Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1138/22.9GBABF-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO AUGUSTO MANSO
Descritores: NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
CARTA DE CONDUÇÃO
CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
Data do Acordão: 09/17/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Por decisão proferida no dia 05.06.2020, pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, em processo de verificação dos pressupostos da cassação do título de condução a que coube o n.º 550/2018, foi ordenada “a cassação do título de condução n.° FA-....73, pertencente ao recorrente.

II - A cassação do título de condução, ocorre quando o condutor perde todos os seus pontos (como foi o caso na sequência de pelo menos duas condenações por condução de veículo automóvel em estado de embriaguez), resultando na proibição de conduzir e na impossibilidade de obter uma nova carta por um período de dois anos.

III - No caso, de 20.07.2020 a 20.07.2022, que abrange a data da prática dos factos, 4 de junho de 2022.

IV - Em consequência, não pode o recorrente, em recurso extraordinário de revisão, invocar como “facto novo” ou “novo meio de prova”, por não poder obtê-lo, o de ser titular de Carteira Nacional de Habilitação, emitida pela Republica Federativa do Brasil e só agora saber da relevância jurídica desta para conduzir veículos a motor em Portugal, após publicação do Decreto-Lei n.º 46/2022, de 12 de julho.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 3ª secção do Supremo Tribunal de Justiça

1. RELATÓRIO

1.1. AA, com os sinais dos autos, foi condenada no processo comum singular n.º 1138/22.9GBABF, do Juízo Local Criminal de Albufeira-J1, por sentença de 20.02.2025, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.º 2, do DL 2/98, de 03.01, na pena de 6 (seis) meses de prisão efectiva.

A sentença transitou em julgado em 06.05.2025.

2. Invocando como fundamento o previsto na alínea d), do n.º 1, do artigo 449.º, do Código de Processo Penal (doravante CPP), vem o arguido condenado interpor recurso extraordinário de revisão da mencionada sentença condenatória, concluindo a motivação do seguinte modo (transcrição):

«1-Preocupação mais importante na aplicação da justiça é que nenhum inocente seja condenado, não devendo haver limites à busca da verdade material, nem prazos que o obstem.

2-O arguido, ora recorrente, apesar de não ter contribuído para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa durante o julgamento, acontece que nunca poderá ser culpado da natural injusteza da Decisão, que injustamente o condenou, mas a justiça seria “culpada” se recusasse esgotar todos os meios possíveis na busca da verdade (sem prejuízo do trânsito em julgado da douta sentença e do cumprimento da pena aplicada) seja em que momento for.

3-Surpresa com a Decisão Condenatória, já que o arguido num processo de igual natureza – e com poucos meses de diferença na prática dos factos, sendo que nos presentes autos os factos ocorreram no dia 04 de junho de 2022 e no outro processo no dia 11 de outubro de 2022 – e que correu termos no mesmo tribunal viu ser reconhecida a veracidade e validade dos seu titulo de condução o que determinou que o tribunal viesse proferir o despacho (processo 2504/22.5GBABF) com referencia Citius n.º ... ... .61.

4-Acontece que só após a emissão dos mandados de detenção para cumprimento da pena e que o arguido e aqui recorrente se apercebeu que no âmbito destes autos, que a questão da verificação da existência da sua carta de condução/titulo de condução não tinha sido apreciada e valorada, o que põe em causa a justeza da Decisão – já que à data dos factos o arguido já era titular de titulo de condução e com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 46/2022, de 12 de julho, veio a habilitar a condução de veículos a motor pelos titulares de títulos de condução emitidos pelos Estados Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa – impondo, necessariamente, a absolvição, como se comprovará ser de elementar justiça e resultará do presente procedimento.

5-Nestes termos, impõe-se reparar a douta decisão condenatória, absolvendo o recorrente, assim se repondo a justiça.

6-Caberá, pois, na busca da verdade, ao douto Tribunal pugnar pelo procedimento do presente recurso.

7-A apresentação do título de condução, a conjugação da sentença proferida no processo 2504/22.5GBABF do despacho que determinou a não revogação da pena de prisão suspensa na sua execução e a convocação do art.º 2º n.º 4 do Código Penal, permitirão retirar diferente conclusão, e determinar a absolvição e que foi injusta a condenação.

Termos em que (…) deverá conceder-se provimento à revisão com as legais consequências.

Nos termos do art.º 457º, n.º 1 do Código de Processo Penal, deverá ser revogada a pena de prisão de 6 (seis) meses aplicada e ser o arguido e aqui recorrente restituído à liberdade.

Ou havendo dúvidas sobre a sua condenação, deverá ser a sua execução suspensa nos termos do art.º 457º, n.º 2, do Código do Processo Penal.”

3. Por requerimento de 29.07.2025, 05.08.2025 e 14.08.2025, foi junta acta de audiência e certidão da decisão proferida no processo n.º 2504/22.5GBABF, bem como cópia da Carteira Nacional de Habilitação (emitida pela República Federativa do Brasil).

4. O Ministério Público, junto do tribunal de 1.ª instância respondeu ao recurso juntando alegações que rematou com as seguintes conclusões:

I. Foi o arguido AA condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. nos termos conjugados do art.º 3.º, n.º 2 do DL 2/98 de 03.01, na pena de 6 (seis) meses de prisão efetiva, cuja decisão transitou em julgado no dia 06-05-2025.

II. O recorrente interpôs recurso de revisão da sentença, com fundamento na previsão da alínea c) do artigo 449.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, invocando que à data da prática dos factos possuía carta de condução que o habilitava a conduzir (carteira nacional de habilitação emitida em 31 de Março de 2008) e que inclusivamente teve um outro processo pela prática de igual ilícito criminal – Processo nº 2504/22.5GBABF, reforçando ainda que deverá ser aplicada a lei mais favorável - DL nº 46/2022 de 12 de Julho.

III. O Ministério Público entende que não assiste razão ao recorrente, porquanto apesar do titulo de condução do Recorrente constar: “1ª habilitação 31.03.2008” – a verdade é que se trata de uma CNH Provisória – com permissão para conduzir no Brasil, durante um ano; ou seja à data da prática dos factos – 04-06.2022 – o arguido não possuía título de condução válido, o que só veio a ocorrer no dia 14.08.2024, não assumindo qualquer relevância a decisão proferida no Processo nº 2504/22.5GBABF, o qual arquivado – porque o tribunal entendeu que o arguido tinha cumprido todas as condições subordinadas à suspensão da pena de prisão.

IV. S.m.o., deve ser considerado não verificado o fundamento do recurso de revisão de sentença previsto na alínea c) do nº 1 do art. 449º do C. Processo Penal, pelo que, deve ser esta negada.

V. Não tem aplicação a lei mais favorável alegada pelo Recorrente dado que à data da prática dos factos o arguido não tinha efectivamente carta de condução – a qual a veio obter 2 anos mais tarde, o que apenas pode relevar para efeitos de conduta posterior, mas nunca na esfera da absolvição do arguido pela prática do crime de condução sem habilitação legal.

Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso e ser negada a revisão da sentença condenatória requerida pelo recorrente, fazendo-se, assim, a habitual justiça.”

5. No Juízo Local Criminal de Albufeira, tribunal da condenação, o Mm.º Juiz titular do processo, nos termos do artigo 454.º do CPP, prestou informação sobre o mérito do pedido o que fez do seguinte modo (transcrição):

“O recurso já foi recebido (24/07/2025, autos principais), e as diligências de prova determinadas já foram realizadas (01/08/2025, autos principais), pelo que cumpre tão-somente dar cumprimento ao art. 454º do CPP, o que se fará de seguida.


*


Colendos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça,

Foi apresentado, pelo arguido, recurso de revisão de sentença condenatória, proferida em 20/02/2025, e transitada em julgado a 06/05/2025.

A sentença condenou o arguido AA na pena de 6 meses de prisão “efectiva”, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.

O arguido ingressou no estabelecimento prisional, para cumprimento da pena, em 4 de Junho de 2025, situação prisional em que se encontra presentemente (Estabelecimento Prisional de Silves, tanto quanto decorre do processado).

A 23/07/2025 o arguido pediu revisão da sentença.

O recurso foi admitido, tendo sido determinada a elaboração de relatório social (24/07/2025), que chegou aos autos (01/08/2025).

O Ministério Público respondeu ao requerimento de recurso (04/08/2025).


*


O recurso interposto pelo arguido tem, em síntese, os seguintes fundamentos:

 Foi descoberto um novo facto (em rigor, o arguido ficou a saber da relevância jurídica de um facto que já era do seu conhecimento) que suscita graves dúvidas sobre a justiça da condenação: o arguido era na data dos factos (Junho de 2022) titular de habilitação brasileira para conduzir (licença da Carteira Nacional de Habilitação, cuja cópia foi junta a este apenso a 29/07/2025);

 Assim sendo, os factos não constituem crime, em virtude da descriminalização da conduta operada (já depois da data dos factos) pelo Decreto-Lei nº 46/2022, de 12/07.

O Recorrente alude ainda a termos de outro processo (autos nº 2504/22.5GBABF) que, se bem nos parece, nada de relevante acrescentam aos fundamentos já mencionados. Processo: 1138/22.9GBABF-A Referência: .......50

Pesados os elementos do processo, para cumprimento do disposto no art.º 454º do CPP, ocorre ao signatário dizer o seguinte:

Por um lado, do documento junto para instruir o recurso (cópia de Carteira Nacional de Habilitação; sistema citius, 29/07/2025) não se extrai qual o concreto estatuto legal em que o arguido se encontrava na data dos factos (os factos dos autos datam de 2022, a emissão daquele título ocorreu em 2024, mas menciona-se no mesmo que a 1ª habilitação foi concedida ao arguido em 2008);

Por outro lado, vem-se sedimentando jurisprudência nos Tribunais Superiores no sentido de que a condução de veículos com motor, quando o condutor está habilitado por título emitido pela República Federativa do Brasil (mesmo quando, pelo menos em certas circunstâncias, o título haja caducado — cfr. por exemplo o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5 de Novembro de 2024, tirado no processo nº 182/22.0GTABF.E1, e publicado em www.dgsi.pt) não constitui infracção criminal.

De todo o modo, V. Exas., como sempre, melhor decidirão.


*


Inscreva na capa do processo, e no sistema citius, a urgência inerente à situação prisional do arguido.

Após, e de imediato, suba o apenso ao Supremo Tribunal de Justiça.”

6. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça, no visto a que se refere o artigo 445.º, n.º1, do CPP, emitiu parecer no sentido de que “[a]linhando com a resposta que à motivação do recurso foi oferecida pelo Exma. Procuradora da República junto da 1.ª instância (ref.ª ......29, de 04.08.2025) diremos também que, face às razões a propósito aduzidas, mais não nos resta acrescentar que não seja acompanhar integralmente a posição daquela Magistrada, motivo por que deve o recurso extraordinário de revisão ser julgado improcedente.”

7. O requerente tem legitimidade para requerer a revisão (artigo 450.º, n.º 1, al. c), do CPP) e este tribunal é o competente (artigos 11.º, n.º 4, al. d), e 454.º do CPP).

8. Foram os autos aos vistos e à conferência (nos termos do artigo 455º, n.º 3, do CPP),

Decidindo,

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Factos provados: no acórdão cuja revisão agora se requer foram julgados provados os seguintes factos (transcrição):

“1. O arguido, no dia 4 de junho de 2022, após dez e trinta, encontrava-se em Estrada 1 em Albufeira, a conduzir o veículo automóvel de matrícula V1, quando foi fiscalizado por militares da GNR.

2. À data, o arguido não era titular de documento válido que o habilitasse a conduzir.

3.Desta forma, agiu o arguido com o intuito de conduzir o referido veículo, apesar de saber que não era titular de documento que o habilitasse a conduzir.

4. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.Mais se provou que:´

5. O arguido labora para a sociedade P... no ramo da eletrónica, auferindo remuneração mensal no valor relativo de mil e duzentos euros a mil e seiscentos euros.

6. O arguido reside em habitação arrendada pelo montante mensal de mil euros com a companheira e o filho menor da mesma.

7. Para além das despesas comuns, procede ao pagamento de cento e cinquenta euros, a título de pensão de alimentos devidos ao filho menor e a outra relação pretérita.

8. Concluiu o equivalente ao décimo segundo ano de escolaridade portuguesa e frequentou um curso universitário de Engenharia Civil.

O arguido foi condenado:

a-Por sentença proferida no âmbito do processo 587/17.9-GBABF do Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz1, transitada em julgado em 5/6/2017, pela prática de um crime de condução de veículo no estado de embriaguez, na pena de 85 oitenta e cinco dias de multa à taxa de 6,50 euros seis euros e cinquenta cêntimos e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 três meses; penas extintas pelo cumprimento.

b-Por sentença proferida no âmbito do processo 2610/17.8-GBABF do Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz2, transitada em julgado em 31/01/2018 pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 120 cento e vinte dias de multa, a taxa de 5,00 euros cinco euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 seis meses; penas extintas por prescrição.

c-Por sentença proferida no âmbito do processo 464/21.9 G-ELLE, do Juízo Local Criminal de Loulé, juiz-2, transitada em julgado em 22/02/2022, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 99 noventa e nove dias de multa, à taxa diária de 6 seis euros e na pena de 4 quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 um ano e 6 seis meses, sujeita a regime de prova e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 9 nove meses; penas extintas por cumprimento.

d-Por sentença proferida no âmbito do processo 137/22.5GBABF do Juízo Local Criminal da Albufeira, juiz-3, transitada em julgado em 19/12/2022, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 3 três meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano.

e-Por sentença proferida no âmbito do processo 2504/22.5GBABF, do Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz-1, transitada em julgado em 01/02/2023, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 seis meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 um ano, sujeita a regime de prova.

f-Por sentença proferida no âmbito do processo 41/22.7GBABF, do Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz-3, transitada em julgado em 12/09/2023, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 3 três meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 um ano.

g- Por sentença proferida no âmbito do processo 581/21.5GILLE, do juízo local criminal de Loulé, juiz-2, transitada em julgado em 02/02/2024, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 6 seis meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 dois anos, sujeita a regime de prova e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 um ano e 2 dois meses.

h-Por sentença proferida no âmbito do processo 399/21.5SKLSB do Juízo de Competência Genérica de Silves, juiz-1, transitada em julgado em 09/04/2024, pela prática de um crime de abuso de confiança agravado, na pena 250 duzentos e cinquenta dias de multa à taxa diária de 6 seis euros.

Com interesse para a decisão da causa, não ficaram factos por provar.”

2.2. Outros dados e ocorrências do processo:

a-A 01.08.2025 foi junto Relatório Social pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais – DGRSP – referente ao recorrente.

b-A 13.08.2025, neste Supremo Tribunal foi proferido despacho considerando que “[p]ela natureza do processo,” … “não reveste natureza urgente.”

“Sem prejuízo disso, porque pode ser considerado útil, solicite-se nos Proc.s n.º 464/21.9GELLE, n.º 137/22.5GBABF, n.º 2504/22.5GBABF, n.º 41/22.7GBABF — em que o requerente também foi condenado pela prática de crime de condução sem habilitação legal — informação sobre se, durante o procedimento, foi junto algum meio de prova referente às alegadas habilitações para conduzir do requerente, e em caso positivo o envio de cópia (sendo que a “Carteira Nacional de Habilitação”, do Brasil, que só agora foi junta, figura como emitida em 14/08/24).”

c-Na sequência deste despacho e insistência, a 12.09.2025, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária-ANSR- em resposta ao solicitado no ofício n.º .......17, datado de 04/04/2022, remeteu, em anexo, cópias da decisão final de cassação e da respetiva notificação ao condutor, referente ao título de condução n.º FA ....73, pertencente a AA, proferidos no âmbito processo de cassação n.º 550/2018.

Mais informou que a decisão final de cassação do título de condução n.º FA.....73 foi notificada ao condutor por carta-Registada, em 16/06/2020 e tornou-se definitiva em 14/07/2020, em virtude de não ter sido impugnada judicialmente.

d-Do mesmo modo o Instituto da Mobilidade e Transportes - IMT - informou que, consultada a aplicação informática de condutores e emissão de cartas de condução daquele Instituto, consta que AA, nascido em D-M-98, foi titular de carta de condução FA-....73, emitida em 05-05-2011, que o habilitava à condução de veículos das categorias A, A1, A2, B e B1 (desde 31-03-2008), válida até 12-01-2037, cancelada em 16-06-2020, no âmbito do Proc. de Cassação n.º 550/2018, estando o titular impossibilitado de obter novo título de condução antes de decorridos 2 anos sobre a efetivação da cassação.

e-Esta ocorreu e iniciou-se a 20.07.2020 para terminar decorrido aquele prazo de 2 anos que se completou a 20.07.2022, como, também, foi informado.

f-O recorrente encontra-se preso, em cumprimento de pena de 6 (seis) meses de prisão, desde o dia 04 de julho de 2025.

2.2. Direito

2.2.1. Consagra o artigo 29º, n.º 6 da CRP, integrado no Capítulo I dos Direitos Liberdades e Garantias pessoais e dentro do Título II, Direitos Liberdades e Garantias, o direito fundamental à revisão de sentença penal injusta.

Dispõe o artigo 29º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa – CRP - que os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.

Concretizando, estabelece o artigo 449.º, sobre fundamentos e admissibilidade da revisão, e no que aqui mais interessa, que:

1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

(…)

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

(…)

2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.

3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.

São exigências de justiça e de apuramento da verdade material, em detrimento da segurança jurídica, que justificam a possibilidade de impugnação de uma decisão transitada em julgado, por via deste recurso extraordinário, excepcional. Tudo com o objectivo de acorrer a situações de inadmissível injustiça, comunitariamente intoleráveis, repetindo o julgamento, e obter uma nova decisão justa.

O recurso extraordinário de revisão é, assim, um procedimento excepcional, admitido por razões, também elas excepcionais, que visa a revisão das decisões judiciais, que sofrem de erro judiciário e tem por objectivo corrigir aquele erro, nunca se admitindo, porém, como mais um recurso.

Para garantir a excepcionalidade deste expediente, a possibilidade de revisão das sentenças penais injustas, está limitada aos fundamentos taxativamente enunciados no artigo 449.º, n.º 1, do CPP.

2.2.2. No caso, o recorrente alega que só após a emissão dos mandados de detenção para cumprimento da pena é que se apercebeu que não foi valorado o facto de, à data dos factos, 04 de junho de 2022, ser titular de título de condução de veículos a motor no âmbito dos países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa - CPLP - considerando a publicação do Decreto-Lei 46/2022, de 12 de julho. Ao que acresce e reforça esta ideia o despacho proferido no processo n.º 2504/22.5GBABF, que não determinou a revogação da pena de prisão suspensa na sua execução o que pode reconduzir-se a “eventual” “facto novo”, ou “novo meio de prova” a que se refere a al. d) do n.º 1 do art.º 449º do CPP.

2.2.3. No que respeita a este invocado fundamento de pedido de revisão, a que refere a al. d) do n.º 1 do art.º 449º do CPP, exige-se a verificação cumulativa de dois requisitos; (i)a descoberta de novos factos ou de novos meios de prova, e, também que (ii)os mesmos, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Factos novos são, para este efeito, “os factos probandos”, “todos os factos que devem ou deveriam constituir “tema de prova”, em suma os factos que integram o crime”, “os elementos constitutivos ou negativos do tipo legal de crime”, bem como “outras circunstâncias capazes de atestar a verdade ou a falsidade daqueles e inverter o sentido global da decisão”. Em resumo, como sintetiza João Conde Correia2, “factos para efeitos de revisão são todos aqueles que demonstrando a injustiça da condenação, possam justificar a quebra do caso julgado”.

Meios de prova são, para efeitos de revisão, todos os meios de prova admissíveis, sem excepção, e as provas a apresentar as “provas relativas aos factos probandos”, no sentido supra referido3, com algumas limitações que a jurisprudência vem criando, nomeadamente, quanto à prova pericial, da prova por declarações (sejam elas do arguido, do assistente, das partes civis ou das testemunhas). Quanto a estas últimas a relevância da prova testemunhal, para desencadear a quebra do caso julgado, fica limitada aos casos em que outra sentença, transitada em julgado, tiver considerado falso o anterior depoimento4.

Quanto à novidade, os novos factos ou novos meios de prova, são antes de mais, os desconhecidos pelo tribunal, mas são também os que, conhecidos de quem estava obrigado a apresenta-los, ao tempo em que o julgamento teve lugar, apresente uma justificação bastante para a sua não apresentação no julgamento que produziu a condenação revidenda, como vem entendendo a jurisprudência do STJ5.

“Exigindo-se, porém, que a inércia voluntária e injustificada em fazer atuar os meios ordinários de defesa não pode ser compensada pela atribuição de um meio extraordinário de defesa como a revisão de sentença, o que determina a exigência de especial e acrescida justificação, pelo condenado, das razões pelas quais não pôde apresentar as provas cuja existência já conheceria ao tempo da decisão. Doutra forma, a excecionalidade da revisão de sentença e os princípios nela envolvidos (segurança jurídica e caso julgado) sairiam intoleravelmente lesionados”, como se lê no citado acórdão do STJ de 04.07.20246.

Por sua vez, as dúvidas relevantes para a revisão têm de ser qualificadas, efetivamente fortes e consistentes e vistas e analisadas de forma exigente e fundamentada.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque7 “não se trata apenas de uma dúvida “razoável”, mas de uma dúvida “grave” sobre a justiça da condenação. E como graves, só podem ser havidas as dúvidas que “atinjam profundamente um julgado passado na base de inequívocos dados presentemente surgidos”.

“Dúvida relevante”, portanto, como se lê no sumário do acórdão do STJ de 11.10.20238, “para a revisão tem de ser qualificada; é necessário que ela se eleve a um patamar de solidez que permita afirmar a sua “gravidade”, isto é, que, na ponderação conjunta de todos os factos e meios de prova, seja possível justificadamente concluir que tendo em conta o critério de livre apreciação (art.º 127º do CPP) e sem prejuízo da sujeição das novas provas ao teste do contraditório, imediação e oralidade do julgamento, deles resulta uma forte possibilidade de não condenação.”

2.2.4. No caso, alega o recorrente que à data da prática dos factos era titular de Carteira Nacional de Habilitação, licença de condução, emitida a 14.08.2024, pela República Federativa do Brasil.

Mais acrescenta que a 1ª emissão data de 31.03.2008, e, em consequência, desde essa data foi sempre titular de Carteira Nacional de Habilitação.

Podendo e devendo tê-la exibido e/ou junto atempadamente e evitar o julgamento ou a condenação, não o fez.

A única razão que apresenta, para não proceder deste modo, e que parece qualificar como “facto novo”, ou “novo meio de prova”, é que, só agora, e depois da publicação do DL 46/2022, de 12.07, que o legitima a conduzir “veículos a motor” nos países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP - ficou a saber da relevância jurídica desse facto: o facto de, à data da prática dos factos, 04 de Junho de 2022, ser titular de Carteira Nacional de Habilitação, habilitação brasileira para conduzir, que com a publicação do citado Decreto-Lei passa a ser também titulo válido de condução em Portugal.

Mais defende, ainda, que convocando o disposto no art.º 2º, n.º 4 do CP, os factos não constituem crime, em virtude da descriminalização da conduta operada, já depois da data da sua prática, pelo Decreto-Lei nº 46/2022, de 12/07.

Neste pressuposto bastaria efectuar tal pedido no processo. Nem o recurso extraordinário de revisão seria o meio processual adequado a alcançar o fim pretendido.

Mas, tendo interposto recurso de revisão, dir-se-á, antes de mais, que não está demonstrado que entre a data da 1ª emissão, a 31.03.2008, e a data de 14.08.2024, em que é emitida a CNH que agora apresenta, sempre esta tivesse sido validada e o recorrente fosse titular válido de título bastante que o habilitasse a conduzir veículos automóveis/veículos a motor neste período temporal, e, por conseguinte, no dia 04 de junho de 2022, o que seria necessário para poder considerar-se verificado este requisito.

Depois, omite o recorrente parte substancial dos factos, que eram do seu conhecimento e que, após diligências realizadas no âmbito deste processo, se apuraram.

Com efeito como informa o Instituto da Mobilidade e Transportes - IMT -, o recorrente era titular de carta de condução válida em Portugal com o n.º FA ....73, emitida em 05-05-2011, que o habilitava à condução de veículos das categorias A, A1, A2, B e B1 (desde 31-03-2008, válida até 12-01-2037).

Porque o recorrente foi julgado e condenado pela prática de, pelo menos, 2 crimes de condução em estado de embriaguez, nos processos n.º 587/17.9GBABF, e n.º 2610/17.8GBABF, pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, foi-lhe instaurado processo de verificação dos pressupostos da cassação do título de condução a que coube o n.º 550/2018.

Processo que culminou com a decisão de que “estes pressupostos preenchem o conteúdo dos n.°s 2 e 10 do artigo 148.° do Código da Estrada,” e ordenou “a cassação do título de condução n.° FA-....73, pertencente a AA”, decisão proferida a 05.06.2020.

Na sequência desta decisão, foi-lhe cancelada a carta de condução, em 16.06.2020.

Nesta data, ainda, 16.06.2020, foi esta decisão notificada ao recorrente, que, por não a ter impugnado judicialmente, se tornou definitiva a 14.07.2020.

Executando esta decisão foi-lhe apreendida a carta de condução ficando, ainda, impossibilitado de conduzir e de obter novo Título de Condução durante o período de 2 anos, ou seja, de 20.07.2020 a 20.07.2022.

Período que abrange a data da prática dos factos, 4 de junho de 2022.

Em consequência, nesta data de 04 de junho de 2022, o recorrente não era titular, nem podia ser, de título válido que o habilitasse a conduzir veículos automóveis; o recorrente estava proibido de conduzir veículos automóveis e estava proibido de obter novo Título de Condução.

A cassação do título de condução, ocorre quando o condutor perde todos os seus pontos (como foi o caso e se vê da decisão do processo 550/2018), resultando na proibição de conduzir e na impossibilidade de obter uma nova carta por um período de dois anos. A decisão de cassação é sempre decretada pela entidade administrativa, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), como também foi.

E, na verdade, e se compreende, o recorrente só juntou a CNH emitida a 14.08.2024 e não antes. E é com base nesta Carteira Nacional de Habilitação que é proferido despacho no processo n.º 2504/22.5GBABF, quando refere que “[i]gualmente cumpriu na integra os objetivos determinados no programa da DGRSP e frequentou a ação de formação. Apesar de não se ter inscrito em escola de condução, obteve carta de condução brasileira, a qual de acordo com a atual redação do art.º 125.º do C.E. permite-lhe conduzir em território português, sem necessitar de proceder a qualquer troca” e considerou extinta a pena aplicada sem que nunca tenha declarado que os factos praticados não constituíam crime.

Em suma, não podendo o recorrente ser titular de qualquer título válido que o habilitasse a conduzir veículos automóveis a 04 de junho de 2022, por força de uma decisão do Estado Português – Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária -, não pode este invocar como “facto novo” ou “novo meio de prova”, o de ser titular de Carteira Nacional de Habilitação e só agora saber da relevância jurídica da habilitação brasileira para conduzir, veículos a motor em Portugal, e após publicação do DL 46/2022, de 12 de julho.

Na verdade, em rigor, o recorrente a 04 de junho de 2022, não conduzia veículo automóvel com um título de condução emitido pelo Brasil que não tinha validade em Portugal e por isso não habilitava o recorrente a conduzir, única hipótese em que poderia ter, eventualmente, algum sentido a alegação e pretensão do recorrente.

Mas a realidade factual é outra, não a que o recorrente refere. O recorrente conduzia veículo automóvel em período temporal em que por decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária estava proibido de conduzir e de obter título válido de condução.

Pelo que, mesmo que válida, não tem aqui aplicação a solução jurídica que o recorrente defende.

E a decisão a proferir no processo não podia ser outra a não ser uma decisão condenatória, como foi, que nada tem de injusta nem dúvidas suscita.

O recorrente não podia ser possuidor de qualquer título que o habilitasse a conduzir veículos automóveis nesta data, nem português nem brasileiro.

Assim, não pode admitir-se que fosse titular de qualquer licença de condução, nem pode aceitar-se a verificação deste “novo facto” ou “novo meio de prova”.

Não pode aceitar-se a descoberta de um facto novo quando esse facto é impossível de acontecer, inadmissível de se verificar, que não pode existir, por força de uma decisão da Autoridade Administrativa.

Se fosse estaria o recorrente em infracção, uma segunda infracção. E mais grave ainda seria socorrer-se de uma infracção para evitar uma condenação.

Ressalta assim à evidência que não se verifica este invocado fundamento de pedido de revisão, a que refere a al. d) do n.º 1 do art.º 449º do CPP, pois não pode aceitar-se a verificação como “novo facto”, a titularidade de Carteira Nacional de Habilitação que o habilitava a conduzir veículos a motor em Portugal, quando o recorrente estava proibido de obter qualquer título de condução na data da prática dos factos.

Termos em que só pode improcede o recurso extraordinário de revisão.

3. Estabelece o artigo 456.º do CPP que, se o Supremo Tribunal de Justiça negar a revisão pedida pelo assistente, pelo condenado ou por qualquer das pessoas referidas no n.º 2 do artigo 450.º, condena o requerente em custas e ainda, se considerar que o pedido era manifestamente infundado, no pagamento de uma quantia entre 6 UC a 30 UC.

O pedido de revisão é manifestamente infundado quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que está votado ao insucesso9.

Ora não podia o recorrente ignorar que em consequência da decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária não podia ser titular de qualquer Licença que o habilitasse a conduzir veículos automóveis, na data da prática dos factos, 04 de junho de 2024, fosse ela carta de condução portuguesa, fosse ela Carteira Nacional de Habilitação brasileira, decisão de que foi pessoalmente notificado .

Assim, apresentar agora este pedido invocando a posse de Carteira Nacional de Habitação, emitida a 14.08.2024, para justificar a condução em 04.06.2022, constitui uma atitude temerária por parte do recorrente, pois sabia que estava votada ao insucesso.

Sendo evidente, em face de todo o exposto, a falta de fundamento do pedido de revisão formulado ao abrigo da alínea d), do n.º1, do artigo 449.º do CPP, tanto basta para que se tenha por manifestamente infundado, impondo-se a condenação da requerente no pagamento de uma quantia entre 6 UC e 30 UC, ao abrigo do disposto no artigo 456.º do mesmo Código, que no caso se fixa em 10 UC.

III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em,

- negar a revisão de sentença peticionada pelo recorrente AA,

- condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (artigos 456.º, 1.ª parte, do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, em anexo).

- condenar, ainda, o requerente, nos termos do disposto no artigo 456.º, 2.ª parte, do CPP, na quantia de 10 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Setembro de 2025


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António Augusto Manso (Relator)

Carlos Campos Lobo (Adjunto)

José A. Vaz Carreto (Adjunto)

Nuno António Gonçalves (Presidente da 3ª Secção)

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1-Direito também previsto no artigo 4º n.º 2 do Protocolo n.º 7 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), que consagra idêntica solução quando … “factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento”.

2-João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, Almedina, Coimbra, tomo V, p. 530.

3-Autor e Ob. cit. p. 532.

4-Idem p. 533.

5-6-Ac. do STJ de 04.07.2024, proferido no processo n.º 320/20.1T9MTS-A.S1, in www.dgsi.pt.

7-Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 759.

8-Ac. do STJ de 11.10.2023, proferido no processo n.º proferido no proc. n.º 7882/19.0T9LSB-A.S1, in www.dgsi.pt.

9-V. acórdão do STJ de 23.03.2023, proferido no processo n.º 428/19.2JDLSB-B.S1, in www.dgsi.pt.