Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2170/21.5T8BRG.G2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO
ATUALIZAÇÃO
SINAL
DESVALORIZAÇÃO DA MOEDA
PRINCÍPIO NOMINALISTA
INFLAÇÃO
RISCO
INTERPELAÇÃO
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I- A figura do sinal prevista no art.442º do Cód. Civil não desempenha uma função indemnizatória, nem é uma dívida de valor sujeita a actualização (nomeadamente tendo por base o valor da inflação).

II- Com efeito, a figura do sinal representa uma obrigação pecuniária, tendo por objecto uma prestação em dinheiro, a qual é insensível à oscilação do valor da moeda, suportando o credor o risco da desvalorização monetária, a menos que as partes hajam estipulado ou convencionado algo em contrário.

III- Por isso, no caso em apreço, tendo existido o pagamento de sinal e entrando o promitente-vendedor em incumprimento, o promitente-comprador terá direito (apenas) à restituição do sinal em dobro, pois, nada havendo sido convencionado em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização – cfr. nº 4 do citado art.442º do Cód. Civil.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA e outros intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum contra Construções Reunidas de Pereira, Irmãos Lda., pedindo a condenação da R. a restituir-lhes o dobro das quantias que lhe pagaram até 1989 – ascendendo essas quantias ao valor, convertido em euros, de 132.462,75 €, o qual, por aplicação do coeficiente de desvalorização da moeda fixado para o ano de 1989, corresponde hoje a 340.429,26 € – num total de 680.858,52 €, a que devem acrescer juros de mora à taxa legal e anual de 4% até integral pagamento.

Devidamente citada para o efeito veio a R. apresentar a sua contestação, defendendo-se por excepção e impugnação, concluindo pela improcedência da acção e pela condenação dos AA. como litigantes de má-fé.

Os AA. pronunciaram-se sobre as excepções da prescrição e do abuso de direito invocadas pela R., pugnando pela sua improcedência, pedindo também a condenação da R. como litigante de má-fé.

Oportunamente veio a ser realizada a audiência de julgamento e, de seguida, foi proferida sentença, a qual, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a R. nos termos seguintes:

«1. Condeno a ré pagar aos autores o dobro da quantia de € 124.699,47 (cento e vinte e quatro mil seiscentos e noventa e nove euros e quarenta e sete cêntimos);

2. Esta quantia deve ser actualizada desde o ano de 1989 até ao ano de 2004 por aplicação do coeficiente de desvalorização da moeda de acordo com índice de preços ao consumidor publicado pelo Instituto Nacional de Estatística que foi estabelecido para o ano de 2004;

3. A esta quantia acrescem juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento.

Considero que não ocorreu litigância de má fé porque os autores e a ré limitaram-se a sustentar a sua posição divergente quanto aos factos que estavam em discussão (art. 542º nº1 e 2 do Cód. de Processo Civil).»

A R., inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão proferido em 23/1/2025, julgou parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogou a decisão recorrida quanto ao ponto 2. da condenação - referente à actualização da quantia referida no ponto 1. - mantendo-se quanto ao demais.

Não concordando com o teor do acórdão proferido pela Relação vieram os AA. interpor recurso de revista para o STJ, pedindo a revogação de tal aresto, no que tange à actualização do valor do sinal a pagar pela R. aos AA., que deverá ser calculada nos termos fixados na sentença proferida na 1ª instância (cfr. ponto 2. do dispositivo).

Ora, tendo em conta o valor da causa (não sendo possível apurar, por ora, o valor da sucumbência), a legitimidade dos recorrentes, a natureza e o conteúdo do acórdão recorrido e, bem assim, a tempestividade da impugnação, conclui-se pela admissibilidade do recurso de revista apresentado, nos termos do disposto nos arts. 629º nº 1, parte final, 631º nº 1, 671º nº 1 e 674º nº 1 alínea a), todos do C.P.C.

Para o efeito apresentaram os AA. as suas alegações de recurso, terminando as mesmas com as seguintes conclusões:

1-Foi proferida em Primeira Instância douta sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência:

1. Condenou a Ré a pagar aos Autores o dobro da quantia de € 124.699,47 (cento e vinte e quatro mil seiscentos e noventa e nove euros e quarenta e sete cêntimos);

2. E que esta quantia deve ser actualizada desde o ano de 1989 até ao ano de 2004, por aplicação do coeficiente de desvalorização da moeda de acordo com índice de preços ao consumidor publicado pelo Instituto Nacional de Estatística, que foi estabelecido para o ano de 2004;

3. E ainda que a esta quantia acrescem juros de mora a calcular à taxa supletiva desde a citação até integral pagamento

4. E condenou ainda as partes nas custas, na proporção do decaimento.

2-Inconformada a Ré veio interpor Recurso de Apelação e pelo douto Acórdão de 23.01.2025, agora notificado, foi a apelação julgada parcialmente procedente, ou seja julgou improcedente os demais fundamentos do recurso, mas “revogou a decisão recorrida quanto ao ponto 2. da condenação, referente à actualização da quantia referida em 1., mantendo-se no demais”.

3-Deste modo, vem o presente recurso limitado à questão referida ( atualização ou não do sinal em dobro a restituir e a natureza desta indemnização ), ou seja à parte em que o douto acórdão notificado, discordando dos fundamentos constantes da decisão recorrida e proferida em Primeira Instância, segue uma interpretação “literal” do disposto no artigo 442º, n.º4, do C. Civil e o princípio nominalista do artigo 550º do C. Civil, bem como o sentido decisório seguido no douto Acordão do STJ de 1.11.2010 ( Processo n.o 1433/07.7TBBRG.S1, in www.dgsi.pt ) e Acórdão do STJ de 02.12.2013 e Processo 1358/08.9TBILH.C1.S1 ( páginas 42 a 44 do douto Acórdão notificado e ora recorrido ), pois que se discorda dessa douta decisão.

4-Na verdade, o douto Acórdão ora notificado e ora em recurso, considerando que os factos assentes ou provados não mereceram qualquer censura e que está dado por provado e decidido que a Ré tornou impossível o cumprimento do contrato promessa por uma causa que lhe é total e exclusivamente imputável ( permuta que efetuou no terreno objeto do contrato com empresa terceira ), daí resultando incumprimento definitivo do contrato desde 14.07.2004, data em que a Ré permutou o terreno de construção por quatro apartamentos T4 ( quatro fracções autónomas destinadas a habitação que no mercado imobiliário de Barcelos valem mais de 400 mil euros cada um ), bem como que os Autores tinham cumprido integralmente as suas obrigações contratuais, incluindo o pagamento do preço estipulado e outras despesas, também entendeu que os Autores tinham direito a exigir o dobro do valor pago/prestado, ou seja o dobro de 124.699,47€, correspondente a 25.000 contos, ao câmbio de 1€ / 200,487.

5-Refira-se que, como resulta do contrato promessa, os Autores pagaram 25 mil contos e teriam direito a 10% de todas as construções que a Ré viesse a realizar, quantia que em 1989 era extremamente elevada e fixava a expectativa negocial de ambas as partes no negócio.

6-Porém, o douto Acórdão Recorrido, pelas razões de direito e jurisprudenciais que cita, decidiu que aquele valor em dobro a pagar não era atualizável, ao contrário do doutamente decidido em Primeira Instância.

7-Deste modo, resulta inequivocamente que na douta sentença proferida na Primeira Instância se segue interpretação diferente do disposto no artigo 442º e 550º do C. Civil, com fundamentação doutrinal e jurisprudencial diferente, ou seja com orientação doutrinal em sentido contrário ao do douto Acórdão ora recorrido, bem como com jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores e em especial do STJ, ali citados, no sentido contrário ao ora decidido e em recurso.

8-Está provado que em 1988 e 1989 os Autores procederam ao pagamento daquela quantia de 25 mil contos (124.699,47 € ) e dos encargos previstos no contrato promessa designadamente metade das despesas em causa, estas no valor de 1.556.400$00 ( equivalente a € 7.763,28 ) – n.º 4 dos factos provados, ou seja os Autores cumpriram integralmente as obrigações assumidas contratualmente.

9-Ora, anualmente o Governo, por Portaria, publica e atualiza os coeficientes de desvalorização da moeda a bens e direitos alienados, de acordo com os coeficientes e índices de preços no consumidor publicados pelo INE e considerando que a Ré realizou a permuta acima referida em 2004 nos termos da Portaria n.º 376/2004, de 14.04.2004, o coeficiente de atualização de 1989 a 2004 foi ali fixado em 2,04.

10-Prescreve o n.º 2 do mesmo artigo 442º que se o não cumprimento do contrato promessa for devido ao promitente-vendedor, como é o caso, têm os Autores ( promitentes-compradores ) a faculdade de exigir o dobro do que prestou, pois que não se verificou a tradição da coisa.

11-A que deverão acrescer juros de mora à taxa legal e anual de 4% ao ano, contados desde a citação e até pagamento integral, nos termos do artigo 559º n.º 1 do Código Civil e Portaria 291/2003 de 8 de Abril.

12-Apesar da factualidade dada por provada, decorre que o T. R. de Guimarães, sufragando o princípio nominalista e a literalidade do disposto no artigo 442º, n.º 2 e 550º do C, Civil defende que a restituição em dobro do valor pago em 1988/1989, ou seja o dobro de 124,699,47€, não deverá ter atualização em função da desvalorização da moeda.

13-Tal interpretação não se adequa ao caso concreto, à natureza das obrigações contratuais assumidas e constitui um “benefício” do infrator, ou seja da Ré, que incumpriu definitiva e culposamente o contrato promessa.

14-Na verdade, o contrato promessa em causa era para ser executado durante período alargado, atenta a sua natureza e as contrapartidas fixadas para os autores pelas construções que decorreriam durante vários e muitos anos.

15-O princípio da reconstituição natural, numa perspetiva de boa fé contratual e de que os contratos são para cumprir, deve conduzir a uma decisão justa e à integração do património dos autores a situação anterior à celebração do contrato promessa incumprido culposamente pela Ré.

16-Por isso entendem os recorrentes, na falta de uniformização jurisprudencial sobre esta matéria e atenta a factualidade assente, que a melhor interpretação da lei, por aplicação da doutrina que se foi adequando à modernidade e ainda porque na letra da lei se encontra sustentação jurisprudencial para tal solução, é aquela sufragada na douta sentença proferida anteriormente em Primeira Instância.

17-Na verdade, os autores pretendem que a quantia acima referida ( 25.000 contos equivalentes a 124.699,47€) seja restituída em dobro com atualização tendo em contra o coeficiente de desvalorização da moeda ( de 1989 a 2004 conforme douta sentença em Primeira Instância ).

18-Ora, no douto Acórdão ora notificado e recorrido segue-se a corrente jurisprudencial contrária, ou seja que a restituição do sinal em dobro, em consequência do incumprimento definitivo e culposo do contrato promessa corresponde a uma dívida pecuniária que não está sujeita a atualização de acordo com o principio nominalista consagrado no artigo 550 º do CC e também de acordo com o Ac. STJ de 1.11.2010 ( processo 1433/07.7TBBRG.S1) e demais jurisprudência citada a páginas 42 a 44 do douto Acórdão notificado.

19-Contrariamente na douta sentença proferida anteriormente em Primeira Instância segue-se corrente doutrinal e jurisprudencial contrária, no sentido de que deve tal valor ser atualizado, com a qual se concorda e deverá ter acolhimento na Revista.

20-Como ali se refere e concordando-se com a assertividade da análise “o contrato promessa que foi celebrado entre os autores e a ré tem especificidades que justificam uma ponderação desta solução. Estava em causa uma relação contratual que as partes sabiam que iria durar vários anos, uma vez que era necessário que fosse aprovada a construção, o que é sabido que consiste num processo demorado, e tinham que ser construídos os edifícios que fossem aprovados, o que era igualmente demorado. A impossibilidade de cumprimento do contrato promessa por uma causa imputável á ré ocorreu quinze anos depois de o contrato ter sido celebrado e os autores terem entregue a quantia de 25.000 contos. As décadas de 80 e 90 corresponderam a um período de taxas de inflação elevadas o que implicou uma relevante desvalorização monetária. Basta atentar que o coeficiente de desvalorização da moeda entre o ano de 1989 e o ano de 2004 foi de 2,04”, ou seja o valor do dinheiro praticamente duplicou, sendo certo que tal hipótese, na consideração de um homem normal, bom pai de família, não era, em boa fé, previsível em 1989.

21-Como ali bem se refere sob o ponto 7, “ de acordo com a Portaria 376/2004 de 14 de Abril, a desvalorização da moeda em consequência da inflação é considerada um facto notório. A este propósito pode ver-se o Ac. do STJ de 2.10.2010, proferido no processo n.º454/2001.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, de acordo com o qual “a inflação é um facto notório que não carece de alegação nem prova”

22-Como também decorre da douta sentença proferida em Primeira Instância “ tendo decorrido quinze anos desde a entrega do sinal e o incumprimento do contrato promessa e estando em causa um período inflacionista, a mera restituição do sinal em dobro sem qualquer atualização traduzia-se num prejuízo para os autores e num benefício para a Ré”.

23-Aliás, “colocando reservas ao princípio do nominalismo porque em períodos inflacionistas desprotege o credor e destrói o equilíbrio contratual pode ver-se António Pinto Monteiro, i Inflação e Direito Civil – Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Ferrer Correia- Vol II, pág. 883.

24-Seguindo de perto a fundamentação da douta sentença proferida em Primeira Instância, com a qual se concorda e deverá ter total acolhimento em sede de recurso de Revista pelo Supremo Tribunal de Justiça, qualquer homem normal, de boa fé, jamais quereria subscrever contrato de que resultasse tal desequilíbrio, ou seja que houvesse a possibilidade deles autores e em caso de incumprimento culposo da Ré receberem o dobro de uma quantia que estava bem longe de corresponder à relevância da quantia que entregaram no ano de 1989.

25-E obviamente, facto notório que igualmente não carece de demonstração, a ré utilizou em seu benefício aquela quantia durante 15 anos, presumivelmente para a construção do Edifício Cidadela III e outros edifícios no exercício da sua atividade de construção civil e no final, em 2004, acabou por permutar o prédio/terreno por quatro frações autónomas, às quais a ré declarou atribuir o valor de 320 mil euros, aliás abaixo do valor de mercado, e da prova produzida resultou provado que a Ré construiu nesse mesmo período, pelo menos, um outro prédio “ Edifício D. Prior”, na cidade de Barcelos e a poucos metros daquele, de vários andares e apartamentos.

26-Como igualmente se refere na douta sentença proferida em Primeira Instância e doutrinalmente, Maria Clara Sottomayor, in “ A Obrigação de Restituir o Preço e o Princípio do Nominalismo das Obrigações Pecuniárias – Estudos em Homenagem ao Professor Dr. Jorge Ribeiro Faria, pág. 547” considera que se justifica a atualização da quantia a restituir.

27-Este atendimento foi acolhido no Ac. do STJ de 07.05.2015, proferido no processo n.º 18-A/2001.E1.S1, in www.dgsi.pt.

28-Sustentando na mesma obra que “nas situações em que a invalidade do contrato é imputável a um dos contraentes, tem vindo a ser progressivamente acentuada uma proximidade entre a obrigação de restituição e a indemnização do outro contraente pelos prejuízos que lhe foram causados, o que afasta a concepção da obrigação de restituição como uma dívida pecuniária”.

29-Aliás, a fls 605 da mesma obra, Maria Clara Sottomayor afirma que “verifica-se uma aproximação entre a restituição e a responsabilidade civil, na medida em que ambas visam colocar as partes no estado patrimonial que teria existido na falta de realização da prestação ou caso não tivesse ocorrido o prejuízo causado pelo facto ilícito e culposo. A moeda deixa de ser instrumento de cumprimento contratual para assumir uma função de reintegração patrimonial. Consequentemente, defendemos que em ambas as situações a dívida em dinheiro é uma dívida de valor”.

30-No mesmo sentido e “in Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo” – Vol II, pág 999, Paulo da Mota Pinto, com referência á obrigação de restituição em consequência da resolução do contrato, considera que: “a obrigação de indemnização pode ainda complementar as obrigações de restituição se se entender que estas, ao contrário da primeira, não constituem dívidas de valor, insensíveis à depreciação monetária, estando antes sujeitas ao princípio do nominalismo”.

31-Aliás, cita-se igualmente José Carlos Brandão Proença, in “ A Resolução do Contrato no Direito Civil”, designadamente a pág. 170: “ apesar de a obrigação de restituição do valor, em consequência de resolução, não estar sujeita aos princípios corretores do enriquecimento sem causa, cremos poder falar aqui também de dívidas de valor, cujo respetivo cálculo deverá ser feito no momento em que a contraparte ( depois de lhe haver sido declarada a resolução ) declara a sua impossibilidade de restituir o recebido ou na data da propositura da acção de resolução. Esta posição não desvirtua ( pelo menos numa visão global do facto resolutivo ) a exigência de uma certa paridade na liquidação, na medida em que a atribuição ao titular do direito de uma quantitativo monetário que lhe permita ( desde que se trate de uma coisa fungível ) adquirir o mesmo objeto ( e que, v.g., a contraparte alienou onerosamente a um terceiro devidamente protegido ) tem a sua justificação no sentido reintegrador da resolução”.

32-Também já este Venerando Tribunal, no douto Ac. proferido no Processo n.o 521-A/1999.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em 12.06.2012, decidiu que “a obrigação de restituição fundada na resolução de um contrato de compra e venda (...) é uma dívida de valor; não sendo possível a restituição em espécie, o valor correspondente a restituir e, necessariamente, um valor objetivo, subtraído ao princípio do nominalismo, devendo equivaler ao montante atualizado que a coisa teria se fosse restituída materialmente”.

33-No mesmo sentido e em “ Da Boa Fé no Direito Civil”, pág 801, António Menezes Cordeiro defende que “ a boa fé requer, pela equivalência das prestações e equilíbrio das situações das partes, que se proceda a reajustamentos destinados a compensar a depreciação monetária”.

34-Finalmente, integrando a lei, a jurisprudência e a doutrina, não se concordando com o douto Acórdão Recorrido e antes se sufragando a douta sentença proferida em Primeira Instância, se conclui com nesta: “ A proximidade entre a obrigação de restituição e a indemnização pelos prejuízos que foram causados ao outro contraente” – dizemos nós intencional e voluntariamente – “ é especialmente relevante na restituição do sinal em dobro pelo contraente que tornou impossível ou não cumpriu o contrato promessa. Nada tendo sido convencionado em contrário, deve entender-se que no contrato promessa o sinal tem uma natureza confirmatória-penal no sentido que tem a finalidade de confirmar a celebração do contrato e garantir ou reforçar o vínculo negocial ( sinal confirmatório ), mas também uma finalidade de fixação antecipada de indemnização que é devida pelo incumprimento, ou, como é habitual referir-se, de determinação prévia do preço do arrependimento ( sinal penitencial ). Nesta vertente o sinal tem, simultaneamente uma função compulsória e indemnizatória – Ac. STJ de 06.07.2023, processo 547/20.2T8ALM.L1.S1, in www.dgsi.pt.

35-Assim e salvo melhor opinião “desempenhando uma função indemnizatória, a perda do sinal ou a sua restituição em dobro destina-se a reparar os danos que foram causados ao outro contraente pelo contraente que tornou impossível ou não cumpriu o contrato promessa, o que significa que desempenha uma função de reintegração patrimonial. Sendo assim, não está em causa uma dívida pecuniária, mas, como salienta Maria Clara Sottomayor, uma dívida de valor, sujeita a actualização.”

36-Na esteira de António Menezes Cordeiro, in “Tendências Actuais da Interpretação da Lei: do Juiz Autómato aos Modelos de Decisão Jurídica”, publicado na Revista Jurídica 9 e 10 ( 1987 ), pág. 15, e concordando com a conclusão contida na douta Sentença Proferida em Primeira Instância, em contrário do douto Acórdão recorrido, “apela-se para uma aplicação do direito dirigida ao caso concreto, na ponderação das consequência da decisão naquilo que designa de aplicação sinépica”.

37-“O direito realiza-se em decisões concretas (...).A decisão não se esgota valorativamente nela própria, havendo, para além dela, que determinar as suas consequências. A ponderação das circunstâncias da decisão constitui um factor relevante na realização do direito; desenha-se, assim, um conjunto de regras ...), as quais, habilitando o interprete-aplicador a pensar através de consequências, permitem, pelo conhecimento e ponderação dos efeitos das decisões, combater de vez os estereótipos conceituais, prosseguindo na vida jurídica a realização integral do direito.”

38-Concluindo-se, em contrário do doutamente decidido no douto Acórdão recorrido que “atendendo às especificidades do contrato promessa que foi celebrado entre os autores e a ré e ao desequilíbrio das prestações em claro prejuízo para os autores e benefício para a ré que resultava da adopção nos presentes autos do entendimento contrário, consideramos que a quantia a que os autores têm direito deve ser actualizada“, tendo, como decidido em Primeira Instância, que ser aplicado o coeficiente de desvalorização da moeda publicado pelo INE e na actualização de 1989 para 2004, que nos termos na Portaria 376/2004, de 14/4, não deverá ser inferior a 2,04, já sendo os autores penalizados pelo facto, atenta a matéria assente, de só terem demandado a Ré em 2021, ou seja a Ré beneficia da não actualização de 2004 a 2021, sem prejuízo dos juros de mora legais devidos desde a citação.

39-Deste modo, deverá ser admitida a Revista como normal e a mesma julgada procedente, no sentido desta alegações e na revogação do douto Acórdão proferido, mantendo-se a douta sentença proferida em Primeira Instância, na totalidade, com custas pela Ré.

40-Face ao exposto e à controvertida doutrina e jurisprudência é manifesto que em alternativa a revista deverá ser admitida como excecional nos termos das alíneas a) e c) do artigo 672º do CPC, sem prejuízo do disposto no artigo 686º do mesmo CPC.

41-Deste modo, salvo melhor douta opinião, verifica-se no douto Acórdão recorrido a violação das normas citadas nestas alegações e decisão contrária à doutrina e jurisprudência deste STJ, também citadas, que devem ter-se como as aplicáveis ao caso e à Justiça.

42-Nestes termos, e com o douto suprimento de Vs. Exsa, deverá ser dado provimento ao recurso e no sentido das conclusões, revogando-se o douto acórdão recorrido e mantendo-se integralmente a douta sentença proferida em Primeira Instância, Assim se fazendo Justiça.

Pela R. foram apresentadas contra alegações de recurso, nas quais pugna pela manutenção do acórdão recorrido.

Foram colhidos os vistos junto dos Ex.mos Juízes Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que os recorrentes rematam a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º nº 1 do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.

Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável aos recorrentes (art. 635º nº3 do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº4 do mesmo art. 635º).

Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação dos recorrentes, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.

No caso em apreço emerge das conclusões do recurso apresentadas pelos AA., aqui recorrentes, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se o montante correspondente ao sinal, a restituir em dobro pela R. aos AA. (no que tange ao contrato promessa por eles celebrado), deverá ser actualizado, considerando o diferencial entre o momento do pagamento desse sinal (1989) e o momento do incumprimento que deu causa à restituição (2004).

Antes de nos pronunciarmos sobre a questão supra referida importa ter presente a factualidade que foi dada como provada nas instâncias, a qual, de imediato, passamos a transcrever:

1. A ré dedicava-se à atividade de construção civil;

2. No dia 10 de janeiro de 1989 os autores e a ré celebraram o acordo intitulado contrato promessa de compra e venda que consta do documento de fls. 15 verso a 17 verso e que aqui se dá por integralmente reproduzido;

3. Ficou acordado o seguinte:

- A ré prometeu vender aos autores metade do prédio misto sito no Campo 25 de Abril, em Barcelos, inscrito atualmente nos arts. ...... ..... . .....º da matriz predial respetiva, pelo preço de 25.000 contos (€ 124 699,47);

- A metade do prédio misto que a ré prometeu vender aos autores podia ser ocupada na totalidade ou apenas em parte pela construção de edifícios em propriedade horizontal para venda pela ré;

- Nesta situação a ré entregava aos autores 10% das frações autónomas de rés do chão e andares da construção que fosse aprovada;

- As despesas com o prédio até que ficasse apto para construção seriam suportadas em metade pelos autores e pela ré.

4. Nos anos de 1988 e 1989 os autores entregaram à ré a quantia de 25.000 contos e suportaram metade das despesas relativas ao prédio no valor de 1.556.400$00 (€ 7.763,28);

5. No ano de 1991 foi aprovada a construção pela ré de um edifício denominado Cidadela III numa parcela de terreno junto ao prédio;

6. Uma parte deste edifício ocupava o prédio;

7. No ano de 1994, atendendo ao acordo que tinha sido celebrado, a ré entregou aos autores a quantia de 16.500 contos (€ 82 301,65) pela construção que tinha sido executada nesta parte do prédio, sendo o montante de 4.125 contos (€ 20 575,41) para cada um dos autores;

8. No dia 14 de julho de 2004, por escritura pública de permuta celebrada no Cartório Notarial de Barcelos, a ré declarou que permutava o prédio à sociedade comercial Fersil - Construção Civil e Compra e Venda de Propriedades, Lda. recebendo em troca quatro frações autónomas destinadas a habitação;

9. Nesta escritura pública foi atribuído ao prédio o valor declarado de € 320.000,00;

10. A ré foi citada para a presente ação no dia 28 de abril de 2021.

Apreciando, de imediato, a questão recursiva suscitada pelos AA. – saber se o montante correspondente ao sinal, a restituir em dobro pela R. aos AA. (no que tange ao contrato promessa por eles celebrado), deverá ser actualizado, considerando o diferencial entre o momento do pagamento desse sinal (1989) e o momento do incumprimento que deu causa à restituição (2004) – importa dizer a tal respeito que, o contrato-promessa é aquele pelo qual alguém se obriga a celebrar certo negócio futuro, frequentemente um contrato (o contrato prometido), operando, no fundo, como um contrato que prepara e garante o negócio definitivo (cfr. art.410º nº 1 do Cód. Civil), ou seja, “in casu”, a compra e venda de metade de um prédio misto em Barcelos, nas circunstâncias fácticas apuradas nos autos.

Como sabemos, é comum, no contrato-promessa, a fixação de um sinal, tratando-se habitualmente de uma quantia pecuniária entregue por um dos contraentes ao outro, normalmente a título de confirmação pública da promessa e reforço do vínculo negocial, sendo que nestes casos o contraente que recebeu a quantia e incumpriu o prometido deve restituí-la em dobro (cfr. art. 442º nº 2 do Cód. Civil).

Questão pertinente e delicada - e que constitui, precisamente, o cerne do presente recurso - é a de saber se o montante do sinal a restituir em dobro pela R. aos AA. deve ser actualizado em face das diferenças no valor da moeda ocorridas entre o momento da constituição do sinal (1989) e o momento do incumprimento do contrato-promessa (2004).

Poder-se-á argumentar que sim, como o fazem, aliás, os AA./recorrentes, enfatizando o prejuízo que para o credor advém de uma deriva inflacionista daquele valor, com o que isso acarreta de comprometimento material do equilíbrio do contrato, particularmente quando o diferencial concreto é de cerca de 15 anos.

Todavia, sempre se poderá questionar se não será esse, porventura, um risco próprio do contrato?

Na verdade, como bem sublinhou Manuel de Andrade, se a desvalorização prejudica o credor, uma hipotética revalorização prejudicará o devedor, razão pela qual o princípio da constância legal do valor da moeda (princípio nominalista) "tem sempre a vantagem de ser mais seguro e cómodo na sua aplicação", já que "o critério oposto (a actualização das prestações pecuniárias) podia levar também a graves injustiças, tudo dependendo da aplicação que o devedor [tivesse] dado aos seus bens, e em particular à soma devida, e da aplicação que o credor teria dado à mesma soma se a tivesse em seu poder" – cfr..Teoria Geral das Obrigações, 1966, pág. 233.

Esta a razão pela qual, sendo embora censurável a conduta do promitente-vendedor, e a restituição do sinal em dobro sempre pressupõe a culpa do accipiens, continua a não nos parecer razoável que esta dívida, pecuniária também na perspetiva de Calvão da Silva , escape à égide do critério nominalista, salvo se as partes, precisamente no quadro da sua autonomia privada enquanto liberdade contratual, hajam estipulado alguma espécie de salvaguarda, como é salientado, por exemplo, no Ac. do STJ de 12/6/2012, disponível in www.dgsi.pt (Relator Gregório Jesus), no qual é afirmado que "as obrigações pecuniárias, tendo por objecto uma prestação em dinheiro, são insensíveis às oscilações do valor da moeda, suportando o credor o risco da desvalorização monetária, a menos que as partes estipulem cláusulas de estabilização e controlo."

A este respeito, estatui o nº4 do art.442º do Cód. Civil que, “na ausência de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste, ou do aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento.”

Assim sendo, e conforme se afirmou no Ac. do STJ de 2/12/2013 (Relatora Maria dos Prazeres Beleza), disponível in www.dgsi.pt., “o regime previsto pelo art. 442.º do CC prevê uma forma de indemnização pré-definida do promitente a quem é imputável o incumprimento do contrato-promessa, tendo havido sinal passado e na falta da convenção em contrário.

Com a definição do montante indemnizatório nos termos do art. 442.º do CC dispensa-se tanto a prova de que o promitente não faltoso sofreu efectivamente prejuízos, como se exclui, ainda, o ressarcimento de prejuízos que excedam a indemnização encontrada”.

No mesmo sentido veja-se ainda o Ac. do STJ de 31/1/2012 (Relatora Maria dos Prazeres Beleza), também disponível in www.dgsi.pt, no qual, a dado paso, é afirmado o seguinte:

- Se tiver havido sinal e se o promitente-vendedor entrar em incumprimento, o promitente-comprador tem direito à restituição do sinal em dobro; e, se nada se tiver convencionado em contrário, “não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização” (nº 4 do artigo 442º do Código Civil).

O sinal desempenha também a função de compensação da parte a quem o incumprimento não é imputável, fixando antecipadamente o correspondente montante e o risco que o faltoso corre se decidir não cumprir.

Em sentido idêntico ou similar aos arestos supra transcritos podem ver-se, ainda, os Acs. do STJ de 6/5/2004 (Relator Ferreira de Almeida) e de 12/10/2004 (Relator Azevedo Ramos), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

E, também a este propósito, Ana Prata afirma o seguinte:

- “Prescindindo de uma análise detida da questão, por evidentes razões de economia e equilíbrio do presente texto, pode, porém, dizer-se que, constituindo o sinal e a pena convencional valores tendencialmente insensíveis à extensão dos danos efetivamente verificados, prescindindo até a obrigação do seu pagamento da ocorrência de quaisquer prejuízos, não parece haver fundamento para os considerar dívidas de valor. Aliás, se a indemnização, quando liquidada, se converte de dívida de valor em dívida de dinheiro, passando a estar submetida ao princípio nominalista, parece que, por igualdade de razão, quando o quantum indemnizatório se encontra pré-liquidado convencionalmente, não há razão para considerar a correspondente obrigação senão como obrigação pecuniária. O que terá como consequência que, não podendo o credor obter a respetiva correção atualizadora, em épocas de desvalorização da moeda, será ele quem suporta o dano inerente – cfr. “O Contrato-promessa e o seu Regime Civil”, 1999, págs.792/793.

Consequentemente, tendo as partes convencionado o sinal, sem estipulação de qualquer outra indemnização em caso de incumprimento, ficou-lhes vedado lançarem mão de qualquer outra indemnização compensatória pelo incumprimento que não seja a da perda do sinal passado, ou da restituição do sinal dobro.

Ora, resultando do contrato-promessa celebrado entre as partes que não foi fixado prazo para a celebração da escritura, cabia aos AA. interpelar a Ré para tal efeito, podendo tal interpelação ser feita, a partir da data da celebração do contrato, em qualquer momento, pelo que, no caso em apreço, a responsabilidade pela “inércia” dos AA. só aos mesmos poderá ser imputada.

Assim sendo, face ao estipulado no nº 4 do citado art.442º do Cód. Civil, resulta claro que o regime nele previsto estabelece uma forma de indemnização pré-definida do promitente a quem é imputável o incumprimento do contrato-promessa, tendo havido sinal passado e na falta de convenção em contrário, tal como ocorreu no caso aqui em análise.

Daí que, a definição do montante indemnizatório fixado nos termos do normativo acima referido dispensa a prova de que o promitente não faltoso sofreu efectivamente prejuízos, excluindo também o ressarcimento de quaisquer prejuízos que excedam o quantum indemnizatório aí encontrado.

Ou seja, dito de outra forma, entendemos que, na ausência de qualquer convenção em contrário, no pagamento do sinal em dobro pelo inadimplente, não há lugar, com fundamento no não cumprimento do contrato promessa, a qualquer outra indemnização – cfr. art.442º nº 4 do Cód. Civil.

Nestes termos, dado que o presente recurso não versa outras questões, entendemos que o acórdão recorrido não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter integralmente. Em consequência, nega-se a revista interposta pelos AA., aqui recorrentes.

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Finalmente, atento o estipulado no nº 7 do art.663º do C.P.C. passamos a elaborar o seguinte sumário:

- A figura do sinal prevista no art.442º do Cód. Civil não desempenha uma função indemnizatória, nem é uma dívida de valor sujeita a actualização (nomeadamente tendo por base o valor da inflação).

- Com efeito, a figura do sinal representa uma obrigação pecuniária, tendo por objecto uma prestação em dinheiro, a qual é insensível à oscilação do valor da moeda, suportando o credor o risco da desvalorização monetária, a menos que as partes hajam estipulado ou convencionado algo em contrário.

- Por isso, no caso em apreço, tendo existido o pagamento de sinal e entrando o promitente-vendedor em incumprimento, o promitente-comprador terá direito (apenas) à restituição do sinal em dobro, pois, nada havendo sido convencionado em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização – cfr. nº 4 do citado art.442º do Cód. Civil.

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o presente recurso de revista interposto pelos AA. e, em consequência, confirma-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelos AA., aqui recorrentes.

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Lx., 2/10/2025

Rui Machado e Moura (Relator)

Nuno Pinto de Oliveira (1º Adjunto)

A. Barateiro Martins (2º Adjunto)