Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ORLANDO GONÇALVES | ||
Descritores: | RECURSO PENAL HOMICÍDIO DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA CONTRADIÇÃO INSANÁVEL FUNDAMENTAÇÃO LEGÍTIMA DEFESA MEDIDA DA PENA PENA DE PRISÃO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL IRRECORRIBILIDADE DUPLA CONFORME IMPROCEDÊNCIA REJEIÇÃO PARCIAL | ||
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Data do Acordão: | 11/10/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
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Sumário : | I - Os requisitos da legítima defesa respeitam, uns ao lado da agressão e outros ao lado da defesa. II - A legítima defesa só é admissível contra uma agressão atual. A agressão é atual quando “iminente, já se iniciou ou ainda persiste”. Para determinar a iminência ou a atualidade é decisivo o prognóstico objetivo de um espectador experimentado colocado na situação do agente e não a representação subjetiva deste. III - Afastadas ficam, assim, do âmbito da legítima defesa as situações em que, não obstante a agressão não ser ainda iminente, já se sabe antecipadamente, com certeza ou com um elevado grau de segurança que ela vai ter lugar. A chamada teoria da defesa mais eficaz, “segundo a qual a agressão seria já atual momento em que se soubesse que ela viria a ter lugar se o adiamento da reação para o momento em que ela só fosse possível mediante um grave endurecimento dos meios (dita por vezes legítima defesa preventiva)”, não deve, pois, ser acolhida. Para além de dogmaticamente alargar em demasia o conceito de atualidade, a ameaça em causa poderia ser evitada por via do recurso à intervenção da autoridade pública. IV- Do lado da defesa, a ação deve ser necessária, como também têm de o ser os meios utilizados para a defesa e subjetivamente conduzida pela vontade de se defender. V - Já quanto à necessidade subjetivamente conduzida pela vontade de se defender, a intenção de defesa, o chamado “animus deffendendi”, parte da jurisprudência continua a exigir que o agente atue com este animus, muito embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, tais como indignação. Neste sentido, diz-se no acórdão do STJ, de 14-05-2009, que «Essencial, pressuposto estrutural à legítima defesa, é, mesmo, o “animus defendendi”, a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima;…». A verdade, porém, é que a doutrina mais representativa nega a necessidade do chamado “animus defendendi” para a verificação da legítima defesa, defendendo que o elemento subjetivo da ação de legítima defesa se restringe à consciência ou conhecimento da «situação de legítima defesa». | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 39/13.6JABRG.G2.S1 Recurso Penal * Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.
I - Relatório
1. No processo comum, com intervenção de tribunal coletivo nº 39/13.6JABRG, do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., em que é arguido AA e assistentes BB e CC, todos devidamente identificados nos autos, na sequência da prolação de acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, em 24.05.2021, que recaindo sobre acórdão da 1.ª instância de 9.12.2020, rejeitou o recurso dos assistentes quanto à medida da pena e ordenou o reenvio do processo para novo julgamento quanto ao episódio do dia 15.01.2013, pelas 22.00 horas, e para apuramento dos factos omitidos relativos à ocorrência do mesmo dia, no Largo ..., depois de efetuado o ordenado novo julgamento, foi proferido novo acórdão, em 10 de dezembro de 2021, em que se decidiu: Quanto à parte criminal: - Absolver o arguido AA do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. p. pelo art.145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, por referência ao art.132.º, n.º 2, al. h), todos do Código Penal, de que vinha acusado; - Absolver o arguido AA do crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo art.86.º, n.º 1, al. c) da Lei. n.º 5/2006 de 27 de fevereiro, alterada pela Lei n.º 59/2007 de 4 de setembro, 17/2009 de 6 de maio e 26/2010, de 30 de maio, de que vinha acusado: - Absolver o arguido AA do crime de crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, 26.º, 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, al. h), todos do Código Penal, de que vinha acusado; e - Condenar o arguido AA como autor de um crime de homicídio simples, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 3, 131.º, do Código Penal, na pena de 12 (doze) anos de prisão. Quanto à parte cível: - Julgar totalmente improcedente o pedido cível deduzido por BB, absolvendo o demandado do pedido; - Julgar parcialmente procedente o pedido cível formulado pela demandante CC e, em consequência, condenar o demandado AA a pagar-lhe: a) €80.000,00 pela perda do direito à vida e juros de mora desde a presente data até integral pagamento, à taxa de 4% - Portaria n.º 291/2003, de 08.04; b) €25.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos com a morte do filho e juros de mora desde a presente data até integral pagamento, à taxa de 4% - Portaria n.º 291/2003, de 08.04; c) €36.000,00 pela perda de alimentos e juros de mora desde a presente data até integral pagamento, à taxa de 4% - Portaria n.º 291/2003, de 08.04; e - Absolver o demandado AA de todo o restante peticionado pela demandante CC.
2. Não se conformando com esta decisão, dela interpuseram recurso o Ministério Público e o arguido AA, para o Tribunal da Relação de Guimarães, o qual, por acórdão de 26 de abril de 2022, decidiu conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e total provimento ao recurso do Ministério Público e, assim (transcrição): “1) Determina-se que: - o ponto B.12 dos factos não provados do acórdão recorrido passe a constar dos factos provados; - o ponto 20 dos factos provados do acórdão recorrido passe a ter a seguinte redação “20. O DD não parou e quando se encontrava a não mais do que dois metros de distância o arguido AA, com uma arma de fogo de cano comprido, de alma lisa, apontou-a na direção do DD efetuou um disparo, atingindo-o.” 2) Condena-se o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º, nº 1 al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na redação da Lei n.º 12/2011, de 27.04 (em vigor na data da prática dos factos) na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; 3) Mantém-se inalterada a pena de 12 (doze) anos fixada pela primeira instância quanto ao perpetrado crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131.º do CP, com a agravação do artigo 86.º, n.º 3 da Lei da Lei n.º 5/2006, de 23.02; 4) Decide-se efetuar cúmulo jurídico das penas de prisão supra referidas em 2) e 3), ao abrigo do disposto no artigo 77.º do C. Penal, e condenar o arguido na pena única de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão; e 5) Quanto ao mais, decide-se confirmar o acórdão recorrido.”.
3. Inconformado agora com o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, dele vem interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o arguido AA, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição): 1 - O presente recurso tem por objeto: a contradição insanável da fundamentação – artigo 410.º, n.º 2, alínea b); o efeito decorrente desse vício; a subsunção jurídica conexa com a legítima defesa; a medida da pena – aplicação subsidiária; e o pedido de indemnização civil. 2 - Por Acórdão de 09/12/2020, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 3, e 131.º, ambos do Código Penal, na pena de 12 anos de prisão. 3 - Na envolvência do pedido de indemnização civil, foi condenado a pagar à demandante civil, CC, as seguintes quantias, acrescidas de juros: 80 000 € pela perda do direito à vida; 25 000 € a título de danos não patrimoniais sofridos com a morte do filho; e 36 000 € pela perda de alimentos. 4 - No demais, o arguido foi absolvido dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e de detenção de arma proibida. 5 - Inconformados com a sobredita decisão, dela interpuseram recurso o Ministério Público, os assistentes e o arguido. 6 - Por Acórdão de 24/05/2021, o Tribunal da Relação de Guimarães determinou o reenvio do processo para novo julgamento, limitado apenas à subsecutiva materialidade: à totalidade dos factos relativos à ocorrência do dia 15/01/2013, pelas 22 horas, no Jardim ...; e ao apuramento dos factos omitidos relativos à ocorrência do mesmo dia, no Largo ..., conexos com a legítima defesa pretextada pelo arguido. 7 - No restante, o Tribunal da Relação decidiu: rejeitar o recurso dos assistentes relativamente à medida da pena; e considerar prejudicado, nessa oportunidade, o conhecimento das demais questões suscitadas nos recursos. 8 - Realizado o julgamento, no seguimento do reenvio parcial, foi exarado o Acórdão de 10/12/2021, que, inter alia, arredou a legítima defesa invocada pelo arguido. Em resultância dessa apartação, diante da vinculação a que estava subordinado, o tribunal a quo manteve a condenação do arguido, AA, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio simples, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 3, e 131.º, ambos do Código Penal, na pena de 12 anos de prisão. 9 - Na envolvência do pedido de indemnização civil, o tribunal de 1.ª instância manteve a condenação do arguido a pagar à demandante civil, CC, as quantias supraditas. 10 - No que afeta ao crime de ofensa à integridade física qualificada, o arguido, AA, foi novamente absolvido. 11 - No recurso, sinalizou-se a facticidade que o tribunal de 1.ª instância deu como provada, bem como a pertinente motivação (que aqui se consideram descritas). RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO PARA O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES 12 - O arguido, AA, interpôs recurso do Acórdão prolatado no contexto dos presentes autos, que versou sobre a seguinte materialidade: a) contradição insanável da fundamentação; b) o efeito decorrente desse vício; c) pontos de facto indevidamente dados como provados e factos que deviam ter sido considerados assentes, para os efeitos do estabelecido no artigo 412.º, n.º 3, alínea a); d) a subsunção jurídica conexa com a legítima defesa; e) a medida da pena – aplicação subsidiária; f) e o pedido de indemnização civil RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES 13 – O Ministério Público interpôs recurso do Acórdão, no segmento em que absolveu o arguido do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei das Armas. ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES DE 26/04/2022 14 – O Tribunal da Relação de Guimarães, por Acórdão de 26/04/2022, decidiu “conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e total provimento ao recurso do M.P., pelo que: 1) Determina-se que: - o ponto B.12 dos factos não provados do acórdão recorrido passe a constar dos factos provados; - o ponto 20 dos factos provados do acórdão recorrido passe a ter a seguinte redação “20. O DD não parou e quando se encontrava a não mais do que dois metros de distância o arguido AA, com uma arma de fogo de cano comprido, de alma lisa, apontou-a na direção do DD efetuou um disparo, atingindo-o.” 2) Condena-se o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º, nº 1 al. c) da Lei n.° 5/2006, de 23.02, na redação da Lei nº 12/2011, de 27.04 (em vigor na data da prática dos factos) na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; 3) Mantém-se inalterada a pena de 12 (doze) anos fixada pela primeira instância quanto ao perpetrado crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º do CP, com a agravação do artigo 86º, nº 3 da Lei da Lei n.° 5/2006, de 23.02; 4) Decide-se efetuar cúmulo jurídico das penas de prisão supra referidas em 2) e 3), ao abrigo do disposto no artigo 77º do C. Penal, e condenar o arguido na pena única de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão; e 5) Quanto ao mais, decide-se confirmar o acórdão recorrido.” 15 – O presente recurso estriba-se no adjetivado nos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e), in fine, e f), a contrario, 432.º, n.º, 1, alíneas a) e b), e 434.º CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO 16 - A facticidade que o tribunal a quo deu como provada, com ressalto para o vício que ora se invoca, surge nos números 20, 21 e 23. No facto 20, sinaliza-se que o arguido efetuou um disparo, na direção do DD, com uma arma de fogo de cano comprido. De outro lado, nos factos 21 e 23 consta o seguinte: Facto 21 – “O projéctil disparado, com orifício de entrada na face anterior do hemitórax direito, provocou um orifício ovalado, de bordos irregulares contundidos e infiltrados de sangue […] apresentando orla de contusão excêntrica, de maior diâmetro no bordo inferior, aspecto compatível com orifício de entrada de projéctil de arma de fogo de cano comprido […]”; Facto 23 – “Tais lesões resultaram de traumatismo, de natureza perfuro-contundente, tal como o que pode ter sido devido a disparo de arma de fogo de cano comprido. […]” 17 - Na motivação, o Tribunal de 1.ª instância expendeu as sequentes observações: desconhece o tribunal onde o arguido conseguiu obter aquela arma, sabendo apenas que se tratava de arma de fogo. O arguido remeteu-se ao silêncio quanto a esta matéria […] A testemunha EE disse que lhe pareceu ser uma caçadeira de canos serrados. O Sr. Inspector da PJ disse que se tratava de uma arma de canos longos (por contraposição a uma arma de canos curtos), mesmo que aqueles canos estivessem serrados. O tribunal sabe, apenas, que se tratava de uma arma de fogo, apta a disparar. Não se conhecem mais características da arma, podendo afirmar que a munição estava igualmente apta a funcionar, como se comprova pelo resultado que provocou – à vista do exposto, suscita-se o vício referente à contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. 18 - Foram feitas algumas considerações teóricas acerca deste vício. 19 - Do cotejo entre os factos (maiormente o número 20, dado que o 21 e o 23 concernem sobretudo à compatibilidade/possibilidade de a lesão verificada ser devida a disparo de arma de fogo de cano comprido) e a motivação, desponta uma inequívoca antinomia. Com efeito, o tribunal averbou, de forma terminante, que somente conseguiu apurar a subsequente materialidade: que se tratava de uma arma de fogo, apta a disparar; que a munição estava igualmente apta a funcionar; e que não se conhecem mais características da arma. Não obstante, de forma surpreendente, deu como firmado que o disparo foi feito com uma arma de fogo de cano comprido. 20 - Interessa ainda adicionar as seguintes particularidades: a arma em causa não foi apreendida e, por isso, não foi objeto de nenhum exame ou perícia; a testemunha EE, nos termos aduzidos na motivação, afirmou ter a visto a arma de relance; a testemunha FF, inspetor da Polícia Judiciária, não viu a arma; e nenhuma outra testemunha afirmou ter visto a arma. 21 - Não se divisa, assim, por que razão ou com que fundamento o Tribunal de 1.ª instância deu como assente que a arma era de cano comprido – resta, pois, a conclusão de que se trata de uma inequívoca dissonância. 22 - Pode, pois, concluir-se, com solidez, que os anteditos factos (notadamente o 20, visto que o 21 e o 23 foram alocados para o hemisfério da compatibilidade/possibilidade), colidem incompativelmente com a fundamentação da decisão. Existe, por conseguinte, uma contradição insanável entre os indicados factos considerados provados e a motivação que lhe corresponde. 23 - Verifica-se também uma outra contradição ou dessimetria, desta feita entre o facto 19, dado como assente, e a correlativa motivação. 24 - A matéria de facto que o tribunal a quo deu como provada, com valência para o vício indicado, aparece no número 19, cujo texto é o seguinte: “Aí, o DD, com um pau na mão (com 80 cm de comprimento e 3,4 cm de diâmetro), aparentando um propósito ameaçador, deslocou-se na direcção do AA, que se colocou atrás do EE e disse: “PÁRA OU DOU-TE UM TIRO”. 25 - No facto 19 deve ser subtraído o advérbio aparentemente e aditado o excerto subsecutivo, destacado a negrito: “Aí, o DD, com um pau na mão (com 80 cm de comprimento e 3,4 cm de diâmetro), com um propósito ameaçador, deslocou-se na direção do AA, para o agredir corporalmente; perante tal, o arguido colocou-se atrás do EE e disse: “PÁRA OU DOU-TE UM TIRO”; 26 - Tal facticidade, no trecho que deve ser expungido (referente ao advérbio aparentemente) e no excerto aditício (que se deixou ilustrado a negrito), consolida-se, de forma agregada e conexiva, nas ponderações feitas, na motivação, no Ponto E), ii), alíneas a) a e), cujo teor se dá aqui por totalmente descrito. 27 - A matéria de facto descrita no facto 19 está, pois, em total descompasso com a fundamentação da decisão. 28 - Tal significa que o argumentário desenvolvido, a esse respeito, no lance subcitado, pela Relação de Guimarães, se mostra superlativamente friável, hipossuficiente e incabível: “A convicção do tribunal de primeira instância, expressa na motivação da matéria de facto, foi no sentido de que a vítima, quando foi no encalço do arguido, juntamente com o seu irmão GG e a testemunha HH, tinha a intenção de agredir corporalmente o arguido. No entanto, chegado ao local, quando a vítima se dirige ao arguido, não profere qualquer palavra, nem levantou o pau (que levava numa das suas mãos ao longo do seu corpo) para atingir o arguido, não fazendo, por isso, sentido, por ser ilógico, dizer que era para o agredir corporalmente. Nessa medida, considerou provado apenas que a vítima se dirigiu ao arguido com um ar ameaçador, ou seja, aparentado um propósito ameaçador.” 29 - Atente-se, então, nos subsequentes particularismos: o tribunal concluiu que o DD tinha o propósito de agredir corporalmente o arguido, em convergência com o registo de conflitos havidos entre este e a família daquele, sendo certo que, momentos antes, ocorreu um envolvimento físico entre o arguido e o BB (irmão do DD), em que este último sofreu lesões causadas por uma navalha; a vítima estava obstinada e perturbada (note-se que “passou pelo irmão na ponte, não parou, não obstante o irmão estar ferido, seguindo em corrida em direcção a ...”); a vítima levava um pau na mão, com 80 cm de comprimento (que, “pela sua aptidão contundente, tinha potencialidade para ser utilizado como meio letal de agressão” – facto n.º 65), e “era um indivíduo conflituoso” (facto n.º 64); a vítima, após ter visualizado o arguido, nunca sustou a sua marcha em direção a este, não obstante a advertência feita pelo arguido (“para, ou dou-te um tiro”); e o DD aproximou-se até dois metros de distância do arguido. 30 - do somatório de tais constituintes, o que desponta ilógico e inteiramente apartado da realidade é a conclusão extratatada pelo Tribunal da Relação (de que não faz sentido dizer que a vítima se dirige ao arguido para o agredir corporalmente), apenas ancorada na circunstância de a vítima, até à distância de 2 metros do arguido, não ter proferido nenhuma palavra nem ter levantado o pau para atingir o arguido (rectius: não se ter apurado que levantou o pau). 31 - Não é ocioso averbar que a vítima, também momentos antes, passou pelo irmão que estava ferido e nem sequer parou. De outra parte, a volição do DD em atingir a integridade física do arguido colhe-se, de pronto, da sua personalidade; das circunstâncias de facto, tanto objetivas como subjetivas, que rodearam os factos; e da relação que intercedia entre ele e o arguido. 32 - Interessa ajuntar que a conclusão do Tribunal da Relação atinge, inclusive, a absurdidade: com efeito, se o DD, inicialmente, como o Tribunal aceita, tinha a intenção de agredir corporalmente o arguido, e desenvolve, posteriormente, todo o iter descrito, como é que se pode afirmar, de uma forma séria, que, chegado à ocasião almejada, esse propósito se liquefez completamente, como por magia, e deixou de se verificar, por efeito das indigitadas singularidas (que são anódinas, realce-se)!!!? 33 - De facto, esse desfecho é impertinente e colide com os critérios de normalidade e as regras da experiência (de seguida, foi feito uma pequeno excurso sobre a prova da intenção). 34 - No caso em tela, a imbricação das especificidades relatadas permite asseverar, de forma inconcussa, que a intenção do DD sempre foi, desde o início até à altura em que foi atingido, a de agredir corporalmente o arguido. 35 - Ocorre, portanto, uma contradição insanável entre o facto considerado provado em 19 e a fundamentação apropositada. EFEITO DECORRENTE DOS VÍCIOS INDIGITADOS. 36 - Dado que os vícios em tela podem ser sobrepujados sem o reenvio do processo, deverá firmar-se o seguinte: - nos factos 20, 21 e 23, apenas poderá ser considerada a referência a arma de fogo – e não também a menção a arma de fogo de cano comprido; e - o facto 19 deverá passar a ter a seguinte redação: “Aí, o DD, com um pau na mão (com 80 cm de comprimento e 3,4 cm de diâmetro), com um propósito ameaçador, deslocou-se na direção do AA, para o agredir corporalmente; perante tal, o arguido colocou-se atrás do EE e disse: “PARA, OU DOU-TE UM TIRO!” SUBSUNÇÃO JURÍDICA CONEXA COM A LEGÍTIMA DEFESA 37 - Nesta esfera, foram transcritas as passagens, sinalizadas no Acórdão da 1.ª instância, atinentes às reflexões teórico-jurídicas desenvolvidas no contorno do Acórdão do STJ de 18 de abril de 2018 e na tese de mestrado de Sílvia Cascão Ferreira, com as quais se concorda na sua quase totalidade. 38 - O tribunal da 1.ª instância subsumiu a conduta do arguido à figura da legítima defesa preventiva e, por isso, subtraiu-lhe relevância – dessa forma, perspetivou os factos de modo absolutamente errado, atópico e desarrazoado. 39 - A figura da defesa preventiva surgiu da necessidade de dar resposta às situações em que, não obstante a agressão não ser ainda sequer iminente, já se sabe antecipadamente, com certeza ou com um elevado grau de segurança, que ela vai ter lugar; a legítima defesa preventiva exige a ilicitude da agressão, manifestada já na prática de atos executórios, por sua vez puníveis e suscetíveis de vir a produzir um resultado típico. O que está em causa na legítima defesa preventiva são situações objetivas de perigo de agressão próxima, certa e previsível do ponto de vista do concreto ameaçado de agressão, seguramente, mas também, observado o contexto em que se pratica, da perspetiva da experiência comum, isto é, das inferências que a comunidade retira daquela específica situação. 40 - Por defesa preventiva, entendem-se aquelas circunstâncias em que a defesa se adianta à existência da agressão, porque esta ainda não reveste o caráter de iminente nem de atual. 41 - Na situação dos autos não ocorreu uma situação de legítima defesa preventiva – verificou-se, reversamente, um episódio de agressão plenamente atual (iminente) por parte do DD, que foi repelida, como meio necessário, pelo arguido. No caso sub judice, podia configurar-se uma legítima defesa preventiva, se o arguido, por exemplo, logo que avistasse o DD e sem que este o visse, disparasse na sua direção, antecipando-se a uma previsível agressão do DD 42 - O Tribunal da 1.ª instância intermisturou, de forma espúria, o condicionalismo da legítima defesa preventiva com a particularidade de o arguido, em face das circunstâncias ocorridas, se ter munido de uma arma de fogo. 43 - Por sua vez, o Tribunal da Relação da Guimarães, conquanto não o tenha dito expressamente, aparenta ter arredado o cavalo de batalha do Tribunal de 1.ª instância, corporificado na legítima defesa preventiva. 44 - É certo que o arguido, ante o conflito verificado e as situações anteriores de confrontos físicos, se muniu de uma arma de fogo. Todavia, o arguido agiu num contexto de clarividente legítima defesa e tudo fez para evitar o lamentável resultado. 45 - Conforme emerge da motivação, ocorreu um episódio com gravidade, por efeito da utilização de uma navalha; acresce que havia situações de confrontos físicos anteriores – diante disso, o arguido sabia naturalmente que o pai e os irmãos do BB já tinham conhecimento do ocorrido momentos antes (factos 5 e 6). E anteviu, com total acerto, a possibilidade de eles se dirigirem para o local onde residia. 46 - Na decisão, acrescentou-se que o arguido, antevendo a agressão, preparou a respetiva a defesa da munindo-se de um meio mais poderoso (uma arma). Trata-se de uma asserção infeliz e equivocada. Na verdade, quando o arguido se muniu da arma de fogo, ignorava naturalmente quais os instrumentos que o BB e/ou os irmãos pudessem trazer consigo. 47 - O Tribunal de 1.ª instância ampliou que “a defesa contra o que se veio a verificar ser uma ameaça com um pau de 80 cm de comprimento e 3,4 cm de diâmetro só veio a verificar-se necessária porque o arguido se deslocou para um local público, permitindo que a agressão pudesse acontecer.” Tal observação não corresponde igualmente à verdade. De facto, posterga, por exemplo, que a testemunha GG, irmão do DD, disse que, “se não tivesse havido o tiro, haveria pancadaria”; e a própria convicção, formada pelo Tribunal, de que a intenção do DD era agredir corporalmente o arguido. Não se pode preterir, do mesmo modo, a conduta persistente e obcecada do DD, quando se dirigiu para o local onde o arguido residia. É evidente que, nessa contextura, se o arguido permanecesse em casa, nada deteria o DD de se introduzir, de alguma forma, na casa dele. E pergunta-se então: nesse caso, se o arguido estivesse munido de uma arma de fogo e ocorresse o que sobreveio na alameda, não seria legítima defesa? Parece que aí o tribunal já não teria dúvidas em afirmar a legítima defesa. 48 - O tribunal aparenta configurar um maniqueísmo inaceitável, em que diaboliza o arguido e desculpabiliza totalmente a atitude do DD. 49 - A intenção de matar, mesmo com dolo direto (sendo certo que, na situação em pauta, se figura um condicionalismo referente ao dolo eventual), é conciliável com a intenção de defesa. 50 - Noutro plano, um eventual recurso às autoridades estava vocacionado ao fracasso: de um lado, se o arguido comunicasse à polícia o ocorrido e o receio que tinha, essa autoridade dir-lhe-ia para apresentar uma queixa; de outra parte, em vista dos referentes indiciários e da urgência que o caso requisitava, o auxílio policial jamais seria obtido imediatamente – atente-se no exíguo hiato temporal que se interpôs entre os facto referidos em 5 e 6 e a chegada ao local do DD, do GG e do HH 51 - Uma eventual fuga, por parte do arguido e dos seus familiares, antes de surgirem no local o BB e/ou os seus irmãos, também não podia ser aqui cogitada – haja vista a rapidez vertiginosa com que os factos intercorreram (foram feitas algumas reflexões no que concerne à fuga). 52 - Foi o DD, acompanhado do irmão GG e da testemunha HH, que se dirigiu ao local onde o arguido residia – id est, não foi o arguido que procurou o DD. 53 - Pelo que tange à dinâmica dos factos no Largo ..., ..., verifica-se que foi o DD que se dirigiu ao arguido, com um propósito ameaçador e de o atingir corporalmente, com um pau, que tinha potencialidade aptidão letal. 54 - Por seu turno, o arguido, em face da aproximação do DD, posicionou-se atrás da testemunha EE e advertiu o DD para não avançar; na altura, disse-lhe: “para, ou dou-te um tiro!” Ou seja: o arguido não deu causa à agressão; pretendia, antes, com a advertência que lhe fez, que o DD se afastasse. 55 - O arguido somente disparou quando o DD, sem deter a sua marcha, estava praticamente em cima dele. Registe-se que, tendo em conta o passo apressado de um homem médio (passo esse correspondente a 1,20 m), o comprimento do braço, a que acrescia o tamanho do pau apreendido nos autos, era totalmente provável, quando o arguido disparou, que o DD DD, caso não tivesse ocorrido o disparo, conseguisse atingir o arguido com o pau no corpo. 56 - O arguido apenas fez um disparo, e tal ocorreu para fazer cessar uma agressão totalmente iminente. 57 - A Relação de Guimarães intentou excluir a iminência da agressão. 58 - O quid é que a Relação de Guimarães evidenciou um raciocínio entrópico e inconexo, porquanto, não obstante ter partido de premissas teoréticas, de facto, corretas, não as logrou soto-pôr ao caso concreto. E, nesse consectário, ao fazer uma representação truncada e inobjetiva, declarou erradamente que a agressão, por banda da vítima, não era iminente. 59 - Exsurge linear que o prognóstico objetivo de um espectador experimentado (um terceiro exterior) colocado na situação do agente seria o de prefigurar que a agressão, por parte do DD ao arguido, se seguiria de imediato. Nesse diapasão, repristinam-se aqui, para todos os efeitos, as reflexões feitas no Ponto E, ii), alíneas a) a e), do presente recurso. 60 - Na situação em exame, a intenção do DD foi exteriormente acionada – tanto vale por dizer que sobreveio inexoravelmente a iminência da agressão. Para o efeito, reconsideram-se, pelo seu valimento, além das prefaladas cogitações, as particularidades balizadas no número 27 destas conclusões. 61 - Da conjunção holística de tais parcelas, apenas se pode concluir, de forma objetiva, pela iminência da agressão, por parte do DD ao arguido, de sorte que o veredito da Relação de Guimarães não merece, pois, acolhimento, 62 - Por derradeiro, não se provou que o arguido tenha visado o peito do DD e que tenha agido com o propósito de lhe tirar a vida. 63 - Em resultado da justaposição das circunstâncias enunciadas, na sua dimensão poligonal, verifica-se que o arguido utilizou um meio necessário para repelir uma agressão atual e ilícita – agiu, assim com um animus deffendendi, pelo que prospera translucidamente a legítima defesa invocada. 64 - Na pressuposição de o arguido não ter agido como o fez, eventualmente podiam estar agora invertidos os papéis: o arguido seria então o falecido, e o DD figuraria como arguido. 65 - O arguido agiu com a intenção de se defender, para, desse modo, impedir que o DD lhe pudesse causar um mal marcante, referente à sua integridade física ou à sua vida. 66 - Em face do circunstancialismo apurado, conclui-se que a conduta do arguido se revelou um meio necessário para repelir uma agressão atual e ilícita da sua integridade física ou da sua vida, constituindo uma ação de legítima defesa. Mostra-se, pois, excluída a ilicitude (cf. o artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal), não sendo o pertinente facto, por tal razão, criminalmente punível. 67 - Caso assim se não se entenda – o que não se concede, note-se –, em face dos referentes verificados, e se perspetive uma situação de excesso de meios, é imperativo que tal resultou de medo não censurável por parte do arguido – daí que por esta via esteja excluída a pena. 68 - Na pressuposição, que também não se outorga, de se perspetivar a aplicação do artigo 33.º, n.º 1, do Código Penal, a pena devia então ser especialmente atenuada – por efeito dessa atenuação, a moldura abstrata passaria a corresponder a uma pena de prisão de 1 ano e 7 meses a 10 anos e 8 meses (ver o artigo 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal. CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA 69 - A propósito dessa matéria em tela, foi invocada uma contradição insanável da fundamentação, ao abrigo do adjetivado no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), que se acha aqui totalmente traçada. 70 - Tirante o indigitado segmento, o Acórdão de 1.ª instância exarado, ao absolver o arguido do crime de detenção de arma proibida, mostra-se plenamente acertado – não merece, ipso facto, nenhum reparo. 71 - Adversamente, a orientação da Relação de Guimarães, ao condenar o arguido pela prática de tal crime, figura-se desarrazoada. 72 - Foi feito um excurso teórico-jurídico acerca do crime de detenção de arma proibida, que aqui se considera representado. 73 - Além das ponderações feitas pelo tribunal de 1.ª instância, incumbe assuntar as subsequentes especificidades: a arma em causa não foi apreendida e, por isso, não foi objeto de nenhum exame ou perícia; a testemunha EE afirmou ter a visto a arma de relance; a testemunha FF, inspetor da Polícia Judiciária, não viu a arma e, por isso, as reflexões que fez em julgamento, em torno da arma, correspondem a meras presunções, embasadas num mero exercício teórico (ou seja, não estribadas em factos concretos); e nenhuma outra testemunha afirmou ter visto a arma. 74 - Está-se, por conseguinte, perante uma arma de fogo, sem que, porém, se tenha conseguido identificar especificamente de que arma de fogo se trata, pois que se desconhecem as suas concretas características, notadamente o calibre, o comprimento do cano, os projéteis que podia expelir, etc. Posto isso, mostra-se coinquinada a afirmação, a que se aferra o Tribunal da Relação, de que se trata de uma arma de fogo de cano comprido. 75 - A referência ao relatório de autópsia, para ancorar o comprimento do cano da arma, é absolutamente equívoca e incabível, sendo certo que a perícia que lhe subjaz não se correlaciona com esse tipo de item, sc., não é uma perícia de arma, nem os peritos médico-legais estão habilitados para o efeito. 76 - Não é também abnóxio aclarar que não há munições para uso exclusivo em armas curtas ou longas – significa isso que inexiste, cada vez menos, uma relação direta entre o tamanho ou o tipo de armas e o calibre que disparam. 77 - Conquanto se saiba que se tratava de arma de fogo real, a verdade é que não se conhecem as pertinentes características. Ignora-se, designadamente, se era uma arma de fogo curta ou longa, uma espingarda, uma carabina, uma arma de fogo transformada e, não o sendo, qual a classe que lhe corresponde (poderia inclusive, no limite, ser uma arma de guerra) – nesse condicionalismo, não se pode reconduzir a conduta do arguido às alíneas do n.º 1 do artigo 86.º 78 - Pode, pois, concluir-se que a prova realizada não legitima a asseveração de que a arma em pauta era uma arma de fogo de cano longo/comprido ou uma arma de canos serrados. 79 - O Tribunal de 1.ª instância, ao decidir nos termos em que o fez, no que corresponde ao crime de detenção de arma proibida, ressalvada a materialidade que foi objeto de arguição por contradição insanável da fundamentação, mostra-se plenamente certeira. 80 - Reversamente, o Tribunal da Relação de Guimarães, ao condenar o arguido pelo crime de detenção de arma proibida, violou o estabelecido no artigo 86.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006 de 27 de fevereiro, alterada pela Leis n.º 59/2007, de 4 de setembro, 17/2009, de 6 de maio, e 26/2010, de 30 de maio. MEDIDA DA PENA – APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA 81 - Pelo tocante à determinação da medida concreta da pena, foi feito um excurso teórico-jurídico, a abranger, além do mais, o seguinte: a culpa e prevenção; as finalidades das penas; e as exigências de prevenção. 82 – Em face da moldura perspetivada pelo Tribunal, conforma-se adequada que a pena seja fixada em 10 anos de prisão; no pressuposto da aplicação do artigo 33.º, n.º 1, do Codigo Penal, a pena deve fixar-se entre 4 anos e 6 meses e 5 anos de prisão e deve ser suspensa na respetiva execução. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL 83 - Ocorrendo uma situação de legítima defesa, a consequência será naturalmente a improcedência do pedido de indemnização civil deduzido 84 - Porém, num quadrante subsidiário, sempre se amplia que as quantias arbitradas, à assistente, pela perda do direito à vida e a título de danos não patrimoniais sofridos com a morte do filho, são absolutamente exageradas. 85 - Perante tal, conformam-se mais ajustados os subsecutivos montantes: 60 000 € pela perda do direito à vida; e 20 000 € a título de danos não patrimoniais sofridos com a morte NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, deve ser dado provimento ao recurso e, por via dele, ser revogado o Acórdão recorrido nos exatos termos definidos na presente peça. Consequentemente, devem ser reconhecidos os vícios indigitados e a legítima defesa invocada e, no consectário, deve o arguido ser absolvido do crime de homicídio. Subsidiariamente, nos termos indicados no recurso, deve ser reduzida a pena aplicada e devem ser diminuídos os montantes arbitrados no recorte do pedido de indemnização civil.”.
4. O Ministério Público, na resposta que apresentou na 2.ª instância ao recurso interposto pelo arguido AA, enunciou as seguintes conclusões (transcrição): 1. O recurso do arguido para o STJ e relativo à sua condenação pela autoria do crime de detenção de arma proibida, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão é também admissível ante a nova redacção da alínea e) do n.º1 do art.º400 do CPPenal introduzida pela Lei 94/2021, de 21/12, e em vigor desde 21/03/2022; 2. A nova redacção dada ao art.º 434 e ao art.º 432, n.º1, al. a) do CPPenal por via da predita Lei, o recurso interposto pelo arguido para o STJ visa não só o reexame de matéria de direito, como também, e com plena autonomia, isto é, fora da firmada jurisprudência consensual do dito tribunal superior, o conhecimento por este de algum dos vícios previstos no art.º 410, n.ºs 2 e 3 do mesmo CPPenal; 3. Não possui a decisão recorrida o vício previsto na alínea b) do n.º2 do citado art.º 410 – contradição insanável da fundamentação, porquanto não existe desarmonia ou qualquer irracionalidade entre o facto provado sob o ponto 20 que assegura que o arguido recorrente fez uso de um “arma de fogo de cano comprido”, e a circunstância, também provada, de não ter havido apreensão da arma de fogo usada pelo recorrente na morte da vítima, pois que em função da perícia médico-legal realizada, esta conclui que a munição usada na morte da vítima se tratava de um cartucho provido de uma bucha em plástico, bucha apreendida na autópsia da vítima, impondo a existência desta a incontornável afirmação de que de que o arguido recorrente fez uso, então, de uma arma de fogo de cano comprido; 4. Não possui o acórdão o dito vício, também porque nenhum facto de interesse para a decisão da causa foi julgado como provado e como não provado, porque não existem factos entre si incompatíveis e porque, efectivamente, a fundamentação aduzida se harmoniza plenamente com a decisão tomada; 5. Apresentando-se imodificada a matéria de facto, dela não decorre a verificação de uma causa de exclusão da ilicitude do arguido, a por si invocada legítima defesa, ou até o seu excesso, por inexistência nela de factos que a reclame e obrigue – art.º 32 do CPenal; 6. Restringindo o recorrente a questão da medida da pena à afirmação da desejada, mas subsidiária, verificação de um excesso de legítima defesa, em face da inexistência de uma legítima defesa, nos termos referidos, então o seu propósito pauta-se pela inconsequência quanto a este concreto tema, pois que só há excesso de legítima defesa se, preenchidos os requisitos desta, houver destempero nos meios usados, ou aquele for determinado por perturbação, medo ou susto. 7. E assim sendo, e porque o arguido recorrente não põe em causa a pena única fixada, a mesma deverá manter-se. 8. Então, nenhuma censura merece o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães colocado sub judice, que, por isso, deverá ser confirmado.
5. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça, emitiu parecer no sentido de que o douto acórdão recorrido, ao confirmar – e modificar – a decisão da 1ª Instância, o fez de forma inteiramente justificada, pelo que o recurso deverá improceder.
6. Dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., respondeu o arguido AA ao douto parecer, declarando dissentir integralmente do posicionamento assumido pelo Ministério Público e renovado o entendimento de que o recurso por si apresentado deve ser julgado procedente.
7. Colhidos os vistos, foram os autos presentes à Conferência.
II - Fundamentação
8. A matéria de facto apurada e respetiva motivação constante do acórdão recorrido é a seguinte (transcrição)[1]: Factos provados “1. Entre o arguido AA, também conhecido pela alcunha de “II” e o falecido DD ocorreram, anteriormente à data dos factos infra descritos, episódios de confronto físico entre ambos, sendo que no final do mês de Dezembro de 2012, o ora arguido envolveu-se também, junto à discoteca/bar “B...”, em ..., em confrontos físicos com o ora ofendido BB. 2. No dia 15 de Janeiro de 2013, pelas 22.00h, o BB deslocava-se, juntamente com o HH e em veículo automóvel conduzido por este, nas imediações do Jardim ..., em .... 3. Por razões desconhecidas HH imobilizou o veículo que conduzia junto a uma loja aí existente. 4. O assistente BB saiu do veículo. 5. De forma não concretamente apurada o assistente BB e o arguido AA envolveram-se fisicamente, tendo daí resultado para aquele assistente: Crânio: ferimento na região temporal do couro cabeludo direito e região préauricular com 7x1 cm suturada e sem sinais inflamatórios; Face: ferimento linear suturado com infiltrado sanguíneo em forma de “L” com 5x4 cm na região mandibular e mentoniana. 6. As lesões supra-referidas foram causadas pela navalha de abertura manual, com lâmina de um gume, com uma inscrição na lâmina de “... ...”, feita em material inoxidável, com o comprimento de 8 cm, sendo o cabo composto por duas platinas em madeira de cor castanha, com o comprimento de 10 cm, o que perfaz um comprimento total de 18 cm, na altura empunhada pelo arguido AA. 7. Tais lesões são susceptíveis de determinar um período de vinte (20) dias para a cura, sendo um (1) com afectação da capacidade para o trabalho geral e quinze (15) com afectação da capacidade para o trabalho profissional. 8. O assistente BB, em consequência das condutas descrita em 5) e 6), sofreu dores nas zonas atingidas. 9. Após o ocorrido em 2) a 5), o arguido dirigiu-se para a sua residência. 10. Logo após, o pai e os irmãos (GG e DD) do assistente BB foram informados do confronto acabado de acontecer, tendo-lhes sido transmitido que o BB tinha sido “esfaqueado pelo Nó” 11. Entretanto, o BB e o HH, quando regressavam a ..., nas imediações da ..., ..., viram os dois irmãos do BB - GG e DD, que já tinham saído de casa, e o pai do BB, que, entretanto, chegou. 12. Daí, o BB deslocou-se, juntamente com o seu pai, para o Hospital ... e o GG, o DD e o HH, em passo apressado, dirigiram-se para a residência do arguido AA para o confrontar com os factos descritos em 5) e 6). 13. Entretanto, o arguido AA saiu de casa e dirigiu-se para a entrada do prédio sito no Largo ..., .... 14. Tal local situa-se imediatamente ao lado do bloco de apartamentos em que se integrava a casa do arguido e tratava-se de uma galeria que permitia a quem ali estivesse controlar a chegada de quem viesse de carro, pela estrada, ou a pé, provindo das escadas. 15. Cerca das 23.00h/23.15h, o DD, o GG e o HH chegaram, a pé, junto do local referido em 13 e 14, sendo que o DD seguia alguns metros à frente do GG e do HH. 16. O arguido AA, nessa altura, encontrava-se defronte da porta de entrada do prédio sito no Largo ..., ..., local onde se encontrava também, à espera de um amigo, EE, sendo que aquele dizia “eles vão-me foder, filhos da puta, andam atrás de mim”. 17. Após o DD ter acabado de subir umas escadas situadas nas traseiras do prédio do AA dirigiu-se para a entrada indicada em 13. 18. Pelo menos nessa altura o arguido e o DD avistaram-se. 19. Aí, o DD, com um pau na mão (com 80 cm de comprimento e 3,4 cm de diâmetro), aparentando um propósito ameaçador, deslocou-se na direcção do AA, que se colocou atrás do EE e disse: “PÁRA OU DOU-TE UM TIRO”. 20. O DD não parou e quando se encontrava a não mais do que dois metros de distância o arguido AA, com uma arma de fogo de cano comprido, de alma lisa, apontou-a na direcção do DD efectuou um disparo, atingindo-o[2]. 21. O projéctil disparado, com orifício de entrada na face anterior do hemitórax direito, provocou um orifício ovalado, de bordos irregulares contundidos e infiltrados de sangue, com visualização das estruturas ósseas e orgânicas subjacentes, medindo 5 por 4 centímetros de maiores dimensões, situado a 5 centímetros do mamilo direito a um ângulo de 45 graus, a 5,5 centímetros do bordo do esterno, a 20,5 centímetros da cicatriz umbilical e a 10,6 centímetros da linha axilar anterior em linha recta, apresentando orla de contusão excêntrica, de maior diâmetro no bordo inferior, aspecto compatível com orifício de entrada de projéctil de arma de fogo de cano comprido; envolvendo toda a face lateral do hemitórax direito, observou-se área de equimose azulada, com hematoma associado, com 12 por 9 centímetros de maiores dimensões. 22. O projéctil disparado penetrou na cavidade torácica da vítima DD, com direcção da direita para a esquerda, ligeiramente de baixo para cima e de anterior para posterior, provocando uma solução de continuidade ovalada, de bordos irregulares infiltrados de sangue, com 8 por 6 centímetros de maiores dimensões de maior eixo horizontal nos tecidos da parede anterior do hemitórax direito e com 10 por 8 centímetros de maiores dimensões no plano muscular do mesmo hemitórax, com trajeto penetrante na cavidade torácica, bem como, no abdómen, lacerações múltiplas da cápsula hepática da face súpero-anterior do lobo direito, com infiltração sanguínea e extensão ao parênquima subjacente com perda de substância. 23. Tais lesões traumáticas torácicas e abdominais, foram a causa directa e necessária da morte de DD, conforme o descrito no relatório de autópsia de fls. 392 a 395 que, no mais, aqui damos por reproduzido e onde se conclui que: “- Tais lesões resultaram de traumatismo, de natureza perfuro-contundente, tal como o que pode ter sido devido a disparo de arma de fogo de cano comprido. - Esta é causa de morte violenta. - Os “grãos de chumbo” terão descrito um trajecto na cavidade torácica da vítima da direita para a esquerda, ligeiramente de baixo para cima e de anterior para posterior. - As características do orifício de entrada (orifício único) bem como a presença da “bucha” no interior do corpo da vítima, são compatíveis com disparo efectuado a curta distância.” 24. A arma usada pelo arguido encontrava-se em condições de funcionamento e apta a disparar munições reais. 25. O arguido AA muniu-se da arma para o caso do BB e/ou os irmãos virem confrontá-lo com os factos referidos em 5 e 6. 26. A arma em causa não está manifestada, nem registada em nome do arguido. 27. O arguido AA não tem licença de uso e porte de arma de defesa ou de qualquer outra natureza. 28. Tinha o arguido tinha perfeito conhecimento da natureza e características da arma e munições. 29. O arguido AA muniu-se da arma para o caso do BB e/ou os irmãos virem confrontá-lo com os factos referidos em 5 e 6, apontou-a na direcção do DD e efectuou um disparo, atingindo-o no tórax, admitindo como possível que da sua conduta resultasse a morte de DD, conformando-se com esse resultado. 30. Mais sabia o arguido ser toda a sua conduta proibida e punida por lei penal. Mais se provou, com interesse para a decisão da causa: 31. AA nasceu em ..., ..., tendo o seu processo de desenvolvimento e decorrido no contexto do seu agregado familiar de origem, constituído pelos pais e mais quatro irmãos, sendo o arguido o mais novo dos descendentes. 32. Quando contava 7 anos de idade a sua progenitora faleceu vítima de doença oncológica, pelo que a partir de então passou a viver no agregado dos seus padrinhos de baptismo, tios paternos e sem filhos. 33. Contudo, manteve residência junto do seu progenitor, dos restantes irmãos e família alargada, nomeadamente tios e avós paternos. 34. A economia familiar assentava na actividade exercida pelo pai, pescador, que trabalhava para o avô do arguido, proprietário de vários barcos de pesca, e para quem todos os membros da família trabalhavam. 35. O agregado vivenciava uma conjuntura socioeconómica de algum conforto. 36. A dinâmica familiar vivenciada pelo arguido era funcional e estável, caracterizando- se pelo equilíbrio e adequação relacional entre os vários núcleos familiares, debaixo da figura patriarcal do avô paterno, falecido em 2019. 37. O percurso escolar de AA decorreu em ... até aos 11 anos de idade, com uma reprovação no 5.º ano de escolaridade devido à mudança de residência para ..., ..., local para onde os seus padrinhos de baptismo foram residir. 38. Habilitou-se então com o 9.º ano de escolaridade e abandonou definitivamente o seu percurso escolar. Durante as férias escolares exercia funções na área da restauração. 39. Aos 16 anos iniciou o seu percurso laboral e exerceu várias actividades, a maioria das quais na área da restauração, mas também como funcionário de um supermercado no ..., onde permaneceu pelo período de 1 ano. 40. Aos 19 anos decidiu emigrar para o ... onde residiam e trabalhavam as suas irmãs mais velhas, País onde permaneceu durante três anos. Manteve-se profissionalmente activo na área da restauração, mas as dificuldades com a língua determinaram a sua opção em trabalhar numa empresa de distribuição de produtos alimentares. 41. Aos 22 anos regressou a ... para a casa de uma outra irmã. Depois de frequentar um curso de formação como soldador, promovido pelos E... de ..., passou a exercer funções nesta área como funcionário da empresa e aí permanece durante quatro anos consecutivos. 42. O arguido foi abrangido pelo despedimento colectivo ocorrido nos E..., no entanto, continuou a exercer a profissão de soldador junto de outras empresas do sector, quer em Portugal quer noutros países da Europa. 43. Em 2005 iniciou uma relação de namoro com JJ, cabeleireira, com quem vive em união de facto, existindo desta união um filho. O agregado constituído residia em ..., ambos estavam profissionalmente activos e vivenciavam uma situação económica alicerçada nos seus salários, criteriosamente geridos para assegurar as despesas familiares. 44. A dinâmica familiar era equilibrada e coesa. O quotidiano do arguido era essencialmente dedicado ao exercício profissional e os tempos livres ao acompanhamento do filho e convívio com a família. 45. No período a que se referem os factos constantes na acusação, AA continuava a residir com a companheira e o filho, em ..., ..., na casa dos seus padrinhos de baptismo, sem encargos. 46. Habitação localizada numa zona com problemáticas sociais relevantes, onde residia também a sua família alargada, nomeadamente avós e tios. 47. O arguido exerceu actividade laboral regular como soldador, quer na empresa metalúrgica “M...”, quer noutras empresas da região, através das quais se deslocava para a ... ou ..., para trabalhar por curtos períodos de tempo. 48. Na sequência dos factos de que se encontra acusado (Janeiro de 2013), AA decidiu sair do país acompanhado pelo agregado constituído, mantendo-se com paradeiro desconhecido, até à sua detenção, em Julho de 2019. 49. Durante este período de tempo, o arguido manteve residência com a companheira e filho, actualmente com 11 anos de idade. 50. Enquanto contumaz, não podia exercer actividade profissional regularizada, pelo que se dedicava à prática de Muay Thai, arte marcial, e foi convidado pelo proprietário do ginásio onde treinava, para a ensinar grupos de crianças que frequentavam o mesmo espaço. Era recompensado financeiramente. 51. Pontualmente, realizou alguns biscates como pintor na construção civil, mas foi a sua companheira, com uma gestão criteriosa dos seus rendimentos, enquanto cabeleireira, que garantiu o pagamento das despesas básicas da família. 52. AA continua a beneficiara de apoio do agregado constituído (companheira) e poderá contar também com o apoio de retaguarda dos restantes familiares, nomeadamente o progenitor, irmãs e tios, que se disponibilizam para o apoiar, quer em meio prisional quer em meio livre. 53. No estabelecimento prisional o arguido assume comportamentos adequados às normas da instituição, e beneficia de visitas dos seus familiares mais próximos. 54. O arguido sinaliza como repercussões do presente processo judicial a perda de liberdade, e o impacto da presente situação processual na sua família, ainda que sem perda do seu apoio. 55. O arguido sofreu as seguintes condenações: (i) Processo n 127/06...., crime de condução em estado de embriaguez praticado em 17.03.2006, decisão de 17.03.2006, pena de 90 dias de multa, substituída por trabalho a favor da comunidade, já extinta. (ii) Processo no 2/07...., crime de condução sem habilitação legal praticado em 02.01.2007, decisão de 13.06.2007, pena de 100 dias de multa, extinta pelo pagamento. (iii) Processo no 387/11...., crime de condução sem habilitação legal praticado em 14.05.2011, decisão de 11.07.2011, pena de 100 dias de multa, extinta pelo pagamento. Do pedido cível: 56. O assistente BB sentiu dores na zona da orelha e por baixo do queixo. 57. O assistente BB, à data, trabalhava na pesca à lampreia- Janeiro a Abril. 58. Ganhava cerca de €200,00/250,00 por semana. 59. DD trabalhava na pesca da lampreia, robalo e polvo. 60. Na pesca da lampreia ganhava cerca de €200,00/250,00 por semana. 61. Na pesca do robalo, polvo, ganhava cerca de 100,00 a 150,00 por semana. 62. DD era amigo da mãe, a assistente CC, vivendo com esta, com o marido e com três irmãos. 63. DD entregava à mãe, mensalmente, como comparticipação das despesas, a quantia de €100/150,00. Da discussão da causa: 64. O DD era um indivíduo conflituoso. 65. O predito pau, de que o DD era portador, pela sua aptidão contundente, tinha potencialidade para ser utilizado como meio letal de agressão. 66. Em nenhum momento o DD ergueu o pau de que era portador. * Facto provado que resulta da parcial procedência do acórdão recorrido[3]: - De outro lado, o apartamento onde o arguido e a sua família residiam não oferecia visibilidade para esse local. Factos não provados: Da instrução e discussão da causa resultaram não provados os seguintes factos: B.1. Que no momento referido em 2) o arguido AA tenha visto o BB e o HH e tenha feito sinal para pararem. B.2. Que o arguido AA se tenha aproximado do lugar de pendura – onde se encontrava o BB – encostando-se à respectiva porta, procurando abri-la. B.3. Que o assistente BB tenha aberto a porta e saído do veículo, momento em que verificou que o arguido AA empunhava, na mão esquerda, um objecto contundente, tipo “navalha”. B.4. Que o arguido AA, com a “navalha” referida nos autos empunhada, se tenha aproximado do BB e lhe tenha desferido, de imediato e sem que este o conseguisse evitar, um golpe com a mesma, golpe este que o atingiu na zona da orelha. B.5. Que, em reacção e a fim de evitar ser atingido com novos golpes de navalha, o BB tenha agarrado os pulsos do arguido, sendo que este conseguiu libertar-se, momento em que desferiu novo golpe com a navalha no corpo do BB, atingindo-o, desta vez, por baixo do queixo – fugindo, logo após, do local. B.6. Aquando do referido em 2) a 5), o arguido actuou para se defender da agressão levada a cabo pelo assistente BB. B.7. Aquando do referido em 2) a 5), o arguido não actuou para se defender da agressão levada a cabo pelo assistente BB. B.8. Seguidamente aos factos ocorridos entre eles, no dia 15 de Janeiro de 2013, pelas 22 horas, o assistente BB entrou no veículo e, dirigindo-se ao arguido, disse: “eu sei onde é a tua casa”. B.9. Por sua vez, o arguido, posteriormente ao sobredito confronto com o assistente BB, dirigiu-se a correr para sua casa. B.10. Aí chegado, a sua companheira, JJ, comunicou-lhe que, momentos antes, havia recebido um telefonema do KK, irmão do assistente BB, do GG e do DD, que, na oportunidade, lhe disse o seguinte: “ouve lá, puta, vou-te dar um balázio na cabeça, vou cortar os dedos ao teu filho e fazer-lhe um sorriso à Joker, para esse rato de esgoto lembrar-se sempre de nós!”. B.11. Diante do teor desse telefonema, do sucedido anteriormente com o assistente BB e da advertência feita por este (“eu sei onde tu moras”), o arguido, receoso de que algum mal pudesse sobrevir para a sua companheira e para os seus filhos, saiu de casa como referido em 13. B.12. (A factualidade que aqui era descrita passou a constar dos factos provados). B.13. Que aquando do referido em 11) DD levasse consigo, na mão, um pau com cerca de 80 cm de comprimento e 3,4 cm de diâmetro. B.14. Que aquando do referido em 19) o arguido tenha dito a DD, anda”, “dou-te um tiro”. B.15. Que o arguido tenha apontado a arma de fogo a DD, visando o peito deste, e com o propósito de lhe tirar a vida. B.16. Que o arguido tenha agido de forma livre, voluntária e consciente, tendo conseguido, como era seu intuito, atingir o corpo e a saúde de BB. B.17. Que o assistente receasse, quando estava a ser agredido, que daí resultassem lesões graves de carácter permanente. B.18. Que o assistente tenha feito curativos diários, de manhã, no Centro de Saúde ... durante 20 dias. B.19. Que as regiões do corpo atingidas apresentem cicatrizes bem notórias que associam o assistente a participação em rixas. B.20. O DD era um indivíduo facilmente irritável, com reacções violentas e que exibia, com frequência, um semblante ameaçador e intimidatório. Motivação quanto à matéria de facto: No que tange à motivação quanto à matéria de facto, observar-se-á o disposto no art.º 374.º, n.º 2, do C.P.P., com indicação, de forma crítica, completa mas concisa, das razões da decisão de facto, evitando-se, por inúteis e excessivas, a reprodução indiscriminada dos depoimentos das testemunhas ouvidas [Ac. TC n.º 102/99, Proc.º n.º 1103/98, Cons. LL, em www.tribunalconstitucional.pt] e a indicação individualizada dos meios de prova relativamente a cada elemento de facto dado por assente [Ac. TC n.º 258/01, Proc.º n.º 716/00, Cons. MM, em www.tribunalconstitucional.pt]. Isto dito, no tocante à específica matéria que constitui objecto do reenvio, a convicção do Tribunal fundou-se na valoração crítica e conjugada de todos os elementos de prova produzidos em sede de audiência de julgamento, analisados à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, designadamente os seguintes: Quanto à ocorrência do dia 15.01.2013, pelas 22:00, no Jardim ...: Sobre este evento o Tribunal deparou-se com duas versões distintas, trazidas pelos três intervenientes. Desde logo, o arguido confirmou que, antes deste dia, já existia um clima de conflito entre o próprio e a família do assistente BB e do falecido DD. Deu nota, a este propósito, do sucedido no final do mês de Dezembro de 2012, na discoteca/bar “B...”, que foi igualmente confirmado pelo assistente BB (quanto aos conflitos com o DD, referir-nos-emos infra, a propósito do evento do Largo ...). Mencionou que, no dia 15.01.2013, esteve todo o dia com o seu pai. À noite, no regresso a casa, ao subir junto à Avenida, viu o carro do HH, onde vinha também o assistente BB. Afirmou que, naquela altura, não conhecia o carro, mas ele parou à sua frente. Subitamente, do lado do pendura saiu o BB e do lado do condutor saiu o HH. Seguidamente, sem lhe dizer nada, o BB veio directo a si, com ar ameaçador, para o agredir. Nessa altura, o arguido sacou da navalha que trazia consigo e começou a agitá-la para afugentar os agressores. Disse que estava com receio e que nunca pretendeu espetar a navalha no BB. Porém, o BB tentou agarrá-lo e pediu ajuda ao HH para lhe conseguirem tirar a navalha. Aquilo terminou não sabe quando. O BB voltou para o carro e disse-lhe: “eu sei onde é a tua casa”. Esclareceu que a sua era a única navalha envolvida na situação e tinha recolhido nessa tarde, num armazém do seu avô, onde tinha estado a cortar umas cordas. O assistente BB, pescador, relatou o evento de forma diferente. Deu nota de seguir no carro com o HH. ... e deram a volta à rotunda. Pararam imediatamente antes da passadeira, não se recordando porquê mas admitindo que talvez estivesse alguém a atravessar. De repente, e de surpresa, o arguido surgiu do seu lado do carro e tentou abrir a porta. O assistente tentou impedi-lo e, após alguns momentos em que cada um tentou puxar para o seu lado, o arguido acabou por conseguir abrir a porta, pelo que o assistente saiu do carro e, de imediato, foi golpeado com a navalha daquele no pescoço. Mencionou que sentiu a faca a entrar-lhe no pescoço. Tentou libertar-se e pediu ao HH para o ajudar a tirar a faca ao arguido. O HH saiu pelo seu lado do carro e dirigiu-se para o arguido, não conseguindo dizer se o chegou a agarrar. Depois, por motivo que não conseguiu esclarecer, o arguido largou-o e afastou-se, dizendo-lhe: “queres mais?”. Nessa altura, o assistente e o HH entraram no carro e foram-se embora. Levou uma navalhada na orelha e no queixo. Referiu que este encontro com o arguido foi acidental. Esclareceu que não conhecia o local exacto da residência do arguido, sabendo apenas que vivia perto do Campo .... A testemunha HH, serralheiro, também residente em ..., trouxe uma versão similar à do assistente. Deu nota de que, no dia 15.01.2013, pelas 22:00, seguia no seu carro com o assistente BB, de ... para ..., com destino à Polícia marítima. Estava um tempo de chuva e já tinham jantado. Ao passarem no Jardim ..., pararam junto à passadeira e, de repente, apercebeu-se de uma pessoa que saiu de entre os carros e tentou abrir a porta do lado do passageiro, onde seguia o BB. Durante uns momentos, o arguido puxou a porta e o BB tentou impedir que ele a abrisse. A certa altura, o BB deixou de segurar a porta e deixou que ela abrisse. O BB saiu do carro e a testemunha também. O BB tentou agarrar o arguido pelos braços e chamou pela testemunha. Quando chegou ao outro lado do veículo, apercebeu-se de que o BB estava ferido na cara. Viu a faca na mão do arguido. Ficaram todos ali uns momentos agarrados, tendo a testemunha tentado agarrar no braço esquerdo do arguido, que era onde estava a faca. Por fim, o arguido conseguiu libertar-se e fugiu para o passeio, dizendo: “quereis mais?”. Em momento nenhum disseram nada ao arguido. Saliente-se, pois, do exposto que o evento terá ocorrido, efectivamente, de forma acidental, isto é, não planeada previamente por nenhum dos envolvidos, tendo que a resultado do mesmo lesões para o assistente BB. Quanto ao mais, nada de seguro ou credível foi possível apurar. Com efeito, a versão do assistente BB e da testemunha HH carece de coerência. Não se compreende que, sendo já noite, para mais chuvosa, no Inverno, o arguido pudesse surgir, de repente, na zona da passadeira na avenida, entre os carros aí estacionados e, apercebendo-se do veículo da testemunha HH e da presença no mesmo do assistente, corresse para o mesmo, tentando abrir a porta à força. Não se vislumbra como é que, nessas circunstâncias, o arguido pudesse ver o interior da viatura e descortinar quem lá seguia (recorde-se que o arguido declarou não conhecer o carro do HH e este esclareceu conhecer o arguido apenas de vista), precipitando-se de seguida para a porta do passageiro. Também fica por explicar como é que os dois (recorde-se que o assistente não seria muito diferente fisicamente do arguido, mas a testemunha HH era substancialmente maior, com 1,86 m) não conseguiram manietar o arguido num espaço curto como aquele onde tudo se desenrolou. Mas também a versão do arguido se afigura pouco coerente. Não se percebe igualmente como é que, tudo tendo decorrido em questão de segundos, a testemunha HH (que, recorde-se novamente, apenas conhecia o arguido de vista) identifica o arguido na rua, à noite, com chuva, e consegue parar o carro para o assistente sair e levar a cabo a agressão. Acresce que nem logicamente esta versão faz sentido, pois, conforme esclareceram o arguido e o assistente, no conflito anterior havido entre ambos, no final de Dezembro de 2012, o assistente tinha desferido um ou mais murros no arguido, tendo-o deixado desfalecido. Assim, que interesse teria o assistente BB em atacar o arguido nas preditas circunstâncias se tinha saído “vencedor” da última refrega? Numa perspectiva de desforço, o contrário afigurar-se-ia mais lógico. Note-se que, com uma excepção, as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento vieram dar mostras, embora com distintos graus, de algum proselitismo, alinhando uns com a posição da família do assistente e do falecido DD e outros pela do arguido. A testemunha HH foi uma dessas pessoas, tendo demonstrado evidente “simpatia” pela versão do seu amigo BB e família (como se irá referir infra, a propósito do evento ocorrido no Largo ...), o que, não lhe tendo retirado totalmente a credibilidade, obrigou a uma especial cautela na ponderação das suas declarações. Não existem outros elementos probatórios disponíveis quanto a esta situação. Assim sendo, quanto à matéria em causa, por falta de suficiente credibilidade das versões trazidas pelo arguido e pelo assistente, não se logrou demonstrar mais do que o vertido em 3), 4) e 5). Inversamente, quanto à matéria de facto não provada – especialmente os factos B.6 e B.7 -, a decisão do tribunal decorreu do funcionamento do princípio geral de prova in dubio pro reo. Como se referiu, não foi possível apurar, à míngua de quaisquer outros meios de prova credíveis, qual a forma exacta como a altercação se iniciou, designadamente determinando se a actuação do arguido se deu por a tanto ter sido obrigado por força de uma agressão imotivada do assistente BB, isto é, para se defender, ou, pelo contrário, se foi o próprio arguido quem esteve na origem da agressão. A dúvida, neste caso, apresenta-se assim como insanável, porque não susceptível de esclarecimento por outra via; razoável, porque ambas as versões são consentâneas com a realidade efectivamente apurada; e objectivável, porque suportada em elementos probatórios de igual valor, sem que subsistam motivos que permitam privilegiar um deles em detrimento do outro. Como refere o Ac. RL de 15.12.2015 [Proc.º n.º 200/15.9PBOER.L1-5, relator Jorge Gonçalves, em www.dgsi.pt], o “in dubio pro reo, que decorre do princípio da presunção de inocência do arguido, com assento no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República, dá resposta ao problema da dúvida sobre o facto [e não sobre a interpretação da norma], impondo ao julgador que o non liquet da prova seja sempre resolvido a favor do arguido. Ensina, sobre a matéria, o Prof. Figueiredo Dias: «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo» (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213). O estado de dúvida - valorado a favor do arguido por não ter sido ilidida a presunção da sua inocência - pressupõe que, produzida a prova, o tribunal, e só o tribunal, tenha ficado na incerteza quanto à verificação ou não, de factos relevantes para a decisão. Como diz Cristina Líbano Monteiro: «O universo fáctico – de acordo com o “pro reo” – passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige a certeza.» (Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», pág. 53)”. Uma vez que, neste caso, o facto duvidoso é favorável ao arguido, a dúvida deve levar a considerá-lo, na fundamentação de direito, como provado, daí retirando todas as legais consequências. Quanto aos factos omitidos relativos à ocorrência do dia 15.01.2013, no Largo ...: No que tange a esta matéria, o arguido entendeu prestar declarações, salvo quanto à arma. Contou que, depois do sucedido na Jardim ..., foi a correr para casa. Ao chegar, a sua companheira disse-lhe que o “KK”, irmão do BB, tinha telefonado, dizendo que a ia esfaquear e ao filho; que ia cortar o filho e fazer um sorriso “à Joker” à mulher. O arguido declarou ter ficado perturbado. Desceu para a rua com uma arma para evitar que o confronto com a família do assistente se desse à porta de sua casa. Foi para a entrada do prédio onde se situava o “C...”, ao lado do seu próprio bloco de apartamentos, porque, daí, conseguia ver as duas entradas para aquele local. Admitiu que talvez houvesse iluminação no local. Esteve ali alguns minutos, cerca de 10 ou menos. Entretanto, apareceu um rapaz, que não conhecia, vindo das escadas do “C...,” e ficou ali. Pouco depois, chegou o DD, a subir umas escadas a correr, com uma coisa na mão que lhe parecia um ferro. Atrás dele alguns metros vinham outros dois indivíduos, que, como estava escuro, não conseguiu identificar bem. Um, pela altura – cerca de 1,90 m -, parecia-lhe ser o HH. Parecia-lhe que vinham todos juntos. Referiu que, quando o DD o viu, não disse nada, tendo vindo a correr na sua direcção. Nessa altura, o arguido disse-lhe: “pára ou dou-te um tiro!”. O arguido recuou, pôs-se atrás do rapaz, na entrada do prédio do “C...” e disparou. Ao tirar a arma, apontou para baixo, mas ela deu um coice e subiu, por isso, o tiro acertou no peito do DD. Pensou que nem lhe tinha acertado. Referiu nunca ter disparado antes armas de fogo. O disparo dá-se quando o DD estava a cerca de 2 metros de si (confrontado com a fotografia n.º 26 de fls. 80, referiu que o DD estava na posição aí identificada), já com o pau no ar. Achou que o DD lhe ia bater e matar. Pensou que, se ele visse a arma, iria recuar; se ele tivesse parado, não teria disparado. Confrontado com as fotografias de fls. 80, explicou que a alameda é o túnel da entrada do “C...”. Esclareceu, por confronto com as fotografias juntas em audiência de julgamento, em 20.11.2020, que a primeira vez que viu o DD ele vinha no primeiro patamar das escadas, onde é mais escuro. Nessa altura, já lhe parecia que ele vinha com um ferro e, por isso, recuou para o túnel da entrada do “C...”, porque não queria confronto. O DD era pessoa conflituosa, encorpada, que facilmente partia para a violência. O arguido já tinha tido problemas com ele. Ora, desde logo, sobre a personalidade do falecido DD, matéria que o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães determinou que se apurasse, depuseram, para além do arguido, diversas testemunhas. Como já referido supra, foi visível, com uma ou outra excepção, que os depoimentos se mostraram contaminados pelo sectarismo. Assim, as testemunhas NN, OO e PP, respectivamente amigos (os dois primeiros) e irmão do DD, de alcunha “KK” (o último), deram uma imagem do falecido de alguma normalidade, pouco consumidor de álcool e nada propenso à violência; já as testemunhas JJ (companheira do arguido), QQ, RR (amigos do arguido) e SS (primo do arguido) vieram dar uma imagem substancialmente diferente do falecido, de alguém que trincava copos de vidro com ar ameaçador, que se alcoolizava com frequência, ficando violento. Não deixou de se notar, porém, que grande parte das situações relatadas pelas testemunhas deste último conjunto não foram presenciadas pelas mesmas, sendo apenas provenientes de “ouvir dizer”. Como tal, essas situações, sobretudo ligadas a supostos actos de violência do DD, foram desvalorizadas. Em face desta disparidade, não foi possível obter uma imagem segura da personalidade do falecido, muito embora tenha ficado claro que se tratava de pessoa que alimentava alguns conflitos, sobretudo com o arguido e com o seu grupo de amigos. Os conflitos físicos entre o DD e o arguido foram, não só, relatados por este como pela sua companheira, JJ, e pelo irmão do falecido, PP, que também teve pelo menos um confronto físico com o arguido. Todavia, em nenhum momento o Tribunal ficou com a convicção de que o arguido era perseguido ou vitimizado pelo DD ou os seus irmãos, pois aquilo que resultou dos depoimentos foi que o arguido era igualmente pessoa que reagia, havendo agressões mútuas aquando dos confrontos. Todavia, e este é um aspecto que parece relevante, apesar de as agressões se sucederem com alguma frequência, nunca passaram de brigas, sobretudo com troca de murros, não tendo havido registo de qualquer agressão com o intuito de provocar a morte ou sequer ameaça de tal. Igualmente relevante é o facto de estas pessoas nunca terem recorrido às autoridades policiais para se queixarem ou porem cobro a esta situação de conflito permanente, evidenciando uma certa forma de estar à margem da lei, em que a justiça era feita pelas próprias mãos. O agora exposto ajuda, de alguma forma, a compreender o sucedido no Largo ... e, mais propriamente, os demais factos omitidos apontados pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães. Assim, o arguido declarou que, depois de o assistente BB lhe ter dito “eu sei onde tu moras”, após o fim da refrega no Jardim ..., correu para casa, onde a sua companheira lhe comunicou-lhe que, momentos antes, havia recebido um telefonema do KK, irmão daquele assistente e do DD, que, na oportunidade, lhe disse o seguinte: “ouve lá, puta, vou-te dar um balázio na cabeça, vou cortar os dedos ao teu filho e fazer-te um sorriso à Joker, para esse rato de esgoto lembrar-se sempre de nós!”. Em face disto, preocupado com a sua família, referiu o arguido ter descido para a rua com uma arma para proteger os seus e evitar que o confronto com a família do assistente se desse à porta de sua casa. Sucede, porém, que não se demonstrou que o assistente BB tenha proferido aquelas palavras ou outras similares, pelas mesmas razões expostas supra que levaram a considerar pouco credíveis as versões daquele evento apresentadas quer pelo arguido quer pelo assistente. De igual forma, apesar de a testemunha JJ, companheira do arguido, ter atestado ter recebido do “KK” as ameaças supra descritas, através de um telefonema deste para o telemóvel do arguido, que dele se havia esquecido em casa naquele dia, o aludido “KK”, PP, negou tê-las feito, tendo indicado o número de telemóvel que tinha ao tempo – e que ainda tem: ...38. Ora, compulsada a listagem com o detalhe de tráfego do telemóvel do arguido do dia 15.01.2013, junta a fls. 196, verifica-se que não só o número daquela testemunha não surge aí como os poucos contactos aí constantes são, sobretudo, do seu número de telefone fixo de casa, e um número móvel, com o qual são trocadas sms. Foram verificadas também, à cautela, as listagens com o detalhe de tráfego do telefone fixo de casa do arguido (cfr. fls. 273) e do telemóvel da mencionada JJ (cfr. fls. 340 e 341), das quais não consta, outrossim, o número daquele PP. Pelo exposto, os elementos objectivos disponíveis apontam para a versão desta última testemunha, desmentindo claramente a versão do arguido e da sua companheira. A esta luz, falece a tese do arguido, de que terá abandonado a sua casa, armado, e colocado junto à entrada do “C...” por estar preocupado com a sua família e decidido a defendê-la. De resto, o próprio arguido acaba por confirmar isso mesmo, conforme revelou a testemunha EE, bombeiro, ..., que, na noite dos factos, estava junto às escadas de acesso do interior do prédio onde fica o C..., à espera de um colega seu. Com efeito, enquanto aí se encontrava, agitado, a aguardar a eventual chegada de algum familiar do assistente BB, o arguido ia dizendo: “eles vão-me foder, filhos da puta, andam atrás de mim!”. Ou seja, nas palavras do próprio, a preocupação do arguido não era a sua família mas a sua própria pessoa. Refira-se que esta testemunha, EE, demonstrou ser a única absolutamente imparcial e equidistante relativamente às duas facções, pelo que o seu depoimento se afigurou totalmente credível. De acordo com a dita testemunha - relativamente à qual foram validamente lidas em audiência de julgamento as declarações por si anteriormente prestadas perante Magistrado do Ministério Público, constante de fls. 442 e 443, que confirmou como verdadeiras -, o arguido, pessoa que não conhecia, surgiu em frente ao “C...”, onde aquela já se encontrava, mostrando-se agitado e nervoso. Exalava um forte odor a álcool e pediu-lhe um cigarro. Como o depoente não tivesse tabaco, o arguido disse-lhe que morava ali à beira e que, se tivesse problemas com alguém, que lhe dissesse, pois ele é que mandava ali. Quando surgiu o DD, passado cerca de um minuto e meio, vindo das escadas, verificou que este trazia um objecto na mão, aparentemente um pau, que trazia no prolongamento do braço, junto ao corpo. Ele vinha em passo acelerado. Apercebeu-se que havia qualquer coisa entre aquelas duas pessoas. Quando se apercebeu do recém-chegado, o arguido recuou e colocou-se na rectaguarda da testemunha. Não houve palavras trocadas entre as duas pessoas. O arguido disse: “pára ou dou-te um tiro” Nesse momento, a testemunha, ouvindo isto, virou-se para o arguido, viu a arma pela primeira vez, e perdeu de vista a vítima. Enquanto esteve a olhar para a vítima, ela não parou e também não ergueu o pau. Entretanto, o arguido deu-lhe um tiro e a vítima colocou as mãos no peito. Depois disso, o arguido disse-lhe: “não viste nada!” e fugiu. O depoente também fugiu. Confrontado com as fotografias juntas em audiência em 20.11.2020, esclareceu que, do local onde se encontrava, não conseguia ver a parte de baixo das escadas. Só veria talvez até ao patamar do meio. Todavia, naquele momento, não se apercebeu da presença de outras pessoas no local, para além do arguido e da vítima. Confrontado com o pau que se encontra apreendido nos autos, que lhe foi exibido, confirmou que poderia ser aquele o que a vítima transportava e que. dependendo de quem o tivesse o pau na mão, ele poderia ser uma arma letal. Não consegue dizer se, se o arguido não tivesse disparado, a vítima poderia ter atingido o arguido com um pau. Este foi, pois, o principal elemento de prova quanto à forma como se deu o evento do Largo .... É certo que também a testemunha HH depôs sobre estes factos. Com relevância, declarou que, após o pai do assistente BB o ter levado para o hospital, seguiu com os irmãos deste, DD e GG em direcção às imediações do Campo ..., para tentar encontrar o arguido. Declarou não saber onde este morava, embora soubesse que era perto do Campo .... Também desconhecia se o GG ou o DD sabiam onde era a casa do arguido. Referiu que iam tirar satisfações junto do arguido, com vista a apurar porque é que o arguido tinha feito o que fez ao BB. Afirmou que a sua intenção não era bater no arguido, todavia, ficou em silêncio quando questionado sobre se era preciso irem três para pedir essa informação. Ficou, assim, patente, que a intenção do falecido DD era, efectivamente, agredir corporalmente o arguido, aliás, em consonância com o registo de conflitos havidos entre este e a família daquele. Referiu ainda a testemunha HH que o DD ia na frente, em passo apressado, seguindo o próprio e o GG cerca de 20 metros atrás. Ao chegarem ao Largo ..., estando ainda no patamar a meio das escadas, ouviu o disparo. Ouviu também uma voz em fundo a dizer: “anda, que eu dou-te!”. Pensou que talvez fosse o arguido, no entanto, efectuada a acareação com a testemunha EE, admitiu que poderia ter ouvido mal esta parte. Declarou que só subiu ao local onde o disparo ocorreu depois, já com a presença da PSP. Esclareceu que, entre o acontecimento do Jardim ... e o do Largo ... mediaram cerca de 40 minutos. Este conjunto de elementos permite, pois, excluir a intenção exclusivamente defensiva do arguido. Como vimos supra, não era sua intenção defender a companheira e os filhos, por nenhuma ameaça contra estes se ter demonstrado. Depois de chegar a casa, após o ocorrido no Jardim ..., o arguido teve tempo de simplesmente fechar a porta ou de se dirigir à PSP, dando conta da situação ou até de telefonar para o posto policial, solicitando a presença de agentes no seu prédio. Não o fez, tendo optado por ingerir uma ou mais bebidas alcoólicas – o odor sentido pela testemunha EE isso revela -, munir-se de uma arma de fogo carregada, sair para um local – que não era o da porta do seu prédio - onde podia ter visibilidade sobre os acessos ao empreendimento, tendo aí ficado à espera de quem viesse. Enquanto aguardou, pediu um cigarro e vangloriou-se perante a testemunha EE de ser ele quem mandava ali, demonstrando claramente não estar com medo, contrariamente ao por si afirmado. Perante a chegada do DD – e note-se que não se demonstrou que o arguido tivesse visto o HH e GG, já que estes nunca chegaram a subir as escadas, tendo o primeiro dito que não chegou a ver o arguido, ao passo que a testemunha EE, que se encontrava junto a este, declarou não ter visto mais ninguém atrás do DD -, colocou-se atrás do dito EE e, apenas quando aquele se encontrava a cerca de 2/3 metros de si, com ar ameaçador, mas sem nunca ter erguido o pau, exibiu a arma, que até aí tinha mantido fora da vista, e disse: “pára ou dou-te um tiro”, após o que disparou. Resulta, pois, de todo o exposto que o arguido não evitou o conflito, que sabia poder estar iminente, atento o historial que tinha com o DD e os seus irmãos, como podia ter feito. Ao invés, talvez com um ânimo potenciado pelo álcool ingerido, optou por criar as condições necessárias a uma actuação eficaz e letal contra os seus eventuais atacantes. O arguido não actuou, portanto, com o intuito de se defender, mas antes com o intuito de atacar sem dar hipóteses de defesa, porque tal era o registo habitual entre o próprio e o DD e os seus irmãos, embora sem nunca atingir a gravidade do facto ocorrido na noite em questão. No demais que excede o objecto do reenvio determinado pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, reproduzem-se seguidamente as motivações de facto expressas no primeiro acórdão de 09.12.2020, suprimindo-se as que, por via do supra exposto, se tornaram inúteis. O tribunal deslocou-se ao local, sendo que o objectivo da inspecção foi confirmar se do apartamento onde vivia o arguido era possível visualizar o que se passava na alameda/praceta onde ocorreram os factos. Verificou-se que não era possível e, já no local, o tribunal deslocou-se ao sítio onde o falecido subiu as escadas, visualizou o local onde o mesmo recebeu o tiro e em que sítio se encontrava o arguido quando disparou. Prova constante do processo: Auto de apreensão de fls. 19, 23 Relatório de urgência de fls. 43 e 44 Relatório de exame pericial de fls. 72 a 79 – local dos factos – e fls. 80 a 82 – reconstituição Fotografia de fls. 83 – lesões do assistente BB Registos fotográficos de DD – fls. 84 a 85 Reportagem fotográfica da casa onde vivia o arguido – cfr. fls. 150 a 152. Relatório de exame pericial – navalha e calças de ganga – resultado da análise dos vestígios hemáticos. – Fls. 377 a 380. Relatório da perícia de avaliação do dano corporal em que BB é o examinado – cfr. fls. 255 a 257. Página de Facebook do arguido fls. 319 a 326 Relatório de autópsia – fls. 392 a 400. Relatório de análise de resíduos de disparo – fls. 582 a 588. Concretizando e relativamente a cada um dos pontos dados como provados e não provados supra, há que dizer o seguinte. (...) De facto, o arguido quis passar a imagem que desde há vários anos tinha medo do falecido DD. As testemunhas descreveram o falecido DD como alguém facilmente irritável, com reacções violentas, sobretudo quando tinha ingerido álcool. Falaram no olhar ameaçador do falecido DD e na circunstância de “trincar copos de vidro” em sítios públicos, como meio de intimidar. Mesmo dando como certas estas características do falecido DD, o certo é que não se provou, de modo algum, que desde uma contenda ocorrida cerca de 6 anos antes dos factos (o falecido DD teve um incidente nas festas de ... e culpou o arguido e demais amigos por não terem intervindo em seu favor), o arguido tivesse vivido num ambiente de terror, atemorizado pelas potenciais agressões, não obstante o ambiente tenso que existia quando ambos se cruzavam. (...) Quanto às lesões, a sua prova resulta do teor do relatório da perícia de avaliação do dano corporal– cfr. fls. 255 a 257. O tribunal deu como provado que logo a seguir o pai e os irmãos do assistente BB, (GG e DD) tiveram conhecimento que esse tinha sido “esfaqueado”. O assistente, e a testemunha HH, não se lembra bem de que modo aqueles ficaram a saber. A testemunha diz que pode ter sido ele próprio a ligar. A testemunha GG disse estar em casa juntamente com o irmão DD, que este recebeu um sms e que lhe disse “vamos que o TT foi esfaqueado pelo Nó”. Podemos afirmar, com segurança, que quer o pai, quer os irmãos do assistente BB foram informados do que tinha acabado de acontecer, sendo de certo modo indiferente se este aviso ocorreu por sms ou telefonema. Relativamente aos dois irmãos é bastante o depoimento da testemunha GG. Quanto ao pai do assistente, o tribunal sabe que este não se encontrava em casa, mas que apareceu na ...” de ... para levar o filho ao Hospital. Sabemos igualmente que o assistente e a testemunha HH regressavam a pé a ..., tendo o último esclarecido que ficou sem combustível e deixou o carro parado, atravessando o rio pela chamada ...” (...) Depois apurou-se, com segurança, que o falecido DD, a testemunha GG e HH seguiram, a pé, no sentido de ..., em passo apressado. As duas testemunhas confirmam-no. Tinham como destino a residência do arguido AA e o objectivo era confrontar este com os factos que tinham acabado de ocorrer. Podemos concluir que o falecido DD quando se dirigia a ... – cidade -pretendia encontrar o arguido. Na verdade, quer o assistente BB, quer as testemunhas GG e HH dizem que aquele passou pelo irmão na ponte, não parou, não obstante o irmão estar ferido, seguindo em corrida em direcção a .... A testemunha GG, nas suas próprias palavras, diz que o acompanhou-o para evitar “que fizesse asneiras”. Igualmente se apurou que depois dos factos passados no Jardim ... o arguido AA, munido de uma arma de fogo, mas cujas características em concreto, não foi possível apurar, deslocou-se para a entrada do prédio sito no Largo ..., .... O tribunal fez uma deslocação ao local e concluiu que se trata de uma alameda, permitindo a quem ali esteja, controlar a chegada de quem venha de carro, pela estrada ou a pé, provindo das escadas. Antes de se ter deslocado para ali o arguido foi a casa, apartamento junto ao local dos factos, mas sem visibilidade para o espaço em concreto onde os mesmos ocorreram. (...) O tribunal considerou que não houve prova suficiente relativamente à altura em que o falecido DD e o arguido se avistaram. Ou melhor, não houve prova de que o arguido tivesse visto o DD antes deste ter subido as escadas (como afirmava o arguido), mas também não houve prova do contrário. O que se consegue afirmar é que pelo menos quando o DD acaba de subir escadas e se dirige para a entrada Lote ...1 os dois – arguido e DD avistam-se. Na verdade, a pretensão do arguido querer demonstrar que avistou o falecido DD e os outros dois (GG e HH) antes do primeiro ter subido as escadas, não tem qualquer influência na dinâmica dos factos, pois é seguro que o arguido foi para a alameda onde ocorreram os factos munido de arma de fogo. Nessa altura o arguido profere a expressão supra (como esclareceu a testemunha EE), dizendo que dava um tiro se o DD não parasse e, não tendo o falecido DD parado e quando se encontrava a não mais do que 2 metros de distância, o arguido disparou. Aqui valemo-nos do depoimento da testemunha EE, das declarações do arguido e de factos objectivos que resultam do relatório da autopsia e do relatório de análise de resíduos de disparo – 582 a 588 – o falecido tinha vestígios de pólvora nas duas mãos, com maior incidência para a mão esquerda. Como sabemos que não foi o falecido a disparar, temos que concluir que quando o arguido disparou aquele tinha que estar muito próximo da arma. O arguido disparou na direcção do falecido. Não se prova que o arguido tivesse feito pontaria a qualquer zona do corpo daquele. O próprio arguido diz que não sabe como disparou. Manteve a arma na direcção do falecido e disparou. As lesões sofridas constam do relatório da autópsia e causaram a morte de DD. Não se fez qualquer prova de que o arguido tivesse querido disparar para os pés do DD. O arguido diz (quando perguntado da razão pela qual não disparou para os pés /chão) podia “acertar-me a mim”. Resulta das declarações do arguido e das regras da experiência comum que, não obstante aquele não o querer matar (palavras do arguido), quando dispara uma arma de fogo a uma distância muito curta, na direcção do corpo daquele (mesmo não tendo feito mira) admite que este possa morrer, mas isso não o impede de actuar, ou seja, conforma-se com o resultado morte, se esse viesse a acontecer. O que dizer da arma? O tribunal pode concluir que o arguido quando se deslocou para a alameda já ia munido da arma. De facto, nem o arguido, nem a testemunha EE afirmaram que aquele tenha saído, por algum momento, da alameda. Temos também que concluir que a arma já vinha pronta a disparar, desconhecendo o tribunal quem a municiou. Desconhece o tribunal onde o arguido conseguiu obter aquela arma, sabendo apenas que se tratava de arma de fogo. O arguido remeteu-se ao silêncio quanto a esta matéria, não querendo, igualmente, explicar o motivo pelo qual decidiu fazer-se acompanhar de uma arma de fogo e não de qualquer outro objecto. A testemunha EE disse que lhe pareceu ser uma caçadeira de canos serrados. O Sr. Inspector da PJ disse que se tratava de uma arma de canos longos (por contraposição a uma arma de canos curtos), mesmo que aqueles canos estivessem cerrados. O tribunal sabe, apenas, que se tratava de uma arma de fogo, apta a disparar. Não se conhecem mais características da arma, podendo afirmar que a munição estava igualmente apta a funcionar, como se comprova pelo resultado que provocou. Resulta do relatório de autópsia que a “bucha” que ficou no inteiro do corpo do falecido DD era de plástico (cfr. relatório de autópsia), pelo que, achamos nós, poder-se-ia ter indagado a data do seu fabrico. Não foi feita essa prova. Sabemos também que o arguido não tinha registado, nem manifestado nenhuma arma em seu nome, nem era titular de licença de uso ou porte de arma – cfr. informação da PSP ... de fls. 210 (ausência de licença de uso e porte de arma e arma registada em nome do arguido); Relativamente aos factos do pedido cível o tribunal pôde concluir que o falecido DD se dedicava à pesca, actividade cujos rendimentos eram incertos. A mesma prova se fez relativamente ao assistente BB, sendo certo que para este a prova resultava mais facilitada pois era restrita aos meses de pesca à lampreia. Relativamente a este não se provou que tivesse feito curativos diários e que tivesse ficado com cicatrizes bem notórias. Resulta do depoimento da mãe do falecido DD, que este contribuía “para a casa” com uma semana de jorna. Não tendo sido feita prova do rendimento mensal certo – rondaria os €200,00 a 250,00 por semana na época da lampreia, mas era substancialmente inferior em épocas “baixas” – o tribunal concluiu que, no mínimo, aquele contribuiria para casa com a quantia de €100,00 por mês. Relativamente aos danos sofridos pela mãe com a morte do filho, a prova foi evidente. O tribunal teve ainda em conta o teor do relatório social e certificado de registo criminal.” * 9. Âmbito do recurso O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.[4] Como bem esclarece Germano Marques da Silva, “As conclusões resumem a motivação, e por isso, que todas as conclusões devem ser antes objeto de motivação. É frequente, na prática, o desfasamento entre a motivação e as correspondentes conclusões ou porque as conclusões vão além da motivação ou ficam aquém. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões; se vão além também não devem ser consideradas porque as conclusões são o resumo da motivação e esta está em falta”.[5] 9.1 Face às conclusões da motivação do recorrente AA as questões a decidir, são as seguintes: - Do vício da contradição insanável da fundamentação, a que alude o art.410.º, n.º 2, alínea b), do C.P.P.; - Do efeito decorrente desse vício; - Da subsunção jurídica conexa com a legítima defesa; - Da prática do crime de detenção de arma proibida; - Da medida da pena; e - Da indemnização arbitrada no âmbito do pedido de indemnização civil. Passemos ao seu conhecimento.
10. Do vício da contradição insanável da fundamentação 10.1 O recorrente AA alega existir uma contradição insanável entre os factos dados como provados nos pontos n.ºs 20, 21 e 23 e a correlativa fundamentação do acórdão recorrido; bem como uma contradição insanável entre o advérbio “aparentando” constante do ponto n.º 19 dos factos dados como provados e, por outro lado, a motivação da convicção do Tribunal, segmentos da gravação que transcreve do depoimento da testemunha EE e outros factos dados como provados. Vejamos se assim é. 10.2. A atual redação do art.432.º, n.º1, alínea ), do Código de Processo Penal, que lhe foi dada pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, entrada em vigor a 21 de março de 2022, estabelece que é da competência do Supremo Tribunal de Justiça o conhecimento dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do art.410.º. Ao contrário da jurisprudência firme do Supremo Tribunal de Justiça, anterior à Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, que só conhecia dos vícios do art.410.º, n.º2 do Código de Processo Penal, por sua iniciativa, oficiosamente e não a pedido do recorrente, atualmente este Supremo Tribunal conhece destes vícios também a pedido do recorrente. Uma vez que o acórdão recorrido foi proferido, pelo Tribunal da Relação, em 26 de abril de 2022, nada obsta ao conhecimento do vícios do art.410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, que sejam invocados em recurso pelo arguido. O art.410.º, n.º2 do Código de Processo Penal, estatui que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou c) O erro notório na apreciação da prova.». Os vícios do n.º2 do art.410.º, do Código de Processo Penal são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei.[6] A este propósito refere Paulo Pinto de Albuquerque que, com a solução que acabou consignada na redação do art.410.º do C.P.P., “…pretendeu-se afastar o anterior sistema de controlo amplo dos vícios da matéria de facto com base nos “documentos” e “em qualquer outros elementos constantes dos autos”, correspondente a uma verdadeira Aktenwidrigkeit à maneira da StPO alemã e muito criticada por permitir a subversão do princípio da imediação.”.[7] Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, isto é, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. As normas da experiência comum são, na lição de Cavaleiro de Ferreira, «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» [8]. Tendo os vícios que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, não é, por isso, admissível o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que provenientes do próprio julgamento, como a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida.[9] Para o caso concreto, importa considerar o vício da contradição insanável a que alude a alínea b), n.º2, do art.410.º do Código de Processo Penal. O vício da contradição insanável existirá quando se afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa, pois duas proposições contraditórias não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiras e falsas. Ocorrerá este vício, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo que apenas um deles pode persistir, ou quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da matéria de facto resulta que, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, se impunha outra decisão de facto. A oposição entre a fundamentação e a decisão, existirá quando a fundamentação de facto e/ou de direito aponta para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso. Mas este vício não se verifica quando o recorrente fundamenta o seu recurso na valoração da prova de modo diverso daquela que o tribunal entendeu, nem quando o resultado a que o juiz chegou na decisão advém, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu melhor corresponder aos factos provados. 10.3. Retomando o caso concreto. O recorrente AA defende existir uma contradição insanável entre os factos dados como provados nos pontos n.ºs 20, 21 e 23 e a correlativa fundamentação do acórdão recorrido, porquanto, por um lado, deu como provado no ponto n.º20 que o arguido efetuou um disparo, na direção do DD, com uma arma de fogo de cano comprido e considerou nos pontos n.ºs 21 e 23 a compatibilidade/possibilidade de a lesão verificada no DD ser devida a arma de fogo de cano comprido e, por outro, o Tribunal de 1.ª instância expendeu, no tocante à vertente motivacional, que “desconhece o tribunal onde o arguido conseguiu obter aquela arma, sabendo apenas que se tratava de arma de fogo. O arguido remeteu-se ao silêncio quanto a esta matéria […] A testemunha EE disse que lhe pareceu ser uma caçadeira de canos serrados. O Sr. Inspector da PJ disse que se tratava de uma arma de canos longos (por contraposição a uma arma de canos curtos), mesmo que aqueles canos estivessem serrados. O tribunal sabe, apenas, que se tratava de uma arma de fogo, apta a disparar. Não se conhecem mais características da arma, podendo afirmar que a munição estava igualmente apta a funcionar, como se comprova pelo resultado que provocou.”. Uma vez que a arma em causa não foi apreendida e objeto de exame ou perícia, a testemunha EE afirmou ter a visto a arma de relance, a testemunha FF, inspetor da Polícia Judiciária, não viu a arma e nenhuma outra testemunha afirmou ter visto a arma, não se divisa, assim, por que razão ou com que fundamento o Tribunal de 1.ª instância deu como assente que a arma era de cano comprido – resta, pois, a conclusão de que se trata de uma inequívoca dissonância. A questão da contradição insanável entre os factos dados como provados nos pontos n.ºs 20, 21 e 23 e a correlativa fundamentação, objeto de recurso do arguido AA para o Tribunal da Relação, teve a seguinte resposta no acórdão recorrido: “A prova deste facto – disparo que atingiu a vítima efetuado com arma de fogo de cano comprido - decorre da prova pericial produzida, ou seja, da perícia médico-legal em que se consubstancia o relatório da autópsia. Na verdade, os factos provados do acórdão sob os números 21, 22 e 23 são, quase na íntegra, mera reprodução do dito relatório. Como tal, o referido facto traduz um juízo técnico científico, pelo que o acórdão para poder dele divergir teria de fundamentar a sua decisão, em conformidade com o disposto no artigo 163º do CPP. No entanto, da fundamentação do acórdão não se deteta qualquer divergência quanto ao facto em questão. Aliás, neste particular, o relatório de autópsia em face dos vestígios encontrados no corpo da vítima é intocável. A compatibilidade desses vestígios com a possibilidade de o disparo ter sido efetuado com arma de fogo com cano comprido é inequívoca, tendo em conta que o disparo foi efetuado a não mais de dois metros de distância da vítima. De facto, apenas existe um orifício “grande”, ou seja, 4 cm por 5 cm, de entrada do projétil (não existem orifícios satélite); inexistência de orifício de saída; e no corpo da vítima foi encontrada uma bucha, e grãos de chumbo. Em termos médico-legais, o referido juízo técnico científico é irrepreensível, respondendo à questão essencial visada por uma qualquer autópsia médico-legal que consiste na determinação da causa da morte, que no caso foi disparo de arma de fogo com cano comprido. Assim sendo, é incompreensível a afirmação efetuada pelo arguido na resposta ao recurso do M.P., quando refere “…a referência ao relatório de autópsia, para ancorar o comprimento do cano da arma, é absolutamente equívoca e incabível, sendo certo que a perícia que lhe subjaz não se correlaciona com esse tipo de item, sc., não é uma perícia de arma, nem os peritos médico-legais estão habilitados para o efeito…”. A fundamentação do acórdão acima transcrita tem de ser compreendida apenas na análise que o tribunal recorrido fez dos depoimentos prestados em audiência de julgamento (prova pessoal) relativamente às características da arma de fogo com que foi efetuado o disparo que atingiu a vítima e a dificuldade sentida pelo tribunal em definir as suas exatas caraterísticas, uma vez que a referida arma não foi apreendida, nem, consequentemente, examinada. Ou seja, o que se pode concluir da fundamentação do acórdão, é que para além da prova pericial, que aponta decisivamente no sentido de que o disparo foi efetuado com uma arma de fogo de cano comprido, inexiste outra prova que permita afirmar outras caraterísticas da dita arma, com vista naturalmente à integração da conduta do arguido no âmbito do regime jurídico das armas e munições. Aliás, os dois depoimentos referidos na fundamentação do acórdão invocados pelo recorrente até confirmam o referido no relatório de autópsia. De facto, mesmo considerando ser uma arma de fogo de canos serrados não deixa de ser uma arma de fogo de cano comprido, no sentido técnico, médico-legal, que lhe é dado no relatório de autópsia (armas de cano curto são a pistola e o revolver) arma de cano longo ou comprido são a espingarda e a carabina. Nesta conformidade, inexiste qualquer contradição, designadamente a apontada pelo recorrente.”. Ainda a respeito das caraterísticas da arma de fogo utilizada pelo arguido AA contra DD, já no âmbito do conhecimento do recurso interposto pelo Ministério Público, consignou o acórdão recorrido, designadamente: “…a munição usada pela arma de matou a vítima tinha uma bucha, a qual foi encontrada no corpo da vítima, bem assim grãos de chumbo (múltiplos projeteis), que constituem componentes da munição usada pela referida arma. Na verdade, a bucha consiste na “parte componente de uma munição em plástico ou outro material, destinada a separar a carga propulsora do projétil ou múltiplos projéteis, podendo também incorporar um recipiente que contém projéteis, cfr. artigo 2º, nº 3 al. f) da Lei nº 5/2006, de 23.02 Assim sendo, a munição usada pela arma consistiu num cartucho, o qual consiste “o recipiente metálico, plástico ou de vários materiais, que se destina a conter o fulminante, a carga propulsora, a bucha e a carga de múltiplos projéteis, ou o projéctil único, para utilização em armas de fogo com cano de alma lisa”, cfr. artigo 2º, nº 3 al. e) da Lei nº 5/2006, de 23.02. Segundo o artigo 2º, nº 2 al. c) da Lei nº 5/2006, de 23.02, “«Alma lisa» a superfície interior do cano não dotada de qualquer dispositivo destinado a imprimir movimento de rotação ao projétil”. Logo, no ponto 20 dos factos provados deverá ficar esclarecido que a arma de fogo de cano comprido era de alma lisa.”. Acompanhamos, no geral, a lógica argumentativa da decisão. Embora não tenha sido apreendida e examinada a arma de fogo que o arguido AA disparou contra o DD, um destinatário normal, perante a fundamentação do acórdão recorrido, está em condições de perceber, racionalmente, que a arma de fogo em causa, teria de ser de cano comprido, tal como consta dos pontos n.ºs 20, 21 e 23 da factualidade dada como provada, pois a arma de fogo de cano comprido é o tipo de arma que utiliza como munição “grãos de chumbo” contidos num cartucho, em que a “bucha” é um dos seus componentes destinado a separar a pólvora dos projéteis. O acórdão recorrido realçou que o relatório de autópsia de folhas 392 a 396, a que se alude no ponto n.º 23 dos factos dados como provados no acórdão recorrido, concluiu que as lesões que determinaram a morte do DD, resultaram de traumatismo de natureza perfuro-contundente, proveniente de “grãos de chumbo”, que descreveram um trajeto na cavidade torácica da vítima, sendo as caraterísticas do único orifício de entrada e a presença da “bucha” compatíveis com disparo a curta distância de arma de fogo de cano comprido. Para além deste juízo técnico-científico, que respondeu à questão essencial visada por uma qualquer autópsia médico-legal, que consiste na determinação da causa da morte, também os depoimentos referidos na fundamentação do acórdão de 1.ª instância, da testemunha EE - que disse que lhe pareceu ser uma caçadeira de canos serrados - e da testemunha Inspetor da PJ - que disse que se tratava de uma arma de canos longos (por contraposição a uma arma de canos curtos), mesmo que aqueles canos estivessem serrados -, apontam decisivamente para a compatibilidade entre a factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 20, 21 e 23 do acórdão recorrido e a respetiva fundamentação da mesma matéria de facto. Em suma, independentemente do recorrente concordar ou não com a decisão da matéria de facto a respeito das caraterísticas da arma de fogo que utilizou contra a vítima no disparo dessa arma, ela está racionalmente fundamentada, e não se vislumbra do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, qualquer contradição e, menos ainda, insanável, entre a factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 20, 21 e 23 do acórdão recorrido e a respetiva fundamentação. Assim, não se reconhece, nesta parte, a existência do vício a que alude o art.410.º, n.º2, al. b), do C.P.P.. O recorrente entende existir, ainda, uma contradição insanável no acórdão recorrido, mais concretamente, entre o advérbio “aparentando” constante do ponto n.º 19 dos factos dados como provados - “ Aí, o DD, com um pau na mão (com 80 cm de comprimento e 3,4 cm de diâmetro), aparentando um propósito ameaçador, deslocou-se na direcção do AA, que se colocou atrás do EE e disse: “PÁRA OU DOU-TE UM TIRO” - e a motivação do Tribunal, pois resulta desta que o DD se deslocou na direção do arguido com “um propósito ameaçador (..) para o agredir corporalmente” e não só “aparentando um propósito ameaçador”. Alega para o efeito e em síntese, no Ponto E), ii) da motivação: a) da convicção do Tribunal avulta que “A convicção do tribunal de primeira instância, expressa na motivação da matéria de facto, foi no sentido de que a vítima, quando foi no encalço do arguido, juntamente com o seu irmão GG e a testemunha HH, tinha a intenção de agredir corporalmente o arguido”; b) do ponto n.º 16 da factualidade dada como provada consta que “O arguido AA, nessa altura, encontrava-se defronte da porta de entrada do prédio sito no Largo ..., ..., local onde se encontrava também, à espera de um amigo, EE, sendo que aquele dizia “eles vão-me foder, filhos da puta, andam atrás de mim”; c) a testemunha GG referiu, como consta da motivação, que acompanhou o DD “para evitar que este fizesse asneiras” e embora, por lapso, não conste reproduzido na motivação do acórdão recorrido, constava da motivação que “se não tivesse havido tiro haveria pancadaria”; d) da motivação do Tribunal consta, de forma impressiva, que “Na verdade, quer o assistente BB, quer as testemunhas GG e HH dizem que aquele passou pelo irmão na ponte, não parou, não obstante o irmão estar ferido, seguindo em corrida em direcção a ...”; e) dos segmentos do depoimento da testemunha EE, que indica na gravação e que o Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal da Relação postergaram na motivação, resulta que aquela testemunha declarou, designadamente, que numa confusão, se calhar, poderia sair dali atingido, com o pau ou com qualquer coisa. O ponto n.º 19 colide ainda com a factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 64 e 65 do acórdão recorrido, face à normalidade e às regras da experiência comum. Vejamos se tem razão o recorrente.
A primeira consideração, a respeito deste vício, é que os segmentos do depoimento da testemunha EE, que o recorrente indica na gravação, integrando a alínea e), ii), Ponto E) da motivação do recurso, não resultam do texto da decisão recorrida, pelo que tendo os vícios do n.º2 do art.410.º do Código de Processo Penal que resultar da própria decisão recorrida, não sendo admissível o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, não podem os ditos segmentos ser atendidos por este Supremo Tribunal no âmbito do vício da contradição insanável. Como também não pode ser atendido o segundo segmento referido na alínea c), ii), Ponto E) da motivação do recurso, relativo ao depoimento da testemunha GG, pois como o próprio recorrente reconhece o mesmo não consta da decisão ora recorrida, ainda que no seu entender tal resulte de alegado lapso, cuja correção não pediu ao Tribunal da Relação. A segunda consideração, é que resulta do acórdão ora recorrido que o arguido AA pretendeu a alteração dada como provada no ponto n.º19 perante o Tribunal da Relação, no âmbito do erro de julgamento, de modo que onde consta “aparentava um propósito ameaçador” passasse a constar “com um propósito ameaçador” e que se fosse dado ainda como provado que quando a vítima se dirige na direção do arguido “era para o agredir corporalmente” e perante tal o arguido colocou-se atrás do EE”, invocando para o efeito “ … as suas declarações, os depoimentos efetuados pelas testemunhas GG (irmão da vítima) e UU, bem assim a fundamentação da matéria de facto que, no seu entender, é no sentido por si defendido”. Tal alteração não mereceu provimento no acórdão ora recorrido, porquanto, em síntese, “…lendo a motivação da matéria de facto do acórdão recorrido e ouvida a gravação da prova, designadamente os depoimentos indicados pelo recorrente (não apenas os excertos indicados pelo recorrente), bem assim os demais depoimentos, em conformidade com o disposto no artigo 412º nº6 do CPP, constata-se que o recorrente, quanto aos pontos de facto que indica, em vez de procurar demonstrar que a convicção dos Senhores Juízes não é possível pelo facto de ocorrer violação concreta do alegado princípio da livre apreciação da prova nalgum dos casos em que este princípio é sindicável em sede recurso, limita-se a criticar tal convicção, evidenciando a sua visão pessoal da prova.”. Não tendo conseguido alterar a factualidade constante do ponto n.º 19 através da chamada impugnação ampla, ao abrigo do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, pretende o recorrente impugnar a mesma factualidade, alterando a redação do mesmo ponto, através da invocação do vício da contradição insanável da fundamentação, a que alude o art.410.º, n.º2, alínea b), do mesmo Código. A terceira consideração, é que não existem razões objetivas, na fundamentação da decisão recorrida para considerar que existe o vício da contradição insanável entre a factualidade dada como provada no ponto n.º 19 e os segmentos reproduzidos pelo recorrente nas alíneas a), b), c), primeira parte, e d), ii), Ponto E) da motivação do recurso, devidamente enquadrados. O segmento reproduzido pelo recorrente na alínea a), ii), Ponto E) da motivação do recurso, que consta do acórdão recorrido – no âmbito da questão do erro de julgamento - , aqui com interesse para a eventual contradição com a factualidade dada como provada no ponto n.º 19, não se traduziu apenas na afirmação de que “A convicção do tribunal de primeira instância, expressa na motivação da matéria de facto, foi no sentido de que a vítima, quando foi no encalço do arguido, juntamente com o seu irmão GG e a testemunha HH, tinha a intenção de agredir corporalmente o arguido”, pois logo acrescentou o Tribunal da Relação: No entanto, chegado ao local, quando a vítima se dirige ao arguido, não profere qualquer palavra, nem levantou o pau ( que levava numa das suas mãos ao longo do seu corpo) para atingir o arguido, não fazendo, por isso, sentido, por ser ilógico, dizer que era para o agredir corporalmente. Nessa medida, considerou provado apenas que a vítima se dirigiu ao arguido com um ar ameaçador, ou seja, aparentado um propósito ameaçador.” Resultando ainda definitivamente provado, no ponto n.º 66 do acórdão recorrido, que “Em nenhum momento o DD ergueu o pau de que era portador”, não se pode concluir, de modo algum, como se pretende na alínea b), ii), Ponto E) da motivação do recurso que existe uma oposição lógica entre a fundamentação do acórdão recorrido e a factualidade dada como provada nos seus precisos termos. A circunstância de se ter dado como provado no ponto n.º 16 do acórdão recorrido que “ O arguido AA, nessa altura, encontrava-se defronte da porta de entrada do prédio sito no Largo ..., ..., local onde se encontrava também, à espera de um amigo, EE, sendo que aquele dizia “eles vão-me foder, filhos da puta, andam atrás de mim”, também não se mostra em oposição lógica com a citada fundamentação do acórdão recorrido, pese embora seja razoável, face ás regras da experiência comum, como consta do ponto n.º 16 que o arguido AA receasse algum mal por parte dos familiares do BB, irmão do DD, pois do confronto físico entre o arguido e o BB resultaram lesões corporais neste, causadas por uma navalha. De igual modo, o argumento adiantado pelo recorrente nas alíneas c), primeira parte, e d), ii), Ponto E) da motivação do recurso, não procede, pois não se verifica qualquer contradição entre referir-se, na motivação do “primeiro acórdão de 09.12.2020”, reproduzida no acórdão recorrido, que “Na verdade, quer o assistente BB, quer as testemunhas GG e HH dizem que aquele passou pelo irmão na ponte, não parou, não obstante o irmão estar ferido, seguindo em corrida em direcção a .... A testemunha GG, nas suas próprias palavras, diz que o acompanhou-o para evitar “que fizesse asneiras”, e a factualidade dada como provada no ponto n.º 19. Por fim, não existe qualquer oposição lógica, de incompatibilidade entre dar-se como provado, por um lado, que o DD era um individuo conflituoso (ponto 64) e o pau de que o mesmo era portador tinha potencialidade para ser utilizado como meio letal de agressão (ponto n.º 65) e, por outro, o que consta do ponto n.º19, quando está dado igualmente como provado que, em momento algum, o DD ergueu o pau de que era portador (ponto n.º66). Uma vez que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, se não deteta qualquer oposição lógica na factualidade dada como provada indicada pelo recorrente, nem entre esta factualidade e a respetiva fundamentação, mais não resta que negar a existência do vício da contradição insanável. Improcede, deste modo, a primeira questão. 11. Do efeito decorrente do vício da contradição insanável Pressupondo a verificação dos supra referidos vícios da contradição insanável entre a fundamentação, a que alude a alínea b), n.º2 do art.410.º do Código de Processo Penal, defende o recorrente AA que os mesmos sejam supridos sem necessidade do reenvio do processo, quer através da eliminação da menção a “cano comprido” na factualidade constante dos pontos n.ºs 20, 21 e 23 dos factos dados como provados no acórdão recorrido, quer por alteração da redação da factualidade constante do ponto n.º 19 do acórdão recorrido, que passaria a ter os seguintes termos: “Aí, o DD, com um pau na mão (com 80 cm de comprimento e 3,4 cm de diâmetro), com um propósito ameaçador, deslocou-se na direção do AA, para o agredir corporalmente; perante tal, o arguido colocou-se atrás do EE e disse: “PARA, OU DOU-TE UM TIRO!” Esta questão mostra-se prejudicada, uma vez que falhando a existência do invocado vício da contradição insanável a que alude a alínea b), n.º2 do art.410.º do Código de Processo Penal, afastada fica também a possibilidade do mesmo ser suprido nos termos pretendidos pelo recorrente – com ou sem necessidade do reenvio do processo. 12. Subsunção jurídica conexa com a legítima defesa 12.1. Defende o recorrente, seguidamente, que a sua conduta constituiu uma ação de legítima defesa, na medida em que se revelou um meio necessário para repelir uma agressão atual e ilícita da sua integridade física ou da sua vida, pelo que se mostra excluída a ilicitude, nos termos do art.31.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal) não sendo o pertinente facto, por tal razão, criminalmente punível. Caso assim se não se entenda, perspetiva-se uma situação de excesso de meios, que resultou de medo não censurável por parte do arguido/recorrente, daí que por esta via esteja excluída a pena. Argumenta para o efeito o recorrente, no essencial e em síntese: i) o acórdão recorrido aparenta ter arredado a figura da legítima defesa preventiva - que o tribunal de 1.ª instância perspetivou mas a que subtraiu relevância- e, efetivamente, na situação dos autos esta não ocorreu, pois a legítima defesa preventiva pressupõe que a agressão não reveste o caráter de iminente nem de atual e, no caso, existe um episódio de agressão plenamente atual (iminente) por parte do DD, que foi repelida, como meio necessário, pelo arguido; (ii) foi o DD que se dirigiu ao arguido, com um propósito ameaçador e de o atingir corporalmente, com um pau, que tinha potencialidade aptidão letal, pelo que um terceiro exterior colocado na situação do agente prefiguraria que a agressão, por parte do DD ao arguido, se seguiria de imediato; (iii) o arguido não deu causa à agressão, pretendendo com a advertência ao DD de “para, ou dou-te um tiro!” que se afastasse, tendo somente disparado quando o DD, sem deter a sua marcha, estava praticamente em cima dele, sendo totalmente provável que, caso não tivesse ocorrido o disparo, o DD o conseguisse atingir com o pau no corpo; (iv) o arguido agiu, assim, com um animus deffendendi e o meio utilizado, em resultado das circunstâncias enunciadas, foi o necessário para repelir uma agressão atual e ilícita ; v) noutro plano, um eventual recurso às autoridades estava vocacionado ao fracasso, pois se o arguido comunicasse à polícia o ocorrido e o receio que tinha, essa autoridade dir-lhe-ia para apresentar uma queixa e o auxílio policial jamais seria obtido imediatamente, considerando o exíguo hiato temporal que se interpôs entre os facto referidos em 5 e 6 e a chegada ao local do DD, do GG e do HH, razão pela qual uma eventual fuga, por parte do arguido e dos seus familiares, antes de surgirem no local o BB e/ou os seus irmãos, também não podia ser aqui cogitada. Vejamos. 12.2. Antes da apreciação destes argumentos, fixemos, em termos sumários o regime legal que subjaz à legitima defesa. Importa referir, em primeiro lugar, o art.21º, da nossa Lei Fundamental, na parte em que dispõe que «todos têm o direito (…) de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.». O art.31.º, n.ºs 1 e 2.º, alínea a), do Código Penal, estabelece que «não é ilícito o facto praticado em legítima defesa». A legítima defesa vem prevista no art.32.º do Código Penal, e consiste no «… facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.». Para a doutrina hoje dominante, o fundamento desta causa de justificação é duplo: a defesa da ordem jurídica e a autoproteção dos bens jurídicos do agredido. Não basta afirmar-se, para fundamentar a legítima defesa, que o direito não deve nunca ceder perante o ilícito; a defesa necessária, de preservação do bem jurídico ilicitamente agredido é também um fundamento dessa defesa.[10] Os requisitos para que se verifique a exclusão da ilicitude, por legitima defesa, são para Maia Gonçalves, os seguintes: «a) A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser atual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter direito de a fazer; não se exige que ele atue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra atos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro; b) Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a atuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspeto da necessidade do meio. Trata-se de um afloramento do princípio de que deve ser a força pública a atuar, quando se encontre em posição de o fazer, sendo a força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela C.R.P. c) Animus deffendendi, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente.». Os requisitos da legítima defesa ora enunciados respeitam, uns ao lado da agressão e outros ao lado da defesa. No que respeita aos requisitos do lado da agressão, realçamos, seguindo Figueiredo Dias: “O conceito de agressão deve compreender-se como ameaça derivada de um comportamento humano a um bem juridicamente protegido», sendo que o bem ameaçado deve ser juridicamente – não necessariamente jurídico-penalmente – protegido.”. A legítima defesa só é admissível contra uma agressão atual. A agressão é atual quando “iminente, já se iniciou ou ainda persiste”. Para determinar a iminência ou a atualidade é decisivo o prognóstico objetivo de um espectador experimentado colocado na situação do agente e não a representação subjetiva deste. Afastadas ficam, assim, do âmbito da legitima defesa as situações em que, não obstante a agressão não ser ainda iminente, já se sabe antecipadamente, com certeza ou com um elevado grau de segurança que ela vai ter lugar. A chamada teoria da defesa mais eficaz, “segundo a qual a agressão seria já atual momento em que se soubesse que ela viria a ter lugar se o adiamento da reação para o momento em que ela só fosse possível mediante um grave endurecimento dos meios (dita por vezes legítima defesa preventiva)”, não deve, pois, ser acolhida. Para além de dogmaticamente alargar em demasia o conceito de atualidade, a ameaça em causa poderia ser evitada por via do recurso à intervenção da autoridade pública. É ilícita toda a agressão que contraria objetivamente as normas de valoração do direito. A ilicitude da agressão, não tem de ser especificamente penal, aferindo-se à luz da totalidade da ordem jurídica.[11] Do lado da da defesa, a ação deve ser necessária, como também têm de o ser os meios utilizados para a defesa e subjetivamente conduzida pela vontade de se defender. Na lição de Paulo Pinto de Albuquerque, “as duas coisas não de confundem: uma é a necessidade do meio (com que meio deve o defendente defender-se?), a outra a necessidade da defesa (deve o agredido defender-se, moderar a defesa ou fugir?). (…) Os meios de defesa devem ser necessários, ou seja, idóneos para atrasar, dificultar, atenuar, evitar ou pôr fim à agressão. Sendo possível o recurso à força pública, é este o meio preferível, por força desde logo do disposto no artigo 21.º da C.RP.”. [12] Efetivamente, a necessidade objetiva de defesa constitui o cerne da tutela privada de bens jurídicos, capítulo onde não se pode prescindir de ponderações normativas e ético-sociais, para determinar se uma ação é imposta ou não através da legítima defesa. Já quanto à necessidade subjetivamente conduzida pela vontade de se defender, a intenção de defesa, o chamado “animus deffendendi”, parte da jurisprudência continua a exigir que o agente atue com este animus, muito embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, tais como indignação. Neste sentido, diz-se no acórdão do STJ, de 14 de Maio de 2009, que «Essencial, pressuposto estrutural à legítima defesa, é, mesmo, o “animus defendendi”, a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima;…».[13] A verdade, porém, é que a doutrina mais representativa nega a necessidade do chamado “animus defendendi” para a verificação da legítima defesa, defendendo que o elemento subjetivo da ação de legítima defesa se restringe à consciência ou conhecimento da «situação de legítima defesa».[14] Se o agredido ultrapassa, consciente ou inconscientemente, os limites da legítima defesa permitida, atua ilicitamente, mas a pena pode ser-lhe especialmente atenuada (art.33.º do Código Penal); como será também ilícita a defesa de uma agressão somente suposta (legítima defesa putativa), para cujas consequências vigoram as regras do erro. 12.3.O acórdão recorrido, partindo de uma interpretação dos requisitos da legítima defesa similar à ora exposta, perante a imodificabilidade da matéria de facto impugnada pelo ora recorrente AA, rejeitou o entendimento deste de que preencheu os requisitos da legitima defesa, essencialmente com a seguinte argumentação: “ …onde está provada uma agressão por parte da vítima? Onde está provada a sua iminência? Os cruciais pontos de facto 19 e 20 assentaram “19. Aí, o DD, com um pau na mão (com 80 cm de comprimento e 3,4 cm de diâmetro), aparentando um propósito ameaçador, deslocou-se na direcção do AA, que se colocou atrás do EE e disse: “PÁRA OU DOU-TE UM TIRO”. 20. O DD não parou e quando se encontrava a não mais do que dois metros de distância o arguido AA, com uma arma de fogo de cano comprido, apontou-a na direcção do DD efectuou um disparo, atingindo-o.”. Como provado ficou “66. Em nenhum momento o DD ergueu o pau de que era portador.”. Assim, nenhuma agressão concretizou a vítima com o pau que levava. Nem sequer provado a verificação de uma agressão iminente. “A agressão está iminente quando, embora ainda não iniciada, numa aproximação analógica aos elementos da tentativa, se deva seguir imediatamente, segundo a leitura objectiva da situação de um terceiro exterior e não pela representação subjectiva do agente. Ou seja, para determinar a iminência ou a actualidade é decisivo o prognóstico objectivo de um espectador experimentado colocado na situação do agente e não a representação subjectiva deste. A mera intenção, sem ser exteriormente accionada, não constitui iminência de agressão (cf., v.g., Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo 1, 2.ª edição, págs. 411-412, e Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, ob. cit., pág. 366)” – Acórdão do STJ, de 16/09/2008, proc. 08P2491, com o relator conselheiro Henriques Gaspar. Daí que tendo-se dado como provado que “29. O arguido AA muniu-se da arma para o caso do BB e/ou os irmãos virem confrontá-lo com os factos referidos em 5 e 6, apontou-a na direcção do DD e efectuou um disparo, atingindo-o no tórax, admitindo como possível que da sua conduta resultasse a morte de DD, conformando-se com esse resultado. 30. Mais sabia o arguido ser toda a sua conduta proibida e punida por lei penal.”, não se verifica a causa justificativa excludente da ilicitude, a legítima defesa. De realçar que nem sequer provada ficou uma legítima defesa putativa, um erro sobre a existência de uma agressão actual e ilícita com base no qual o arguido agiu. (…) “… também não existem factos que possam apontar para um excesso de legítima defesa que, como é sabido, se verifica quando estando presente todo o condicionalismo da legítima defesa, constata-se um excesso dos meios empregados, excesso determinado por perturbação, medo ou susto, todavia, não censuráveis, isto é, sem culpa. O excesso de legítima defesa é uma causa de exclusão da culpabilidade e que existe só quando há excesso no grau, ou na espécie, dos meios usados para a defesa, em virtude das circunstâncias não censuráveis e referidas no art.º 33, n.º 2 do CPenal. No caso, não temos factos que apontem para tal domínio. Não se apresentam preenchidos os pressupostos da legítima defesa, nos termos acima já referidos. Só há excesso de legítima defesa no pressuposto da verificação de situação de legítima defesa. Assim, pelo exposto, nesta parte nenhuma censura merece a qualificação jurídica concretizada na decisão recorrida. O arguido tornou-se autor do crime de homicídio simples, p. e p. pelos artigos 14º, nº3, 131º, do CPenal.”. Nesta conformidade, somente nos resta concluir pela falta de razão do recorrente quanto à questão em apreço.”. 12.4. Como bem refere o recorrente, o acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação, arredou implicitamente a figura da legítima defesa preventiva, e bem, pois, pelas razões atrás expostas, não deve ser acolhida. Os argumentos da decisão recorrida que conheceu desta questão da legítima defesa não nos merecem censura. Realçamos apenas alguns deles, no sentido da inexistência no caso da figura da legítima defesa. Logo após o confronto entre o arguido AA e BB, descrito nos pontos n.ºs 2 a 5, quer o pai, quer os irmãos do BB (GG e DD) foram informados do confronto acabado de acontecer, tendo-lhes sido comunicado que o BB tinha sido “esfaqueado pelo Nó” (ponto n.º 10). Perante esta notícia, o DD, o GG e o HH, dirigem-se para a residência do arguido AA para o confrontar com os factos descritos nos pontos n.ºs 5 e 6 ( ponto n.º 12). Sendo certo que o DD quando chegou defronte da porta de entrada do prédio onde se encontrava o arguido AA, junto à testemunha EE, levava na mão um pau com 80 cm de comprimento e 3,4 cm de diâmetro, para confrontar quem teria esfaqueado o irmão BB, em nenhum momento ergueu o pau de que era portador, pese embora tenha chegado praticamente até junto do arguido. Do lado do arguido AA, estão por demonstrar os argumentos de que o recurso às autoridades policiais estava vocacionado ao fracasso, pois se comunicasse à polícia o ocorrido e o receio que tinha, essa autoridade dir-lhe-ia para apresentar uma queixa, que o auxílio policial jamais seria obtido imediatamente em tempo, e nem a fuga dele e dos seus familiares do local seria possível. O que temos como provado é que o arguido AA após o confronto com o BB se dirigiu para a sua residência, muniu-se de uma arma de fogo e dirigiu-se para a entrada do prédio onde vive, de onde poderia controlar quem chegasse ao bairro (pontos n.ºs 9, 13 e 25) Quando o DD, que seguia à frente do GG e do HH, estava a não mais de 2 metros do arguido AA, depois deste lhe dizer “para ou dou-te um tiro”, disparou sobre ele um tiro de arma de fogo de cano comprido, de alma lisa, de que previamente se munira para o caso do BB e/ou os irmãos o fossem a confrontar com os factos referidos nos pontos n.ºs 5 e 6 (pontos n.ºs 19, 20, 25 e 29). A aparência ameaçadora do DD quando se dirigiu ao arguido AA, não foi exteriorizada pelo erguer do pau, de que era portador e, por outro lado, quando o arguido dispara a arma de fogo encontrava-se atrás da testemunha EE, pelo que a situação descrita não constitui uma “iminência de agressão” por parte do DD e, evidentemente, não existiu agressão alguma a que o arguido tivesse colocado fim através do uso de arma de fogo. E a tal não obsta a circunstância do arguido AA já anteriormente à data dos factos ter andado em confrontos físicos com o BB e com o DD e este ser um indivíduo conflituoso (pontos n.ºs 1 e 64 dos factos provados). A factualidade dada como provada não permite concluir que o disparo de arma de fogo era objetivamente necessário para efetuar uma defesa da vida ou integridade física em face de agressão atual e ilícita por parte do DD. Como também dela não resulta que o arguido AA agiu com “animus defendendi” ou conhecimento da situação de legítima defesa. Excluída fica, assim, a verificação dos requisitos da legitima defesa tipificados no art.32.º do Código Penal. Uma vez que o excesso de legítima defesa, previsto no art.33.º do Código Penal pressupõe a verificação dos requisitos da legítima defesa, excedendo o agredido os meios empregados nessa defesa, mostra-se prejudicada a quer a possibilidade de atenuação da pena nos termos do n.º1, quer da sua exclusão nos termos do n.º 2, que o arguido AA invoca a título subsidiário na conclusão 67 da motivação do recurso. Aliás, também não consta dos factos provados que o mesmo ao posicionar-se à porta do prédio onde reside, com uma espingarda “caçadeira”, á espera de familiares do BB, o fez por medo.[15] Pelo exposto, improcede esta questão objeto de recurso. 13. Da prática do crime de detenção de arma proibida No entender do recorrente, o Tribunal da Relação de Guimarães, ao condenar o arguido pelo crime de detenção de arma proibida, violou o estabelecido no artigo 86.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006 de 27 de fevereiro, alterada pela Leis n.º 59/2007, de 4 de setembro, 17/2009, de 6 de maio, e 26/2010, de 30 de maio O argumento essencial do arguido é que a prova realizada, a que fez referência no âmbito do vício da contradição insanável a que alude o art.410.º, n.º2, alínea b), do Código de Processo Penal, não legitima a asseveração de que a arma em causa era uma arma de fogo de cano longo/comprido ou uma arma de canos serrados. Vejamos. Previamente ao conhecimento desta questão, impõe-se decidir se é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão do Tribunal da Relação relativamente à condenação do arguido na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida. A resposta não pode deixar de ser positiva. Com o aditamento final à alínea e), n.º1 do art.400.º do C.P.P., levado a cabo pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro (em vigor a 21 de março de 2022), estendeu-se a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos da Relação proferidos em recurso que, “no caso de decisão absolutória em 1.ª instância”, condenam o arguido em qualquer pena não privativa da liberdade ou em pena não superior a 5 anos de prisão. Ora, no caso, tendo o arguido AA sido absolvido em 1.ª instância da prática do crime de detenção de arma proibida e sido condenado em 2.ª instância, pela prática deste crime, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, na sequência de recurso do Ministério Público, dúvidas não há que esta pena parcelar deve ser objeto de apreciação no âmbito do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça ora em apreciação, nos termos conjugados dos artigos 432.º, n.º2, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal. Posto isto. Está fixado definitivamente no ponto n.º 20 do acórdão recorrido que o arguido AA apontou na direção do DD e efetuou um disparo “com uma arma de fogo de cano comprido, de alma lisa”. O art.2.º, n.º1, alínea ar) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, define «espingarda» como “arma de fogo longa com cano de alma lisa”. Do exposto resulta que o arguido AA utilizou uma espingarda, comumente designada “caçadeira” na morte do DD. Em lado algum da factualidade dada como provada consta que a mesma era uma “caçadeira” de canos serrados, que integraria o art.2.º, n.º1, al. v) da Lei n.º 5/2006 de 27 de fevereiro. São os factos provados que têm de ser subsumidos ao direito. O artigo 86.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006 de 27 de fevereiro, estatui, designadamente: «1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo: c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, arma de fogo fabricada sem autorização ou arma de fogo transformada ou modificada, bem como as armas previstas nas alíneas ae) a ai) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;». A espingarda detida e usada pelo arguido AA não estava manifestada, nem registada em nome do arguido, nem o mesmo tem licença de uso e porte de arma de defesa ou de qualquer outra natureza, tendo perfeito conhecimento da natureza e caraterísticas da arma e munições. Resultando ainda provado que o arguido sabia que esta sua conduta era proibida e punida por lei penal, não merece censura a decisão recorrida quando conclui que o arguido preencheu todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de detenção de arma proibida e, assim, praticou o crime pelo qual veio a ser condenado. Improcede, pois, também esta questão. 14. Da medida da pena Como última questão, em matéria penal, defende o recorrente, no pressuposto da aplicação do art.33.º, n.º 1, do Código Penal (excesso de legítima defesa), que a pena seja fixada entre 4 anos e 6 meses e os 5 anos de prisão, suspensa na respetiva execução ou, assim não acontecendo, que em face da moldura perspetivada pelo Tribunal, seja a pena fixada em 10 anos de prisão. Em termos mais concretos, alega na motivação do recurso, depois de fazer um excurso sobre o disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, que para o efeito de determinação da pena “interessa ponderar: - na conduta do arguido e na ação do DD; - na personalidade do arguido, no essencial positiva; e - de forma terminante, a particularidade de as condenações impostas ao arguido não respeitarem a crimes contra as pessoas, mas ao crime de condução sem habilitação legal, sucedendo que a última condenação respeita a factos praticados em maio de 2011.”. Vejamos. O art.71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, dispõe que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele. A culpa a que ali se alude é um juízo de reprovação que se faz sobre uma pessoa, censurando-a em face do ordenamento jurídico-penal. O facto punível não se esgota com a ação ilícita-típica, necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, “isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”[16] O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete-nos para a realização in casu das finalidades da pena. De acordo com o art.40.º, n.º1, do Código Penal, a aplicação de penas (e de medidas de segurança) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais. Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito. É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial. A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida. As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “ por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, factores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”.[17] Podemos agrupar, nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção. No que à pena única respeita, o art.77.º, do Código Penal, estabelece: «1- Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. «2 -A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.». Retomando o caso concreto. Afastada que se mostra a existência do excesso de legítima defesa, prejudicada está a convocação pelo recorrente AA do art.33.º, n.º 1, do Código Penal, para através desta norma lhe ser atenuada especialmente a pena e esta lhe ser fixada entre 4 anos e 6 meses e os 5 anos de prisão. O acórdão recorrido, invocando o disposto nos artigos 40.º, n.º1 e 71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e 18.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, manteve inalterada a pena de 12 anos de prisão fixada pela 1.ª instância quanto ao crime de homicídio simples, p. e p. pelo art.131.º do Código Penal, com a agravação do art.86º, nº 3 da Lei da Lei n.º 5/2006, de 23.02, e aplicou-lhe uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, considerando, além do mais, o seguinte: “Ora, no caso vertente, tendo o homicídio sido cometido com o uso de uma arma de fogo enquadrável na al. c) do nº 1 do artigo 86º Lei nº 5/2006, de 23.02, e não sendo este uso elemento constitutivo do crime de homicídio - tendo mesmo este sido desqualificado pelo uso da arma - decorre que, na determinação da medida concreta da pena aplicada quanto ao crime de homicídio, deveria ter sido considerada a norma do nº 3 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23.02. O que significa que o crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º do C. Penal, sendo é punível com pena de prisão de 8 a 16 anos de prisão, com a agravação dos nº 3 e nº 4 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23.02, com a alterações da Lei nº 17/2009, de 06.05, é punível com a pena de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses de prisão. No entanto, porque o M.P., no recurso que interpôs, não pediu a agravação da pena aplicada quanto ao crime de homicídio, este Tribunal da Relação, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus consagrado no artigo 409º do CPP, está impedido de agravar a aludida pena. No sobredito contexto, vejamos então se a pena de prisão fixada, como pretende o recorrente, deverá ser reduzida, bem assim qual a pena a aplicar quanto ao crime de detenção de arma proibida por ele perpetrado. O crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 81º, nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006, de 23.02 é punível com a pena de 1 a 5 anos de prisão ou com pena de multa de 10 a 600 dias. Da fundamentação do acórdão recorrido, resulta que teve-se em conta cada um dos fatores suscetíveis de influenciar a medida concreta da pena de acordo com dos princípios gerais de determinação acima enunciados. A ilicitude dos factos – nas vertentes de desvalor da ação e de desvalor de resultado – é a suposta pelos tipos de ilícito perpetrados. A culpa do arguido, no que concerne à detenção de arma proibida, é intensa, uma vez que agiu com dolo direto: o arguido representou os factos e atuou com intenção de os realizar – artigo 14º, nº 1 do C. Penal. No que se refere ao crime de homicídio, como se refere no acórdão, o arguido cometeu este crime com dolo eventual – artigo 14º, nº 3 do C. Penal. As exigências de prevenção geral, não apenas negativa, de intimidação, mas sobretudo positiva ou de integração, isto é de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação das normas ocorrida, fazem-se sentir com particular intensidade no caso concreto face à natureza dos crimes em presença (homicídio com uso de arma de fogo e detenção de arma proibida) cujos bens jurídicos foram violados e são causa de enorme insegurança e alarme social. A violação do bem jurídico fundamental, que é a vida humana, é sempre sentida de forma muito negativa pela comunidade. No que concerne ao crime de detenção de arma proibida, pela frequência com que é praticado, e por estar associado – como muito frequentemente acontece – à prática, com violência contra as pessoas, de outros ilícitos típicos, é gerador de fortes sentimentos de insegurança e intranquilidade social. São, por isso, muito elevadas as exigências de prevenção geral. No que diz respeito à prevenção especial (negativa e positiva ou de socialização), embora com relevância também por via da culpa, há a considerar: - A idade do arguido (28 anos de idade na data dos factos enquanto reveladora de maturidade da sua personalidade); - O arguido assumiu ter disparado na direção da vítima; - Os seus antecedentes criminais, nos quais se contam três condenações em penas de multa pela prática de três crimes de natureza diversa daqueles que são objeto destes autos, ou seja, pela prática de crimes relativos à circulação rodoviária (um crime de condução em estado de embriaguez e dois crimes de condução sem habilitação legal); - O decurso do tempo (já passaram mais de nove anos desde a data da prática dos factos, sendo que o arguido ausentou-se para o estrangeiro logo após os factos, tendo sido declarado contumaz); - Todo o passado do arguido, nele se incluindo as habilitações literárias, as condições sociais, familiares e económicas, etc., designadamente as existentes na data da prática dos factos, bem assim o seu comportamento atual. Assim, quanto a este aspeto, há que ter em conta o vertifos nos factos provados de 31 a 53, registando-se a origem sociocultural média do arguido; as suas habilitações literárias (o arguido concluiu o 9º ano de escolaridade); a sua inserção sócio profissional (tem uma companheira e um filho com 11 anos de díade, sempre tendo hábitos de trabalho), encontrando-se em prisão preventiva à ordem dos presentes autos desde 05.08.2020. Por isso, julgamos que as exigências de prevenção especial encontram-se atenuadas. Assim, quanto ao crime de homicídio, o quantum da pena respeita os princípios da necessidade, proibição de excesso ou proporcionalidade das penas, observando o preceituado no artigo 18º, nº 2, da CRP, sendo adequada à reposição da validade da norma infringida e não ultrapassa a medida da culpa do arguido. Por conseguinte, julgamos ser de manter a medida da pena, quanto ao perpetrado crime de homicídio, nos termos fixados pela primeira instância. Outrossim, quanto ao crime de detenção de arma proibida, dado que a arma foi usada no cometimento do crime de homicídio, em conformidade com o disposto no artigo 70º do CP, face às sentidas exigências de prevenção geral, isto é a necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada, quanto o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, impõem a opção pela pena de prisão, a qual julga-se adequado fixar em um ano e seis meses.”. Do ora exposto resulta evidenciado que o acórdão recorrido, ponderou a conduta do arguido e a ação da vítima DD, a personalidade do arguido que resulta dos factos provados e a natureza dos crimes que integram os antecedentes criminais do ora recorrente. Sopesando as circunstâncias que depõem contra e a favor da responsabilidade criminal do arguido AA e as molduras penais aplicáveis, não nos suscitam reservas as concretas penas aplicadas, seja quanto ao crime de homicídio simples, seja quanto ao crime de detenção de arma proibida, por não se mostrarem excessivas, mas proporcionais e adequadas às descritas exigências de prevenção geral e especial, bem como à culpa - a referência à pena aplicada pelo crime de detenção de arma proibida ocorre apenas por mera cautela, pois o recorrente não impugna, expressamente, ao abrigo dos disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, a medida da pena pela prática deste crime. No que respeita à pena única, de 12 anos e 6 meses de prisão, fixada em cúmulo jurídico, nenhuma referência à feita à mesma, seja nas conclusões da motivação do recurso ou na respetiva motivação, nem em lado algum se invoca a violação do disposto no art.77.º do Código Penal, que dispõe sobre a fixação da pena conjunta. Ainda assim, não deixamos de dizer que perante uma moldura de punição de 12 anos de prisão (limite mínimo) a 13 anos e 6 meses de prisão (limite máximo), afigura-se-nos que a pena conjunta de 12 anos e 6 meses de prisão, que resulta da prática de um crime de homicídio simples e de um crime de detenção de arma proibida, é inteiramente adequada e proporcional à ilicitude global dos factos e à personalidade evidenciada pelo recorrente. Assim, não merece provimento igualmente esta questão. 14. Da indemnização arbitrada no âmbito do pedido de indemnização civil. Por último, defende o recorrente AA que ocorrendo uma situação de legítima defesa, a consequência será naturalmente a improcedência do pedido de indemnização civil deduzido, porquanto não se verificam os pressupostos da responsabilidade extracontratual enunciados no art.483.º do Código Civil, desde logo, o facto ilícito criminoso, com base no qual foi formulado o pedido. Porém, num quadrante subsidiário, sustenta que das quantias atribuídas a título de indemnização, que foi condenado a pagar à demandante civil CC (€80.000,00 pela perda do direito à vida, € 25.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos com a morte do filho, e € 36.000 pela perda de alimentos), duas delas são exageradas, devendo ser reduzida para €60 000 a quantia pela perda do direito à vida e para € 20.000, a quantia a título de danos não patrimoniais sofridos com a morte do filho. Vejamos. A improcedência do pedido cível com fundamento em alegada inexistência do facto ilícito criminoso e absolvição da parte criminal, mostra-se prejudicada face à manutenção da condenação penal objeto de apreciação, pelo que, prima facie, restaria apreciar a questão colocada a título subsidiário pelo recorrente, da redução de duas das quantias indemnizatórias atribuídas à demandante e que o ora recorrente foi condenado a pagar. Importa, porém, trazer à colação, o art.400.º do Código de Processo Penal, que sob a epígrafe «Decisões que não admitem recurso», estatui, com interesse para a presente questão: «2. Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa a indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada. 3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.» A expressão “só”, referida no n.º2 do art.400.º do C.P.P., foi introduzida pela Lei n.º 59/98, que acrescentou ainda uma nova exigência antes não contida no n.º2 do mesmo artigo: o valor do pedido, para efeitos de admissão de recurso da decisão cível, tem de ser superior à alçada do tribunal recorrido. No atual regime, mesmo que a sucumbência seja superior a metade da alçada do tribunal não é admissível o recurso se o valor do pedido se situar dentro da alçada do tribunal recorrido. Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de €30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de € 5.000,00 (art.44.º, n.º1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que aprovou a Organização do Sistema Judiciário). O n.º 2 do art.400.º, do Código de Processo Penal, coincidente com o art.629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, estabelece dois critérios cumulativos de admissibilidade do recurso da sentença relativamente a matéria cível: (i) o recurso é admissível “desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido” – o denominado critério da alçada ou do valor – (ii ) “e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada” – o denominado critério da sucumbência. O n.º3 foi aditado ao art.400.º do Código de Processo Penal, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, com vista a alargar as situações de recorribilidade, assumindo a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, que “Para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal.”. Esta disposição veio fazer caducar a jurisprudência fixada em sentido contrário pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n.º 1/2002, de 14-3-2002, que onde este Tribunal havia deliberado que «No regime do Código de Processo Penal vigente – n.º2 do artigo 400.º, na versão da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto – não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão final.». Assim, atualmente, permite-se que, verificado o condicionalismo do n.º2 do art.400.º do Código de Processo Penal, se possa recorrer da parte da sentença relativa à indemnização civil quando não é admissível recurso penal à luz do n.º1 do mesmo art.400.º. Porém, uma vez que a ação cível se autonomiza dos destinos da causa penal e se pretende uma igualação com o regime de recursos da ação cível, é agora pacífico, por força do disposto no art.4.º do Código de Processo Penal, que são aqui aplicáveis os casos de inadmissibilidade de recurso previstos no Código de Processo Civil. O art.671.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Decisões que comportam revista», estabelece, no seu n.º 3: «Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.». O Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente “caber na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados”.[18] O impedimento generalizado ao triplo grau de jurisdição, consagrado neste n.º 3 do art.671.º, do C.P.C., visando racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, assenta na chamada “dupla conforme”. Obsta à interposição do recurso de revista normal, a confirmação pela Relação da decisão de 1.ª instância, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica. Ao instituto da dupla conforme – que determina a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões da Relação que confirmem por unanimidade a decisão recorrida – subjaz a ideia de que a concordância de duas instâncias é fator indiciador do acerto da decisão. Como bem observa Abrantes Geraldes, a existência de dupla conforme – que se verifica quando seja confirmada a decisão da 1ª Instância sem voto de vencido e sem uma fundamentação essencialmente diferente – não é perturbada por “…discrepâncias marginais, secundárias ou periféricas, que não representem um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de um outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância.”.[19] Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 20-12-2014 (CJ, n.º 259, pág. 132). A regra da dupla conforme apresenta, como exceções, as três situações particulares enunciadas no n.º1 do art.672.º do Código de Processo Civil: «a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b) Estejam em causa interesses de particular relevância social; e, c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.». No pedido de «revista excecional», ao abrigo do disposto no art.672.º do C.P.P., deve o requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição: «a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b) As razões pelas quais os interesses são de particular relevância social; c) Os aspetos de identidade que determinam a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição» (n.º2). Nos termos do art.672.º, n.º2, do C.P.C. «A decisão quanto à verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 compete ao Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes escolhidos anualmente pelo presidente de entre os mais antigos das secções cíveis.». Retomando o caso concreto. A demandante CC deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado AA requerendo a sua condenação no pagamento da importância global de € 554.117,32, a título de ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, causados com a prática do crime de homicídio simples. O Juízo Central Criminal ..., por acórdão de 10 de dezembro de 2021, julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização cível e condenou o arguido/demandado a pagar à demandante a quantia global de € 141.000,00, acrescida de juros à taxa legal. O acórdão Tribunal da Relação Guimarães, que em sede de recurso conheceu desta decisão, manteve a condenação do arguido/demandado, nos montantes fixados na 1.ª instância, acrescido dos respetivos juros de mora legal. No caso, em que se manteve a responsabilidade criminal do arguido AA, ainda que se possam considerar verificados os requisitos de admissibilidade do recurso previsto no n.º 2 do art.400.º, do Código de Processo Penal, é evidente a existência da dupla conforme consagrada no n.º 3 do art.671.º, do C.P.C.. Esta dupla conforme impede a admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que o acórdão do Tribunal da Relação confirmou a decisão de 1.ª instância, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica, como se constata do seguinte segmento final do acórdão ora recorrido, que conheceu da questão do pedido de indemnização cível que lhe havia sido colocada: “Por conseguinte, tendo em consideração às particularidades do caso em apreço, julgamos que o tribunal recorrido, na fixação do valor danos aqui em discussão, nas palavras do nosso mais alto tribunal não se afastou, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adotados numa jurisprudência evolutiva e atualista, a qual, aliás, procurou seguir, como decorre da numerosa jurisprudência citada no acórdão recorrido. Assim, tudo ponderado, consideramos ser de manter os valores fixados pelo tribunal recorrido para compensar o dano pela perda do direito à vida, e os danos sofridos pela assistente com a morte do seu filho DD.”.[20] Uma nota ainda: nem o recorrente interpôs recurso de revista excecional, nem se verifica nenhuma das situações previstas no art.672.º do Código de Processo Civil, que prevê essa revista, Em conformidade com o que vem de se expor, impõe-se concluir pela inadmissibilidade do recurso na parte cível, por irrecorribilidade da decisão, mantendo-se assim a decisão recorrida.
III - Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, na parte criminal, confirmando o acórdão recorrido e, em rejeitar o conhecimento, por inadmissibilidade legal, do recurso do mesmo arguido/demandado quanto à parte cível. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs (art.513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa). * (Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).
* Lisboa, 10 de novembro de 2022 Orlando Gonçalves (Relator) Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta) Leonor Furtado (Adjunta)
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[6] Cf. acórdãos do STJ de 12-3-2009 e de 04-09-2015, in www.dgsi.pt. [8] Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Univ. Católica, 1981, pág. 300. [16] Cf. Prof. Fig. Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230. [18] Cf., entre outros, o acórdão n.º 357/2017, in www.tribunalconstitucional.pt |