrio Crespo, na obra já citada, isto é, que as penas devem visar, em primeira linha a prevenção especial (positiva e negativa), devendo a prevenção geral constituir-se como limite mínimo da justificação e fundamento para a imposição de uma pena ou medida de segurança e a culpa como limite máximo atendendo ao critério da prevenção especial, “o objectivo da pena, enquanto meio de protecção dos bens jurídicos, é a prevenção especial, positiva e negativa (isto é, de recuperação social e/ou de dissuasão). Este é o critério orientador, quer do legislador quer do tribunal”. [[104]] Para este Professor “a determinação da medida da pena e a escolha da espécie de pena, quando legalmente permitida, reger-se-á pelo objectivo e critério da prevenção especial: recuperação social do infractor (prevenção especial positiva), desde que tal objectivo não seja incompatível com a necessidade mínima de dissuasão individual. Ou seja: o “fim” é a reintegração social do infractor, fim este que tem, como limite mínimo, a eventual necessidade de dissuasão do infractor da prática de futuros crimes”. No entanto, adverte o autor, que temos vindo a citar,” que este critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral”. “Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à “medida” da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo – especiais” e “condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima”. Para o Professor Manuel Costa Andrade [[105]], o Código Penal Português assumiu um novo paradigma que comporta princípios axiomáticos devidamente estabilizados na doutrina alemã e portuguesa, através de Claus Roxin e Figueiredo Dias, e de que se planteiam como proposições fundamentais: “1º - o direito penal só deve intervir para assegurar a protecção, necessária e eficaz, dos bens jurídicos fundamentais; 2º - a ameaça, aplicação e execução da pena só pode ter como finalidade a reafirmação e estabilização contrafáctica da validade das normas, o estabelecimento da paz jurídica e da confiança nas normas assim como a ressocialização do condenado; 3º - a culpabilidade deve, em todo o caso, subsistir como pressuposto irrenunciável e como limite infranqueável da pena” (tradução nossa). Ainda que não totalmente de acordo com a proposição inscrita no ponto terceiro, por entendermos que o fim das penas deve assumir-se como factor de prevenção geral, numa perspectiva ético-social e funcional (ainda que com esta posição nos expúnhamos a ser acoimados de instrumentalizar o direito penal, retirando-lhe a dimensão ético-axiológica), deixando de lado um factor aleatório e vincadamente subjectivo como se revela ser a inferência fáctico-jurídica da culpa, não deixamos de considerar que o novo paradigma incutiu uma nova forma de enfrentar a problemática da individualização judicial das penas. Da posição que defendemos para a necessidade de imposição de uma sanção penal releva, como condição de uma imposição de uma punição, para além do desvalor objectivo-social da conduta, a necessidade de repor a confiança da sociedade na violação da norma que impõe um determinado proceder técnico-instrumental e redefinir um comportamento ético-socialmente desviado e que se apresenta como socialmente desmotivador da eficácia sancionatória do sistema jurídico-penal. Ainda que com matizes motivadoras diversas a jurisprudência tem vindo a afirmar a necessidade de afirmar e vincar a perspectiva da prevenção especial, como nos parece depreender-se do que ficou doutrinado no recente acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 13.04.2016, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral. “(…) a propósito, escrevemos noutras decisões, em situações similares deste Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 10 de Fevereiro de 2010) em termos dogmáticos é fundamento da individualização da pena a importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo delito (conteúdo da culpa). Não obstante, estes dois factores básicos para a individualização da pena não se desenvolvem paralelamente sem relação alguma. A culpa jurídico-penal afere-se, também, em função da ilicitude; na sua globalidade aquela encontra-se substancialmente determinada pelo conteúdo da ilicitude do crime a que se refere a culpa. Prevenção e culpa são os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena, reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena. A medida da pena resultará, assim, da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena A ilicitude e a culpa são, assim, conceitos graduáveis entendidos como elementos materiais do delito. Isto significa, entre outras coisas, que a intensidade do dano, a forma de executar o facto a perturbação da paz jurídica contribuem para dar forma ao grau de ilicitude enquanto que a desconsideração; a situação de necessidade; a tentação as paixões que diminuem as faculdades de compreensão e controle; a juventude; os transtornos psíquicos ou erro devem ser tomados em conta para graduar a culpa. A dimensão da lesão jurídica mede-se desde logo pela magnitude e qualidade do dano causado, devendo atender-se, em sentido atenuativo ou agravativo, tanto as consequências materiais do crime como as psíquicas. Importa, ainda, considerar o grau de colocação em perigo do bem jurídico protegido quer na tentativa quer nos crimes de perigo. A medida da violação jurídica depende, também, da forma de execução do crime. A vontade, ou o empenho empregues na prática do crime são, também, um aspecto subjectivo de execução do facto que contribui para a individualização. A tenacidade e a debilidade da vontade constituem valores angulares do significado ambivalente da vontade que pode ser completamente oposto para o conteúdo da ilicitude e para a prevenção especial O conteúdo da culpa ocupa o lugar preferencial entre os elementos fácticos de individualização da pena que o Código Penal coloca como directriz da actuação do juiz. Os motivos e objectivos do agente, a atitude interna que se reflecte no facto e a medida da infracção do dever são todos eles circunstâncias que fazem aparecer a formação da vontade do agente a uma luz mais ou menos favorável e, como tal, minoram ou aumentam o grau de reprobabilidade do crime. Dentro dos motivos do facto criminoso distingue-se entre estímulos externos e os motivos internos. Em qualquer dos grupos interessa para a individualização da pena constatar o grau de força do motivo e indagar o seu valor ético. Também os objectivos perseguidos pelo agente devem ser examinadas no que respeita á sua qualidade ética. Não deve equiparar-se a atitude interna do agente com o seu carácter, mas deve entender-se como um posicionamento actual referido ao delito concreto o que corresponde á formação da vontade na execução daquele. Também a atitude interna do arguido deve ser valorada conforme as normas da ética social (v.g. posição de indiferença face ao bem jurídico protegido, escassa reprobabilidade do facto por circunstancias externas, predisposição neurótica, erro de proibição, situação passional inevitável ou transtorno mental agudo. Para a individualização da pena, tanto na perspectiva da culpa como da prevenção é essencial a personalidade do agente que, não obstante, só pode ter-se em conta para a referida individualização quando mantenha relação com o facto. Aqui, deve considerar-se em primeiro lugar as condições pessoais e económicas do agente. Sem dúvida que estas circunstâncias devem ser objecto de um tratamento cuidadoso, porque em nenhum outro sector se manifesta como aqui a individualização da pena. Assim dentro das condições pessoais jogam um papel, só determinável caso por caso, a origem e a educação, o estado familiar, a saúde física e mental, a posição profissional e social, as circunstâncias concernentes ao modo de vida e a sensibilidade do agente face á pena. Pertencem, além do mais, á personalidade do agente a medida e classe da necessidade de ressocialização do agente assim como a questão de saber se existe tal necessidade. Assim, a educação; a formação escolar; a profissão; as relações sociais; o estado de saúde; a inteligência; o posto de trabalho; os encargos económicos podem fazer com que os efeitos da pena apareçam a uma luz totalmente distinta. Em particular a escolha entre pena privativa de liberdade e multa; a duração daquela a selecção de tarefas e regras de conduta dependem das considerações acerca da forma como o processo sancionador completo, incluída a eventual execução de uma pena privativa de liberdade, se repercutirá no agente, na sua posição profissional e social, e no fortalecimento do seu carácter com vista á prevenção de futuros delitos.” [[110]] O Ministério Público pede que as penas pelo crime de homicídio qualificado previsto e punido pelo artigo 132º, nº 1 e 2, alíneas h) e j) do Código Penal não deve quedar-se abaixo dos dezassete (17) anos de prisão. Na decisão recorrida à arguida AA havia sido imposta a pena de treze (13) anos e oito (8) meses; e aos arguidos, BB e CC, a pena de quinze (15) anos e seis (6) meses. A recensão fáctica supra operada permite realçar os comportamentos de cada um dos envolvidos na acção ilícita conduzida pelos arguidos e conducente à supressão da vida da vítima, DD. Individualizando cada uma das acções mais salientes de cada um dos arguidos: - Os três terão gizado e delineado um plano que conduzisse à ablação de alguém considerado estorvo para que a vivência da arguida AA, pois que, segundo afirma a arguida AA e o arguido BB, o antigo companheiro da AA a importunava, a ameaçava de morte e ameaçaria em envidar esforços no sentido de extorquir a guarda do filho de ambos; - A arguida AA, no plano gizado, agiu como pábulo para a vítima – certamente sabendo, pelo comportamento obsessivo que demonstrava relativamente a ela e a um possível reatamento do relacionamento – que ele não deixaria, como não deixou, de comparecer a um encontro por ele proporcionado; - Embaído, e certamente sem desconfiança quanto a qualquer mal que estivesse a ser preparado contra si, a vítima acudiu ao encontro, com o que, digamos de modo mais coloquial e informal, “foi posta à disposição” dos arguidos, CC e BB; - Os arguidos, CC e BB, com a vítima “posta à sua disposição” – contemo-nos, ou abstemo-nos, em utilizar o termo verbal adequado – e ataviados dos instrumentos cortantes e contundentes (machada, faca e um instrumento cortante), atingiram a vítima em partes do corpo vitais e idóneas e aptas a causar a morte; - Com a vítima prostrada e sem possibilidade de defesa, os arguidos BB e CC, amordaçaram-na e amarraram-lhe as mãos e as pernas; - Para se livrarem da vítima os arguidos envolveram o corpo em lençóis e em sacos de plástico, que o arguido BB tinha trazido da empresa onde trabalhava, tendo-o introduzido na mala de um veículo; - O cadáver da vítima foi transportado no veículo referido no item antecedente, até uma ponte, tendo sido daí atirado ao rio; - Os arguidos desfizeram-se dos pertences da vítima tendo-os lançado para o interior de um contentor de lixo; - O arguido BB que conduzia o veículo pertencente à vítima, retornou, seguido pela AA e pelo CC, até ..., onde abandonaram o veículo pertencente á vítima; - O local onde a vítima havia sido agredida foi limpo de modo a delir e obnubilar os vestígios que pudessem revelar a existências de sinais típicos de uma agressão. Da súmula extractada é possível reconstituir e figurar um quadro de escrupuloso planeamento que ia desde a criação de condições da acção/conduta activa para tirar a vida à vítima até ao modo e forma de suprimir e fazer desaparecer o cadáver. Este planeamento evidencia e consolida a ideia de que os arguidos, pelo menos para naquela circunstância, se tornaram pessoas desapiedadas e desprovidas de sentimentos relativamente a uma pessoa com quem, pelo menos para a arguida AA e para o arguido BB, tinham convivido durante cerca de sete (7) anos, sendo que a arguida AA era mãe de um filho gerado por ambos, vítima e ela própria. A forma como arquitectaram e planearam a morte da vítima, atraindo-a a um encontro que sabiam que ele não recusaria, pela forma como se comportava para com a arguida AA, os meios utilizados para lhe causar/dar a morte e o modo como, depois de logrado o resultado da morte, organizaram, de forma meticulosa e engenhosa, a supressão dos sinais da acção ilícita, bem como fazendo desaparecer os pertences da vítima e o abandono do carro, demonstram uma consciência deturpada, sorvada e refractária aos valores prevalentes de respeito pelo bem supremo de uma pessoa, a vida. O sevo evidenciado em todo o processo ressumam caracteres sem respeito pela vida e totalmente despojados de valores para com a pessoa humana. A relação e proximidade vivencial entre a vítima e os arguidos AA e BB evidenciam que estas duas pessoas agiram com o único fito de arredar, de forma drástica e absoluta, da sua vida uma pessoa que passou a ser uma preocupação e um estorvo. Terão agido como forma de fazer desaparecer alguém que criava uma entropia na vida que pretendiam refazer não se tendo coibido de usar todas as artimanhas e subterfúgios para logra o desiderato que haviam conjecturado. Este planeamento de refracção aos valores da vida humana e as circunstâncias em que a acção típica ocorreu, são passíveis de graduar num plano elevado a culpabilidade de todos os arguidos, não havendo, segundo o nosso parecer, de mermar o estalão da culpa da arguida AA, porquanto, embora não tendo intervindo directamente na “acção de força”, digamos assim, quiçá por lhe “custar” ver dar a morte em directo à vítima, não deixou de ter um papel decisivo em todo o plano – e será este plano na sua globalidade que densifica a acção ilícita e desvaliosa – que conduziu à morte do anterior companheiro. Sem olvidar, ainda quanto a esta arguida, o papel que actuou na acção de mitigar e delir os vestígios do crime. A moldura abstracta cominada para o crime de homicídio qualificado situa-se entre doze (12) e os vinte e cinco (25) anos. A culpa revelada pelos arguidos, expressa no modo, meios e forma como se conduziram na perpetração da acção ilícita típica, faz com a pena a impor a cada um dos arguidos não seja inferior a dezasseis (16) anos e seis (6) meses. A validade da norma violada e aluída na sua função de criar condições para a preservação de um bem jurídico axial e absoluto – a vida – não será reposta senão com a imposição de uma pena que se situe num nível médio entre o mínimo e máximo do cominado para o sancionamento da conduta típica. Assim estimamos que a pena adequada se deverá quedar em dezasseis (16) anos e seis (6) meses. A esta pena haverá que cumular a pena pelo crime de profanação de cadáver que não tendo sido impugnada se manterá na medida concreta estabelecida, a saber: - Para os arguidos AA e CC na pena de oito (8) meses de prisão; - Para o arguido BB na pena de dez (10) meses de prisão.
III. – DECISÃO. Na desinência do exposto acordam os juízes que constituem este colectivo na 3ª secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em: - Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido. -Julgar parcial procedente o recurso pelo Ministério Público e, em consequência, condenar os arguidos pela prática de um crime de homicídio qualificado previsto e punido, respectivamente, para a arguida AA pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas b), h) e j), e para os arguidos; BB e CC, pelas mesmas citadas disposições com excepção da alínea b) do nº 2 do artigo 132º do mesmo livro de leis, na pena de dezasseis (16) anos e seis (6) meses de prisão; - Operar o cúmulo jurídico da pena ora imposta pelo crime de homicídio qualificado com a pena imposta pelo crime de profanação de cadáver previsto e punido pelo artigo 254º do Código Penal, e condenar: - A arguida AA na pena de dezasseis (16) anos e nove (9) meses de prisão; - O arguido BB na pena de dezassete (17) anos de prisão; - O arguido CC na pena de dezasseis (16) anos e nove (9) meses de prisão. - Condenar o arguido/recorrente, CC, nas custas, por haver decaído no recurso interposto.
Lisboa, 30 de Novembro de 2017 -------------------- [37] A propósito do dever constitucionalmente assumido de fundamentação dos actos judiciais escreveu-se no acórdão do Tribunal Constitucional nº 27/2007, proferido no processo nº 784/05: “[…] Em particular, a dimensão normativa em causa é confrontada com o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais, constante do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição. Deste dever de fundamentação das decisões judiciais decorre que, nas decisões sobre matéria de facto, é obrigatória a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A imposição constitucional referida só fica satisfeita com a explicitação das razões dessa decisão, feita pelo seu próprio autor, em termos de habilitar o seu destinatário a, ciente dessas razões, se conformar com a decisão ou impugná-la de forma consciente e eficiente. O exame crítico das provas credibiliza a decisão, viabiliza o recurso e permite revelar «o raciocínio lógico do tribunal relativamente à própria decisão», como foi sublinhado já na Conferência Parlamentar sobre a Revisão do Código de Processo Penal, em 7 de Maio de 1998 (cf. as intervenções de Luís Nunes de Almeida, Germano Marques da Silva e Eduardo Maia Costa, entre outros, em Código de Processo Penal - Processo Legislativo, 2.° vol., t. 2, ed. da Assembleia da República, 1999, pp. 68, 85,86,90 e 95 e segs.). Ocupando essa garantia de fundamentação das decisões judiciais um lugar central no sistema de valores nos quais se deve inspirar a administração da justiça no Estado democrático moderno (cf. Michele Taruffo, «Notte sulla garanzia costitutionale della motivazione», in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 55.° vol., 1979, pp. 29 e segs.). Ela deve ser susceptível, como se escreveu já em acórdão deste Tribunal, «de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão concretamente proferida» (cf. o Acórdão n.º 680/98, publicado no Diário da República, 2.a série, de 5 de Março de 1999). A respeito da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, pode ler-se também no Acórdão nº 61/2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt): «Foi a primeira revisão constitucional (1982) que, com a inserção do novo n.º 1 do então artigo 210.º da CRP, veio proclamar que "As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei", formulação que, sem alteração de redacção, transitou, com a segunda revisão constitucional (1989) para o n.º 2 do artigo 208.° A remissão para a lei, não apenas da modulação dos termos, mas também da definição dos casos em que a fundamentação das decisões dos tribunais era devida (muito embora sempre se entendesse que "a discricionariedade legislativa nesta matéria não [era total], visto o dever de fundamentação [ser] uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático (cf. o artigo 2.°), ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso"), representando "a falta de consagração constitucional de um dever geral de fundamentação das decisões judiciais", surgia como "pouco congruente com o princípio do Estado de direito", para além de não se compreender que "a garantia de fundamentação seja constitucionalmente menos exigente quanto às decisões judiciais do que quanto aos actos administrativos (artigo 268.°, n.º 3)" (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.a ed., Coimbra, 1993, pp. 798-799) - preceito este último que impunha a "fundamentação expressa" dos "actos administrativos [ ... ] quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos" . Foi a revisão constitucional de 1997 que deu à norma em causa a sua localização (artigo 205.°, n.º 1) e formulação ("As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei") actuais. Estabeleceu-se, assim, com dignidade constitucional, a regra geral do dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, com a única excepção das de mero expediente, remetendo-se para a lei ordinária a definição, já não dos casos em que a fundamentação é devida, mas tão-só da forma de que se pode revestir. O alcance desta alteração foi salientado por este Tribunal, no Acórdão n.º 680/98, nos seguintes termos: "7 - Dispõe a Constituição, no n.º 1 do artigo 205.º, que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio substituir o n.º 1 do artigo 208.º, que determinava que “as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei”. A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas “nos termos previstos na lei”para o serem “na forma prevista na lei”. A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação." Também o Acórdão n.º 147/2000 salientou que a "actual redacção do artigo 205.°, n.º 1, imprimiu contornos mais precisos ao dever de fundamentação, pois, onde a Constituição remetia para a lei os “casos”em que a fundamentação era exigível, passou a concretizar-se que ela se impõe em todas as decisões “que não sejam de mero expediente”, mantendo-se apenas a remissão para a lei quanto à “forma” que ela deve revestir", acrescentando: "Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afectam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controlo mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas. De todo o modo, a persistência daquela remessa para a lei faz com que o mandado constitucional de fundamentação continue a ser um mandado aberto à actuação constitutiva do legislador, a quem incumbirá definir a “forma” em que a fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido útil daquele mandado (cf. o Acórdão nº 59/97, in Diário da República, 2.a série, nº 65, de 18 de Março de 1997) - qualquer que seja essa forma, ela terá sempre que permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão. [ ... ] Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judiciais naquele domínio."» A exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais tem uma função não apenas endoprocessual, mas também dirigida ao exterior do processo: ela visa explicitar a ponderação que integrou o juízo decisório e permitir às partes - no caso, ao arguido - o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a possibilidade de optar pela reacção (impugnatória ou não) que entendam mais adequada à defesa dos seus direitos (e por esta via, a obrigação de fundamentação possibilita também, mediatamente o exercício do direito ao recurso que possa caber no caso). Mas a exigência de fundamentação visa também possibilitar o próprio conhecimento pela comunidade das razões que levaram a uma determinada decisão, e, pela via da exigência de lógica ou racionalidade da fundamentação (contida na exigência de fundamentação), contribui também para a própria legitimação da actividade decisória dos Tribunais. 5 - O tribunal do julgamento tem, pois, que explicitar as razões que o levaram a convencer-se de que o arguido praticou os factos que deu como provados. Importa, porém, notar que, como este Tribunal também já afirmou, «a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética» (Acórdão n.º 258/2001, com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Nem, por outro lado, a fundamentação tem de obedecer a qualquer modelo único e uniforme, podendo (e devendo) variar de acordo com as circunstâncias de cada caso e as razões que neste determinaram a convicção do tribunal. Com o dever de fundamentação das decisões judiciais, a Constituição não impõe, na verdade, um modelo único de fundamentação, com descrição ou, ainda mais, transcrição, de todos os depoimentos apresentados no julgamento, ou a menção do conteúdo de cada um deles. Estes depoimentos, mesmo quando são depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa, podem, com efeito, não ter sido decisivos para a formação da convicção do tribunal, podendo então bastar que o tribunal indique aqueles que o foram. Isto, sendo certo que, por um lado, o que está em causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de consideração e explicitação da prova produzida por todos os sujeitos processuais, mas antes de explicitação do juízo decisório e das provas em que este se baseou, e que, por outro lado, não compete ao Tribunal Constitucional controlar a forma como concretamente o tribunal formou a sua convicção. Como se referiu, não está, aliás, em causa no presente recurso o controlo do exame crítico das provas feito na decisão em causa, nem uma admissão da mera elencagem «tabelar» das provas produzidas”. [40] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11.10.2007; Proc. n.º 07P3240., onde se escreveu: “Mais exigentemente, pois que agora se deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas "nos termos previstos na lei" para o serem "na forma prevista na lei". A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação. A fundamentação das decisões judiciais continua, pois, dependente da lei a que é atribuído o encargo de definir, com maior ou menor latitude, o âmbito do dever de fundamentação, sem que isso signifique total discricionariedade legislativa, “uma vez que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso. Nestes casos, particularmente, impõe-se a fundamentação ou motivação fáctica dos actos decisórios através da exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como as razões de direito que justificam a decisão” (V. Moreira e G. Canotilho, CRP Anotada, 2.ª Edição, 798-9) Foi devolvido ao legislador o seu “preenchimento”, a delimitação do seu âmbito e extensão em termos prudentes evitando correr o risco de estabelecer uma exigência de fundamentação demasiado extensa e, por isso, inapropriada e excessiva. Limitou-se a consagrar o aludido princípio “em termos genéricos”, deixando a sua concretização ao legislador ordinário. (cfr. o ac. nº 310/94 do T. Constitucional – DR IIS de 29.8.94), sem que isso signifique, como se viu, que assiste ao legislador ordinário uma liberdade constitutiva total e absoluta para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de fundamentação das decisões dos tribunais, em termos de esvaziar de conteúdo a imposição constitucional. Têm sido atribuídas à fundamentação da sentença diversas funções: — Contribuir para a sua eficácia, através da persuasão dos seus destinatários e da comunidade jurídica em geral; — Permite, ainda, às partes e aos tribunais de recurso fazer, no processo, pela via do recurso, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz; — Constitui um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere). E, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões (cfr. citado Ac. 680/98). E a norma, que desenhou o dever de fundamentação no processo penal, cumpre todas estas funções, como vêem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional (cfr. Ac. TC n.ºs 680/98 e 636/99, 102/99, 258/2001, 382/98 e AcSTJ de AcSTJ de 11.11.2004, proc. n.º 3182/04-5)”. E ainda no mesmo sentido o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 09-01-2008 - Proc. n.º 4457/07. “[…] VIII - Através da exigência de fundamentação consegue-se que as decisões judiciais se imponham não por força da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 230). Ao mesmo tempo, permite-se a plena observância do princípio do duplo grau de jurisdição, podendo o tribunal superior verificar se, na sentença, se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 294), sem olvidar que, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1.ª instância aquele que está em melhores condições para fazer um adequado usado do princípio de livre apreciação da prova. IX - Antes da vigência da Lei 59/98, de 25-08, entendia-se que o art. 374.º, n.º 2, do CPP não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador expusesse pormenorizadamente o raciocínio lógico que se encontrava na base da sua convicção, pelo que somente a ausência total da referência às provas que formaram a fonte da convicção do tribunal constituía violação do art. 374.º, n.º 2, do CPP, a acarretar nulidade da decisão nos termos do art. 379.º do mesmo diploma legal. X - Actualmente, face à nova redacção do n.º 2 do art. 374.º do CPP – introduzida pela Lei 59/98, de 25-08, e inalterada pela Lei 48/2007, de 29-08 –, é indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas, ou seja, é necessário que o julgador esclareça “quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra”. XI - O dever constitucional de fundamentação da sentença (art. 205.º, n.º 1, da CRP) basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como com o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que aquela se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. XII - A fundamentação decisória não tem que preencher uma extensão épica, sem embargo de dever permitir ao seu destinatário directo e à comunidade mais vasta de cidadãos, que sobre o julgado exerce um controlo indirecto, apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal decisão. Não basta, pois, uma mera referência dos factos às provas, torna-se necessário um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam. XIII - Aplicada aos tribunais de recurso, a norma do art. 374.º, n.º 2, do CPP não tem aplicação em toda a sua extensão, nomeadamente não faz sentido a aplicação da parte final de tal preceito (exame crítico das provas que serviram para formar a livre convicção do tribunal) quando referida a acórdão confirmatório proferido pelo Tribunal da Relação. Se a Relação, reexaminando a matéria de facto, acolheu a fundamentação do acórdão recorrido que se apresenta detalhada, justificando-o na parte respectiva, então as instâncias cumpriram suficientemente o encargo de fundamentar, sendo que a discordância quanto aos factos apurados não permite afirmar que não foi (ou não foi suficientemente) efectuado o exame crítico pelas instâncias. XIV - O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento na 2.ª instância. Dirige-se somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos em recurso e das provas que impõem decisão diversa (e não indiscriminadamente de todas as provas produzidas em audiência). XV - O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127.° do CPP. A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em 1.ª instância. O art. 127.° indica um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova. [54] JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Primeiro Volume, 1974,145. [58] Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, fasc. 3, Julho Setembro de 1994, Aequitas Editorial Notícias, FREDERICO ISASCA, p. 380. [59]Ibidem, p..100. [59] Ibidem, p.104. [60] GERMANO MARQUES da SILVA, Curso de Processo Penal I, 5ª edição revista e actualizada, Editorial Verbo, 2008, 374, que em nota 1 acrescenta: 1 Note-se que já perante o direito anterior o Prof. Castanheira Neves considerava que «os possíveis pontos de vista incriminatórios não poderão ser diferentes daqueles que estejam em congruência com o sentido jurídico-criminal problematicamente constitutivo do caso concreto», ob. cit., p. 262. Só então se satisfaria a exigência de limites para a convolação já que sem esses limites o réu poderia ser surpreendido por uma incriminação contra a qual não era exigível que preparasse a sua defesa, podendo, assim, vir a ser de todo ineficaz para essa nova incriminação, embora menos grave, quando já poderia ser porventura eficaz relativamente à primitiva incriminação, ainda que mais grave», ob. cit., p.265. [61] Ibidem, p. 375 e segs. [62] Ibidem, p.382. [63] PAULO PINTO de ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Portuguesa, p. 875, nota 8 (artº 339º) [64] idem, ibidem, p. 824, nota 12. [66] Ibidem, nota 5. [86] Na jurisprudência o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 5.09.2207; in www.stj.pt, refere que “I.- O art. 132.º do CP define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação ao tipo do art. 131.º do mesmo diploma. Objectivamente o tipo de crime assenta nos mesmos factos que estão previstos no art. 131.º, funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos-padrão. II - O critério da qualificação está definido no n.º 1 do art. 132.º, e consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade. Algumas das circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade estão enumeradas no n.º 2 do mesmo normativo. III - Como refere Figueiredo Dias, a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas, e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. IV - No que respeita ao facto, ali enumerado, de o acto ilícito ter sido praticado contra agente de força de segurança no exercício e por causa das suas funções (art. 132.º, n.º 2, al. j), do CP), estamos perante uma circunstância indiciadora de um tipo de culpa agravado – exemplo-padrão –, pelo que não basta demonstrar única e simplesmente a qualidade do ofendido, mas será sempre necessário provar a existência de circunstâncias que revelam uma especial censurabilidade ou perversidade. Tal só acontecerá, como ensina Figueiredo Dias, se ao homicídio puder ligar-se uma especial baixeza da motivação, ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade da vítima ou à função que ela desempenhava.”” [87] Cfr. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 21.06.2006; www.stj.pt “I - O crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132.° do CP, é uma forma agravada de homicídio, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n.º 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 do art. 132.°. II - O critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral. III - Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza. IV - Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado. V - A frieza de ânimo, a que se refere a al. i) do n.º 2 do art. 132.° do CP, traduz a formação da vontade de praticar o facto de modo frio, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão ou sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.” [94] “A tarefa que se deve consignar à pena é manter a vigência de certas normas indispensáveis, necessárias ou essenciais para a pervivencia da sociedade, buscando assentar as bases da confiança da população na sua validade (validez) como modelos de orientação. Não se trata de um conceito formal de validade (validez) ou vigência, mas sim de um conceito material que tem que ver com a eficácia das normas para orientar a vida social. Trata-se, pois, de entender a validade (validez) em sentido sociológico ou prático como a existência de um sistema jurídico que efectivamente orienta a vida social. O que danifica ou contraria o delito é essa situação fáctica conforme ao Direito. Enquanto que JAKOBS voltou a manter uma concepção da prevenção geral positiva dirigida a exercer a fidelidade no Direito, eu prefiro nos meus últimos trabalhos sobre a pena incidir no papel que tem a pena para ajudar a manter a confiança dos cidadãos na vigência da norma, concepção que creio que permite uma visão mais normativa da prevenção geral positiva. A pena não pretende incidir directamente em condutas futuras (nem do delinquente nem de potenciais delinquentes nem de outras pessoas), mas tão só confirmar quais são as normas que continuam vigentes. A confiança que se busca é uma situação social (confiança no sentido normativo) e não uma prestação psicológica dos cidadãos ou da população. A vida social, tal e como a concebemos, existe graças a um substrato (“trasfondo”) normativo que se assume como evidente. O delito nega a dita evidência ela pena tem que recompor esse elemento estrutural da vida cotidiana. A confiança não se deve entender, pois, num sentido formal e abstracto como a confiança da sociedade no seu sistema jurídico-penal, mas sim em sentido realista e vivo como um elemento básico das relações interpessoais e do funcionamento da vida social. Sem confiança a realidade social sofre um cambio qualitativo. Não se trata, portanto, de fomentar a confiança como fenómeno psicológico-social, já que se cada cidadão decide ou não confiar é uma questão particular, mas sim de assentar de cara no futuro as bases institucionais numa confiança racional nas normas como modelos de orientação de conduta. A pena é um instrumento de orientação da vida social e dos cidadãos, que pretende evitar a anomia. Mediante a posição exposta rechaço a visão sociopsicologicista da prevenção geral positiva, de acordo com a qual o que pretenderia a pena não seria mais do que exercitar certas disposições internas dos indivíduos a obedecer ou respeitar as normas. De acordo com este tipo de concepções a pena não reagiria simbolicamente frente à lesão da juridicidade, mas sim, ao invés, à atitude normativa d autor. Independentemente ninguém saber como influi o ordenamento jurídico-penal nessa «caixa negra» que é a mente e de que é impossível constatar a incidência ou irritação dos delitos das penas nas consciências pessoais, os cidadãos são os únicos competentes e responsáveis pela dita disposição (são eles que processam a incidência que o delito e a pena pode ter para eles). Como seres definidos juridicamente como auto-responsáveis é uma questão particular se se deixam ou não «corromper» na sua disposição normativa. É uma questão particular de cada cidadão como se deixa influir pelas normas penais, as suas infracções e pelas penas que reagem às ditas infracções. A pena não pode ter como tarefa mitigar o perigo de corrupção do delito para cidadãos responsáveis nem pode exercitar ou desenvolver fidelidades normativas. A legitimidade da pena tem que ser alheia a essa disposição individual de respeitar as normas por parte dos que não delinqúem se realmente a dita disposição é um assunto individual com que se tem que preocupar cada um num sistema de liberdades próprio de um Estado democrático. A pena só tem que manter a vigência das directrizes irrenunciáveis de conduta que regem a vida social para que o cidadão as possa continuar a ter em conta. E isso fá-lo incidindo comunicativamente na manutenção da vigência ou da eficácia da norma, mas não nos motivos pelos quais os indivíduos respeitam as normas. Os delinquentes podem ser feitos responsáveis da erosão da vigência da norma, mas não das disposições internas dos outros membros da sociedade e, por isso só se lhes pode impor a pena necessária para manter comunicativamente a dita vigência, mas não para neutralizar instrumentalmente as tendências dos outros. Creio que JAKOBS, com a sua última versão da prevenção geral positiva, não acabou de superar estes inconvenientes e, por isso, ocupou um lugar central a ideia do sofrimento. Por esta razão os aspectos comunicativos têm que ver mais com o seu conceito funcional de retribuição, enquanto que a prevenção general positiva como prevenção da erosão geral da norma só se pode conseguir, segundo JAKOBS, instrumentalmente mediante a dor que inflige a pena. Na minha opinião, não é legítimo (para além de impraticável) determinar a pena não em relação ao que o cidadão tenha feito (fez), mas sim utilizando como critério o mal ou sofrimento necessários para conseguir a fidelidade normativa dos cidadãos que actuam como espectadores do processo punitivo. A teoria da prevenção geral positiva de JAKOBS acaba incorrendo no mesmo defeito de todas as teorias preventivo-instrumentais da prevenção geral: numa sociedade de cidadãos facilmente corrompíveis a pena tenderia a ser muito superior à de uma sociedade na qual existem de forma dominante cidadãos que não se deixam corromper; desta maneira se evidencia como a pena perde a necessária proporção comunicativa com o facto. Se a função da pena é demostrar o vantajoso da obediência ao Direito, carregando o infractor com custos que demonstram que a falta de fidelidade não é um «negocio rentável», se acaba descuidando um aspecto essencial do delito: a sua lesividade social. Por isso a gravidade da pena não deve estar orientada a conseguir fidelidade normativa, mas sim a responder adequadamente à lesividade social do facto delitivo, o qual depende da gravidade desse facto para a ordem social. A pena não pode mais que restabelecer ou reparar o dano à juridicidade produzido pelo facto delitivo (a estabilização normativa é o que conleva seguridade cognitiva para os cidadãos). (…)Toda a ordem configurada mediante normas é basicamente una ordem simbólica e isso tem que ver com a função de estabilização normativa característica da pena estatal. Os partidários das teorias preventivo-instrumentais objectam de forma equivocada que uma teoria comunicativa da pena deveria dar lugar a respostas meramente simbólicas sem nenhum tipo de efeitos práticos. Sem embargo constatar a dimensão comunicativa da pena não implica negar que conceptualmente a pena seja sempre um mal (senão não se poderia falar de pena mas sim de outra coisa), mas sim negar que o dito mal tenha basicamente uma mera dimensão instrumental de atemorização (ainda que possa ter esses efeitos latentes). Não só se comunica com palavras, mas também, por exemplo, com gestos ou acções. A pena não é uma comunicação à qual se vincula um mal mas antes que o mal é o específico da comunicação penal (ainda que às vezes o mal fique em suspenso). A pena é o mal necessário para que a comunicação social ou interpessoal contra determinados factos delitivos seja possível. Determinados factos graves não permitem outro tipo de comunicação (pelo menos no contexto das sociedades que conhecemos). O autor tem que suportar todo o que seja necessário (ainda que não mais) para compensar o dano que produziu à vigência de la norma como realidade social. A necessidade do mal tem que ver com a intervenção estatal necessária para que a vida social siga sendo cotidianamente uma vida conforme ao Direito, não para que conceptualmente se saiba o que é ou não conforme ao Direito (nesse caso bastaria realmente com uma declaração). A norma não é só um símbolo abstracto que possa ser protegida sem mais com declarações abstractas, outrossim é um instrumento de configuração da vida e das relações sociais que a pena deve seguir mantendo como realidade social. O delito não só pôs em entredito a norma em sentido abstracto, mas também afectou uma determinada relação interpessoal (no caso de delitos contra bens jurídicos individuais) ou a outro âmbito de organização (no caso de delitos contra bens jurídicos colectivos) e, o que é especialmente importante, com isso afectou a liberdade geral como realidade social. O infractor não só atentou contra um conceito, mas também contra uma realidade social conforme ao Direito e desgastou (“erosionou”) ou colaborou em deteriorar (“erosionar”) as condições existentes para o desenvolvimento geral da liberdade na vida cotidiana. Não comparto com JAKOBS a ideia de que a vigência da norma só se vê afectada pela manifestação da falta de fidelidade. Na minha opinião, a disposição jurídica é um elemento do facto (por isso não faz falta impor males quando o autor cometeu o injusto apesar de uma disposição jurídica mínima), mas a execução do feito delitivo descrito numa norma penal também é um elemento importante do mesmo. Por isso tem que ser mais castigado num suposto de falta de disposição jurídica equivalente aquele que infringe uma norma mais importante para a sobrevivência (“pervivenda”) da sociedade. Desde a minha perspectiva a dimensão comunicativa do facto resulta na obra de JAKOBS demasiado unilateral ao quedar absorbida em exclusivo pela fidelidade ao Direito.” – Cfr. Bernardo Feijoo e Manuel Cancio Mellia, “ [111] Quanto ao princípio da proporcionalidade salienta-se o que ficou escrito no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Outubro de 2004, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar. “O princípio da proporcionalidade dos crimes e das penas não tem, como refere o acórdão recorrido, consagração directa e expressa na Constituição, nem em instrumentos internacionais operativos sobre direitos fundamentais (v. g. a Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos), embora seja expresso no artigo 49.º, n.º 3, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que, todavia, constitui um documento político, sem força jurídica vinculativa, a não ser por via dos princípios fundamentais estruturantes e comummente aceites como princípios gerais de direito que formalmente assume e inscreve. O princípio da proporcionalidade, que é sobretudo proibição de excesso, e que se desdobra nos sub-princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação razoável entre meios e fins), constitui um princípio operativo que intervém como teste ou reactivo da intensidade da intervenção das autoridades públicas sobre a esfera dos indivíduos, especialmente, mas não apenas, no que respeite a intervenções invasivas sobre direitos fundamentais; a proporcionalidade, neste sentido, é a medida razoável da concordância prática entre direitos e valores em conflito, públicos e da esfera dos indivíduos. Mas, como conceito e princípio operativo, a proporcionalidade intervém na ponderação sobre ingerências das autoridades públicas no desenvolvimento e aplicação de normas, e não na formulação e edição das próprias normas. Neste domínio, o princípio situa-se em uma outra dimensão, não já operativa, mas de vinculação do legislador, e por isso, não directamente sindicável no plano jurisdicional, sabida a liberdade de conformação do legislador na definição das grandes opções e, especialmente, na definição dos crimes e das respectivas concretizações típicas em direito penal. A proporcionalidade dos crimes e das penas significa que o legislador pode usar o direito penal como meio de tutela de valores e interesses fundamentais ou decisivamente relevantes da comunidade, definindo os comportamentos que afectem tais valores e sancionando a respectiva violação com as correspondentes sanções, adequadas à intensidade dos valores protegidos e à gravidade da respectiva violação. Na dimensão do princípio como injunção ao legislador, os critérios de proporcionalidade assumidos nas definições legislativas não são directamente sindicáveis, salvo no que puderem contender com outros princípios federadores com dimensão operativa, como pode ser, em certos limites, o princípio da dignidade da pessoa humana. Na definição dos crimes e das penas, a proporcionalidade exigirá que os limites das penas aplicáveis a determinado crime não sejam estabelecidas em feição exclusivamente utilitarista intimidatória, mas, dentro da moldura considerada adequada, respeitem o princípio da culpa como limite inultrapassável de outras imposições ou exigências. Não tem, pois, sentido a invocação que faz o recorrente; por isso, se interpreta a motivação como tendo por objecto a discussão sobre a aplicação dos critérios para a determinação da medida concreta da pena, à sombra de uma leitura pessoal do princípio da proporcionalidade. A determinação da medida da pena pressupõe, porém - e mesmo oficiosamente, à margem do modelo de impugnação do recorrente - , a integração dos factos provados na definição dos crimes que for a adequada e das consequentes molduras penais.” Vide ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.02.2007 “2 – O princípio da proporcionalidade do art. 18.º da Constituição refere-se à fixação de penalidades e à sua duração em abstracto (moldura penal), prendendo-se a sua fixação em concreto com os princípios da igualdade e da justiça. (…).” |