Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANA LUÍSA GERALDES | ||
Descritores: | JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO DEVER DE LEALDADE CONCORRÊNCIA DESLEAL | ||
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Data do Acordão: | 09/09/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA | ||
Área Temática: | DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO / DIREITOS, DEVERES E GARANTIAS DAS PARTES / DEVERES DO TRABALHADOR / CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO / DESPEDIMENTO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR ( POR FACTO IMPUTÁVEL AO TRABALHADOR ). | ||
Doutrina: | - Ana Luísa Geraldes, O Direito da Publicidade – Estudos e Práticas Sancionatórias, 1999, pp. 33, 80. - António Manuel Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, 1997, p. 197 e ss.. - António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 16.ª Edição, p. 482, Direito do Trabalho, 17.ª Edição, p. 583; Temas Laborais, p. 65, citado na última edição do Novo “Código do Trabalho” e Legislação Complementar Anotados, de Abílio Neto, em anotação ao artigo 128.º, do C.T.. - Baylos Corroza, Tratado de Derecho Industrial, 3ª Ed., Civitas, 1993, citado a p. 76, de Oliveira Ascensão. - José de Oliveira Ascensão, Concorrência Desleal, 1994, pp. 6 e ss., 60. - Maria do Rosário Palma Ramalho, in “Tratado de Direito do Trabalho” – “Parte II – Situações Laborais Individuais”, 5ª Edição, pp. 433 e ss. e 443 e ss. - Patrício Paúl, in “Concorrência”, nºs 13 e 15, citado por Oliveira Ascensão, na obra indicada. - Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2013, 6.ª Edição, pp. 537, 917 e ss.. - R. Corrado, Il Lavoratore Nell’Organizzazione dell’ Impresa, in “Nuovo Trattato di Diritto del Lavoro”, p. 248, citado por Monteiro Fernandes, ibidem, p. 214. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DO TRABALHO (CT), LEI N.º 7/2009, DE 12 DE FEVEREIRO: - ARTIGOS 126.º, N.ºS 1 E 2, 128.º, N.º 1, AL. F), 351.º, NºS 1, 2, AL. E) E 3. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 20/04/2005, PROCESSO N.º 160/05, DE 12/09/2012, PROCESSO N.º 492/08, E DE 12/09/2012, PROCESSO N.º 605/07, TODOS IN WWW.DGSI.PT . -DE 21/03/2012, PROCESSO N.º 196/09.6TTMAI.P1-S1 E DE 5/7/2012, AMBOS IN WWW.DGSI.PT. | ||
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Sumário : | I. Integra justa causa de despedimento, por violação do dever de lealdade, na dimensão da proibição de não concorrência, o comportamento do trabalhador que se torna sócio de uma sociedade comercial com objecto social idêntico ao do empregador e que prossegue a mesma actividade. II. A violação do dever de lealdade e a obrigação legal de não concorrência que impende sobre o trabalhador não dependem da verificação, em concreto, de um efectivo prejuízo para o empregador, nem do efectivo desvio de clientela, sendo suficiente a potencialidade desse prejuízo. III. A quebra da confiança entre empregador e trabalhador não se afere pela existência de prejuízos, podendo existir sem estes, bastando que o comportamento do trabalhador seja apto a gerar no empregador a dúvida sobre a idoneidade da sua conduta futura. IV. No âmbito da sua relação laboral o trabalhador está vinculado a vários deveres, com destaque, no que aqui releva, para os deveres de lealdade, de transparência e de boa fé, como forma de garantir, proteger e conservar a situação de confiança mútua indispensável à manutenção dessa relação contratual. | ||
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Decisão Texto Integral: |
ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I – 1. AA
Instaurou a presente acção de impugnação de regularidade e licitude do despedimento, sob a forma de processo especial, no Tribunal do Trabalho de ..., contra:
BB – ..., Lda.
Pedindo que seja declarada a ilicitude do seu despedimento, com as legais consequências.
2. A Ré apresentou articulado a motivar a sanção disciplinar de despedimento que aplicou ao A., sustentando a sua licitude na violação por parte do A. do dever de lealdade, ao negociar por conta própria e em concorrência com a R., no mesmo ramo de actividade a que esta se dedica, a venda de gás a retalho, causando-lhe prejuízo pela perda de clientela.
Invocou para tanto, e em síntese, que: A Ré tem como actividade, entre outras, a venda de gás a grossista e a retalho, e detém uma área comercial demarcada na qual fornece o gás a vários fornecedores e clientes, sendo a venda a retalho feita de porta em porta, aos seus próprios clientes na área comercial demarcada. Actividade que o A. desenvolvia ao serviço da R., ao abrigo do contrato de trabalho celebrado entre ambos, fazendo directamente esse contacto. Acontece porém que o A. é sócio da sociedade “CC, Lda.”, que vende o mesmo produto – gás – que a Ré. Tendo os representantes dessa sociedade, da qual o A. é sócio, proposto directamente aos clientes da R. a venda de gás mais barato, em clara concorrência desleal com a R., fazendo com que esta perdesse clientes. Motivo pelo qual a R. despediu o A. com justa causa, porquanto com aquele comportamento o A. destruiu a necessária relação de confiança, tornando impossível a subsistência da relação de trabalho. Assim, não assiste razão ao A. pelo que a acção deve improceder.
3. Notificado, veio o A. apresentar articulado com contestação e pedido reconvencional, no qual:
a) Deduziu a título de excepção a inexistência jurídica da decisão proferida pela R. no âmbito do processo disciplinar; b) Impugnou a factualidade aduzida pela R. como justificativa do despedimento, refutando a imputação de violação do dever de lealdade, nomeadamente através da alegação de factos que, em seu entender, explicitam os motivos subjacentes à decisão de despedimento em apreço e que se prendem com a alteração da gerência da R. na sequência do falecimento de um dos seus sócios e gerentes que detinha a maioria do capital social da empresa; c) Formulou pedido reconvencional peticionando que seja declarado ilícito o despedimento, com a consequente condenação da R. no pagamento de: - Uma indemnização pela ilicitude decorrente da antiguidade, no total de € 19.200,00; - Uma indemnização por danos morais no montante de € 1.500,00, para compensação pelos danos morais sofridos; - Um valor correspondente às retribuições vencidas e vincendas, desde a data do despedimento (19.10.2011) até à data do trânsito em julgado da sentença.
4. A R. apresentou resposta à contestação sustentando a licitude do despedimento por fundamentada em justa causa, concluindo pela improcedência da acção e pela sua absolvição dos pedidos formulados pelo A.
5. Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual foi julgada improcedente a excepção deduzida pelo A. de inexistência jurídica da decisão que encerrou o processo disciplinar, afirmada a regularidade da instância e fixados os factos assentes com organização da base instrutória.
6. Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente, por não provada, e absolveu a R. de todos os pedidos formulados pelo A. 7. Inconformado, o A. Apelou, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães proferido acórdão julgando procedente a apelação, e revogando a sentença da 1ª instância, com o teor decisório que se segue: «Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, declarando-se a ilicitude do despedimento e condenando-se a R. nos seguintes termos: a) A pagar uma indemnização provisoriamente liquidada em € 18.200,00, com juros de mora a contar da data do trânsito; b) A pagar a quantia, de € 65.778,27 a título de retribuições vencidas, incluindo subsídios, até à presente data, acrescidas de juros à taxa legal a contar das datas de vencimento de cada prestação (excepto as que, nos termos do art. 98º-N do CPT, são da responsabilidade do Estado, que devem ser descontadas); c) A pagar retribuições e subsídios vincendos até trânsito em julgado da decisão, mais juros à taxa legal em caso de mora; d) O Estado, através da entidade referida no art. 98º-N do CPT, procederá ao pagamento das retribuições e subsídios correspondentes ao período decorrido desde 7/1/2014 até 2/6/2014, no total de € 7.107,33».
8. Irresignada, a R. interpôs a presente revista, na qual formulou, em síntese, as seguintes conclusões:
1. A R. e A. celebraram um contrato de trabalho verbal que teve início no dia 20/08/2002. 2. Na sequência do mencionado contrato de trabalho o A. exercia as funções de delegado de vendas ao serviço da R., desempenhando tais funções no chamado D.I. (deposito intermédio de armazenamento de gás), sito na Zona Industrial, em .... 3. O A. tinha como funções promover as vendas, por conta exclusiva da R., dentro e fora do estabelecimento, servindo de intermediário com os seus clientes, contactando em exclusivo com os clientes que adquiriam os produtos vendidos pela R. a grosso. 4. A R. tem como actividade, entre outras, a venda de gás a grossista e a venda a retalho. 5. A sociedade "CC, Lda.", de que o A. é sócio, vende o mesmo produto (gás) que a R. 6. A questão a decidir é simplesmente a de saber se um funcionário que mantém o vínculo laboral com a sua entidade patronal pode ser sócio de estabelecimento comercial que vende o mesmo produto que a sua entidade patronal, fazendo-lhe descarada concorrência. 7. O estabelecimento comercial de que o Trabalhador/Recorrido é sócio vende gás a retalho, tal qual a sua entidade patronal. 8. O A/Recorrido não precisa de contactar directamente com os clientes da sua entidade patronal porque a clientela não tem área demarcada, podendo os clientes adquirir gás onde lhes aprouver, sem precisar do consentimento de quem quer que seja. 9. Ou seja, nada impede os clientes da Ré/Recorrente de adquirirem gás no estabelecimento comercial do Recorrido, fazendo por essa via concorrência à sua Entidade Patronal. 10. Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho – Art. 351.º do C.T. aprovado pela Lei 7/2009 de 12/02. 11. Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve guardar lealdade ao empregador, nomeadamente, não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à organização, métodos de produção ou negócios – Art. 128.º n.º 1, al. t), do CT. 12. A obrigação de não concorrência constitui corolário do dever de lealdade, decorrente da celebração do contrato de trabalho que impõe ao trabalhador o dever de se abster de comportamentos contrários ou lesivos dos interesses da entidade empregadora. 13. Comparando ambos os objectos comerciais, verifica-se que a empresa da qual faz parte o A., enquanto detentor de parte do seu capital social, tem em comum as actividades comerciais da sua entidade patronal, o mesmo objecto social, as quais constituem o núcleo central da actividade da R., na qual o A. tomou parte ao longo de mais de 9 anos, nos quais exerceu um cargo de responsabilidade, precisamente na área comercial, na qual ficou portador de know-how que agora poderá utilizar na actividade comercial da empresa da qual faz parte, e de que os seus irmãos são sócios e um deles é gerente. 14. Sendo o A. sócio da empresa “CC” constitui um perigo iminente para a verificação de concorrência desleal e uma violação do dever de lealdade indispensável à manutenção da relação de confiança que deve subjazer a qualquer relação laboral. 15. Temos pois que concluir que o acto de concorrência desleal assenta em duas ideias fundamentais: a criação e expansão de uma clientela própria; e a idoneidade para reduzir ou suprimir a clientela alheia. 16. A repressão de concorrência desleal condena o meio (A DESLEALDADE) não o fim (DESVIO DE CLIENTELA), pelo que a ilicitude radica-se na deslealdade e não em qualquer direito específico – in Acórdão do STJ, de 26/09/2013, processo n.º 6742/1999.L1S2. 17. Para que haja concorrência não é necessário que exista um efectivo desvio de clientela, basta que esse desvio seja potencial. 18. Constituindo justa causa de despedimento o facto de o trabalhador exercer por conta própria e até fora do seu horário de trabalho actividade concorrencial com a sua entidade empregadora, sem o consentimento desta. 19. Fazendo o A. concorrência desleal à sua entidade patronal, constitui, in casu, violação grave do dever da lealdade a que estava obrigado para com a mesma, susceptível de comprometer irremediavelmente a manutenção da relação laboral. 20. Como diz Pedro Romano Martinez “...se alguém contrata trabalhadores não pode estar sujeito ao risco de estes entrarem em concorrência com a sua actividade” ... 21. Se a contratação de trabalhadores é feita para obter o desenvolvimento e o sucesso da empresa, seria absurdo que eles pudessem desenvolver actividades susceptíveis de conduzir ao desvio de clientela da própria empresa, desvio de clientela que não tem que ser efectivo, basta que seja potencial. 22. Não será pois necessário para o empregador, nem este tem de fazer prova, do desvio de clientela, basta a perda de confiança que está subjacente a qualquer relação laboral e sem a qual a manutenção do posto de trabalho é insustentável. 23. O que vale por dizer que a actuação do Autor/Recorrido analisada à luz do disposto na LCT, e segundo critérios de avaliação de um bonus pater familias, constitui justa causa de despedimento. 24. Pelo que «deverá o presente recurso de revista ser julgado procedente por provado, revogando-se o Acórdão Recorrido».
9. Contra-alegou o A. sustentando a confirmação da decisão recorrida.
10. O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu pronúncia no sentido de que não resultou provada a existência de justa causa de despedimento, nomeadamente porque não se verificou a prática de qualquer acto que demonstrasse que existiu a efectiva retirada de clientes à Ré. Conclui, assim, que deve ser negado provimento ao recurso de revista.
11. O mencionado parecer, notificado às partes, não obteve qualquer resposta.
12. Preparada a deliberação, cumpre apreciar as questões suscitadas nas conclusões da alegação da Ré Recorrente, exceptuadas aquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução entretanto dada a outras, nos termos preceituados nos arts. 608.º, n.º 2 e 679º, ambos do CPC.
II – QUESTÕES A DECIDIR:
- Está em causa, em sede recursória, saber se existe, ou não, justa causa para o despedimento do A.
Para tanto impõe-se aferir se o comportamento do Autor integra a violação do dever de lealdade a que estava obrigado para com a Ré, por prática de concorrência desleal para com a sua entidade patronal, constituindo violação grave e comprometendo irremediavelmente a subsistência da relação laboral.
Analisando e Decidindo.
III – FUNDAMENTAÇÃO
Consigna-se que para a decisão do presente pleito são convocadas as normas do Novo CPC, na versão conferida pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, porquanto os autos deram entrada no dia 28.10.2011 e o acórdão recorrido – proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães – mostra-se datado de 26.02.2015.
No domínio laboral realça-se que a versão do Código de Trabalho aplicável é a do CT de 2009, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12/2.
A) DE FACTO
1. Impõe-se a questão de saber, no caso sub judice, se existe, ou não, justa causa para o despedimento do Autor com fundamento em violação grave do dever de lealdade a que estava obrigado para com a sua entidade patronal, nos termos do art. 128º, nº 1, al. f), do CT. Mais concretamente, importa saber se o Autor, enquanto trabalhador da Ré, ao fazer parte de uma empresa na qual detém uma percentagem do capital social e que exerce a mesma actividade comercial de venda de gás a retalho, se colocou numa situação de concorrência desleal que compromete irremediavelmente a subsistência da relação laboral, integrando justa causa de despedimento por violação do dever de lealdade.
Sobre esta matéria a decisão proferida pela 1ª instância e pelo Tribunal da Relação pautaram-se pela completa oposição: - A 1ª instância considerou que o A. actuou ilicitamente e que a sanção disciplinar de despedimento que lhe foi aplicada pela Ré se mostra justificada em face da existência de justa causa. - A Relação de Guimarães defendeu o contrário com base essencialmente em dois factores: 1. Que não se provou a existência de um prejuízo para a Ré; 2. Que não basta existir o perigo do “desvio da perda de clientela”, pois os comportamentos extraem-se de factos, e “os factos devem constituir actos preparatórios de tal prática, ou comportamentos tais que criem a probabilidade séria, de que tal actividade concorrencial ocorrerá”. E nestes termos considerou que não se verificou nenhuma das referidas circunstâncias, concluindo no sentido de que o despedimento foi ilícito.
Vejamos se tal entendimento pode ser sufragado.
2. Segundo o art. 351º do CT, na versão aqui aplicável (Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro), constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. Quer no domínio do CT de 2003, quer no actual, o legislador não nos dá a exacta definição sobre qual o comportamento do trabalhador que deve ser considerado como culposo para integração no conceito legal de justa causa, limitando-se a enunciar no ponto seguinte do citado normativo, de forma exemplificativa, alguns comportamentos do trabalhador que, a ocorrerem, constituem justa causa de despedimento.
Trata-se de uma opção compreensível, na medida em que sendo a realidade social tão díspar e complexa a nível de comportamentos e relacionamentos humanos, com alterações sucessivas fruto das mutações ocasionadas pela evolução das sociedades e do seu desenvolvimento tecnológico e económico, faz todo o sentido a utilização de conceitos indeterminados com a “elasticidade” ou plasticidade suficiente que permita a integração de comportamentos que, pela sua gravidade, se reconduzam à noção de justa causa. De acordo com o preceito legal, não basta que o comportamento do trabalhador seja culposo, devendo, além disso, revestir uma gravidade e consequências tais que, pela forma que assume, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. Pressupostos que carecem de ser aferidos in concreto em função das circunstâncias apuradas nos autos. Para tanto, impõe o legislador no nº 3 do art. 351º que, na apreciação da justa causa, deve atender-se: - ao quadro da gestão de empresa; - ao grau de lesão dos interesses do empregador; - ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros, - e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
Consagrando-se no normativo em análise pressupostos de carácter tão amplo e genérico, só podem ser densificados no quadro das relações concretas que se estabelecem entre o trabalhador e o empregador, com ponderação dos próprios interesses deste dentro do quadro da gestão da empresa para a qual aquele é contratado. Onde releva a forma como se desenrola e concretiza o cumprimento/ incumprimento dos deveres que impendem sobre o trabalhador, assim como o seu comportamento no âmbito da empresa onde desenvolve a actividade. E só constituirá justa causa de despedimento se esse comportamento culposo e censurável, pela sua gravidade e consequências, tornar imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. Subsumível no conceito de justa causa serão as situações que, em concreto, – isto é, perante a realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiam tais situações – tornem inexigível ao empregador o respeito pelas garantias da estabilidade do vínculo. E a referência legal à “impossibilidade prática da subsistência da relação de trabalho” significa que, nas circunstâncias concretas aferidas, a continuidade da vinculação representaria (objectivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador.[1]
É jurisprudência uniforme deste STJ que, “a determinação em concreto da justa causa resolve-se pela ponderação de todos os interesses em presença, face à situação de facto que a gerou”.
Consagra-se nesta alínea, como corolário do dever de lealdade, a obrigação de não concorrência, estando vedado ao trabalhador o exercício de actividade concorrencial nos termos aí previstos, proibindo a lei a possibilidade de aquele desenvolver uma actividade, por si ou no seu interesse, que conflua ou entre em concorrência com o empregador, pondo em causa a sua organização em matéria comercial, de produção, negocial ou económica.
Também o art. 351º, nº 2, al. e), do CT, prevê expressis verbis que a lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa possa integrar o conceito de justa causa de despedimento.
Sobre o sentido e alcance desta norma escreveu Pedro Romano Martinez que: “Os interesses patrimoniais da empresa afectados pelo acto culposo do trabalhador não têm de ser avultados, pois o que releva é a quebra na confiança. Daí que sendo os danos patrimoniais irrisórios… pode haver justa causa de despedimento (…). A gravidade dos danos pode relevar para se inferir da impossibilidade de subsistência da relação laboral, mas não é um factor decisivo; ainda que os prejuízos da empresa sejam pouco avultados ou tenham sido ressarcidos (…) – não obsta à existência de justa causa”.
O mesmo autor concretiza de seguida: “De facto, diversamente do plano penal, em que o valor irrisório do dano ou a reposição da situação anterior pode constituir atenuante especial da pena, no âmbito laboral, o montante do dano é um mero elemento de ponderação da quebra de confiança. A lesão de interesses patrimoniais sérios pode até ser meramente potencial, como se tem decidido, em especial, com respeito às situações de violação do dever de não concorrência”.[3]
Tal entendimento, que encontra suporte na enunciação desses deveres, tem merecido acolhimento deste STJ que, relativamente à violação do dever de não concorrência, se tem pronunciado no sentido de que para existir justa causa de despedimento, com fundamento na lesão dos interesses sérios da empresa, basta a potencialidade da lesão desses interesses patrimoniais. [4]
Com efeito, o próprio legislador ao estatuir que o trabalhador está obrigado a guardar lealdade à entidade patronal, não podendo negociar por conta própria ou alheia em concorrência com ela, está a proibir o trabalhador de qualquer actuação que possa entrar em concorrência com a actividade desenvolvida pelo empregador. Proibição que, no dizer de Pedro Martinez,[5] justifica-se por motivos óbvios: “se alguém contrata trabalhadores, não pode estar sujeito ao risco de estes entrarem em concorrência com a sua actividade”.
Na verdade, acrescentamos nós, se a contratação de trabalhadores é feita para contribuir para o desenvolvimento e o sucesso da empresa, seria absurdo aceitar que aqueles pudessem desenvolver actividades susceptíveis de conduzir ao desvio de clientela da própria empresa onde trabalham e, consequentemente, dessa forma, potenciar uma limitação do seu volume de negócios e dos seus proveitos. Quando é sabido que, na execução do contrato de trabalho, os trabalhadores devem colaborar e contribuir para a obtenção de maior produtividade e melhores resultados para o empregador e não constituir um entrave ou bloqueio ao seu crescimento – cf. art. 126º, nº 2, do CT.
4. Para que haja violação do dever de não concorrência é fundamental que exista um desvio de clientela. Só que tal desvio, ao contrário do que se defendeu no acórdão recorrido, não tem de ser efectivo. Basta que seja potencial. Perante os actos praticados ou o comportamento assumido pelo trabalhador, o que determina a violação desse dever é a actividade por ele desenvolvida, tendo-se por verificada quando se considere que é susceptível de determinar desvio de clientes do empregador independentemente do prejuízo causado.
Quer isto dizer que mesmo que esse prejuízo não tenha ocorrido nem por isso deixará de existir violação do dever de não concorrência, não sendo necessário que exista um prejuízo efectivo para o empregador. Este não tem que fazer prova de um desvio de clientela, bastando a perda de confiança no trabalhador. [6]
Em conclusão, a violação do dever de lealdade, na dimensão da proibição da concorrência, não exige a efectividade de prejuízos para o empregador, nem o efectivo desvio de clientela, sendo suficiente um desvio potencial,[7] entendimento que é pacífico a nível jurisprudencial e doutrinário. 5. Apesar do exposto, importa apreciar com mais detalhe esta questão. Há muito que os estudiosos do Direito da Concorrência – na análise das regras e dos quadros fundamentais nos quais a concorrência se deve desenvolver – têm vindo a defender que o seu núcleo essencial, em matéria de concorrência desleal, assenta justamente no acto de concorrência e, portanto, na previsão do interesse da empresa atingida e não na visão do interesse público, como acontece no domínio da defesa da concorrência.[8] Assim, de acordo com a perspectiva classicamente considerada, os interesses a proteger são essencialmente os de natureza económica das empresas atingidas pelos actos ou práticas dos actos de concorrência desleal, sendo certo que as suas regras restritivas e proibitivas se aplicam independentemente do ramo de actividade económica que exerçam.
Em Portugal, à semelhança dos ordenamentos jurídicos Europeus, a concorrência desleal é sancionada em diversos ramos de direito que vão desde os ilícitos penais aos ilícitos civis, com consequências e efeitos jurídicos distintos. Como denominador comum, qualquer acto de concorrência desleal comporta em si mesmo a potencialidade de, objectivamente, contrariar as regras de lealdade que devem presidir e pautar as relações estabelecidas entre as partes em concreto envolvidas, não estando dependente da verificação de um efectivo prejuízo, à semelhança, aliás, do que acontece nalguns ordenamentos jurídicos Europeus. [9]
Efectivamente, o desvalor da acção/e ou do acto e a potencialidade do prejuízo aparecem como factores suficientes para se conceber a prática de actos de concorrência desleal, independentemente da existência e verificação em concreto de um prejuízo.
A este propósito, e pela clareza e oportunidade, não nos dispensamos de transcrever o seguinte excerto da obra de Oliveira Ascensão: “… O prejuízo não é elemento da concorrência desleal. Nem o prejuízo concreto, nem sequer o prejuízo abstracto. Apenas poderá ter funcionado como a ratio ou o fundamento pré-legislativo do instituto da concorrência desleal. Mas a aplicação da regra não depende de nenhuma valoração com base nele. Isto não quer dizer que o prejuízo seja irrelevante. Apenas que não pertence ao conceito. O prejuízo é sempre relevante na apreciação da gravidade do acto. Porque é mais gravoso o acto de que resulta prejuízo do que aquele que o não causa… “.[10]
Por outro lado, a concorrência, actuando no âmbito económico, deve ser medida através de um critério de mercado, ou, como soe dizer-se, deve ser aferida em função da influência sobre a clientela, radicando a deslealdade na violação do dever a que o agente – enquanto sujeito/pessoa singular ou empresa/pessoa colectiva – estava vinculado. Concluindo-se pela existência da prática de actos de concorrência se “o acto tiver a idoneidade de atribuir uma posição relativa vantajosa em termos de clientela, … – ou seja, uma posição favorável no mercado, em detrimento de outra empresa…”.[11]
Quer isto dizer, no que concerne ao trabalhador e à relação juslaboral que o une ao empregador, que não pode negociar ou praticar actos que atentem, em regime de concorrência, com o empregador. A razão de ser é clara: a capacidade profissional, as aptidões do trabalhador e os seus conhecimentos devem ser colocados ao serviço da entidade patronal por força do contrato de trabalho celebrado, adquirindo, através deste, conhecimentos na empresa que não pode colocar simultaneamente ao serviço da concorrência[12], seja negociando por conta própria ou alheia. Assim o impõe o dever de lealdade, nos termos definidos juslaboralmente, sob pena de concorrência desleal. Estando vedado ao trabalhador, “qualquer comportamento que possa constituir um atentado à segurança da posição do dador de trabalho ou prejudicar de outro modo a actividade para cuja realização ele assumiu o compromisso de colaborar”.[13]
Por conseguinte, o trabalhador deve abster-se de qualquer acção contrária aos interesses do empregador e que determinem situações de «perigo» para o interesse deste ou para a organização técnico-laboral da empresa. Foi com essa finalidade – de preservar os interesses do empregador – que o legislador impôs expressamente ao trabalhador, nos termos que constam da alínea f), do nº 1, do art. 128º, do Novo CT, o dever de guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócio.
6. Pode ainda dizer-se que esse dever de lealdade se integra de forma mais vasta no princípio geral orientador da boa fé que deve presidir ao exercício dos direitos e ao cumprimento das obrigações que se estabelecem entre o empregador e o trabalhador em consequência da relação laboral contratualizada pelas partes, e com assento, nomeadamente, no art. 126º, nº 1, do CT. Princípio que remonta aos primórdios do pensamento jusnaturalístico e que se sedimentou no direito, com plena integração nas linhas filosófico-‑jurídicas mais avançadas da era moderna, em consequência do desenvolvimento social, cultural, económico e jurídico dos nossos tempos que reclamam transparência, segurança e certeza jurídicas nas relações contratuais firmadas.
O princípio da boa fé, enquanto princípio geral universalizado, está presente em todos os ramos do direito, nomeadamente nas relações negociais, a exigir rigor, seriedade, transparência e, em suma, a observância dos ditames da boa fé. Sendo, pois, expectável que o comportamento das pessoas envolvidas nessas relações se paute pelo respeito de regras de conduta e pela observância de um conjunto de deveres, de modo a evitar a produção de danos quer em pessoas, singularmente consideradas, quer em pessoas colectivas.[14]
São esses deveres – v.g., de lealdade, de transparência e de boa fé – a que o trabalhador igualmente está vinculado no âmbito da sua relação laboral, que contribuem para garantir, proteger e conservar a situação de confiança mútua indispensável à manutenção da relação laboral. Nessa medida, está vedado ao trabalhador a adopção de comportamentos que contrariem ou atentem contra esses deveres e ponham em causa a lealdade e a confiança que subjazem ao contrato que o vincula ao empregador. O que bem se compreende dada a natureza específica do contrato de trabalho – contrato intuitu personae – e as particularidades decorrentes do vínculo laboral, nomeadamente “os elementos de pessoalidade e de inserção organizacional” que comporta.
No expresso dizer de Maria do Rosário Palma Ramalho, “é este elemento da pessoalidade que explica que a lealdade do trabalhador no contrato de trabalho seja, até certo ponto, uma lealdade pessoal, cuja quebra grave pode constituir motivo para a cessação do contrato. E a componente organizacional do contrato de trabalho justifica que o dever de lealdade do trabalhador não se cifre apenas em regras de comportamento para com a contraparte mas também na exigência de um comportamento correcto do ponto de vista dos interesses da organização”.[15]
Assim sendo, pode concluir-se que o dever de não concorrência resulta inequivocamente do dever de lealdade que impende sobre o trabalhador, estando vedado a este a negociação, por conta própria ou alheia, nas áreas em que possa concorrer com a actividade desenvolvida pelo empregador. É o que acontece, por exemplo, quando as actividades desenvolvidas – quer a do empregador, quer a que o trabalhador venha a abraçar – “se inserem na mesma área e seja susceptível de vir a prejudicar o negócio do empregador, por desviar ou poder desviar clientes ao empregador”.[16]
7. Respaldados nos ensinamentos jurisprudenciais e doutrinários que antecedem, percepciona-se claramente a razão pela qual não podemos sufragar a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães que considerou inexistir, in casu, fundamentos para o despedimento do Autor com base em violação do dever de lealdade e de não concorrência relativamente à sua entidade patronal. Importa, porém, explicitar, com base no acervo fáctico provado, os motivos fundados da nossa divergência.
8. No domínio factual, na parte que releva para a subsunção jurídica, resultou provado essencialmente o seguinte circunstancialismo fáctico: Mas esse facto não impede que se considere que a qualidade de sócio do A. - numa empresa que actua precisamente na mesma área comercial da Ré, sendo concorrente desta no núcleo central da sua actividade – colide com os interesses da Ré, sua entidade empregadora.
Informação a que estava vinculado e que, em nosso entender, se impunha, em observância dos deveres legais de transparência, lealdade e boa fé.
Razão pela qual, sem necessidade de mais argumentação, se conclui que a sanção disciplinar aplicada ao Autor é adequada e mostra-se justificada em face da violação, por aquele trabalhador, do art. 128º, nº 1, alínea f), do CT; e, consequentemente, lícita a sanção do seu despedimento.
Procede, assim, o presente recurso de revista, o que implica a revogação do acórdão da Relação, ficando a subsistir a sentença da 1ª instância que julgou a acção improcedente. IV – DECISÃO:
- Termos em que se acorda, com os presentes fundamentos, julgar procedente a Revista, revogando-se o Acórdão Recorrido e, em consequência, é repristinada a sentença da 1ª instância que julgou a presente acção improcedente e absolveu a R. de todos os pedidos formulados pelo Autor.
- Custas da revista e nas instâncias a cargo do A.
Anexa-se sumário do presente Acórdão.
Lisboa, 9 de Setembro de 2015
Ana Luísa Geraldes (Relatora) Pinto Hespanhol Fernandes da Silva ___________________ [1] Neste sentido cf. Monteiro Fernandes, in “Direito do Trabalho”, 16ª Edição, pág. 482. Em matéria específica do foro laboral vide também Maria do Rosário Palma Ramalho, in “Tratado de Direito do Trabalho” – “Parte II – Situações Laborais Individuais”, 5ª Edição, págs. 433 e segts. |