Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4989/23.3T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
SUBSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO
DECISÃO SURPRESA
DESCARACTERIZAÇÃO DA DUPLA CONFORME
NULIDADE DE ACÓRDÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
MATÉRIA DE FACTO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
DESTITUIÇÃO DE GERENTE
SUSPENSÃO
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
TITULARES DE ÓRGÃOS SOCIAIS
Data do Acordão: 03/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE
Sumário :
I – Tendo o objecto da revista a ver com a conduta processual assumida pelo Tribunal da Relação de Lisboa ao, por um lado, haver declarado a sentença recorrida nula por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, in fine, do Código de Processo Civil, com fundamento na violação pelo tribunal ad quo do princípio do contraditório, e, por outro, nesta sequência e agindo em substituição da 1ª instância no exercício dos poderes conferidos pelo artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil, haver considerado afinal que tal nulidade era irrelevante, o que o levou ao conhecimento imediato do mérito da causa sem ordenar a remessa dos autos à 1ª instância para cumprimento do princípio do contraditório não devidamente observado, verifica-se a descaracterização da dupla conforme, impeditiva da interposição da revista normal.

II – Neste contexto, a violação do princípio do contraditório (novamente apontada pelo recorrente) diz agora directamente respeito à actuação autónoma da 2ª instância e não ao decidido na sentença recorrida, pelo que, embora tenha existido coincidência formal nas duas instâncias quanto à decisão de fundo, a impugnação em apreço refere-se a vício em que terá incorrido originariamente o Tribunal da Relação, sendo assim a revista admissível.

III – Tendo a omissão apontada à 1ª instância a ver, em termos de violação do princípio do contraditório, com a circunstância de não ter sido concedida ao requerido a possibilidade de contraditar os factos dados como assentes na fase cautelar deste processo especial previsto nos artigos 1053º a 1055º do Código de Processo Civil, em que foi impedida a sua intervenção processual, a forma de a suprir, restabelecendo o imprescindível contraditório, passaria sempre e inevitavelmente pela remessa dos autos à 1ª instância para dar oportunidade à parte de os contrariar, assim se cumprindo esse princípio fundamental antes censuravelmente omitido.

IV – A opção assumida no acórdão recorrido – de forma totalmente imprevista, inopinada e surpreendente -, sem sequer ter tido lugar, como seria suposto, o cumprimento do contraditório previsto no nº 3 do artigo 665º do Código de Processo Civil, não é em si mesma idónea a colmatar, sanando, o grave vício processual de que enfermava a decisão de 1ª instância, sendo certo que a valoração do conjunto de toda a prova que importava analisar, em termos globais e conjugados, deveria ter tido em conta a possibilidade de qualquer das partes poder intervir na sua produção, não sendo admissível, para a formação do juízo de facto a extrair na acção principal (e não já na fase meramente cautelar), que possam entrar – ou contribuir de algum modo - elementos probatórios anteriormente analisados com exclusão do contraditório.

V – Ao Tribunal da Relação compete unicamente, de forma autónoma e crítica, sindicar o juízo de facto emitido pelo tribunal a quo, tal como o mesmo foi concretamente elaborado, e não simplesmente ignorar o percurso intelectual que lhe esteve subjacente e que, neste caso, se encontra, pelos motivos apontados, intrinsecamente viciado.

VI - O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que lhe especialmente incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.

Amarelva – Exploração e Gestão de Hotéis, Lda., pessoa coletiva n.º 508715091, com o capital social de €5.000,00 e com sede na Rua da Vitória, n.º 39, 1100-618 Lisboa, intentou a presente ação especial de suspensão e destituição e titulares de órgãos sociais contra a S..., Lda., pessoa coletiva n.º ...40, com o capital social de € 1.030.500,00., com sede na Rua da ..., ... e AA, nascido a .../.../1943, natural de Moçambique, titular do Bilhete de Identidade n.º ...86, emitido a 27/01/2000 em Lisboa, titular do NIF ...38, com domicílio na Rua ..., ..., peticionando a destituição do 2.º Requerido.

Para o efeito alegou que AA, gerente da 1ª Requerida S..., Lda., efetuou transferências de dinheiro da conta da sociedade para a sua conta pessoal sem justificação, o que constitui uma violação grave e reiterada dos deveres de gerente, revela a sua incapacidade para o exercício normal das funções inerentes ao aludido cargo, uma vez que tais atos colocam em causa a prossecução da normal atividade da sociedade, e determina a quebra definitiva da relação de confiança entre aquele, a referida sociedade 1.ª Requerida, e a Requerente.

A título antecipatório, e com natureza urgente e cautelar da referida decisão, requereu ainda a Requerente que o Tribunal decrete, de imediato, a suspensão do 2.º Requerido das funções de gerente da sociedade, ordenando igualmente que entregue imediatamente à Requerente as chaves de acesso ao estabelecimento e instalações da sociedade 1.ª Requerida, bem como os códigos e cartões de acesso e movimentação das respetivas contas bancárias, e que se abstenha de entrar e/ou permanecer no estabelecimento da sociedade, e de praticar quaisquer atos em representação da sociedade 1.ª Requerida.

Por sentença proferida em 10 de Março de 2023, e após inquirição de testemunhas, foi determinada a imediata suspensão das funções de gerente de AA na S..., Lda., sem a sua prévia audição, devendo o mesmo:

a) entregar as chaves de acesso às instalações da sociedade 1.ª Requerida;

b) entregar os códigos e cartões de acesso e movimentação das contas bancárias de que a sociedade 1.ª Requerida é titular;

c) abster-se de praticar quaisquer atos em representação da sociedade 1.ª Requerida, designadamente, movimentação das contas bancárias da sociedade, encomendas, compras, vendas, pagamentos e outros;

d) abster-se de assumir quaisquer compromissos ou obrigações em nome da sociedade 1.ª Requerida;

e) abster-se de entrar e/ou permanecer nas instalações da sociedade 1.ª Requerida.

Devidamente citado para o efeito, veio o 2.º Requerido impugnar o alegado pela Requerente, afirmando ser o gestor da Requerida e ter efetuado a transferência bancária para salvaguardar o património da sociedade, posto em causa pelos demais gerentes, assegurando que a sociedade continuaria com capacidade financeira para prosseguir a sua atividade comercial.

A A., notificada da defesa apresentada pelo 2.º Requerido, veio requerer a condenação deste como litigante de má fé, requerimento que foi objeto de resposta por parte do 2.º Requerido.

Realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 10 de Maio de 2024, que julgou improcedente a oposição deduzida pelo 2.º Requerido e, consequentemente, manteve a decisão de suspensão das funções de gerente de AA na S..., Lda., devendo o mesmo:

a. entregar as chaves de acesso às instalações da sociedade 1.ª Requerida;

b. entregar os códigos e cartões de acesso e movimentação das contas bancárias de que a sociedade 1.ª Requerida é titular;

c. abster-se de praticar quaisquer atos em representação da sociedade 1.ª Requerida, designadamente, movimentação das contas bancárias da sociedade, encomendas, compras, vendas, pagamentos e outros;

d. abster-se de assumir quaisquer compromissos ou obrigações em nome da sociedade 1.ª Requerida;

e. abster-se de entrar e/ou permanecer nas instalações da sociedade 1.ª Requerida.

O requerido apresentou recurso de apelação, o qual veio a ser julgado parcialmente improcedente por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 15 de Outubro de 2025, nos seguintes termos:

1. Julgar procedente a invocada nulidade da sentença por excesso de pronúncia;

2. Considerar ser essa nulidade juridicamente irrelevante para a decisão e o desfecho do processo;

3. Fazendo uso da regra da substituição prevista no n.º 1 do artigo 665.º do CPC, conhecer do objecto do recurso e, nessa medida,:

a) Alterar a decisão da matéria de facto nos moldes constantes do presente acórdão; b) Alterar o segmento do dispositivo da sentença, na parte referente à manutenção

da decisão de suspensão do cargo de gerência, no sentido de, onde consta: “e) abster-se de entrar e/ou permanecer nas instalações da sociedade 1.ª Requerida”, passar a constar: “e) abster-se de entrar e/ou permanecer nas instalações da sociedade 1.ª Requerida, salvo para participar em assembleias gerais da mesma para as quais tenha sido convocado e proceder à consulta dos documentos referidos no artigo 289.º, nºs 1 e 2 do CSC, bem como da respectiva escrituração, livros e documentos”;

c) Manter, quanto ao mais, a sentença recorrida”.

Veio o requerido interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:

1. Decidiu o Digníssimo Tribunal de 1.ª instância que manteve a suspensão do ora Recorrente das funções de gerente da S..., Lda., devendo o mesmo (a) entregar as chaves de acesso às instalações da sociedade 1.ª Requerida; (b) entregar os códigos e cartões de acesso e movimentação das contas bancárias de que a sociedade 1.ª Requerida é titular; (c) abster-se de praticar quaisquer atos em representação da sociedade 1.ª Requerida, designadamente, movimentação das contas bancárias da sociedade, encomendas, compras, vendas, pagamentos e outros; (d) abster-se de assumir quaisquer compromissos ou obrigações em nome da sociedade 1.ª Requerida; (e) abster-se de entrar e/ou permanecer nas instalações da sociedade 1.ª Requerida;

2. Mais entendeu o Digníssimo Tribunal de 1.ª instância dar por provada a ação de destituição de titular de órgão social e, consequentemente, determinou a destituição do ora Recorrente do exercício das funções de gerente da S..., Lda.;

3. Por sua vez, considerou o Digníssimo Tribunal a quo julgar procedente a invocada nulidade da sentença por excesso de pronúncia, tendo, no entanto, considerado essa nulidade como juridicamente irrelevante para a decisão e desfecho do processo, fazendo uso da regra da substituição prevista no n.º 1 do artigo 655.º do CPC, e conhecendo do objeto do recurso;

4. Nessa medida, decidiu ainda o Digníssimo Tribunal a quo alterar a decisão da matéria de facto, alterar o segmento do dispositivo da sentença, na parte referente à manutenção da decisão de suspensão do cargo de gerência, no sentido de, onde consta: “e) abster-se de entrar e/ou permanecer nas instalações da sociedade 1.ª Requerida”, passar a constar: “e) abster-se de entrar e/ou permanecer nas instalações da sociedade 1.ª Requerida, salvo para participar em assembleias gerais da mesma para as quais tenha sido convocado e proceder à consulta dos documentos referidos no artigo 289.º, nºs 1 e 2 do CSC, bem como da respectiva escrituração, livros e documentos” e manter, quanto ao mais, a sentença recorrida;

5. Por não concordar com o Acórdão Recorrido, o Recorrente vem interpor Recurso de Revista ao abrigo do artigo 671.º, n.º 1 e n.º 3 a contrario e 674.º, n.º 1 alíneas b) e c) do CPC.

6. Assim sendo, cabe, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC abordar o erro de aplicação da lei do processo que foi cometido pelo Tribunal a quo, assim como o vício de que enferma este Acórdão do qual é interposto recurso.

7. Mais concretamente, o presente recurso vem contradizer e contestar a decisão do Tribunal a quo sobre a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, que foi considerada juridicamente irrelevante para o desfecho do processo.

8. Antes de mais, no que concerne à questão fundamental deste Acórdão que será, como se demonstra evidente, a invocada nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia, bem andou o Tribunal a quo ao considerar que a mesma é nula.

9. Aliás, tal entendimento foi sustentado pelo Acórdão do Tribunal da Relação, 1.ª Secção, de 07.05.2024, Processo n.º 4987/23.7T8LSB.L1, em questão idêntica, cujas partes são igualmente as partes do presente processo.

10. Neste sentido, o Acórdão de que se recorre vem transcrever a decisão do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.05.2024, que veiodecidir que,num processo de jurisdição voluntária, não se deverá concluir pela inviabilidade de ser considerada a prova testemunhal já produzida em fase cautelar, especialmente quando esta prova se baseia nos mesmos factos do pedido principal de destituição.

11. No entanto, este Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.05.2024, vem destacar que, para garantia de um processo equitativo (art. 20.º, n.º 4 da CRP), sempre será essencial que o tribunal informe previamente os intervenientes sobre o tipo de procedimento adotado, garantindo-lhes a possibilidade de adotar soluções jurídicas adequadas aos seus interesses.

12. Além disso, conclui ainda este Acórdão que, sem este aviso prévio, a utilização da prova cautelar na decisão de destituição configura uma decisão surpresa, o que, por sua vez, determina que a sentença em questão padecerá de excesso de pronúncia, sendo, em consequência, nula nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC.

13. Nestes termos, vem o Acórdão recorrido concordar com a argumentação deste Acórdão do Tribunal da Relação, de 07.052024, destacando que o pedido de destituição não equivalerá à manutenção da providência cautelar de suspensão.

14. Como tal, veio o Tribunal a quo considerar que, perante a questão dos autos, a prova testemunhal utilizada para a decisão de destituição, sem o contraditório devido, gerou a nulidade por excesso de pronúncia da referida sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d).

15. Não obstante, vem acrescentar o Douto Tribunal a quo que entende que tal nulidade era “juridicamente irrelevante” e que não afetaria o mérito da causa, dado que a prova documental e a factualidade aceita pelo Recorrente eram suficientes para sustentar a decisão, decidindo assim pela desnecessidade da remessados autos à 1.ª instância, fazendo uso da regra de substituição, prevista no artigo 665.º, n.º 1 do CPC.

16. Contudo, devemos referir que tal entendimento se demonstra incoerente com o respeito pela lei do processo, sendo que o Tribunal a quo veio aplicar de forma errónea o regime da substituição ao tribunal recorrido, tentando com tal decisão sanar a atuação do Tribunal de 1.ª instância de violação do exercício do princípio do contraditório pelo Requerido, ora Recorrente

17. Com efeito, o artigo 665.º do CPC determina que a nulidade da decisão não implica a remessa obrigatória para a 1.ª instância, uma vez que, ainda que seja considerado pelo Tribunal da Relação queadecisão dequese recorrepadecedenulidade,deverá este mesmo Tribunal, e ainda assim, julgar da procedência do restante recurso.

18. Isto é, o Tribunal da Relação deverá, ao abrigo dos seus poderes, suprir a nulidade verificada, substituindo a decisão por si declarada nula e procedendo apreciação do objeto do recurso.

19. Como sustentado por Abrantes Geraldes (in Recursos em Processo Civil, 6.ª edição atualizada, Almedina, Coimbra, 2018, p. 335):

Porém, ainda que a Relação confirme a arguição de algumas das referidas nulidades dasentença, não se limitaareenviar oprocesso parao tribunal aquo.

Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665º, n.º

2. Destemodo, aanulação da decisão(v.g.por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários.

Só nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665.º, n.º 2” (negrito e sublinhado nosso).

20. Daqui se retira, pois, que a substituição do tribunal recorrido depende, necessariamente, de o Tribunal da Relação dispor dos elementos necessários para decidir o mérito do recurso, conforme jurisprudência consolidada.

21. Ou seja, este regime de substituição e a consequente da apreciação das demais questões do recurso e, em termos gerais, a apreciação do mérito da questão dos autos, só terá lugar quando o Tribunal ad quem, o Tribunal da Relação, estiver em condições de suprir a nulidade em questão.

22. Neste sentido, pronuncia-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2024, Processo n.º 563/16.9T8PTL-K.G1:

Verificada a nulidade, cabe ao Tribunal adquem supri-la, salvo se não dispuserdos elementos necessáriospara esseefeito,por força dodisposto no art. 665/1 do CPC, donde resulta que, ainda “que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação” (n.º 1)” (negrito e sublinhado nosso).

23. Na mesma linha, refere também o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29.09.2020, Processo n.º 23994/16.0T8LSB-D.L1-1:

O exercíciodoenunciadopoder de substituiçãopelo tribunal adquem apenas não será possível quando os autos não contenham todos os “elementos necessários” que permitam a prolação dessa decisão de substituição, casoem que, nostermos da al. c), do n.º 1 do art.º 662º doCódigo de Processo Civil, se impõe anular a decisão recorrida e determinar a ampliação do julgamento à matéria de facto necessária à prolação dessa decisão.”

24. Face a tal, cabe realizar uma análise in casu, se se afigura possível a sanação do vício de que padece a sentença recorrida - o excesso de pronúncia por violação do princípio do contraditório -, e se, essencialmente, o Tribunal da Relação dispunha dos elementos necessários para conhecer do restante objeto da apelação.

25. Cabe aqui relembrar que o Tribunal a quo havia admitido, no seu Acórdão, que para efeitos de fundamentação da decisão de facto, e no que concerne ao pedido de destituição, não poderia o Tribunal de 1.ª instância ter dispensado a observância do contraditório.

26. Motivo pelo qual se questiona agora, e seguindo a mesma lógica, como poderia o Tribunal a quo, na ausência desse mesmo contraditório, apresentar e fundamentar a sua decisão de facto e, assim, conhecer do objeto do recurso, nos precisos mesmos termos que anteriormente o Tribunal de 1.ª instância o tinha feito.

27. Ora, tendo em conta que o próprio Tribunal a quo entendeu que a decisão do Tribunalde 1.ª instância, e devido à ausênciado mencionado contraditório, padecia de vício de nulidade por excesso de pronúncia, parece evidente que, ao conhecer de mérito o pedido de destituição nos mesmos termos, incorrerá, indubitavelmente, no mesmo vício que esta atribuiu à decisão do Tribunal de 1.ª instância.

28. Efetivamente não poderia o Tribunal a quo sanar aqui este vício uma vez que, este só poderá ser sanado com o necessário exercício do contraditório, o que implicará a baixa dos autos à 1.ª instância.

29. Pelo que, sem este exercício, o Tribunal a quo nunca poderia estar em condições de conhecer do mérito deste recurso e, no fundo, deste processo.

30. Importa sublinhar-se que o princípio do contraditório é um dos pilares fundamentais do direito processual, sendo o garante de que todas as partes têm o direito de se pronunciar sobre as alegações e as provas apresentadas pela parte contrária.

31. O contraditório consubstancia, pois, uma das garantias constitucionais que compõem o direito a um processo justo e equitativo, como consagração da tutela jurisdicional efetiva, previsto e assegurado pelo artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

32. Como o próprio Acórdão de que aqui se recorre refere relativamente ao princípio do contraditório:

Actualmente, vigora no nosso ordenamento jurídico uma concepção ampla do princípio do contraditório, estando o mesmo associado, não apenas a uma efectiva participação das partes no desenvolvimento do litígio, mas também ao poder de influenciarem o que no processo se decide. Nessa medida, não é lícito aotribunal conhecer dequaisquer questões(defactoou dedireito)sem que as partes tenham oportunidade de sobre elas se pronunciarem, razão pela qual não se admite a prolação das chamadas decisões surpresa” (sublinhado e negrito nosso).

33. No casoconcreto, foi aprova testemunhalemsedecautelar desuspensão degerente – desprovida de contraditório – que motivou a factualidade considerada indiciariamente prova, posteriormente transposta para a decisão de destituição e, igualmente, considerada no Acórdão daqui que se recorre.

34. Sendo de relembrar que o Tribunal de 1.ª instância não assinalou, em qualquer momento, ao Requerido, aqui Recorrente, a sua intenção de, na prolação da sua decisão sobre o pedido de destituição, ponderar a prova anteriormente produzida (numa fase processual coberta por segredo de justiça e em que estava apenas em causa avaliar da pretensão cautelar de suspensão).

35. Pelo que, tanto a sentença do Tribunal de 1.ª instância, como ainda o Acórdão recorrido, constituem ambos decisões-surpresas, uma vez que o que era expectável para o Recorrente era a declaração de nulidade da sentença, com a declaração de consequente oportunidade para este de exercício do respetivo contraditório relativamente à prova testemunhal da Requerente.

36. Ao considerar tal nulidade irrelevante juridicamente, o Acórdão recorrido viola grosseiramente o direito ao contraditório do Recorrente, violando, assim, o princípio da garantia de direitos e igualdade entre as partes, prejudicando de forma injustificável os direitos do Recorrente.

37. Cabendo ainda notar que, perante circunstancialismo absolutamente idêntico quanto ao objeto e thema decidendum e quanto às partes processuais, havia decidido o Acórdão do Tribunal da Relação, de 07.05.2024:

Consequentemente, não podendo esta Relação proferir sentença substitutiva (art. 655.º do CPC), impõe-se a anulação da decisão recorrida, devendo prosseguir a audiência de julgamento, como mesmo tribunal e aproveitando-se todos os atosjápraticados, com vistaaquesejadadaapalavraaorequerido para, a propósito da prova testemunhal arrolada pelo autor e inquirida em momento anterior, exercer a respetiva instância, com vista a que tais testemunhas completem e/ou prestem os esclarecimentos pertinentes, nos termos do art. 516.º, n.º2 do CPC.

Fica, pois, prejudicada a apreciação das demais questões enunciadas.

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, anulando-se a decisão recorrida e determinando o prosseguimento da audiência de julgamento nos termos e para os efeitos assinalados.” (negrito e sublinhado nosso).

38. Por este motivo, não se atinge porquemotivooTribunal a quo,eapesar de sustentar integralmente a sua decisão relativamente à nulidade da sentença recorrida sobre este Acórdão do Tribunal da Relação, de 07.05.2024, veio depois decidir em sentido absolutamente oposto a este acerca da relevância desta nulidade e da consequente possibilidade de conhecimento do objeto de recurso.

39. Demonstra-se, pois, evidente que, à semelhança do decidido no Acórdão do Tribunal da Relação, de 07.05.2024, e perante o circunstancialismo da questão dos autos, não se demonstra possível ao Tribunal da Relação proferir decisão substitutiva, com o conhecimento do objeto do recurso.

40. Em concreto, e face à ausência do contraditório, não se poderia considerar que estavam reunidos os elementos necessários para a sanação da nulidade da sentença e para a sua respetiva substituição.

41. Não se aceita, pois, por infundado e violador dos princípios acima identificados, que o Tribunal a quo entenda que o contraditório se demonstra “irrelevante” face à prova documental junta e da factualidade que o Recorrente aceita, porquanto o Tribunal a quo não pode antecipar o resultado da audição de prova testemunhal que não teve contraditório e ditar o resultado desta ação sem a produção da prova que se demonstra absolutamente essencial.

42. O Tribunal a quo não poderia, pois, antecipar ou presumir qual seria o resultado do contraditório da produção da prova testemunhal que nunca chegou a ser realizada, não sendo possível assegurar que o desfecho dos autos seria o mesmo após a realização e produção de tal prova.

43. Nestes termos, o Tribunal a quo, ao entender a nulidade por excesso de pronúncia enquanto “juridicamente irrelevante” para o desfecho do processo, incorre num grave erro de aplicação da lei do processo, mais concretamente do artigo 665.º, n.º 1 do CPC.

44. Ademais, e salvo o devido respeito por melhor entendimento, o Tribunal a quo, ao não reconhecer a relevância da nulidade por falta de contraditório, contradiz a sua própria fundamentação, após ter entendido que a ausência de contraditório havia determinado a nulidade da sentença do Tribunal de 1.ª instância.

45. Ao seguir na mesma linha de conduta que o Tribunal de 1.ª instância, também o Tribunal a quo incorre no vício de excesso de pronúncia, o que, por sua vez, determina igualmente a nulidade do Acórdão de que aqui se recorre.

46. A manutenção dessa decisão por parte da Relação perpetua, pois, a violação processual cometida pela 1.ª instância e já previamente reconhecida, razão pela qual esta decisão também não poderá subsistir.

47. Assim sendo, e uma vez que os autos não contêm todos os elementos necessários para a apreciação do mérito, a baixa dos autos à 1.ª instância demonstra-se imperativa.

48. Motivo pelo qual, deveria o Tribunal a quo, ter decidido no mesmo sentido do Acórdão do Tribunal da Relação, de 07.05.2024, proferido igualmente pela 1.ª secção, Relatora Isabel Fonseca, por ser m acórdão proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, já transitado em julgado, o qual decidiu que não estava em condições para conhecer do objeto do recurso nos termos do artigo 655.º, n.º 1 do CPC, condenando a baixa dos autos à 1.ª instância para prosseguimento da audiência de julgamento para cumprimento do contraditório.

49. Termos em que se requer a V. Exas. seja julgada procedente a presente revista e consequentemente seja decidido revogar-se o presente Acórdão, sendo ordenado prosseguimento da audiência de julgamento, com o Tribunal de 1.ª instância, sendo dada a palavra ao Requerido para, a propósito da prova testemunhal arrolada pelo Requerente e inquirida em momento anterior, exercer a respetiva instância, com vista a que tais testemunhas completem e/ou prestem os esclarecimentos pertinentes, nos termos do art. 516.º, n.º 2 do CPC.

Contra-alegou a requerente, apresentando as seguintes conclusões:

1. Da análise entre o acórdão recorrido e a sentença de 1.ª instância, é ostensiva uma situação de dupla conforme a respeito da decisão de mérito, o que vedaarevista, conduzindo àsuarejeição, tanto mais que o Recorrente nem sequer empreendeu no seu requerimento de interposição de recurso qualquer esforço tendente a demonstrar qualquer diferença substancial (que inexiste), antes centrando o seu recurso em questões destituídas de interesse e de utilidade prática e marginais ao recurso de revista.

2. Encontrando-se já esgotado o poder jurisdicional, o recurso ora interposto deve ser imediatamente rejeitado, porque manifestamente inadmissível nada mais traduzido senão uma tentativa condenável de protelar, mais ainda, uma decisão definitiva da causa, para que não se dê o trânsito em julgado do processo, expediente dilatório que deve enquanto tal ser repudiado e sancionado.

3. O Recorrente, quer no seu requerimento de interposição de recurso, quer nas suas alegações, não desenvolve o mínimo de esforço tendente a demonstrar a existência de uma qualquer divergência entre os fundamentos da decisão impugnada e os fundamentos que levaram a 1.ª instância a decidir no sentido em que decidiu.

4. No caso patenteado não se vislumbra a menor divergência, muito menos uma divergência capaz de se subsumir ao conceito legal de essencialmente diferente, o que exigiria uma diversidade estrutural e diametralmente diferente – cfr. acórdão do STJ de 30/04/2015, Processo n.º 1583/08.2TCSNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

5. Compulsados os autos, verifica-se que os mesmos respeitam a uma ação de suspensão e destituição de gerente intentada pela sócia Recorrida contrao gerente Recorrente por locupletamento de fundos dasociedade sem qualquer autorização para tal, sendo que, no âmbito da ação foi deduzido pedido cautelar de suspensão de gerente, tendo o mesmo, em face da prova testemunhal e da prova documental produzidas, sido considerado procedente.

6. Da análise da fundamentação de direito proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido, verifica-se que a fundamentação é essencialmente a mesma, notando-se que o Tribunal da Relação de Lisboa utiliza a mesma fundamentação que a1.ª instância, entendendo que, apesar de ter sido preterido o contraditório, mesmo assim, resulta da prova documental e da factualidade aceite por acordo que a conduta do Recorrente foi tão grave que se mostra preenchida a quebra da confiança e como tal estão preenchidos os pressupostos para a sua destituição de gerente, nos termos do artigo 257.º do CSC, mantendo portanto a decisão de 1.ª instância.

7. Em qualquer caso, em face de duas decisões inteiramente coincidentes e na ausência de fundamentos de recurso minimamente estruturados e válidos por parte do Recorrente, pouco restaria à ora Recorrida em sede de contra-alegações senão acolher e louvar-se nos fundamentos já afirmados pelo Tribunal nas duas instâncias, com a autoridade do caso julgado que lhes deve ser formalmente reconhecido.

8. Quanto ao julgamento do mérito da causa, o Recorrente acaba por não a questionar no seu recurso, sendo que, se o fizesse, contudo, seria de observar que a decisão é exatamente a mesma nas duas instâncias – ante os factos invocados e provados através de prova documental e factualidade confessada pelo Recorrente existe fundamento para destituição por justa causa, sendo essa a questão essencial de mérito, com julgamento integralmente coincidente e assentando nos mesmos fundamentos.

9. Existe conformidade decisória (reportada à decisão) e conformidade essencial da fundamentação, daí que, o Recorrente nem questione a decisão de mérito, não existindo nas suas conclusões quaisquer proposições que questionem tal matéria, antes peticionando a baixa dos autos para nova decisão.

10. Simplesmente, se na primeira instância foi relevada prova testemunhal que não poderia ter sido valorada nos termos em que o foi, por ter sido alegadamente preterido o direito ao contraditório – um erro de procedimento assinalado pela Relação – foi aí relevada também prova documental, sendo certo que no acórdão da Relação recorrido foi igualmente relevada a prova documental existente no processo e julgada suficiente de per si para sustentar a mesma decisão de mérito.

11. A Relação não assinalou nenhum erro de julgamento quanto à decisão de mérito da causa (que confirmou, aliás, afirmando que é irrelevante, pois a decisão sempre seria a mesma, a de destituição por justa causa), limitando-se a dissentir da 1.ª instância ao referenciar a existência de um erro de procedimento que considerou irrelevante para a decisão de mérito que confirmou no final no segmento decisório, conforme se cita: “Mostram-se, pois, preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 257.º do CSC para a destituição do recorrente enquanto gerente dasociedade requerida,tal como decidido pela 1.ª instância, nessa medida, impondo-se igualmente a manutenção da decisão cautelar de suspensão…” (cfr. acórdão recorrido de 15/10/2024, ref.ª ...71).

12. Em face do exposto, conclui-se que estão verificados os requisitos que correspondem à conformidade substancial da fundamentação de ambas as decisões, existindo inequívoca dupla conforme quanto à questão de mérito discutida nos autos relativa ao pedido da suspensão e da destituição de gerente por justa causa, o que impõe a rejeição do recurso de revista.

13. Tendo sido declarada nulidade por excesso de pronúncia, e tendo a nulidade sido suprida, por ser uma nulidade que é irrelevante para a alteração da decisão da causa, tendo em conta já toda a prova produzida no tribunal de 1.ª instância (mormente a prova documental e a confessada pelo Recorrente nos autos), mantendo como tal a sentença recorrida com os mesmos fundamentos,daí decorre que existe duplaconformidade impedindo deste modo a aferição do acesso ao segundo grau de recurso.

14. Confirmada a decisão de mérito, sem que o Recorrente sequer reaja quanto à mesma (v. conclusões de recurso) – nem podendo reagir em razão da patente dupla conforme, a única questão patente nas conclusões de recurso do Recorrente que é apresentada neste recurso de revista é a questão processual de saber se o Tribunal da Relação fez boa ou má aplicação do artigo 665.º, n.º1 do CPC, normativo que permite conhecer do mérito da causa ao invés de mandar baixar à 1.ª instância para que seja exercido o direito ao contraditório relativamente à prova testemunhal arrolada em sede cautelar e utilizada para a aferição do pedido principal de destituição de gerência.

15. A este respeito, o Recorrente entende que a Relação não se encontraria em condições de poder conhecer o mérito, estando privada de exercer o seu poder de substituição por não dispor dos elementos de prova necessários, sendo que, não questionando a recorrente o mérito da decisão não se pode aceitar que se discuta a questão processual por si suscitada em recurso de revista.

16. Em primeiro lugar, porque, salvo o devido respeito, não questionando a Recorrente o mérito da decisão – v. conclusões e pedido formulado, não pode aceitar-se que a mesma pretenda empreender uma discussão jurisdicional meramente dedicada a essa questão processual em sede de recurso de revista.

17. Os tribunais não se ocupam da discussão e decisão de questões académicas ou hipotéticas, estando-lhes vedada a prática de atos inúteis, sendo entendimento pacífico que: “Não lugar a recurso de revista para análise exclusiva de eventuais nulidades. As nulidades são arguíveis por via do recurso de revista quando da decisão reclamada caiba também recurso ordinário, conforme 4 do art. 615º do CPC.” cfr. Ac. deste STJ de 20-12-2017, no Proc. nº 22388/13.3T2SNT-B.L1-A.S1, in www.dgsi.pt.

18. Em segundo lugar, porque tal questão processual, nos termos em que se mostra retratada não encerra sequer, verdadeiramente, a imputação de uma divergência de interpretação e aplicação de uma norma processual – a Recorrente não discorda de qualquer interpretação ou aplicação que o Tribunal da Relação tenha feito do artigo 665.º, n.º 1 do CPC, o que parece discordar é pura e simplesmente do resultado dessa aplicação.

19. Conforme se depreende das conclusões de recurso do Recorrente,este alega que o Tribunal da Relação não poderia ter decidido que estavam reunidos os elementos necessários para a sanação da nulidade da sentença e para a sua respetiva substituição, consubstanciando tal uma análise valorativa da matéria de facto, sendo os juízos de facto uma questão estranha aos poderes do Supremo Tribunal de Justiça.

20. Embora o Supremo Tribunal de Justiça possa decidir em recurso de revista se a Relação fez boa interpretação e aplicação do artigo 665.º, n.º1do CPC, é preciso que o recurso seja estruturado e fundamento para tal, discutindo diretamente o alcance normativo que foi dado pelo Tribunal que a Relação faz sobre a prova documental e a prova por confissão aceite pelo Recorrente considerada na decisão, desconsiderando certa prova testemunhal, o que está fora dos poderes de cognição do Supremo Tribunal.

21. No caso sub judice, o Tribunal da Relação de limitou-se a considerar a prova documental e a factualidade que o Recorrente aceita (confessando nos autos que transferiu os fundos para a sua conta pessoal sem autorização) para nela fundar a decisão de direito, num quadro em que seriam despiciendas diligências adicionais de prova (mormente, o exercício do contraditório relativamente às testemunhas arroladas pela Recorrida), que seriam inúteis e irrelevantes mesmo em abstrato para as soluções jurídicas plausíveis da causa.

22. O tribunal recorrido limitou-se a exercitar os poderes processuais que a lei lhe confere e cujo uso lhe impõe, não cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça o poder de cognição sobre se os elementos de prova eram ou não suficientes, sendo que tal matéria que o Recorrente pretende discutir reconduz-se à apreciação de prova sujeita a livre apreciação.

23. Em face de tudo o exposto, não assiste qualquer razão ao Recorrente ao intentar um recurso de revista, quando analisadas as suas alegações se conclui que toda a matéria que pretende discutir se reconduz à apreciação de prova sujeita a livre apreciação, o que exorbita dos poderes de conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça.

24. Improcedem todas as conclusões da revista, devendo a decisão recorrida ser confirmada e o recurso ser julgado improcedente na hipótese de não ser rejeitado, o que apenas se pondera não se aceitando.

II – FACTOS PROVADOS.

Encontra-se provados nos autos que:

1. A Autora é sócia maioritária da sociedade comercial por quotas “S..., Lda.”, sociedade que tem por objeto social a exploração da indústria hoteleira e similares.

2. São gerentes da sociedade, BB, CC e o requerido AA.

3. A sociedade obriga-se com a assinatura de um gerente.

4. São sócios da sociedade: a. O requerido AA, titular de uma quota de € 498.929,08, representando 42.42% do capital social; b. DD, titular de uma quota de €6.035,46, representando 0.58% do capital social; e c. A Requerente Amarelva – Exploração e Gestão de Hóteis, Lda., titular de uma quota de € 525.535,46, representando 51% do capital social.

5. O 2.º Requerido encontra-se maioritariamente fora de Portugal, em viagens”.

6. A gerência diária da sociedade 1.ª Requerida é exercida pelos outros dois gerentes designados, filhos do aqui 2.º Requerido.

7. Eliminado.

8. A sociedade 1.ª Requerida explora o hotel denominado comercialmente Hotel ..., localizado na Rua da ..., em ....

9. A sociedade 1.ª Requerida tem ao seu serviço 16 funcionários.

10. A sociedade tem necessidade de fazer pagamentos mensais de impostos, salários e a fornecedores, tendo no final de Fevereiro de 2023 de pagar, só em salários, 15.500,00 euros.

11. A sociedade é titular de duas contas bancárias, a saber: a. Uma conta aberta junto do Banco BPI, SA, com o IBAN ...97; e b. Uma conta aberta junto do Banco Comercial Português, SA, com o IBAN ...88.

12. As referidas contas bancárias podem ser movimentadas por qualquer dos gerentes.

13. No passado dia 15 de fevereiro de 2023, o 2.º Requerido transferiu para a sua conta bancária pessoal o montante de 120.000 euros que a 1ª Requerida tinha depositado no banco BPI, na conta com o IBAN ...97.

14. Com tal transferência a conta bancária ficou com um saldo de € 9.355,88.

15. No dia 16 de fevereiro de 2023, o 2.º Requerido deslocou-se ao balcão de ... do Banco Comercial Português, S.A., onde tentou proceder à transferência, para a sua conta pessoal, da quantia de € 34.000,00 existente na conta bancária da 1.ª Requerida com o ...88 que a sociedade tem neste Banco.

16. Tal tentativa de transferência não se concretizou porque a agência bancária em causa não o permitiu.

17. Quando os restantes gerentes da 1ª Requerida tomaram conhecimento de tal tentativa de transferência deram instruções ao banco no sentido de bloquear as movimentações da conta em causa.

18. A sociedade 1.ª Requerida não deliberou a transferência de quaisquer valores para o 2.º Requerido.

19. Não existe qualquer atividade da sociedade 1.ª Requerida que justifique a mobilização das referidas quantias para a conta pessoal do 2.º Requerido.

20. O 2.º Requerido não só procedeu a tal transferência relativamente à sociedade 1.ª Requerida, como fê-lo também relativamente a outras três sociedades das quais é gerente (V..., Lda., C..., Lda., SI..., Lda.), num valor total de € 720.000,00.

21. A conta pessoal do 2.º Requerido para onde foram transferidas as diversas quantias, domiciliada no BPI com o n.º ...01, tinha em 15.08.2023 um saldo de € 681.595,94 e em 15.09.2023 um saldo de € 677.680,83.

22. Durante esse período de 30 dias o 2.º Requerido não efetuou qualquer pagamento respeitante à 1ª Requerida, sendo a diferença de valores resultado do uso pessoal feito pelo 2.º Requerido.

Não foi dada como provado que:

A. A sociedade é titular de duas contas bancárias, a saber: // a. Uma conta aberta junto do Banco BPI, SA, com o IBAN ...53; e // b. Uma conta aberta junto do Banco Comercial Português, SA, com o IBAN ...42.

B. A transferência referida em 15 não se concretizou porque a Gerente de Conta pediu ao Gerente da sociedade 1.ª Requerida, CC, que confirmasse a realização de tal operação, por estranhar o valor e o destino da mesma.

C. O 2.º Requerido é parte ativa na gestão das sociedades, limitando-se tão-só os seus filhos gerentes a executarem tarefas do quotidiano sob a autoridade do Requerido.

D. O 2.º Requerido é o responsável máximo pela Sociedade e incumbe-lhe delinear as grandes linhas estratégicas de todos os negócios familiares.

E. O 2.º Requerido realizou a transferência a partir da conta do Banco BPI com vista a proteger o património social.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

1 – Descaracterização da dupla conforme.

2 – Violação do princípio do contraditório. Prova produzida sem intervenção da parte contrária na fase cautelar da presente acção especial, prevista nos artigos 1053º a 1055º do Código de Processo Civil. Omissão por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), in fine, do Código de Processo Civil. Actuação substitutiva do Tribunal da Relação ao abrigo do disposto no artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil, sem observância do disposto no nº 3 do mesmo preceito legal. Remessa dos autos à 1ª instância.

Passemos à sua análise:

1 – Descaracterização da dupla conforme.

Sustentou a recorrida a inadmissibilidade da presente revista com fundamento na constituição de dupla conforme, nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil, impeditiva da interposição da revista normal.

Não lhe assiste manifestamente razão.

O objecto da revista prende-se essencialmente com a análise da conduta processual assumida pelo Tribunal da Relação de Lisboa ao, por um lado, haver declarado a sentença recorrida nula por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, in fine, do Código de Processo Civil, com fundamento na violação pelo tribunal ad quo do princípio do contraditório, e, por outro, nesta sequência e agindo em substituição da 1ª instância no exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil, haver considerado afinal que tal nulidade era irrelevante, o que o levou ao conhecimento imediato do mérito da causa, sem ordenar a remessa dos autos à 1ª instância para cumprimento do contraditório não devidamente observado.

Ora, é manifesto que, neste concreto contexto, a violação do princípio do contraditório (novamente apontada pelo recorrente) diz agora directamente respeito à actuação autónoma da 2ª instância e não ao decidido na sentença recorrida.

Pelo que, embora tenha existido coincidência formal quanto à decisão de fundo adoptada nas duas instâncias, verifica-se a descaracterização da dupla conforme na medida em que a impugnação em apreço se refere a um vício em que terá incorrido originariamente o Tribunal da Relação.

A revista é assim admissível.

2 – Violação do princípio do contraditório. Prova produzida sem intervenção da parte contrária na fase cautelar da presente acção especial, prevista nos artigos 1053º a 1055º do Código de Processo Civil. Omissão por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), in fine, do Código de Processo Civil. Actuação substitutiva do Tribunal da Relação ao abrigo do disposto no artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil, sem observância do disposto no nº 3 do mesmo preceito legal. Remessa dos autos à 1ª instância.

Entende o recorrente que o acórdão recorrido incorreu em violação do princípio do contraditório, genericamente previsto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.

Afigura-se-nos que lhe assiste razão.

O Tribunal da Relação de Lisboa considerou que a sentença recorrida não podia haver integrado, para a sua fundamentação, a motivação de facto que resultou da inquirição de testemunhas feita com exclusão de contraditório pela parte contrária, o que se verificou na fase cautelar deste processo especial previsto nos artigos 1053º a 1055º do Código de Processo Civil.

Concluiu o aresto que tal consubstanciava uma violação ao princípio do contraditório genericamente previsto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.

Daí que tenha declarado a nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), in fine, do Código de Processo Civil.

Acontece que, após ter concluído pela nulidade da sentença por excesso de pronúncia decorrente da violação pelo tribunal a quo do princípio do contraditório, e sem qualquer prévia notificação às partes como seria mister, passou a utilizar desde logo os poderes de substituição consignados no artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil, passando a apreciar sem mais a impugnação de facto.

Ora, esta actuação processual do Tribunal da Relação acaba por afrontar igualmente o princípio do contraditório que havia aliás apontado – e bem – à decisão de 1ª instância.

Com efeito, o artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil, determina que o Tribunal da Relação ainda que anule o processo procede ao conhecimento da causa.

Só que tal acção substitutiva apenas será possível nos casos em que os autos reúnam, nesse momento processual, todos os elementos necessários e suficientes à decisão da causa.

Isso não acontece necessariamente na situação sub judice.

Com efeito, se a omissão apontada à 1ª instância, em termos de violação do princípio do contraditório, tinha a ver com a circunstância de não ter sido concedida ao requerido a possibilidade de contraditar os factos dados como assentes na fase cautelar dos autos e em que foi impedida a sua intervenção processual, a forma de a suprir, restabelecendo o imprescindível contraditório, passaria sempre e inevitavelmente pela remessa dos autos à 1ª instância para dar oportunidade à parte de os contrariar, assim se cumprindo esse princípio fundamental antes censuravelmente omitido.

Era essa a verdadeira e única actuação processual que sanaria o vício que fora cometido em 1ª instância, não se compreendendo como esse grave vício apontado – e bem – à sentença recorrida possa, de algum modo e em qualquer circunstância, ter-se afinal por irrelevante, ou seja, sem consequência ou importância prática alguma.

(A essa mesma – correcta - conclusão chegou, com total pertinência, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Maio de 2024 (relatora Isabel Fonseca), proferido no processo nº 4987/23.7T8LSB.L1, publicado in www.dgsi.pt, numa situação perfeitamente similar à dos presentes autos – tendo aliás sido abundantemente citado e transcrito no acórdão recorrido -, desconhecendo-se o motivo pelo qual no aresto em crise se optou por solução totalmente diversa e oposta à aí assumida, única que salvaguardaria integralmente, fazendo cumprir, o princípio do contraditório).

A posição do acórdão recorrido – adoptada de forma totalmente imprevista, inopinada e surpreendente, sem sequer ter tido lugar, como seria suposto, o cumprimento do contraditório previsto no nº 3 do artigo 665º do Código de Processo Civil - não é em si mesma idónea a colmatar, sanando, o grave vício processual de que enfermava a decisão de 1ª instância.

(Refira-se igualmente que a dispensa do cumprimento do disposto no artigo 665º, nº 3, do Código de Processo Civil, assente pretensamente na suficiência da discussão já antes travada, em termos bastantes, quanto a toda a matéria pertinente à abordagem da questão a decidir, não faz in casu o sentido uma vez que a circunstância de no acórdão recorrido se entender irrelevante a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, bem como o subsequente exercício dos poderes de substituição previstos no artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil, constituem em si, autonomamente, uma verdadeira decisão surpresa, sobre a qual nenhuma das partes se havia até então pronunciado, não a podendo sequer, seguindo o procedimento processual expectável, antever).

Note-se que a valoração do conjunto de toda a prova que importava analisar, em termos globais e conjugados, deveria ter tido em conta a possibilidade de qualquer das partes poder intervir na sua produção, não sendo admissível, para a formação do juízo de facto a extrair na acção principal (e não já em fase meramente cautelar), que possam entrar – ou contribuir de algum modo - elementos probatórios anteriormente analisados com exclusão do contraditório.

Para além de que a coincidência entre grande parte da factualidade dada como provada e não provada em fase cautelar e agora em sede de conhecimento da impugnação de facto na 2ª instância, faz naturalmente subsistir a fundada dúvida quanto à influência que a produção de prova que teve lugar sem contraditório aportou para o veredicto final em termos de decisão de facto, o que só poderá ser verdadeiramente esclarecido com a observância escrupulosa do exercício desse contraditório relativamente aos factos indiciariamente dados como assentes, sendo certo que a decisão de 1ª instância se baseou essencialmente em que “Os factos 1 a 20, 23 e 24 foram considerados indiciariamente provados na sentença proferida em 10.03.2023, e a prova agora produzida não os afastou”.

Ao Tribunal da Relação compete unicamente, de forma autónoma e crítica, sindicar o juízo de facto emitido pelo tribunal a quo, tal como o mesmo foi concretamente elaborado, e não simplesmente ignorar o percurso intelectual que lhe esteve subjacente e que, neste caso, se encontra, pelos motivos apontados, intrinsecamente viciado.

Acrescente-se, por fim, e em termos genéricos, que o respeito pelo princípio do contraditório consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que lhe especialmente incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante.

Concede-se assim provimento à presente revista.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção - Cível) conceder provimento à revista, anulando o acórdão recorrido e ordenando ao Tribunal da Relação que proceda à remessa dos autos à 1ª instância para os efeitos fixados supra.

Custas da revista pela recorrida.

Lisboa, 25 de Março de 2025.

Luís Espírito Santo (Relator)

Anabela Luna de Carvalho

Ricardo Costa

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.