Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3/19.1SULSB-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: HABEAS CORPUS
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
INCUMPRIMENTO
PENA DE PRISÃO
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 10/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. É de improceder pedido de providência de habeas corpus formulado com fundamento em excesso de prisão efectiva alegadamente por decurso de prazo de prescrição e invocação de aplicabilidade do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, quando não resulta manifesto que houve prescrição, sendo certo que essa questão deveria sempre ser primeiramente colocada ao tribunal à ordem do qual a prisão é executada.

II. Por outro lado, tendo o mesmo decidido, com trânsito em julgado, que o perdão não era aplicável, não cabe ao STJ em via de providência de habeas corpus alterar o decidido pois que só o seria por via de recurso ordinário.

Decisão Texto Integral:
Habeas Corpus 3/19.1SULSB-A.S1

Acordam em AUDIÊNCIA na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I-Relatório

1. . O requerimento de Habeas Corpus

Foi apresentado ao Exmº Sr Presidente do STJ pedido de habeas corpus, e de seguida distribuído à secção criminal, por AA, condenado, em cumprimento de pena de prisão no Estabelecimento Prisional de Caxias nos termos do art.º 31 da C.R.P. e do art.º 222º nº 2 al. c) do C.P.P.

Peticiona a aludida providência excecional de HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL pelos fundamentos seguintes:

“ A - DOS FACTOS:

I - DO CRIME

MOTIVO DA SUA CONDENAÇÃO

O ora peticionante, foi condenado pela prática em coautoria material de um crime de roubo simples, na pena de 7 meses de prisão, substituída nos termos do artigo 58º do CP por 210 horas de trabalho a favor da comunidade, por sentença datada de 06.12.2019, transitado em julgado em 20.01.2020.

QUE FACTOS ESTÃO DOCUMENTADOS E QUE MOTIVAM A SUA PRISÃO

VEJAMOS:

Factos assentes:

(relevantes para o presente pedido)

O arguido encontra-se preso e em cumprimento da pena acima indicada, ininterruptamente, desde o dia 22 de julho de 2024.

O arguido foi condenado a uma pena de prisão a título de pena principal, tenho a mesma sido substituída por trabalho a favor da comunidade.

II - REQUISITOS DA PROVIDÊNCIA

O arguido encontra-se, atualmente, preso, pelo que reveste requisito da atualidade. (Ac. STJ. de 28 de junho de 1989, proc.18/89/3ª secção e de 23 de Novembro de 1995, CJ. Tomo III pág. 241)).

O Habeas Corpus constitui um mecanismo expedito, que visa por termo imediato a situações de prisão manifestamente ilegais, sendo a ilegalidade diretamente verificável a partir dos factos documentados.

O arguido já não dispõe a seu favor prazo para a interposição de recurso ordinário.

RAZÕES DE DIREITO:

Da Ilegalidade da sua prisão.

A presente providencia de Habeas Corpus restringe-se a casos particularmente qualificados (como é seguramente o da ultrapassagem do prazo máximo da prisão, artigo 127º nº 1 e 128º nº 3 do CP.).

Assenta esta perspetiva na recondução do âmbito da garantia constitucional do habeas corpus à tutela daqueles valores que a Constituição destaca na "dimensão processual da prisão preventiva", contida no artigo 28º (JJ Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, 2007, p. 489), valores esses traduzidos, no que apresenta relevância no âmbito desta providência, na afirmação do carácter temporalmente limitado da prisão através da obrigação de o legislador a sujeitar a prazos.

Estes prazos são os do artigo 122º, 127º e 128º do CP, e é a sua ultrapassagem que justifica o recurso a uma providência com as particulares características do habeas corpus.

Ora, nos termos do artigo 122º, nº2 do CP, o prazo da prescrição começa a correr no dia em que transitar em julgado a decisão que tiver aplicado a pena, ou seja, a 20 de janeiro de 2020.

Nos termos do nº1 al. d) do citado artigo e diploma, as penas prescrevem no prazo de 4 anos, não tendo havido, salvo melhor e superior opinião, qualquer causa de suspensão ou interrupção da prescrição, o que só vem a ocorrer com a sua detenção no dia 22 de julho de 2024, ou seja, mais de 6 meses após a prescrição.

O prazo de prescrição da pena deverá aferir-se pelo prazo legalmente previsto para a pena principal substituída.

Pelo que a manutenção da sua prisão é manifestamente ilegal por manter-se para além dos prazos fixados na lei, cfr. artigos supra indicados.

Para além disso o arguido tinha e tem menos de 30 anos de idade na data da entrada em vigor da Lei do perdão (01 de setembro de 2023), pelo que a pena de 7 meses de prisão aplicada deveria ter sido considerada integralmente perdoada e, como tal, já não suscetível de ser executada como o foi sem prejuízo de a revogação que lhe deu origem não ter sido precedida de audição presencial, o que sempre acarretaria uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, mas que, por vicissitudes várias, não foi oportunamente conhecida.

Sendo certo que ainda recentemente assim foi declarada por douto Acórdão de Fixação de Jurisprudência 11/2024, no âmbito dos autos de Proc. nº 24/16.6SJGRD-A.C1-A.S1 publicado em 10.09.2024 no DR-175/2024, SERIEI.

CONCLUINDO:

O Habeas Corpus "é uma providência de caracter excecional destinada a proteger a liberdade individual nos casos em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade"cf. Ac do TC n° 423/03

O Habeas Corpus constitui um mecanismo expedito, que visa por termo imediato a situações de prisão manifestamente ilegais, sendo a ilegalidade diretamente verificável a partir dos factos provados e documentados.

O requerente, - facto irremediavelmente provado e documentado- foi detido e ficou preso em 22 de julho de 2024, tendo sido condenado a 7 meses de prisão por um crime de roubo simples, substituída nos termos do artigo 58º do CP por 210 horas de trabalho a favor da comunidade, por sentença datada de 06.12.2019, transitado em julgado em 20.01.2020.

A sua prisão é motivada por facto que a lei não permite, sendo «grave e evidente a violação da liberdade individual», posto que documentada e assente em factos facilmente verificáveis.

Assim, também não é possível manter o peticionante na condição em que se encontra de preso em cumprimento de uma pena, posto que tal pena se extinguiu em 20 de janeiro de 2024, e por ocasião da Lei do perdão a mesma devia ter sido integralmente perdoada bem como ter-se declarado a nulidade insanável por falta de audição presencial conforme Acórdão de Fixação de Jurisprudência 11/2024, no âmbito dos autos de Proc. nº 24/16.6SJGRD-A.C1-A.S1 publicado em 10.09.2024 no DR-175/2024, SÉRIE I .

Entendemos que continua preso por «violação grosseira da Lei».

A sua prisão é ilegal, e mantida por violação e grave e interpretação do direito, nomeadamente dos arts. 122º, 127º nº 1 e 128º nº 3 do CP, artigos 2º 3º e artigo 7º a contrário da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, 27º nºs. 1 da Lei Fundamental e, art° 3o e 5o e 12°da DUDH e art° 5o e 7o da CEDH.

Pelo exposto e noutros que vierem a ser doutamente supridos por V.Exa. deve a presente providência excecional de HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL, ser considerada procedente por provada e, por via dela ordenar-se a sua imediata restituição à liberdade, expedindo-se os competentes mandados de soltura.”

2. - A informação judicial – artº 22º nº3 do CPP

Apresentada a petição no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 11- neste Processo: 3/19.1SULSB-A, foi prestada seguinte informação judicial.

“Remeta de imediato a petição ao Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 223.º, do Código de Processo Penal, com a informação de que o arguido foi preso à ordem dos presentes autos no dia 22 de julho de 2024, na sequência da emissão dos competentes mandados de detenção para cumprimento da pena principal de 7 meses de prisão, em que foi condenado nos presentes autos.

Com efeito, por sentença transitada em julgado no dia 20 de janeiro de 2020 (certidão de fls. 214) foi o arguido AA condenado na pena de 7 meses de prisão, substituída por 210 horas de trabalho a favor da comunidade.

Foi elaborado o “relatório de caracterização de trabalho a favor de comunidade”, tendo o mesmo sido homologado judicialmente.

Após diversas oportunidades para o condenado iniciar o trabalho a favor da comunidade, em 14 de junho de 2023 (fls. 444), a DGRSP informou os autos que o arguido apenas cumpriu 23 das 210 horas de trabalho comunitário determinadas, não tendo voltado a comparecer na entidade beneficiária.

Nessa sequência, o Ministério Público promoveu a revogação da substituição, tendo o Tribunal proferido despacho a revogar a pena substitutiva, determinando o cumprimento da pena de 7 meses de prisão

O arguido foi notificado do aludido despacho, conforme resulta de fls. 447 e prova de depósito de fls. 450, no dia 7 de agosto de 2023, tal como foi o ilustre mandatário, a fls. 448.

Em 12 de setembro de 2023 (fls. 451-452) o arguido requereu a revogação do aludido despacho, com fundamento na aplicação da Lei n.º 38-A/2023.

A fls. 455, o Tribunal proferiu despacho, afastando a aplicação da referida Lei.

Transitada em julgado a decisão de revogação da pena de substituição, em 06 de outubro de 2023, foram, posteriormente, emitidos os competentes mandados de detenção para cumprimento da pena imposta a AA, vindo os mesmos a ser cumpridos em 22 de julho de 2024 (fls. 475) e, consequentemente, homologada a liquidação da pena elaborada pelo Ministério Público, estando o termo da mesma previsto para o dia 20 de fevereiro de 2025.

Em face do exposto, afigura-se-nos, salvo melhor entendimento, que não assiste razão ao arguido, pelo que a presente providência de habeas corpus deve ser indeferida.

*

Instrua com certidão dos seguintes elementos processuais: da sentença, com certidão de trânsito em julgado; do despacho de revogação da pena substitutiva e respetiva certidão de trânsito; notificação daquele despacho ao arguido e prova de depósito; notificação daquele despacho ao Ilustre Advogado; mandados de detenção e certidão do seu cumprimento; liquidação final da pena e despacho homologatório, remetendo, com a petição e o presente despacho, imediatamente, ao Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (art. 223.º n.º 1 do CPP).“

1.3. O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente devidamente certificada.

1.4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

O MPº tomou posição no sentido de a providência não merecer provimento.

A defesa em alegações manteve a procedência das razões invocadas na petição de habeas corpus

Seguidamente a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), nos termos que doravante passaremos a explicitar.

II – Síntese dos fundamentos do pedido e Fundamentação

A Questão a decidir

Encontra-se manifestamente excedido o prazo de prisão por 7 meses aplicado ao arguido por decurso da prescrição e por aplicabilidade do perdão da Lei n.º 38-A/2023?

III- De Direito

3.1- Os factos processuais

A matéria factual e a narrativa processual relevante para o julgamento do pedido resulta da petição de habeas corpus, da informação judicial prestada, da certidão que acompanha os presentes autos e da consulta CITIUS do processo, extraindo-se os seguintes dados de facto e processuais (em súmula)

Encontra-se assente, face à certificação constante dos autos e verificação na plataforma Citius;

A. Por sentença transitada em julgado no dia 20 de janeiro de 2020 (certidão de fls. 214) foi o arguido AA condenado na pena de 7 meses de prisão, substituída por 210 horas de trabalho a favor da comunidade.

B. Foi elaborado o “relatório de caracterização de trabalho a favor de comunidade”, tendo o mesmo sido homologado judicialmente.

C. Em 14 de junho de 2023 (fls. 444), a DGRSP informou os autos que o arguido apenas cumpriu 23 das 210 horas de trabalho comunitário determinadas, não tendo voltado a comparecer na entidade beneficiária.

D. O Tribunal proferiu então despacho a revogar a pena substitutiva, determinando o cumprimento da pena de 7 meses de prisão, tendo o arguido sido notificado do aludido despacho, conforme resulta de fls. 447 e prova de depósito de fls. 450, no dia 7 de agosto de 2023, tal como foi o ilustre mandatário, a fls. 448.

E. Em 12 de setembro de 2023 (fls. 451-452) o arguido requereu a revogação do aludido despacho, com fundamento na aplicação da Lei n.º 38-A/2023.

F. A fls. 455, o Tribunal proferiu despacho, afastando a aplicação da referida Lei. Transitada em julgado a decisão de revogação da pena de substituição, em 06 de outubro de 2023, foram, posteriormente, emitidos mandados de detenção para cumprimento da pena imposta a AA, vindo os mesmos a ser cumpridos em 22 de julho de 2024 (fls. 475) e, consequentemente, homologada a liquidação da pena elaborada pelo Ministério Público, estando o termo da mesma previsto para o dia 20 de fevereiro de 2025.

3.2 Apreciando o pedido de habeas corpus

A) Os pressupostos legais

Considerações de ordem geral

Tal como vem sendo afirmada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, valendo por todos o referenciado no Ac. do STJ, de 02/11/2023, proferido no âmbito do Proc. n.º 15/22.8JBLSB-AG.S1, em www.dgsi.pt, “(…) Da essência desta providência extraordinária resulta,(…) que ela não substitui, nem pode substituir-se aos recursos ordinários, consagrados constitucionalmente no art.32.º, n.º1, da Lei Fundamental, ou seja, não é, nem pode ser meio adequado a pôr fim a todas as situações de ilegalidade de prisão.” – sublinhado nosso.

No seguimento do entendimento do habeas corpus, como uma providência extraordinária, a jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão.

A providência de habeas corpus está reservada às situações de clamorosa ilegalidade da prisão, de ilegalidade grosseira, verificável diretamente a partir dos factos documentados, a que urge pôr termo, com caráter urgente, por estar em causa um bem tão precioso como a liberdade ambulatória.”

O instituto do habeas corpus constitui garantia privilegiada do direito à liberdade física ou de locomoção reconhecido no art. 31º da CRP e regulado no CPP por referência às duas fontes de abuso de poder versadas no preceito constitucional: habeas corpus em virtude de detenção ilegal (artigos 220º e 221º, CPP) e habeas corpus em virtude de prisão ilegal (arts 22º e 223º, CPP), que aqui está em causa.

Conforme é pacificamente entendido, o acesso direto e expedito ao STJ através da providência , excecional, de habeas corpus justifica-se pelo propósito de fazer cessar rapidamente estados ilegais de privação da liberdade nas hipóteses, taxativas e manifestas, previstas nas três alíneas do artigo n.º 222º CPP.

Nos termos do artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.

Excetua-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional, em que se incluem: (a) a detenção em flagrante delito; (b) a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos; (c) a prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão; (d) a prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente; (e) a sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente; (f) a detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente; (g) a detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários e; (h) o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.

O mencionado artigo 31.º da CRP consagra o direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer pela própria pessoa lesada no seu direito à liberdade, ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente.

Em anotação ao artigo 31.º, n.º 1, da CRP, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508):

«Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27.º e 28.º (...). A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art. 27.º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc.

Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade.»

José Lobo Moutinho (Jorge Miranda e Rui Medeiros, com a colaboração de José Lobo Moutinho [et alii], Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Tomo1, 2.ª edição, 2010, pp. 694-695), em comentário ao mesmo artigo 31.º, n.º1, da Lei Fundamental, sustenta que a qualificação de «providência extraordinária», atribuída ao habeas corpus «…não significa e não equivale à excecionalidade. Juridicamente excecional é a privação da liberdade (pelo menos, fora dos termos e casos de cumprimento de pena ou medida de segurança) e nunca a sua tutela constitucional. A qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e, nesse sentido, fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial das detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal.»

A lei processual penal, dando conteúdo aplicado ao referido artigo 31.º da CRP, abrange duas vias de habeas corpus: uma, em virtude de detenção ilegal e outra, em virtude de prisão ilegal.

Dispõe o artigo 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”:

«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»

Tem sido linha consensual na jurisprudência deste Supremo Tribunal considerar que os fundamentos desta providência se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo ser utilizada para sindicância de outros motivos susceptíveis de porem em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (acórdão de 06.04.2023, proc. n.º 130/23.0PVLSB-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).

Igualmente tem decidido uniformemente o Supremo Tribunal de Justiça que a providência de habeas corpus, por um lado, não se destina a apreciar erros de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (por todos, o acórdão do STJ, de 04.01.2017, proc. n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada) e, por outro, que a procedência do pedido pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que é apreciado o pedido (entre muitos, o acórdão de 19.07.2019, proferido no proc. n.º 12/17.5JBLSB, com extensas referências jurisprudenciais).

Em suma, os motivos de «ilegalidade da prisão», para serem fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se e conter-se, imperativamente, na previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Em jurisprudência uniforme, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar:

(a) se a prisão, em que o peticionário atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente,

(b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e

(c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (acórdãos de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, de 18.05.2022, proc. 37/20.3PJLRS-A.S1, e de 06.09.2022, proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1).

B) O Caso em concreto perante os pressupostos legais

Descendo ao caso concreto, o arguido/peticionário considera que está detido ilegalmente por não ter de sofrer pena que deveria estar perdoada e por ter prescrito a pena aplicada por decurso do prazo.

Manifestamente, sem o mínimo de razão.

Quanto ao perdão mencionado, o mesmo não lhe foi aplicado por decisão transitada em julgado. Concorde ou não, o trânsito da decisão torna indiscutível a mesma, excepto para as hipóteses de reapreciação previstas para os recursos de revisão e de fixação de jurisprudência. A providência de habeas corpus não é meio processual adequado para discutir de novo matéria que só o seria por via de recurso.

Quanto à prescrição, o problema é idêntico. O STJ em sede de providência de habeas corpus não averigua nem decide se há prescrição de pena. Essa matéria cabe ser apreciada em primeira linha pelos tribunais comuns e as decisões sobre ela proferidas são apenas passíveis de recurso.

Além do mais, os autos não revelam violação patente e grosseira da lei nessa parte, da qual pudesse resultar um manifesto excesso de prisão já que a execução da pena de prisão em si, a qual manteve sempre a sua natureza e validade, ficou suspensa nos termos do artº 125º nº1 a) e 126 nº3 do CP por via da substituição por dias de trabalho (artºs 58º nº3 , revogável nos termos do artº 59 nºs 2 e 4 do CP.

Enquanto tal, o seu incumprimento e a revogação repristinaria, como aconteceu, a pena original (ressalvados os descontos devidos pelos dias ou horas de trabalho entretanto cumpridos e cuja consideração devem ser aferidos pelo acerto do despacho de homologação)

Não é pois sequer manifesto que até no segmento da prescrição invocada haja sinais evidentes e inequívocos de tal ter acontecido, sem prejuízo, repetimo-lo, de a questão ter e dever ser primeiramente aferida a requerimento ou oficiosamente, no tribunal de 1ª instância e nunca por nunca por esta forma, como foi, deveras aligeirada e inconsequente, recorrendo-se sem mais à presente providência de habeas corpus.

Por tudo isto, podemos concluir incontornavelmente pelo uso indevido desta providência com os fundamentos invocados, cuja gritante falta de razão e desacerto é manifesta. A prisão é legal, foi decidida fundamentadamente por autoridade judicial competente e não é minimamente manifesto qualquer excesso de prazo da mesma.

IV- A DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes nesta 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus apresentada pelo recluso AA.

Custas pelo requerente, com 3 UC de taxa de justiça (artigo 8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III anexa), sendo ainda condenado, nos termos do artigo 223.º, n.º 6, do CPP, no pagamento de uma soma de 10 (dez) UC, a título de sanção processual.

STJ, 10 de Outubro de 2024

(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)

Agostinho Torres (relator)

Vasques Osório (1º adjunto)

Jorge Bravo (2º adjunto)

Helena Moniz (Presidente)