Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
391/06.0TBBNV.E2.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: LUIS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
NULIDADE SANÁVEL
CONHECIMENTO OFICIOSO
DECISÃO FINAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA
CONTRATO DE AGÊNCIA
CONTRATO DE CONCESSÃO COMERCIAL
AVISO PRÉVIO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
LUCRO LÍQUIDO
ÓNUS DA PROVA
CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR
Data do Acordão: 11/26/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE
Sumário :
I. O conhecimento oficioso da ineptidão da petição inicial deve ter lugar o mais tardar até à sentença final, ficando vedado ao tribunal conhecer dela em sede de recurso, sob pena de se verificar nulidade do acórdão por excesso de pronúncia.

II. À interpretação da sentença devem aplicar-se os critérios definidos no artigo 236.º do Código Civil.

III. Constituem danos da antecipação, os danos referidos no artigo 29.º, 1 do DL n.º 178/86, para a denúncia do contrato de agência sem o pré-aviso legalmente exigido, aplicável por analogia aos contratos de concessão comercial.

IV. A dificuldade da prova e a complexidade do cálculo do dano não deve servir para que o tribunal, a pretexto do risco da injustiça da sobrecomposição, pratique uma injustiça ainda maior: a recusa em reparar um dano certo e visível do lesado.

V. A equidade integrativa permite respeitar o imperativo da reparação.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 391/06.0TBBNV.E2

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


***


OCP Portugal – Produtos Farmacêuticos, SA deduziu incidente de liquidação da sentença contra E… Portugal, Lda., anteriormente designada SCA Hygiene Products, Lda, pedindo que a requerida seja condenada a pagar-lhe a quantia de €209 098,77, acrescida de juros de mora até efectivo e integral pagamento, a título de indemnização pela denúncia do contrato de concessão comercial com incumprimento do aviso prévio de seis meses.

A requerida pugnou pela improcedência do Incidente.

Foi proferida sentença que julgou o incidente totalmente improcedente, absolvendo a requerida do pedido.

Inconformada, a requerente interpôs recurso de apelação, sendo que o Tribunal da Relação de Évora revogou a decisão recorrida, para depois absolver a requerida da instância.

Inconformada, interpôs a requerente competente revista, assim tendo concluído a sua minuta de recurso:

1. O presente recurso é admissível, ao abrigo do disposto no artigo 671.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, porquanto a decisão do Tribunal de 1.ª instância e a do Tribunal da Relação, para além de terem fundamentos diferentes, são efetivamente distintas, pelo que não se verifica a exceção prevista no n.º 3 do referido artigo 671.º.

2. O Tribunal da Relação, ao ter absolvido a Recorrida da instância por considerar verificada uma exceção dilatória de ineptidão da petição inicial por falta de causa pedir, decidiu mal, pelo que deverá a sua decisão ser revogada.

3. Desde logo, o Tribunalda Relação não tinha competência para declararinepta a petição inicial apresentada pela Recorrente, de forma inovadora, no seu Acórdão de que ora se recorre, porquanto, nos termos do disposto no artigo 200.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, não sendo reconhecida qualquer ineptidão da petição inicial até à sentença proferida em 1.ª instância, tal reconhecimento preclude, considerando-se a nulidade sanada.

4. Assim, uma vez que a o Tribunal de 1.ª Instância não se pronunciou quanto a uma eventual ineptidão da petição inicial apresentada pela Recorrente, o Tribunal da Relação a quo não o podia ter feito, de forma inovadora, no Acórdão de que ora se recorre.

5. Tendo-o feito, i.e., tendo o Tribunal a quo julgado a petição inicial inepta, de forma inovadora, no Acórdão de que ora se recorre, tal constitui um excesso de pronúncia, afetando de nulidade o Acórdão proferido, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.

Sem prescindir,

6. O requerimento inicial apresentado pela Recorrente aquando da propositura do incidente de liquidação não é inepto, do mesmo constando a causa de pedir que culmina no pedido de indemnização da Recorrente pelo valor de € 209.098,77 (duzentos e nove mil e noventa e oito euros e setenta e sete cêntimos).

7. Na verdade, a sentença liquidanda não estabeleceu que o valor indemnizatório a ser pago pela Recorrida à Recorrente corresponde ao lucro líquido médio mensal obtido pela S…, S.A., no ano de 2004, multiplicado por seis, nem estabeleceu que aquilo que foi relegado para incidente de liquidação foi o apuramento do lucro líquido médio mensal obtido pela S., S.A., em 2004.

8. O que ficou dependente de quantificação foi o cálculo da indemnização a ser atribuída à Recorrente, pelos danos por esta sofridos com a denúncia sem qualquer aviso prévio do contrato de distribuição que mantinha com a Recorrida, tendo a sentença dito apenas que o lucro líquido obtido pela S..., S.A., no ano de 2004, deve ser a referência para o cálculo da indemnização.

9. Com efeito, a Recorrente pediu que a indemnização fosse liquidada em €209.098,77 (duzentos e nove mil e noventa e oito euros e setenta e sete cêntimos),que corresponde a metade do lucro bruto auferido pela Recorrente em 2004 – cfr. facto provado 27 da sentença liquidanda.

10. Isto é, a Recorrente, no seu requerimento inicial de liquidação, alegou que, durante o período de aviso prévio em falta, não realizou qualquer faturação com a venda das fraldas, ao abrigo do contrato denunciado, mas suportou todos os custos que eram inerentes a essa atividade comercial – cfr. facto provado 41 da sentença liquidanda.

11. A partir daqui, alegou que a indemnização que tem direito a receber é o lucro líquido auferido em 2004, em igual período, acrescido dos custos ociosos de comercialização que suportou.

12. Para a liquidação não interessa, com todo o respeito, quantificar matematicamente os custos suportados pela Recorrente em 2004 com a comercialização. Basta saber que em 2005 suportou esses custos sem remuneração correspondente. São, por isso, prejuízo indemnizável!

13. No cômputo final, liquidar a indemnização por um montante igual ao valor do lucro bruto recebido no segundo semestre de 2004, é pagar o lucro líquido não auferido no segundo semestre de 2005 e reembolsar os custos ociosos suportados pela Recorrente em igual período.

14. É esta a causa de pedir que a Recorrente preencheu no requerimento inicial de liquidação, nos artigos 9.º a 38.º, dentro do critério de referência estabelecido na sentença liquidanda.

15. Assim, a Recorrente não vislumbra a existência de qualquer ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir que sustente o pedido de liquidação, pois os elementos que constituem a causa de pedir, para efeitos de liquidação de sentença, estão alegados no Requerimento Inicial.

Sem prescindir,

16. Se o Tribunal da Relação a quo entendesse que a Recorrente não alegou factos suficientes que lhe permitissem fixar o quantum indemnizatório, sempre o Tribunal da Relação deveria ter revogado a sentença proferida pelo Tribunal da 1.ª Instância, mandando baixar os autos para que fossem tomadas as diligências necessárias ao apuramento dos factos e meios de prova que se mostrassem necessários à quantificação da quantia indemnizatória.

17. No incidente de liquidação de sentença, as partes estão obrigadas a alegar e, tanto quanto possível, provar os factos tendentes a quantificar a prestação liquidanda, oferecendo as provas necessárias aquando da suscitação do incidente.

18. Contudo, “[q]uando a prova produzida pelas litigantes for insuficiente para fixar a quantia devida, incumbe ao juiz completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial.” (cfr. artigo 360.º, n.º 4 do Código de Processo Civil).

19. Atenta a finalidade do incidente de liquidação e a sua dependência da sentença liquidanda, aquele nunca pode terminar sem a quantificação do montante, in casu, da indemnização, porquanto tal subverteria o objetivo e alcance de tal incidente, e poria em causa a sentença condenatória transitada em julgado.

20. Como tal, o Tribunal de 1.ª Instância, em face daquilo que considerou ser uma insuficiência de prova apresentada pelas partes, sempre estava obrigado a indagar oficiosamente, por forma a poder quantificar o montante da indemnização, nunca podendo colocar termo ao incidente de liquidação da sentença, considerando-o improcedente.

21. Além disso, perante a alegada deficiente alegação e insuficiência de prova dos factos que determinariam mais concretamente o lucro líquido referente ao ano de 2004, o Tribunal de 1.ª Instância estava obrigado a providenciar pelo suprimento de tal irregularidade, proferindo um convite ao aperfeiçoamento, nos termos dos artigos 6.º n.º 2 e 590.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

22. Assim, o Tribunal de 1.ª Instância, em face daquilo que entendeu como sendo uma insuficiência de prova e deficiente alegação factual, estava obrigado a convidar ao aperfeiçoamento, para que pudesse conhecer do mérito da causa – o que, efetivamente, não fez, tendo incumprido um seu poder-dever, ou poder vinculado.

23. Por fim, conforme referido, o incidente de liquidação não poderá terminar sem a concreta quantificação da quantia liquidanda, porquanto tal colocaria em causa a decisão condenatória transitada em julgado, estando a sua força coerciva unicamente dependente da respetiva liquidação.

24. Como tal, e conforme se deixou exposto, o Tribunal está obrigado a, em face da insuficiência da prova apresentada pelas partes, oficiosamente determinar produção de prova adicional, por forma a quantificar a quantia devida (cfr. artigo 360.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).

25. Contudo, nos casos em que o Tribunal, após indagação oficiosa, não consiga quantificar tal quantia, deverá o mesmo recorrer à equidade, fixando a quantia liquidanda segundo tais critérios (cfr. artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil), cumprindo inteiramente o fim do incidente de liquidação.

26. O Tribunal de 1.ª Instância indeferiu o incidente de liquidação, por falta de prova, absolvendo a Recorrida do pedido, pelo que claramente se compreende que, além de não ter procedido à indagação oficiosa a que estava obrigado (cfr. artigo 360.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), não cumpriu com a sua obrigação de liquidar a quantia devida segundo critérios de equidade (cfr. artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil).

27. O Tribunal da Relação optou por absolver a Recorrida da instância, por entender verificar-se uma exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, em vez de remeter os autos novamente ao Tribunalde 1.ªInstância,para que pudessem ser produzidas provas e, em último recurso, ser proferida decisão de mérito que quantificaria a indemnização com base na equidade.

28. Ambas as decisões de não liquidar a quantia indemnizatória, proferidas pelo Tribunal de 1.ª Instância e pelo Tribunal da Relação são, por tudo o exposto, processualmente inadmissíveis.

Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o Acórdão do Tribunal da Relação ser revogado e substituído por outro que condene a Recorrida a pagar à Recorrente a quantia de € 209.098,77 (duzentos e nove mil e noventa e oito euros e setenta e sete cêntimos). Sem prescindir, deverá o Acórdão do Tribunal da Relação ser revogado, ordenando-se a descida dos autos ao Tribunal da 1.ª Instância, para que este proceda às averiguações oficiosas necessárias à quantificação da quantia devida e, subsidiariamente, não se mostrando tal possível, quantificar a quantia devida segundo critérios de equidade, assim se fazendo inteira JUSTIÇA!».

A requerida apresentou contra-alegações em que pugna pela confirmação do julgado.


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São as seguintes as questões decidendas:

1) Da nulidade da sentença;

2) Da interpretação da sentença liquidanda;

3) Da indemnização por falta de pré-aviso da denúncia do contrato.

4) Dos juros.


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São as seguintes as afirmações fáctico-jurídicas consideradas assentes pelas instâncias:

1. Após a cessão do contrato de distribuição de fraldas, a S…, SA, atualmente OCP, SA, ora Autora, decidiu manter os trabalhadores e as estruturas de marketing e de vendas afetas a essa parte do negócio, dessa forma continuando a suportar os respetivos custos, de valor não concretamente apurado.

2. Após os descontos que concedia aos clientes a Sofiqua, SA ficava com uma margem de lucro entre 24% e 25%.

Mais está documentalmente provado que:

- no facto provado sob o n.º 27 da sentença consta que “S..., S.A. auferiu o lucro bruto, em 2004, não superior a €418 197,54”;

- no facto n.º 41 consta que a A “manteve os três vendedores, o empregado de armazém e o administrativo que tinham estado afetos, a título principal, à comercialização das fraldas Tena e Libero, suportando os custos inerentes”;

- por decisão transitada em julgado, a Requerida foi condenada a pagar a «quantia que se apurar em liquidação de sentença a título de indemnização pela denúncia sem um pré-aviso de seis meses, tendo por referência o valor do lucro líquido médio mensal obtido pela S…, SA no ano de 2004, multiplicada por seis (artigo 29.º, n.º 2, DL n.º 178/86, de 3 de Julho), com o limite máximo de €209.099,00».


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1. Da nulidade do acórdão por excesso de pronúncia

Alega a recorrente que «o Tribunal da Relação não tinha competência para declarar inepta a petição inicial apresentada pela recorrente, de forma inovadora, no seu Acórdão de que ora se recorre, porquanto, nos termos do disposto no artigo 200.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, não sendo reconhecida qualquer ineptidão da petição inicial até à sentença proferida em 1.ª instância, tal reconhecimento preclude, considerando-se a nulidade sanada.

Assim, uma vez que o Tribunal de 1.ª Instância não se pronunciou quanto a uma eventual ineptidão da petição inicial apresentada pela recorrente, o Tribunal da Relação a quo não o podia ter feito, de forma inovadora, no Acórdão de que ora se recorre».

Acrescenta: «Tendo-o feito, i.e., tendo o Tribunal a quo julgado a petição inicial inepta, de forma inovadora, no Acórdão de que ora se recorre, tal constitui um excesso de pronúncia, afetando de nulidade o Acórdão proferido, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil».

A recorrente tem razão.

Vejamos os artigos que esta arguição convoca.

Preceitua o artigo 186.º do CPC (serão deste código os artigos ulteriormente citados sem diferente menção) - Ineptidão da petição inicial:

«1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

2 - Diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.

(...)».

Artigo 200.º- Quando deve o tribunal conhecer das nulidades

«1. (...).

2. As nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º são apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final.

(...)».

Artigo 595.º (Despacho saneador)

«1 - O despacho saneador destina-se a:

a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;

(...)

2. (…)

3. No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas (…)».

No caso sujeito, não houve lugar a despacho liminar, a requerida não arguiu, na contestação, a ineptidão do requerimento inicial ex artigo 186.º, 3, e foi proferido saneador tabelar, não tendo sido apreciada concretamente a questão da ineptidão do requerimento inicial.

Quer isto dizer que a nulidade persistiu após fase da condensação até à sentença final, onde a questão também não mereceu qualquer pronúncia.

O citado artigo 200.º, 2 não deixa, aparentemente, qualquer dúvida quanto ao regime preclusivo que decorre da proposição normativa deste preceito.

Depois da sentença final não se pode arguir nem conhecer a nulidade da petição por ineptidão.

A Relação entendeu, porém, aplicar uma teoria inovadora, que recolheu da anotação online do CPC da autoria de Miguel Teixeira de Sousa.

Diz este professor: «5.A imposição da preclusão da apreciação depois do despacho saneador da nulidade de todo o processo e de uma nulidade e exceção dilatória insanável não é aceitável. Não tem sentido deixar que permaneça pendente depois do despacho saneador uma ação em que, p. ex., não há causa de pedir (art. 186.º, n.º 2, al. a)) ou em que o pedido é contraditório com essa causa petendi (art. 186.º, n.º 2, al. b)). (b) Nem mesmo quando o réu não tenha invocado a ineptidão da p.i. na contestação se pode presumir que o mesmo interpretou convenientemente aquele articulado e que, por isso, não se justifica a apreciação oficiosa daquela ineptidão. O que resulta do disposto no art. 186.º, n.º 3, é diferente: a ineptidão não deve relevar quando o réu a tenha arguido e quando, depois de ouvir o autor, se conclua que aquela parte interpretou convenientemente a p.i.

6 (a) Há que reduzir o âmbito de aplicação do disposto no n.º 2 quanto à ineptidão da p.i. a uma dimensão razoável, fazendo uma interpretação restritiva do disposto nesse preceito e entendendo que a imposição do conhecimento dessa ineptidão no despacho saneador só vale para a hipótese de o réu a ter alegado na contestação (art. 198.º, n.º 1). (b) O regime é então o seguinte: (i) se a ineptidão da p.i. for alegada pelo demandado na contestação, o tribunal deve conhecer dessa nulidade no despacho saneador (n.º 2); a falta deste conhecimento implica a nulidade, por omissão de pronúncia (art. 613.º, n.º 3, e 615.º, n.º 1, al. d)), daquele despacho; (ii) se a ineptidão da p.i. não tiver sido alegada pelo demandado, não há nenhuma preclusão do conhecimento oficioso dessa ineptidão depois do despacho saneador (dif. LF I (2018), n.º 2; GPS (2022), n.º 3; na j., RG 7/2/2019 (82/10); RG 26/1/2023 (2475/21)), salvo se essa ineptidão tiver sido concretamente apreciada ex officio naquele despacho (art. 595.º, n.º 3, 1.ª parte)».

Pese embora o peso da autoridade académica do professor citado, não o podemos acompanhar nesta construção.

Para explicar porquê, importa fazer um enquadramento histórico da evolução do regime de nulidade da petição inepta por falta de causa de pedir. Procuraremos dizer só o essencial para motivar adequadamente a nossa discordância.

O Código de Processo Civil de 1876 prescrevia no artigo 128.º a nulidade dos actos judiciais contrários à lei, e estabelecia, no artigo 129.º, a distinção entre nulidades supríveis e insupríveis, consoante podiam ou não ser supridas pela simples vontade das partes.

A lei considerava nulidade insuprível a ineptidão do requerimento em que se deduziu a acção (artigo 130.º, 1).

Preceituava o artigo 131.º: As nulidades insupríveis podem ser arguidas em qualquer estado do processo.

§ único. Os tribunais de qualquer categoria podem conhecer destas nulidades, sem dependência de reclamação dos interessados, salvo o que fica disposto no artigo n.º 2 do artigo antecedente.

Apesar da clareza do regime, José Alberto dos Reis ensinava que as nulidades insupríveis podiam ser arguidas pelos interessados, em qualquer altura do processo, e os tribunais podiam conhecer delas oficiosamente, excepto da falta de primeira citação, dado que essas nulidades ofendem o interesse público, concretizado judiciariamente na determinação da verdade e portanto na sustentação dos direitos do autor e na defesa dos direitos do réu (Processo Ordinário Civil e Commercial, Vol. I, Coimbra, 1907:549/550).

Este Professor acrescentava que seria melhor que o legislador tivesse adoptado o regime da incompetência em razão da matéria (artigo 3.º, § 2), impondo aos tribunais, independentemente do grau, o conhecimento daquelas nulidades (idem).

Mas não se discutia que a Relação e o próprio Supremo Tribunal de Justiça, mesmo na falta de minuta ou conclusões do recurso, devia examinar se o processo «adoece» (sic) de alguma das nulidades insanáveis, para declarar sem efeito o processado (José Dias Ferreira, Código de Processo Civil, Annotado, Coimbra, 1887:210/211).

Pois bem: este regime foi profundamente alterado pelo Código de Processo Civil de 1939 que, nesta parte, ainda se mantém, no essencial, em vigor ainda hoje.

Como explica Barbosa de Magalhães, o qual fez parte da Comissão Revisora do Código de Processo Civil, tendo apresentado vários relatórios sobre problemas processuais, de entre eles, sobre as nulidades do processo, a orientação do projecto foi de evitar o mais possível a anulação de processos e de actos judiciais: «é preciso suprir quanto possa ser suprido, aproveitar quanto possa ser aproveitado; não deixar perder senão o que de todo não preste, não obrigar a desnecessários dispêndios de tempo, de actividade e de dinheiro» («Relatório sobre o capítulo 4.º do título 1.º do livro 3.º do Projecto do Código de Processo Civil-Das nulidades processuais, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, I, Lisboa, 1940:27).

Não surpreende que tenha sido suprimida a distinção entre nulidades supríveis e insupríveis: pelo código deixou de haver nulidades insupríveis.

Mesmo no caso mais grave de todos –a ineptidão da petição inicial- a nulidade é suprível.

O artigo 206.º, § 2, hoje correspondente ao artigo 200.º, 2, que versa sobre o momento em que o tribunal conhece das principais nulidades, preceitua que, se não houver despacho saneador, o tribunal pode conhecer delas até à sentença final, sob pena de preclusão, ao contrário, portanto do que preceituava o artigo 130.º do Código de 1876.

O termo sentença final deve ser entendido, com o sentido que lhe era dado pelo mestre de Coimbra: «por sentença final deve entender-se a sentença que em primeira instância põe termo à causa, quer julgue do pedido, quer absolva o réu da instância, quer transite em julgado, quer seja recorrida» (Processo Ordinário…, op. cit:561).

Não resta a menor dúvida que a intenção do legislador de 39, nunca alterada, nem em 1961, nem em 1985, nem em 1995-1996, nem finalmente com a reforma de 2013, foi consagrar que o conhecimento oficioso da ineptidão da petição inicial deve ter lugar o mais tardar até à sentença final, ficando precludido o poder de o tribunal conhecer dela em sede de recurso, quer no segundo quer no terceiro grau.

Defender posição diversa é, sem desconsideração por tal posição, fazer uma proposta de jure condendo, sob a capa de uma interpretação restritiva.

De resto, a nossa jurisprudência tem corroborado, sem discrepâncias anteriormente conhecidas, a orientação acima exposta, como decorre dos seguintes acórdãos: Acs. STJ de 2.4.1992, BMJ, 416:641, de 15.4.1993, CJ/STJ T2:62, de 26.03.2015, Proc. 6500/07.4TBBRG.G2.S2 e de STJ de 14.07.2021, Proc. 56347/19.8YPRT.P1.S1.

Em suma, o acórdão impugnado não podia ter conhecido da ineptidão da petição, pelo que enferma de excesso de pronúncia.

Em caso de excesso de pronúncia, o STJ supre a nulidade, neste caso revogando o acórdão na parte em que conheceu da falta de causa de pedir, e conhecer dos outros fundamentos do recurso (artigo 684.º, 1), a começar pela interpretação da sentença liquidanda.


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2. Da interpretação da sentença liquidanda

Alega a recorrente que «a sentença liquidanda não estabeleceu que o valor indemnizatório a ser pago pela Recorrida à Recorrente corresponde ao lucro líquido médio mensal obtido pela S..., S.A., no ano de 2004, multiplicado por seis, nem estabeleceu que aquilo que foi relegado para incidente de liquidação foi o apuramento do lucro líquido médio mensal obtido pela S..., S.A., em 2004.

O que ficou dependente de quantificação foi o cálculo da indemnização a ser atribuída à Recorrente, pelos danos por esta sofridos com a denúncia sem qualquer aviso prévio do contrato de distribuição que mantinha com a Recorrida, tendo a sentença dito apenas que o lucro líquido obtido pela S..., S.A., no ano de 2004, deve ser a referência para o cálculo da indemnização.

Está aqui em causa a interpretação da sentença dada à execução.

A propósito desta matéria explica Henrique Antunes: «Devendo ter-se por adquirido que a interpretação da decisão judicial não tem por objecto a reconstrução da mens judicis – mas a descoberta do sentido preceptivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente, resta saber a que princípios regulativos deve obedecer a actividade interpretativa.

Visando a interpretação da decisão determinar o seu sentido juridicamente relevante, segue-se que a questão da interpretação do acto-decisão surge absorvida no problema mais vasto da interpretação do acto jurídico. Neste contexto, compreende-se o procedimento de assimilação da decisão judicial a outras categorias de actos jurídicos, de modo a possibilitar o uso de instrumentos interpretativos para eles dispostos no direito positivo.

Nem noutro sentido se orienta a jurisprudência que, partindo da caracterização da decisão judicial como acto jurídico receptício, tem sustentado, de forma repetida, que à interpretação da sentença devem aplicar-se os critérios definidos no artigo 236.º do Código Civil, aplicável, por força de remissão expressa, também a actos não negociais, portanto, a actos puramente funcionais que não possam considerar-se actos marcados pela liberdade de celebração (artigo 295.º do Código Civil; Acs. do STJ de 28.01.97, CJ, STJ, T V, I, pág. 83, 29.05.91, BMJ nº 407, pág. 446, 05.12.02, 18.09.03 e 24.02.05, www.dgsi.pt. e da RP de 14.03.95 e 22.05.00, www.dgsi.pt. Cfr., em sentido concordante, António Menezes Cordeiro, Tratado do Direito Civil, Tomo I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2000:227 e, em sentido dubitativo, Paula Costa e Silva, Acto e Processo, Coimbra, Editora, 2003:63. Note-se, porém, que alguma jurisprudência adiciona, aos critérios de interpretação da declaração negocial, as directrizes da interpretação da lei: cfr. os Acs. do STJ de 03.12.98 e 05.11.98, www.dgsi.pt. No sentido da aplicação à interpretação dos princípios comuns à interpretação do negócio jurídico e da lei, Antunes Varela, RLJ, Ano 124, pág. 152. Por aplicação deste critério, a decisão judicial deve ser interpretada de acordo com o sentido que o declaratário normal, colocado na posição real do declaratário – a parte – possa deduzir do seu contexto.

(…)

Dado que a tarefa interpretativa se dirige à individualização do sentido preceptivo da decisão, a interpretação deve incidir, preferencialmente, sobre a decisão em sentido estrito, quer dizer, sobre a parte decisória ou dispositiva, na qual se contém a decisão de condenação ou de absolvição (artº 659 nº 2, in fine,).

Todavia, como a decisão se encontra sempre referenciada a certos fundamentos, visto que é a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, é licito recorrer à motivação da decisão para se estabelecer o exacto significado do decisum, da estatuição que encerra (Vaz Serra, RLJ Ano 113: 296 e Acs. do STJ de 26.06.94, CJ, STJ, T II, pág. 165, 09.05.96, BMJ nº 457, pág. 263 e da RP de 06.11.00, CJ, V, pág. 182 e 11.11.96, www.dgsi.pt.).

Pode-se mesmo ir mais longe: se a decisão representa o conclusuum de um procedimento, ela pode ser interpretada à luz da globalidade dos actos que a precederam, quer se trate de actos das partes ou de actos do tribunal (Henrique Antunes e outro, Dos Recursos, Quid Juris, Lisboa, 2009:108/109).

Vejamos então o que resulta da sentença dada à execução.

S…, S.A. instaurou contra SCA Hygiene Produts, Lda. acção, com processo comum, tendo pedido a condenação desta no pagamento da quantia de € 714.377,20, acrescida de juros de mora vencidos desde a data de citação até ao seu integral pagamento.

No que se refere à indemnização por falta de pré-aviso, a recorrente reclamou €209.099,00, «quantia que corresponde à remuneração média mensal da A., no ano de 2004, multiplicada pelo tempo do pré-aviso não respeitado, i.e., 6 meses».

A decisão da 1.ª instância tem o seguinte dispositivo: «Condena-se SCA – Hygiene Products, Lda. a pagar a OCP Portugal, S.A. a quantia que se apurar em liquidação de sentença a título de indemnização pela denúncia sem um pré-aviso aviso de seis meses, tendo por referência o valor do lucro líquido médio mensal obtido pela S..., S.A. no ano de 2004, multiplicada por seis (artigo 29.º, n.º 2, DL n.º 178/86, de 3 de Julho), com o limite máximo de € 209.099,00;

A motivação de direito, deste capítulo condenatório, foi a seguinte: «O incumprimento do prazo de pré-aviso razoável ou sua pura e simples omissão não deixa de pôr termo ao contrato, mas o denunciante incorre na obrigação de indemnização, nos termos do artigo 29.º do DL n.º 178/86, de 3 de Julho.

Pois bem, neste particular, importa considerar o provado em 29. a 34., nomeadamente a comunicação da R. de que passaria a fornecer as fraldas “Tena” e “Libero” directamente a todas as farmácias e armazenistas de produtos farmacêuticos e a realizar a sua promoção, o envio à S..., S.A., no mês seguinte (Julho de 2005), de tabela com iguais condições às dos demais armazenistas de produtos farmacêuticos para aquisição de tais fraldas à R. e o acordar pela R. com a empresa de AA na promoção por esta das vendas das ditas fraldas junto de armazenistas de produtos farmacêuticos, mediante o pagamento de uma comissão, o que até aí fazia para a S..., S.A..

Toda esta conduta, para mais considerando que se tratava de um contrato de exclusividade, revela, à luz da teoria da impressão do destinatário (artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil), um claro propósito de fazer cessar o contrato de concessão comercial (vide a este propósito os Ac. STJ de 13-04-2010, Rel. Fonseca Ramos, e de 21-04-2005, Rel. Oliveira Barros, em dgsi.pt).

Uma vez que não foi invocado qualquer justa causa para o efeito, temos que ocorreu uma denúncia sem pré-aviso, geradora da indemnização prevista no artigo 29.º, n.º 2, DL n.º 178/86, de 3 de Julho, como foi opção da S..., S.A..

Face à duração do contrato, ao constante crescimento de vendas e ao seu valor em 2004, reputa-se razoável o prazo de pré-aviso de 6 meses (vide o já referido Ac. STJ de 21-04-2005 e os Ac. STJ de 12-04-2005, Rel. Pinto Monteiro e, para um contrato com 15 anos, de 13-05-2004, Rel. Nuno Cameira dgsi.pt).

Sucede que a expressão “remuneração”, prevista no artigo referido artigo 29.º, n.º 2 e 34.º, deve ser entendida, âmbito do contrato de concessão comercial, como lucro líquido, por a mesma ter o sentido de pagamento, e este se reportar a uma quantia líquida, não onerada com quaisquer encargos, o que não se confunde com margens de comercialização (Acs. STJ de 15-11-2007, Rel. Salvador da Costa e de 17-05-2012, Rel. Abrantes Geraldes e TRL de 25-06-2013, Rel. Ana Resende, dgsi.pt). E no caso vertente ignora-se o lucro líquido mensal obtido pela S..., S.A. no ano anterior (para assim se chegar à média em tal período).

Assim, impõe-se o relegar do apuramento do valor desta indemnização para liquidação de sentença, tendo por limite máximo a quantia, almejada a tal respeito, de € 209.099,00 (artigo 609.º, n.º 2, do CPC)».

Um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário não pode deixar de interpretar o questionado dispositivo da sentença, articulado com a motivação citada, com o sentido de que a liquidação da indemnização ficava balizada, por um lado, por um plafond de €209009.00 e, por outro, pela consideração, como referência, do valor do lucro líquido médio mensal obtido pela S..., S.A. no ano de 2004, multiplicada por seis. Nada mais do que isto. O que não significa propriamente que o objecto do incidente, ao contrário do que diz a Relação, se reconduza «ao apuramento do lucro líquido médio mensal obtido pela S…, SA no ano de 2004, multiplicado por seis» como veremos de seguida.


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3.Dos danos da antecipação

Assinala Paulo Mota Pinto que pertencem a este tipo de danos (precisamente chamados de antecipação) os danos referidos no artigo 29.º, 1 do DL n.º 178/86, para a denúncia do contrato de agência sem o pré-aviso legalmente exigido, aplicável por analogia aos contratos de concessão comercial (Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008:1063, nota 2970).

A parte que viola o contrato, provocando a sua cessação, apenas tem de ressarcir à outra os prejuízos resultantes do termo antecipado da relação contratual e que não teriam surgido no caso de observância do prazo de denúncia.

Formulado um pedido específico, a lei permite que o tribunal profira uma condenação genérica, não se devendo interpretar restritivamente o artigo 609.º 2, limitando-a aos casos de danos não verificados ou desconhecidos no momento da propositura da acção (neste sentido José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, vol. I, 1948:615 e Vol. V, 1952:70/71, Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, Lisboa, 2001:184; na jurisprudência, v.g. Acs. STJ de 29.1.1998, BMJ 473:445, de 7.10.99, no BMJ 490:212, de 2.2.2006 Proc. 3225/05, de 23.01.2007, Proc.06A4001, de 2.3.2011, Proc. 1460/03, de 11.4.2013, Proc. 539/10, e de 30.5.2013, Proc. 4209/06).

Foi assim que se procedeu no primeiro grau, quanto a este pedido de indemnização.

Instaurado incidente de liquidação, o primeiro grau argumentou deste modo na sentença final: «Com o presente incidente pretende a autora liquidar a indemnização pela denúncia, sem um pré-aviso de seis meses, de um contrato de distribuição comercial, tendo por referência o valor do lucro líquido médio mensal obtido pela então S..., S.A., no ano de 2004, multiplicada por seis, com o limite máximo de € 209.099,00 (artigo 29.º, n.º 2, do DL n.º 178/86, de 3 de Julho).

Por lucro bruto deve entender-se a diferença entre o valor das vendas e o custo de aquisição das mercadorias vendidas. Por sua vez, o lucro líquido obtém-se subtraindo ao lucro bruto os custos fixos ou variáveis. Diferente de lucro líquido é o lucro tributável, calculado de acordo com as normas fiscais (Código do IRC e demais legislação tributária). Salvo o devido respeito por opinião contrária, o que se pretende liquidar é o lucro líquido e não o lucro tributável.

Por se tratarem de factos constitutivos do seu direito, competia à autora alegar e provar os factos indispensáveis à formação do lucro líquido, apresentando, nomeadamente, os necessários elementos contabilísticos (art. 342.º, n.º 1, do CC). In casu sabe-se apenas que a autora (então S..., S.A.) tinha uma margem de lucro entre 24% e 25% e que, não obstante a extinção do contrato de distribuição, manteve todos os trabalhadores e as estruturas de marketing e de vendas afectas a essa parte do negócio. Sabe-se ainda que em 2004 e 2005 auferiu um lucro bruto não superior a € 418.197,54 e de pelo menos € 202.982,00, respectivamente (factos provados constantes da sentença de primeira instância). Desconhece-se, contudo, quais os custos que teve (rectius, manteve) após o termo da relação jurídico-comercial, visto que decidiu continuar com os trabalhadores e as estruturas associadas a essa parte da sua actividade empresarial. Ora, ignorando-se o valor dos custos que devem ser descontados ao lucro bruto, não é possível determinar o lucro líquido, o que inviabiliza a pretensão da autora».

A Relação, a qual emitiu um juízo confirmativo desta decisão, opinou deste modo: «Assente que está, no n.º 27 da sentença liquidanda, que o lucro bruto, no ano de 2004, não foi superior a €418 197,54, é manifesto que cabia à Requerente alegar, e provar, qual o concreto valor do lucro bruto não superior a €418 197,54 e, bem assim, qual o valor dos custos/despesas suportados no ano de 2004 na prossecução da atividade concessionada. Por via do que se apuraria o lucro líquido médio mensal obtido no ano de 2004 e, respeitando o caso julgado formado pela decisão de condenação, se fixaria a quantia devida a coberto da condenação genérica.

Constata-se que tais elementos fácticos não constam do processo. Nem sequer foram alegados, pelo que, adiante-se, nem sequer cabia ao tribunal promover oficiosamente a prova de factos que não foram alegados. (…)

Impõe-se, assim, liquidar a condenação genérica, nos seus precisos termos.

A indemnização há de corresponder ao valor do lucro líquido médio mensal obtido pela S..., S.A. no ano de 2004, multiplicada por seis, com o limite máximo de €209 099. Nenhum elemento fáctico consta do processo que permita aferir qual é esse valor.

Terá aqui aplicação o regime inserto no art. 566.º/3 do CC? (…)

O recurso à equidade, ainda que como ultima ratio, permite obviar se profira decisão de improcedência no incidente de liquidação. (…)

Importa, no entanto, salientar que o julgamento equitativo do valor exato dos danos processa-se dentro dos limites que se tiverem por provados, como do art. 566.º/3 do CC resulta. Por via do que a decisão assente no juízo de equidade deverá sustentar-se em factos que, embora não revelem o valor exato dos danos, permitam aferir o montante adequado a fixar para que seja cumprido o efeito indemnizatório desses mesmos danos. O que inviabiliza que a decisão assente em critérios de mera arbitrariedade. (…)

Daí que se afirme que «o disposto no n.º 3 não dispensa o lesado de alegar e provar os factos que revelem a existência de danos e permitam a sua avalização segundo um juízo de equidade».

No caso em apreço, a factualidade apurada é a seguinte:

- a requerente auferiu o lucro bruto, em 2004, não superior a €418 197,54;

- a requerente manteve os três vendedores, o empregado de armazém e o administrativo que tinham estado afetos, a título principal, à comercialização das fraldas Tena e Libero, suportando os custos inerentes;

- após os descontos que concedia aos clientes a S…, SA ficava com uma margem de lucro entre 24% e 25%.

O que, manifestamente, não consente se determine, ainda que em termos de equidade, o valor adequado a indemnizar a requerente pela denúncia sem o pré-aviso de seis meses, tendo por referência o valor do lucro líquido médio mensal obtido pela S..., S.A. no ano de 2004, multiplicada por seis.

Atente-se que tal factualidade constava já como provada na sentença liquidanda (cfr. n.ºs 21, 27 e 41), inexistindo evidência ou afirmação de que a referida margem de lucro seja líquida (antes tudo apontando para se trate da margem bruta de lucro, conforme alegado e provado na fase processual anterior), e ainda no facto de constar como não provado que a referida equipa de trabalhadores atuava em exclusivo na comercialização dos produtos em causa. Os limites que se têm por provados, que constavam já da sentença que determinou a subsequente liquidação, não permitem se proceda a juízo de equidade, sendo que a definição de qualquer verba monetária redundaria numa decisão assente na arbitrariedade.

Termos em que, não obstante se trate de incidente de liquidação, não é de acolher a pretensão da recorrente no sentido da fixação da indemnização com recurso à equidade».

Não podemos acompanhar este raciocínio nem a conclusão a que chega.

Preceitua o artigo 566.º, 3 que se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados.

Apesar de numa acção indemnizatória estar demonstrado o an, ou seja a existência do dano, pode não se ter chegado á sua quantificação, ao quantum.

Em ordem a alcançar esta quantificação o legislador, previu dois mecanismos: i) o proferimento de uma sentença de condenação genérica com liquidação posterior (artigo 609.º, 2 CPC); ii) o cálculo dos danos de acordo com a equidade (artigo 566.º, 3 CC).

Quanto a este último mecanismo –e que está agora em equação-convém desde logo ter presente que a equidade, normalmente definida como a justiça do caso concreto, apresenta-se sob diferentes modalidades.

Na verdade, devemos diferenciar a equidade substitutiva, que se encontra prevista no artigo 4.º CC e que implica a «atribuição ao juiz do poder de se afastar das previsões normativas expressas», até «substituir integralmente a aplicação da noema com uma autónoma decisão equitativa», da equidade integrativa ou supletiva, prevista, entre muitas outras, na proposição normativa do artigo 566.º, 3, a qual cumpre a função de «atribuir ao juiz o poder de completar a norma positiva recorrendo à valoração equitativa para definir aspectos particulares da relação controvertida» (Roberto Martino, Il Giudice e L´Équita, Cacucci, Bari, 2017: 1 e 9 ss e Girolamo Monteleone, Manuale di Diritto Processuale Civile, Vol. I, 7.ª ed., Padova, 2015:250).

Se a aplicação do artigo 609.º, 2 pressupõe uma impossibilidade de cálculo do quantum indemnizatório temporária, o pressuposto da aplicação do artigo 566.º, 3 é uma impossibilidade permanente de operar esse cálculo.

Nuno Salpico afirma que se está diante de um caso do artigo 566.º, 3 nas seguintes situações:

i) Impossibilidade definitiva de quantificação do prejuízo, podendo a mesma subsumir-se numa impossibilidade de prova;

ii) Não foi dada como provada a não verificação dos danos ou de determinado elemento da sua extensão (Cálculo de Danos e Equidade, Almedina, Coimbra, 2023:137 ss).

A primeira situação pode ficar a dever-se a uma impossibilidade de prova de factos relativos ao quantum dos danos (impossibilidade de quantificação lato sensu) ou a uma dificuldade na tradução pecuniária dos prejuízos (impossibilidade de quantificação stricto sensu).

A segunda situação parece óbvia: não se pode recorrer à reparação equitativa, «a casos em que a não verificação do dano ou de elementos da sua extensão tenham sido dados como provados» (ibidem:316).

No caso sujeito, não se verifica esta última hipótese, ou seja, não foi dado como provado a não verificação de nenhum dos dois aspectos mencionados.

Há sim um problema de prova a acrescer a um de cálculo dos danos. Nada que a equidade integrativa não possa resolver.

É verdade que os factos disponíveis não revelam directamente o referido rendimento líquido no período de tempo acima referido.

Mas há outros elementos. parcos sem dúvida, que permitem que a equidade funcione, sem se cair na arbitrariedade.

É preciso evitar que a complexidade de cálculo do dano nos faça recuar diante do risco da injustiça da sobrecomposição, implicando tal recuo uma injustiça ainda maior: a pura e simples recusa em reparar.

Não vemos obstáculo em aderir à ideia avançada por Nuno Salpico de que o legislador, ao adoptar a norma do artigo 566.º, 3, e ao ordenar a reparação, «considerou preferível o risco da sobrecomposição em relação ao risco da subcompensação (ibidem:319).

Até porque é visível um dano que importa indemnizar. Até porque a jurisprudência deste Supremo tem registado que «de uma leitura conjugada do artigo 360.º, n.º 4, do CPC e do artigo 566.º, n.º 3, do CC, resulta claro – e é consensual na doutrina e na jurisprudência – que, no incidente da liquidação de danos, o Tribunal tem de determinar sempre o valor dos danos relegados para liquidação, ainda que com recurso à prova pericial ou à equidade.

Veja-se, a título de exemplo, o comentário de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa ao disposto na norma do artigo 360.º do CPC: “1. A sentença proferida no incidente de liquidação pós-sentença não pode alterar o que ficou decidido na sentença de condenação (STJ 30-9-10, 1554/04). Nesta medida, o incidente de liquidação não pode findar com sentença de improcedência, a pretexto de que o requerente não fez prova, na medida em que em que tal equivaleria a um non liquet e violaria o caso julgado formado com a decisão definitiva anterior, que reconheceu à parte um crédito apenas dependente de liquidação. Seria, de resto, um paradoxo o incidente de liquidação culminar na negação de um direito anteriormente firmado por sentença. Neste domínio, a única questão em aberto é a da medida da liquidação e nunca a existência do direito respectivo» (Ac. STJ de 6.11.2018, Proc. 452/05; cfr. no mesmo sentido Ac. de 16.12.2021, Proc. 970/18).

Sendo assim as coisas, verifica-se que se provou que:

i) Após a cessão do contrato de distribuição de fraldas, a S..., S.A., atualmente OCP, SA, decidiu manter os trabalhadores e as estruturas de marketing e de vendas afectas a essa parte do negócio, dessa forma continuando a suportar os respectivos custos, de valor não concretamente apurado.

Na verdade, a autora tinha uma equipa de trabalho de 5 elementos exclusivamente dedicada à armazenagem, expedição, promoção e venda das fraldas “Tena” e “Libero”.

ii) Após os descontos que concedia aos clientes a S…, S.A. ficava com uma margem de lucro entre 24% e 25%.

iii) S..., S.A. auferiu o lucro bruto, em 2004, não superior a €418 197,54”;

iv) A autora manteve os três vendedores, o empregado de armazém e o administrativo que tinham estado afetos, a título principal, à comercialização das fraldas Tena e Libero, suportando os custos inerentes.

Usando um juízo de equidade, no quadro desta factualidade disponível, julga dever considerar-se que:

i) de acordo com a manualística da especialidade, o lucro bruto é calculado pelos custos directos que estão directamente relacionados com a produção e obtém-se deduzindo às receitas totais os custos variáveis, v.g. custos da matéria-prima.

ii) o lucro líquido considera todos os custos da empresa, variáveis e fixos, o que inclui despesas com impostos, salários, encargos com a segurança social, energia eléctrica, àgua, rendas, etc. e obtém-se deduzindo às receitas totais os custos totais;

iii) O salário mínimo nacional em 2004 foi de €365,60;

iv) Dizem-nos as regras de experiência que, embora sejam variáveis consoante as responsabilidades e complexidade das funções, um operador de armazém tem em regra um salário inferior ao de um administrativo, e que um vendedor além do salário aufere comissões.

v) Que é equitativo aplicar uma dedução de 25% a título de IRC;

vi) Que é também equitativo fixar uma percentagem, a título de custos da empresa (electricidade, águas, custos de manutenção das estruturas de marketing e de vendas).

Perante estes elementos, que não devem ser pitagoricamente esmiuçados, porque o matematismo que parte à procura de uma indemnização objectiva, precisa, imune à subjectividade do julgador, não conduz, ao contrário do que se possa pensar, a resultados intrinsecamente justos (cfr. Alessandro Giuliani, «La giustizia come reciprocità (a propósito della controvérsia aristotélico-pitagorica)», a cura di Paolo Di Luca e Letizia Mancini, La giustizia vendicatoria, Edizioni ETS,, Pisa, 2013:97-122), , julga-se adequado fixar a compensação pelo dano da antecipação da denúncia no valor de €130.000,00.


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iv) Dos juros

No requerimento inicial do incidente a requerente peticionou juros de mora até integral pagamento.

Porém, já no recurso omite, no seu pedido, qualquer referência a esses juros, pelo que a recorrente só poderá beneficiar do regime que resulta dos artigos 704.º, 6 e 703.º, 2 do CPC.


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Do decaimento de ambas as partes resulta a sua condenação, em sede de custas, na proporção do respectivo decaimento (artigos 527.º, 1 e 2 CPC e 11.º Regulamento das Custas Processuais).

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Pelo exposto, acordamos em julgar procedente o recurso, e, consequentemente em revogar o acórdão recorrido, que se substitui por outro que condena a requerida a pagar à requerente a quantia de €130.000,00 (cento e trinta mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde o trânsito em julgado deste acórdão.

Custas por recorrente e recorrida, na proporção de 2/8 e 6/8 respectivamente.


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26.11.2024

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Luís Espírito Santos

Maria Olinda Garcia

(vencida de acordo o voto que segue)

Voto de vencido

Concordo com a decisão de anular o acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, mas não concordo com a decisão de proceder à liquidação da indemnização.

O Supremo Tribunal de Justiça não pode (com base em suposições) liquidar um pedido de indemnização segundo o critério da equidade, quando as instâncias não procederam a essa liquidação por insuficiência de elementos de prova.

Como decorre das regras sobre a obrigação de indemnização, previstas no artigo 562º e seguintes do CC, o recurso à equidade só se encontra justificado quando não for possível determinar, por recurso a outros critérios, o exato valor do dano sofrido pelo lesado. E mesmo quando este critério deva ser aplicado, determina o artigo 566.º, n.º 3 do CC que o tribunal decide dentro dos limites provados.

No caso concreto, tendo as instâncias entendido que a factualidade provada era insuficiente para quantificar o direito à indemnização que a sentença liquidanda havia reconhecido ao autor (e não tendo decidido no sentido de suprir essa insuficiência, como determinava o artigo 360.º, n.º 4 do CPC), a decisão do STJ deveria ser a de determinar a volta do processo ao tribunal recorrido, nos termos do artigo 682º, n.º 3 do CPC, para ampliação da matéria de facto, de modo a constituir base suficiente para a decisão de direito.

Lisboa, 26.11.2024

Maria Olinda Garcia