Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO ATAÍDE DAS NEVES | ||
Descritores: | CASO JULGADO FORMAL RECLAMAÇÃO ADMISSIBILIDADE DE RECURSO RECURSO DE APELAÇÃO DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO OFENSA DO CASO JULGADO RESTRIÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO RECURSO DE REVISTA CASO JULGADO MATERIAL DECISÃO SURPRESA PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO DECISÃO INTERLOCUTÓRIA INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA | ||
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Data do Acordão: | 06/20/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA | ||
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Sumário : | I - O recurso que é admitido ao abrigo da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, com fundamento na ofensa de caso julgado, não pode abranger outras questões, ficando o seu objecto circunscrito à apreciação daquela questão. II – O caso julgado formal traduz a força obrigatória que uma decisão atinente à relação processual assume dentro do processo, distintamente do caso julgado material, cuja força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida. III – O Acórdão proferido num incidente de reclamação suscitada nos termos do art. 643º do CPC, que admitiu a apelação do despacho proferido ao abrigo do art. 14° da N.R.A.U. (que ordenou a notificação dos réus inquilinos para efetuarem o pagamento ou o depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob cominação de não fazendo, ser decretado o despejo imediato do imóvel arrendado, objecto da acção principal), por entender que aquele despacho não deve ser proferido sem audição da parte contrária (art. 3º nº 3 do CPC), assim que transitado em julgado, forma caso julgado formal, vinculativo da decisão que venha a ser proferida na apelação em relação à mesma questão. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Por apenso à acção principal que corre no termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (Juízo Central Cível de ..., Juiz ...), o Autor AA requereu a notificação dos Réus BB e CC para, nos termos prevenidos no art. 14° da N.R.A.U., efetuarem o pagamento ou o depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob cominação de não fazendo, ser decretado o despejo imediato do imóvel arrendado, objecto da acção principal. Sobre este requerimento incidiu o despacho de 6 de junho de 2017, que decretou a notificação dos Réus para no prazo de 10 dias, procederem ao depósito condicional à ordem dos presentes autos das rendas que se vencerem na pendência desta acção, sob pena de não o fazendo se proceder ao seu despejo imediato. Inconformados com este despacho, dele interpuseram recurso de apelação os Réus BB e CC, oferecendo as suas alegações, cujas conclusões aqui transcrevemos, dado o interesse que as mesmas têm para a decisão que aqui cumprirá proferir: 1. Nos termos do disposto no artº. 3º. nº. 1 do NCPC, “o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”. 2. E, nos termos do disposto no artº. 3º. nº. 3 do NCPC “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”. 3. E, por força do princípio de igualdade das partes, igualmente com dignidade constitucional e legalmente consagrado no artº. 4º. do CPC, “o Tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais”. 4. O incidente de despejo imediato com fundamento em rendas vencidas na pendência da acção, reveste a forma duma acção autónoma, em que o réu tem de deduzir toda a sua defesa no articulado respectivo. 5. E não existe quanto à tramitação do mesmo incidente - que se regula designadamente pelas regras processuais gerais dos arts. 130º. a 291º. do NCPC e pelas disposições gerais dos incidentes da instância estabelecidas nos arts 292º. a 295º -nenhum desvio às regras gerais do exercício do contraditório estabelecidas no artº. 3º., nº. 1 e 3 do mesmo Código, que lhe são também aplicáveis. 6. Assim, e atento todo o exposto, imponha-se nos presentes autos a audiência prévia dos RR – mediante citação ou notificação equivalente - para, querendo, deduzirem oposição ao incidente suscitado. 7. Porém, a decisão recorrida, que constitui uma verdadeira decisão-surpresa, legalmente inadmissível, foi proferida sem que os RR tivessem sido previamente citados – ou notificados - para, querendo, deduzirem oposição ao peticionado pelo A, portanto com violação de proibição de indefesa. 8. O entendimento expresso pelo Mmo. Juíz “a quo” de que “na pendência da ação de despejo a única defesa possível para o arrendatário obstar ao despejo, nos termos do disposto no art. 14º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, e sucessivas alterações, a última das quais introduzida pela Lei n.º 79/2014, de 19/12, é o pagamento ou o depósito das rendas vencidas na pendência da ação” não legitima que, desconsiderando-se as regras do contraditório legal e constitucionalmente consagradas, os autos sejam decididos, como o foram, sem que os RR fossem ouvidos sobre o peticionado. 9. Aliás, o artigo 14.º n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/02 (NRAU), é materialmente inconstitucional na interpretação segundo a qual se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida. 10. A defesa do arrendatário, na resposta ao pedido de despejo imediato, nos termos do artigo 14º. nº. 4 do NRAU, abarca todas as excepções que contendam com a legitimidade para não pagar a renda. O que quer dizer que o arrendatário pode suscitar qualquer facto impeditivo ou modificativo do pagamento de rendas, porque se enquadra no princípio da tutela jurisdicional efectiva e no da proibição de indefesa, pelo que entendendo em contrário, o Mmo. Juíz “a quo” cometeu um erro de julgamento. 11. Devendo considerar-se que o Mmo. Juíz “a quo”, ao interpretar, como parece, o disposto no art. 14º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, na sua actual redacção, no sentido de que tal preceito dispensaria o exercício do contraditório prévio à decisão por parte dos RR, ora recorrentes, cometeu um erro de Julgamento, sendo tal interpretação manifestamente ilegal por violação de todas as aludidas regras e princípios legais e constitucionais, o que se diz sem quebra do devido respeito, que é muito. 12. Aliás, o artº. 14º., nº. 4 do NRAU é materialmente inconstitucional, quando interpretado no sentido de que é dispensável a audição do R antes de ser proferida decisão sobre o incidente, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no art. 2.º e 9º., alínea b) da CRP, da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (artº 18º da CRP) e ainda o princípio da proibição da indefesa e o direito a processo equitativo consagrados no artº. 20º. da CRP. 13. Sendo certo que os poderes de adequação formal estabelecidos no artº. 547º. do NCPC – que aliás nem são invocados – nunca permitiriam ao Mmo. Juíz “a quo” decidir da forma como decidiu, porquanto esse preceito legal não permite desconsiderar as regras do contraditório e da igualdade das partes, antes impõe ao Juiz que assegure sempre “um processo equitativo”. 14. Assim, ao decidir os autos nessas circunstâncias de “indefensão” dos ora recorrentes, o Mmo. Juíz “a quo” violou o preceituado no artº. 3º., nº. 1 e 3 e 4º. do NCPC, e os princípios do contraditório e da igualdade das partes neles consagrados. 15. E também os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no art. 2.º e 9º., alínea b) da CRP, da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (artº 18º da CRP) e ainda o princípio da proibição da indefesa e o direito a processo equitativo consagrados no artº. 20º. da CRP, tendo ainda violado, por erro de interpretação a aplicação, o disposto no artº. 14º., nº. 4 do NRAU, tudo como melhor se expendeu nos pontos 4, 5 e 6 do corpo destas alegações que, com a devida vénia, aqui se dão por reproduzidos. 16. Pelo que a Decisão recorrida deverá ser revogada por Douto Acórdão de Vossas Excelências que determine a sua substituição por outra que ordene a citação dos RR para os termos do presente incidente, seguindo-se os demais termos da Lei. 17. Acresce que o fundamento resolutivo invocado pelo A, ora recorrido, na acção de despejo de que o presente incidente constitui apenso é a falta de pagamento de rendas. 18. Porém, foi invocada na contestação a exceptio non adimpleti contractus e foi deduzido contra o A, ora recorrido, pedido reconvencional no qual se pediu a compensação de créditos com rendas vencidas e vincendas até ao fim do contrato e ainda a condenação do A a pagar o remanescente do crédito reclamado que não fosse extinto por compensação. 19. E foi ainda pedido em reconvenção que o A, ora recorrido, fosse “condenado a reconhecer que não tem o direito de pedir a resolução do contrato de arrendamento nem o despejo da fracção pelos fundamentos que invocou na presente acção.” 20. Ora o incidente de despejo imediato não pode ser suscitado nas acções de despejo cujo fundamento é a falta de pagamento das respectivas rendas e, sendo-o, é de indeferir. 21. Pois o incidente de despejo imediato tem base de sustentação e sentido técnico quando se discute se foi cumprida ou não a obrigação e não quando se debate se ela existe ou não. 22. Nestes casos – de contestação da acção baseada em falta de pagamento de rendas – nem sequer devia ser dado início ao incidente de despejo imediato, com indeferimento liminar, por terem sido alegadas excepções peremptórias na contestação. 23. Assim, não pode deixar de se considerar que, no específico caso dos autos, tal incidente não era admissível e que, por isso, não deveria ter sido deferido e nem sequer admitido mas antes liminarmente indeferido. 24. Pelo contrário, a decisão liminar dos autos correspondeu à decisão final e foi no sentido de deferir anotificação dos RR para procederem ao depósito de rendas, requerida pelo A, tendo ainda sido decidido que, se os RR não procedessem a tal depósito, seria ordenado o seu despejo imediato. 25. Ora, não pode decretar-se o despejo imediato, por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção de despejo, quando nesta está ainda em discussão saber se o locatário tinha ou não a obrigação de pagar as rendas indicadas pelo autor ao fundamentar a causa. 26. Assim, ao decidir da forma como decidiu, o Mmo. Juíz “a quo” cometeu, salvo o devido respeito, outro erro de julgamento e violou, por erro de interpretação e aplicação, designadamente o disposto no artº. 14º. nº. 4 do NRAU -tudo como melhor se expendeu no ponto 7 do corpo destas alegações que, com a devida vénia, aqui se dá por reproduzido. 27. Pelo que a Decisão recorrida deverá ser revogada por Douto Acórdão de Vossas Excelências que julgue inadmissível ou totalmente improcedente o presente incidente, se não for determinada a sua substituição por outra que ordene a citação dos RR, conforme anteriormente se requereu. 28. Sem prejuízo do atrás exposto, nestes autos, que constituem uma nova acção declarativa, não foi produzida qualquer prova do alegado pelo A, conforme este estava obrigado nos termos do artigo 342 n.º 1 do C.Civil, sendo certo que este nem sequer requereu a produção de prova no requerimento inicial, como deveria ter feito, nos termos do disposto no artº. 293º., nº. 1 do NCPC, aplicável a este incidente. 29. Pelo que, subsidiariamente e sem prejuízo do atrás alegado, a acção nunca poderia, também por esse motivo, ter sido logo julgada procedente, tudo como melhor se expendeu no ponto 8 do corpo destas alegações que, com a devida vénia, aqui se dá por reproduzido. 30. Assim, decidindo imediatamente pela procedência do incidente, com desconsideração designadamente do preceituado nos arts. 342 n.º 1 do C.Civil e 293º., nº. 1 do NCPC, o Mmo. Juíz “a quo” cometeu outro erro de julgamento, o que igualmente justifica a revogação da decisão recorrida por Douto Acórdão de Vossas Excelências que julgue inadmissível ou improcedente o presente incidente, se não tiver sido determinada a sua substituição por outra que ordene a citação dos RR, conforme anteriormente se requereu. 31. Mesmo que se entendesse que in casu foram assegurados os direito de defesa dos RR, que o incidente era admissível e que o mesmo deveria desde logo proceder - o que naturalmente não se concede - o incidente nunca poderia ter sido julgado procedente contra a R., ora recorrente, tudo como melhor se expendeu no ponto 9 do corpo destas alegações que, com a devida vénia, aqui se dá por reproduzido. 32. Pois a R não interveio no contrato de arrendamento, não é inquilina e a nada se obrigou perante o A, não existindo sequer causa de pedir quanto à mesma, pelo que não poderia nunca ter sido determinada a sua notificação para depositar quaisquer rendas. 33. Decidindo, em contrário, pela procedência do incidente também relativamente à R, o Mmo. Juíz “a quo” cometeu, salvo o devido respeito, mais um erro de julgamento, que justifica a revogação parcial, quanto à ora recorrente, da decisão recorrida por Douto Acórdão de Vossas Excelências, se a mesma não for – contrariamente ao que se espera -totalmente revogada, pelos motivos anteriormente aduzidos. O recorrido Autor contra-alegou, pugnando pela manutenção do despacho recorrido. Veio a apelação a ser julgada improcedente por decisão sumária do Ex.mo Desembargador relator, a qual foi reclamada pelos apelantes para a conferência, reclamação esta que foi julgada improcedente, sendo aquela decisão singular confirmada pelo Acórdão de 20 de outubro de 2022. REVISTA Deste Acórdão vieram os Réus, novamente inconformados, interpor o presente recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, oferecendo as suas alegações, que culminam com as seguintes conclusões: 1. O trânsito em julgado ocorre quando uma decisão já não é suscetível de impugnação através de recurso ordinário ou por meio de reclamação, formando-se então caso julgado, que se traduz na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu. 2. O caso julgado abrange os fundamentos lógico-jurídicos que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da decisão. 3. Na verdade, os segmentos decisórios de sentenças ou acórdãos estão tão lógica e necessariamente ligados a decisões de outras questões, como que constituindo um todo unitário, que os primeiros só fazem sentido se conexionados com as segundas. 4. E é até de admitir o chamado caso julgado implícito quando a afirmação que faz caso julgado impõe, como consequência necessária, outra a que o caso julgado se alarga. 5. O Douto Acórdão de 14-03-2019 que determinou a admissão do recurso de apelação não foi objecto de reclamação ou recurso e transitou em julgado. 6. Não obstante o thema decidendum daquele Douto Acórdão de 14-03-2019 ser o da admissibilidade do recurso de apelação, deve reconhecer-se força e eficácia de caso julgado às decisões proferidas naquele Douto Acórdão tendo por objecto a violação dos direitos processuais dos recorrentes e a situação de indefensão destes que foi invocada, quer no recurso de apelação, quer nas duas reclamações que antecederam esse Acórdão e foram aí objecto de apreciação, bem como ao ali decidido sobre questões conexas com a interpretação do artº. 14º., nº. 4 do N.R.A.U, como fundamentos lógico-jurídicos que constituiram antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da decisão, as quais tinham sido suscitadas em todas essas reclamações e recurso. 7. Essas decisões foram a de que “a notificação [aludida no artº. 14º., nº. 4 do N.R.A.U] depende da existência de um contrato de arrendamento válido e que seja indiscutida a existência da obrigação de pagamento de rendas por parte do réu”. E que 8. “O juiz, posto perante o requerimento do senhorio, deve apreciar se este pode lançar mão do incidente, pois há situações em que o mesmo não pode ter lugar”. 9. Assim, pelo Douto Acórdão de 14-03-2019, a Relação, nesse segmento decisório, decidiu expressamente no mesmo sentido propugnado pelos recorrentes nas suas alegações de recurso, designadamente quanto às questões suscitadas no segmento das conclusões 20ª a 26ª. 10. E, dada a redacção adoptada no Acórdão de 14-03-2019 de que “a decisão liminar do julgador interfere no caso sujeito com os direitos processuais do arrendatário, que mesmo na míngua de motivos para a acção prosseguir se vê chamado ao processo para se defender, sob grave cominação”, a Relação reconheceu e decidiu também expressamente que os direitos processuais dos recorrentes foram violados, como foi invocado por estes nas suas alegações, designadamente nas conclusões 1ª a 16ª: 11. E até decidiu implicitamente que foram até violados os mais básicos direitos de defesa dos recorrentes, tal como se invocou nas alegações de recurso e nas aludidas reclamações já que, como está assente, os ora recorrentes não foram citados para se defender antes de ser proferida decisão, tendo sido colocados – e agora mantidos - numa situação de verdadeira indefensão, legal e constitucionalmente proibida. 12. Assim, o caso julgado do Acórdão de 14-03-2019 foi manifestamente violado pelo Douto Acórdão recorrido, já que a Relação veio neste a decidir em sentido oposto ao julgamento que anteriormente proferira sobre a mesma matéria. 13. Ora, a decisão judicial que padeça do vício de violação de caso julgado é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional, sendo a inexistência jurídica outra forma de invalidade para além da nulidade. 14. Por isso o Douto Acórdão recorrido é juridicamente inexistente, não vale como decisão jurisdicional, o que fica expressamente invocado, dando-se aqui como reproduzido, com a devida vénia, o alegado no ponto 3.1. do corpo destas alegações. 15. Impondo-se assim que, declarada essa invalidade, as questões que foram suscitadas na apelação sejam, nos termos do disposto no artº. 665º., nº. 1) do NCPC, reapreciadas no sentido propugnado pelos recorrentes e em conformidade com o caso julgado do Douto Acórdão de 14-03-2019 e as normas legais e constitucionais que foram invocadas pelos recorrentes. 16. Requerendo-se assim, que o Douto Acórdão recorrido seja revogado ou declarado juridicamente inexistente por esse Alto Tribunal, com todas as legais consequências, designadamente a inexistência jurídica e a consequente invalidade e irrelevância legal de todos os actos processuais posteriores que dele sejam dependentes e a reapreciação do objecto da Apelação com a consequente revogação da decisão da 1ª. Instância, nos termos requeridos. 17. Por outro lado, o Douto Acórdão recorrido encontra-se viciado por outros vícios, designadamente nulidades, questões que subsidiariamente se colocam, ao abrigo do artº. 674º., nº. 1 e suas alíneas b) e c) do NCPC. 18. Efectivamente, os ora recorrentes, na reclamação que antecedeu o Douto Acórdão recorrido, aludida na alínea m) do Ponto 2 destas alegações, que com a devida vénia aqui se dá por reproduzida para evitar repetições desnecessárias, arguiram a nulidade da Douta Decisão Singular de 27-12-2019, 19. Porém, sobre esse vício da Decisão Singular reclamada o Douto Acórdão recorrido apenas se pronunciou, en passant, nos seguintes termos: “Nenhuma nulidade a enferma”. 20. Ora, nos termos do disposto nos arts. 205º., nº. 1 da CRP e 154º. nº. 1 e 607º. nº. 3 e 4 do NCPC deveriam obrigatoriamente constar do Douto Acórdão recorrido os fundamentos de facto e de direito dessa “decisão”. 21. Nestas condições, não pode deixar de se arguir neste momento a nulidade por absoluta falta de fundamentação, de facto e de direito, dessa decisão constante do Douto Acórdão recorrido, nos termos do disposto no artº. 615º., nº. 1, alínea b) aplicável ex vi artº. 666º. nº. 1 do NCPC, como melhor se desenvolveu no ponto 3.2. do corpo destas alegações que, com a devida vénia aqui se dá por reproduzido. 22. Por outro lado, não foi proferida no Douto Acórdão recorrido, e deveria ter sido, decisão sobre as graves violações das concretas normas e princípios constitucionais e processuais e dos específicos direitos processuais e constitucionais dos recorrentes que foram invocadas nas alegações de recurso (conclusões 1 a 16). 23. E no Acórdão recorrido a Relação também não proferiu decisão, e devia ter proferido, sobre a invocada inadmissibilidade do incidente no específico caso concreto, nem conheceu das várias outras questões que foram suscitadas pelos recorrentes e que no entender destes sempre imporiam in casu a improcedência do incidente, quer quanto a ambos os recorrentes quer relativamente apenas à recorrente, designadamente por não ser parte no contrato (conclusões 17 a 33). 24. Designadamente, cumpria à Relação apreciar, entre outras questões, as seguintes questões de constitucionalidade: O artº. 14º., nº. 4 do NRAU é materialmente inconstitucional, quando interpretado no sentido de que é dispensável a audição do R antes de ser proferida decisão sobre o incidente, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no art. 2.º e 9º., alínea b) da CRP, da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (artº 18º da CRP) e ainda o princípio da proibição da indefesa e o direito a processo equitativo consagrados no artº. 20º. da CRP. (Conclusão 12ª). O artigo 14.º n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/02 (NRAU), é materialmente inconstitucional na interpretação segundo a qual se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida (Conclusão 9ª). 25. Assim, a Relação no Acórdão recorrido não se pronunciou sobre questões que devia ter expressamente apreciado, o que se diz sem quebra do devido respeito, que é muito. 26. Nestas condições, considera-se que o Douto Acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artº. 615º., nº. 1, alínea d) (aplicável ex vi artº. 666º., nº. 1) do NCPC, nulidade que assim fica subsidiariamente também arguida, para todos os devidos e legais efeitos, como melhor se desenvolveu no ponto 3.3. do corpo destas alegações que, com a devida vénia aqui se dá por reproduzido. 27. Requerendo-se em conformidade com o disposto no artº. 665º nº. 1) do NCPC, aqui aplicável, que o Douto Acórdão desse Alto Tribunal que declarar a nulidade do Acórdão recorrido aprecie ainda todas as questões cujo conhecimento foi omitido pela Relação. com a consequente revogação da decisão da 1ª. Instância. 28. Caso todavia se entenda que o Douto Acórdão recorrido conheceu implicitamente de alguma dessas questões que devia apreciar – o que não se concede - então deverá considerar-se que, nessa parte, aquela decisão de encontra viciada por nulidade por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artº. 615º., nº. 1, alínea b) (aplicável ex vi artº. 666º., nº. 1) do NCPC, como melhor se desenvolveu, também subsidiariamente, no ponto 3.4. do corpo destas alegações que, com a devida vénia aqui se dá por reproduzido. 29. Caso porém este Alto Tribunal venha superiormente a entender que existiu decisão implícita, sem falta de fundamentação, de alguma ou algumas das questões de que cumpria conhecer - o que, com o devido respeito, se formula apenas como hipótese académica– não podem os recorrentes deixar de invocar que o Douto Acórdão recorrido, nessa parte, estaria afectado por graves erros de Julgamento. 30. Porém, se este Alto Tribunal vier superiormente a entender que existiu decisão implícita, sem falta de fundamentação, de alguma ou algumas das questões de que cumpria conhecer - o que, com o devido respeito, se formula apenas como hipótese académica – não podem os recorrentes deixar de invocar que o Douto Acórdão recorrido, estaria nessa parte, afectado por graves erros de Julgamento. 31. Não podendo também deixar de se salientar que o Douto Acórdão recorrido, para além de ter feito uma interpretação restritiva e salvo o devido respeito incorrecta do artº. 14º., nº. 4 do NRAU, afectou claramente a posição jurídica dos recorrentes, pois confirmou a criação na sua esfera jurídica, sem prévia audição destes, do dever de procederem a um depósito - e a reclamante, recorde-se, nem é parte no arrendamento e relativamente a si nem existe causa de pedir !!! 32. Os recorrentes foram assim incompreensivelmente mantidos pelo Douto Acórdão recorrido na situação de verdadeira indefensão, legal e constitucionalmente proibida, em que tinham sido colocados pela 1ª. instância. 33. Atento todo o exposto, os reclamantes não podem, com o devido respeito, conformar-se com o Douto Acórdão recorrido, pelo que requerem que, concedendo-se a revista, seja o mesmo declarado juridicamente inexistente ou nulo ou revogado por Douto Acórdão… que julgue procedente o recurso e revogue a decisão da 1ª. instância objecto de recurso, nos termos requeridos, tudo com as legais consequências.” O recorrido autor contra-alegou, assim concluindo: I). Vem o presente Recurso interposto do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 22 de Outubro de 2020 que confirmou a decisão singular já anteriormente proferida por esse mesmo Tribunal, que por sua vez confirmou também a decisão do Mmo Juiz da 1ª Instância, que determinou que os Recorrentes procedessem ao depósito à ordem dos autos das rendas vencidas na pendência da acção de despejo, sob pena de não o fazendo ser decretado o despejo imediato. II). Alegam os Recorrentes que a decisão proferida violou os seus direitos de defesa, está ferida de nulidades várias e ofende a decisão proferida em 14 de Março de 2019 pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, embora em rigor o único direito violado, reiteradamente desde há 8 anos, seja o direito de propriedade do Autor que tem a sua fracção abusivamente ocupada desde 2012 sem receber a renda devida. III). Sob a epígrafe "quanto aos factos", os recorrentes reproduzem as suas alegações e as decisões já proferidas esquecendo contudo alguns aspectos da matéria de facto que, esses sim, poderão ter sido relevantes para as doutas decisões já proferidas e que cumpre realçar. IV). É verdade que foi deduzido por apenso aos autos de despejo que correm contra os ora Recorrentes um incidente requerendo nos termos do artigo 14º do NRAU que estes fossem notificados para procederem ao depósito das rendas e caso o não fizessem fosse proferido despejo imediato (conforme disposições dos nº 3, 4 e 5 do artigo 14º do NRAU). V). É também correcto que no dia 6 de Junho de 2017 foi proferida decisão que foi notificada aos RR, na pessoa do seu Ilustre Mandatário, simultaneamente um dos Réus e o outorgante do contrato de arrendamento cujo incumprimento se reclama no processo de despejo. VI). Só não é correcta a conclusão de que os Réus não foram devidamente notificados pois como se pode ler em douta decisão desse venerando Tribunal de 13/07/2017 "Não existindo norma especial que exija a notificação pessoal, nem se destinando a notificação a chamar a parte para a prática de acto pessoal (nº 2 do art. 247º, do CPC), vigora, quanto ao incidente de despejo imediato, a regra geral segundo a qual “As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais” (nº 1 do art. 247º, do CPC)", o que aconteceu. V VII). Cumpre relembrar que em 2005 foi celebrado um contrato de arrendamento entre o Autor e os RR que a partir de 2012 deixou de ser cumprido pelos RR. Após vários meses a aguardar o pagamento das rendas em atraso foi intentada a acção de despejo que ainda corre - nessa acção de despejo demorou-se cerca de 12 meses para citar os RR (não recebem o correio, não atendem a porta e foi necessário recorrer ao serviços de agentes de execução para lograr citar as partes). VIII). Após toda esta epopeia os RR vieram alegar em pedido reconvencional prejuízos cuja prova protestaram juntar ao processo - sendo o pedido reconvencional de 2014 até hoje não foi junta essa prova. IX). Está provado nos autos (quer por nunca ter sido negado pelos RR, quer por perícias efectuadas ao locado e por inspecção judicial ) que os RR ocupam a fracção propriedade do Autor nela habitando com a toda a sua família, o que fazem ininterruptamente desde o inicio do contrato de arrendamento. X). Neste enquadramento foi decidido pelo Mmo Juiz da 1ª Instância que para proteção de todas as partes seria ordenado o depósito condicional das rendas vencidas à ordem dos autos: Decisão salomónica que garantia quer a posição do Senhorio caso saísse vencedor na acção e sem contudo beliscar os direitos do Inquilino se lograsse (vá-se lá saber como...) provar os danos que alegava. XI). Actualmente o montante de rendas vencidas e não pagas desde a propositura da acção ascende a 88 (oitenta e oito) meses, o que corresponde a um valor de 227 744,€ (duzentos e vinte e sete mil setecentos e quarenta e quatro euros). XII). Alegam ainda os Recorrentes que a Ré CC não deveria ser parte neste incidente uma vez que não outorgou o contrato de arrendamento: com todo o respeito por outra opinião entende-se que não assiste razão aos recorrentes pois a fracção objecto do contrato agora em crise constitui casa de morada de família, pelo que deverá a cônjuge do outorgante ser citada e notificada quer para o processo de despejo, quer para os seus apensos pois nos termos do disposto no artigo 1682-B do CC carecem do consentimento de ambos os cônjuges os actos de que possa resultar a disposição do locado, tal podendo ocorrer quer na acção de despejo quer no presente incidente. XIII). Também não assiste razão aos RR quando questionam a tramitação do incidente - nos termos da lei o inquilino que continua a usufruir do locado tem a obrigação de pagar a renda e não o fazendo é dada a possibilidade ao senhorio de intentar o procedimento previsto no artº 14 do NRAU, o que aconteceu. XIV) Intentado recurso do douto despacho foram apresentadas Alegações pelo recorrido com as conclusões que aqui se dão por reproduzidas, XV) reiterando-se que mesmo que houvesse algum incumprimento do senhorio, o que não se concede, ainda assim este não é impeditivo da utilização da fracção, que continua a ser fruída pelos RR e família, pelo que não será legitimo o não pagamento da renda: XVI) como se resume no douto acórdão da Relação do Porto de 4/07/2013 " Para que o inquilino possa deixar de pagar a renda com base na excepção de não cumprimento do contrato pelo senhorio, tem de alegar e provar que ficou privado do gozo do locado e que existe um nexo de causalidade entre a privação desse gozo e a falta de pagamento da renda.", o que não acontece no presente caso. XVII) Inconformados com a não admissão do seu recurso os RR reclamaram nos termos do artigo 643º tendo o recurso vindo a ser admitido e julgado improcedente duas vezes: primeiro em decisão singular proferida em 27 de Dezembro de 2019 e posteriormente em acórdão do Colectivo de 20 de Outubro de 2020. XVIII) Um dos fundamentos do recurso intentado pelos RR baseia-se na pretensa ofensa de caso julgado: Com todo o respeito, que é muito, carecem de razão os recorrentes pois o acórdão proferido em 14 de Março de 2019 foi-o no âmbito de uma reclamação proferida ao abrigo do disposto no artigo 643º do CPC em que se impugnava um despacho de não admissão do recurso: XIX) É um incidente, reclamação, com tramitação própria, restrito à apreciação da possibilidade ou não de admissão do recurso, e que não se confunde com o recurso em que viria a ser apreciada a douta decisão em crise. XX) o pressuposto logico-jurídico que constituiu a fundamentação da decisão sobre a admissão do recurso (thema decidendum) é a apenas a qualificação jurídica do despacho emitido pela 1ª Instância como sendo, ou não, de mero expediente e não haverá identidade de pedido pois uma coisa é aceitar apreciar o recurso e outra, bem diversa é dar-lhe provimento. XXI) tal como não se aceita que se tenha formado caso julgado implícito sobre matérias que não estavam a ser julgadas em sede de reclamação ao abrigo do artigo 643º do CPC , pois como se estabelece no artigo 621º do já citado código a sentença “constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga…” àluz do pedido formulado que era, nesse caso, a admissão do recurso. XXII) Pelo exposto não é correcto dizer que os dois acórdãos tenham decidido em sentido inverso: foram apenas duas decisões sobre aspectos diferentes da questão que não são incompatíveis. XXIII) Uma coisa é determinar se um despacho é ou não de mero expediente; outra é decidir se o senhorio perante o incumprimento do inquilino ao disposto no nº 3 do artigo 14º do NRAU pode reagir socorrendo-se do incidente previsto nos números 4 e 5 º do mesmo artigo. XXIV) Como foi decidido em 14 de Maio de 2019 pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça em acórdão consultável em www. dgsi.pt “III - A força de "res judicata" só é, no entanto, conferida ao conteúdo da decisão sobre as questões ou pretensões suscitadas e às respectivas premissas, se absolutamente determinantes, pois o caso julgado destina-se, apenas, a obstar a decisões concretamente incompatíveis. “, o que não acontece no caso das decisões proferidas pelo mesmo colectivo em Março de 2019 e Outubro de 2020 XXV). Nem tão-pouco estava esgotado o poder jurisdicional deste colectivo quando proferiu o douto acórdão de Outubro de 2020 pois ainda não se tinham pronunciado sobre a questão da admissibilidade do incidente ao caso em apreço. XXVI). Quanto ao entendimento dos Recorrentes de que o acórdão proferido está ferido de nulidade por falta de fundamentação carecem de também de razão: ambas as decisões foram devidamente fundamentadas como se pode ler em ambos os arestos. XXVII). Reclamam ainda os Recorrentes que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa não apreciou todas as questões por eles suscitadas: entendemos que não lhes assiste razão pois embora a lei estabeleça que o Tribunal deve resolver todas as questões suscitadas pelas partes exceptua “aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras..." , conforme disposto no nº 2 do artigo 608º do CPC. XXVIII). no douto Acórdão proferido em 22 de Outubro de 2020 remete-se para a fundamentação do despacho impugnado e este refere expressamente a existência de várias correntes de opinião e a adesão, neste caso, ao entendimento de que a posição do senhorio também tem de ser protegida. XXIX). Acrescentam ainda os Venerandos Desembargadores que a aplicação do artigo 14º nº 4 do NRAU não contende com os direitos da parte, pelo que contrariamente ao que indicam os Recorrentes as questões por si sucitadas foram apreciadas. XXX). Acresce que, salvo douto e melhor entendimento, a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa não belisca a posição tomada pelo Tribunal Constitucional em 27 de Junho de 2018: XXXI). Em que se indica que o incidente previsto no artigo 14º do NRAU não é automático , devendo ser criticamente apreciado pelo Juiz XXXII). E que se destina a assegurar também os valores constitucionais da necessidade de celeridade processual ( conforme artigo 20, nº5 da CRP ) bem como a tutela do direito da propriedade ( artigo 62º nº 1 também da CRP) XXXIII). Como se pode ler nesse douto acórdão: “18. Não é de negar que a interpretação normativa em escrutínio nos presentes autos, ao reduzir significativamente o contraditório do arrendatário em incidente de despejo imediato provocado pelo não pagamento das rendas devidas por um período igual ou superior a dois meses, terá em vista, desde logo, a prossecução do valor constitucional da celeridade processual, tutelado pelo artigo 20.º, n.º 5 da Constituição. Neste sentido, visto que o incidente de despejo imediato corresponde a um meiode reação à não liquidação das rendas vencidas no decurso de ação de despejo, compreende-se que o legislador o configure como um incidente de tramitação simples e célere, procurando-se evitar que o arrendatário mantenha o gozo do prédio na pendência da ação de despejo sem que o senhorio seja devidamente remunerado [neste sentido, ainda sobre o artigo 58.º do RAU, ANTÓNIO PAIS DE SOUSA afirma com particular acuidade que o incidente despejo imediato responde à eventual delonga da ação de despejo, procurando-se evitar que «[U]m arrendatário menos sério, ou porque soubesse antecipadamente a sua falta de razão, ou por outro motivo, podia aproveitar-se da demora da lide para não pagar as rendas, que entretanto, se fossem vencendo, mas sem deixar de se aproveitar do prédio» (cfr. Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 6.ª Edição actualizada, Reis do Livros, Lisboa, 2001, p. 174.)]. Estamos, aliás, na sua globalidade, perante um fim que vem modelando a recente evolução do regime substantivo mas também processual dos contratos de arrendamento, em especial no plano da agilização, judicial e extrajudicial, dos meios de reação do senhorio perante o incumprimento do contrato pelo arrendatário. Esta foi reconhecidamente uma das principais finalidades prosseguidas pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano, bem como das alterações promovidas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, pelo que não se ignora que a interpretação do artigo 14.º, n.º 4, agora em crise, encontra suporte num regime cuja arquitetura, substantiva e processual, tem sido delineada em função de reais preocupações de celeridade na tutela do direito de propriedade do senhorio que encontra, por si, proteção constitucional (artigo 62.º, n.º 1 da Constituição) nos casos de incumprimento contratual por parte do arrendatário.” XXXIV). Interpretação que foi devidamente acolhida neste caso pois na douta decisão proferida em 1ª Instância é feita uma análise critica da situação, ponderados os interesses em concurso e conclui-se pela necessidade de, neste caso, proteger o Autor, Senhorio, que tem a sua propriedade ocupada e sem receber os respectivos frutos há muitos anos, posição depois subscrita e reiterada elos Venerandos Desembargadores no douto acórdão proferido. XXXV). Acresce que, como se pode ler também no douto despacho proferido em 28 de fevereiro de 2018, os RR ora Recorrentes poderiam ter deduzido, querendo, oposição ao incidente, mas não o fizeram, pelo que deverá a douta decisão ser considerada devidamente fundamentada e mantida. XXXVI). Quanto à "outra falta de fundamentação" entende o Recorrido que mais uma vez, em cumprimento do que se dispõe no douto acórdão do Tribunal Constitucional de 27 de Junho de 2018, o Digníssimo Tribunal a quo não fez uma aplicação automática do incidente previsto no artigo 14º nº 3, 4 e 5 do NRAU, antes analisando cuidadosamente a situação concreta e fazendo uma avaliação dos diferentes interesses em causa decidiu que se afigurava necessário acautelar o direito de propriedade do Autor, direito que, tal como os de defesa dos RR, também merece dignidade constitucional. Assim também não é verdade que haja “outra falta de fundamentação”. XXXVII) Finalmente e no que respeita aos "graves erros de julgamento" alegados pelos RR entende também o Recorrido que não lhe cabe razão pois ao invés de graves erros de julgamento afigura-se que as doutas decisões proferidas em ambas as instâncias resultam antes do claro conhecimento do processo: XXXVIII) nas decisões em crise reconhece-se a necessidade de proteger os senhorios dos inquilinos inadimplentes e que poderão utilizar os mecanismos legais para abusivamente continuar a fruir do locado sem que o senhorio receba a devida contrapartida. XXXIX) Como escreveu já esse Venerando Tribunal em douto acórdão proferido em 9 de Outubro de 2007 a propósito do artigo 58º do NRAU, posição que se mantém actual , consultável em www.dgsi.pt "I - O incidente da acção de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da acção (previsto no art. 58.º do RAU) admite apenas como forma de oposição relevante a prova do pagamento das rendas ou o seu depósito, nos termos gerais previstos no RAU.II. A não oposição ao incidente acarreta a confissão dos factos aí enunciados (art. 303.º n.ºs 1 e 3 do CC), pelo que, se não for provado o pagamento das rendas vencidas ou efectuado o seu depósito nos termos exoneratórios, o despejo imediato será decretado. III. Enquanto não houver decisão a respeito da verificação da existência defeitos da coisa locada que não tenham sido previstas ou salvaguardadas no contrato e que possam legitimar a redução de renda, o único meio ao dispor do arrendatário para evitar o despejo por falta de pagamento de rendas no decurso da acção é o do pagamento ou depósito nos termos previstos no art. 58º do RAU. XL). Nos presentes autos, atenta a situação de facto em concreto , outra não pode ser a solução que a de ordenar a notificação dos RR para procederem ao depósito das rendas vencidas pois os direitos de defesa dos RR estão assegurados e o que tem sido violentamente atacado é o direito de propriedade do A. que se vê desapropriado da sua fracção e sem receber o valor de renda devido.” DA ADMISSIBILIDADE DA REVISTA Como vimos, a revista incide sobre Acórdão que confirmou o despacho da 1ª instância que ordenou a notificação dos recorrentes arrendatários para, nos termos do art. 14° da N.R.A.U., efetuarem o pagamento ou o depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob cominação de não fazendo, ser decretado o despejo imediato do imóvel arrendado, objecto da acção principal. Como é bom de ver, trata-se de um despacho que, por natureza, não decide do mérito da causa nem põe termo ao processo, pelo que a sua recorribilidade não se vislumbra à luz do art. 671º nº 1 do CPC. Sucedendo, porém, tratar-se de recurso de revista interposta à luz do art. 629º nº 2 al. a) do CPC, impõe-se a sua admissibilidade ainda que a decisão recorrida esteja fora do condicionalismo daquele normativo, mesmo que se verifique uma situação de dupla conforme (art. 671º nº 3 do CPC), neste sentido se tendo pronunciado António dos Santos Abrantes Geraldes, em anotação ao art. 629.º, in Recursos no novo Código de Processo Civil, 6.ª ed.). Revelando-se, pois, recorrível o Acórdão da Relação, que confirmou aquele despacho, à luz do art. 629º nº 2 al. a), parte final, do CPC, uma vez que os recorrentes invocam a ofensa de caso julgado anteriormente constituído no processo, sustentando que a decisão proferida não teve em consideração o caso julgado anteriormente formado no Acórdão proferido em 14 de março de 2019 (caso julgado implícito), a revista terá de se circunscrever-se tão só a tal fundamento – a violação de caso julgado. Com efeito, e como é sabido, a admissão do recurso ao abrigo da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, com fundamento na ofensa de caso julgado, tem como consequência que o seu objecto fique circunscrito à apreciação da questão que está na base da sua admissão, não podendo alargar-se a outras questões (neste sentido se tendo pronunciado os Acórdãos do STJ de 04-07-2019 - revista n.º 1332/07.2TBMTJ.L2.S1, de 04-12-2018 - revista n.º 190/16.0T8BCL.G1.S1, de 22-11-2018 - revista n.º 408/16.0T8CTB.C1.S1, de 18-10-2018 - revista n.º 3468/16.0T9CBR.C1.S1, de 28-06-2018 - revista n.º 4175/12.8TBVFR.P1.S1, de 18-01-2022 – revista 19655/15.5T8PRT.P3.S1, todos publicados em www.dgsi.pt). Assim, na decisão da presente revista, este tribunal não se pronunciará sobre o mérito da decisão ora sob escrutínio, mormente sobre as demais questões suscitadas pelos recorrentes, entre elas as nulidades que aponta ao acórdão recorrido, assim como a inconstitucionalidade do art. 14º nº 4 do RAU, que não cabem no âmbito do presente recurso, já que que não se conexionam directamente com aquele fundamento específicos de (excepcional) recorribilidade, a ofensa de caso julgado. Cumprindo, assim, avaliar e decidir apenas se se verifica in casu o caso julgado formado pela decisão anteriormente forma pelo Acórdão de 14 de março de 2019, proferido no apenso de reclamação formulado pelos recorrentes, à luz do art. 643º do CPC. Apreciando: Constitui afirmação corrente a de que a sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro acto jurídico a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos – pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são igualmente válidas para a interpretação de uma sentença, o que determina que a sentença deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto, o que equivale a dizer que a decisão judicial há-de valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente (art. 236º nº 1 e 238º nº 1 do C. Civil). Como tem vindo a ser salientado, não se tratando de um verdadeiro negócio jurídico, a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, antes exprimindo “uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei”, no caso concreto, correspondendo ao “resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objectivo a essa situação” (ac. STJ, de 5/11/98, proc. 98B712, ITIJ, citando Rosenberg e Schwab). Importa, assim, ter em consideração, não só que o declarante se situa “numa específica área técnico jurídica”, investido na função de aplicador da lei, que, por sua vez, está obrigado a interpretar, em conformidade com as regras estabelecidas no art. 9º C. Civil, dirigindo-se outros técnicos de direito, como também a correlação lógica e teleológica entre a pretensão em apreciação, os fundamentos de facto e de direito em que assenta o dispositivo decisório e este, tudo á luz da sua estrita conexão, desenvolvimento e interdependência (cfr. ac. STJ de 28/01/97, CJ V-I-83). Por outro lado, a interpretação da sentença não pode assentar exclusivamente na análise do sentido da parte decisória, tendo naturalmente que considerar os seus antecedentes lógicos, toda a fundamentação que a suporta, sem deixar de ter em conta outras circunstâncias relevantes, mesmo posteriores à respectiva elaboração – cfr. ac. de 8/6/10, proferido pelo STJ no p. 25.163/05.5YYLSB.L1.S1. Como se refere em diversos Acórdãos deste Supremo Tribunal, designadamente nos de 3 de Fevereiro de 2011 (processo n.º 190-A/1999.E1.S1), de 26 de Abril de 2012 (processo n.º 289/10.7TBPTB.G1.S1), de 13 de Fevereiro de 2014 (processo n.º 2081/09.2TBPDL.L1.S1), de 12 de Março de 2014 (processo n.º 177/03.3TTFAR.E1.S1), de 17 de Novembro de 2015 (processo n.º 34/12.2TBLMG.C1.S1), de 23 de Janeiro de 2019 (processo n.º 4568/13.3TTLSB.L2.S1) e de 10 de Novembro de 2020 (processo 5129/05.6TBVFX.L2.S1), “a determinação do âmbito de caso julgado, formal ou material, de uma sentença, pressupõe a respectiva interpretação” e, em consequência, “um recurso fundado em violação do caso julgado, tem necessariamente o Tribunal ad quem de começar por determinar qual é - segundo os critérios interpretativos que devem ser utilizados para determinar o sentido de uma sentença - o âmbito possível de tal operação interpretativa, excluindo aqueles sentidos normativos que extravasem o âmbito consentido a uma actividade interpretativa, levando a alcançar e imputar-lhe sentidos decisórios que a sentença interpretada manifestamente não pode comportar” . O problema está, assim, em averiguar, ante a interpretação de um e outro Acórdão, saber se do Acórdão de 14 de Março de 2019, que, em sede de reclamação (nos termos do art. 643º do CPC) do despacho proferido na 1ª instância que não admitiu a apelação, revogou a decisão singular do Desembargador relator de improcedência de tal reclamação (despacho este que não admitiu a apelação por entender que o despacho recorrido tem natureza de mero expediente, sendo por isso irrecorrível), considerando admissível a apelação do despacho de 6 de Junho de 2017 que determinou a notificação dos requeridos para, no prazo de 10 dias, procederem ao depósito condicional, à ordem dos autos, das rendas que se venceram durante pendência da ação, sob a referida cominação. E, tendo sido essa apelação admitida, veio a ser proferido Acórdão que confirmou aquele despacho, sendo esse Acórdão o que agora aqui escrutinamos em revista. Pretendendo os recorrentes demonstrar que aquele acórdão de 14 de março de 2019, que julgou admissível a apelação, foi violado pelo Acórdão agora recorrido. Vejamos, em breves traços, em que consiste o caso julgado: Ensina Antunes Varela (in Manual de Processo Civil, 2ª ed., pag. 307) que “Caso julgado é a alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito que não admite recurso ordinário. É material o que assenta sobre decisão de mérito proferida em processo anterior; nele a decisão recai sobre a relação material ou substantiva litigada; é formal quando há decisão anterior proferida sobre a relação processual. Ele pressupõe a repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo (ob. cit., 308). Ambos pressupõem o trânsito em julgado da decisão anterior”. Como ensina Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 304), o caso julgado formal consiste na força obrigatória que os despachos e as sentenças possuem relativa unicamente à relação processual, dentro do processo, excepto se não for admissível o recurso de agravo “consiste na preclusão dos recursos ordinários, na irrecorribilidade, na não impugnabilidade”. João Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, A.A.F.D.L, 1980, III vol. pág. 276) ensina que o “caso julgado formal traduz a força obrigatória dentro do processo”, contrariamente ao caso julgado material, cuja força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida. No caso sob nossa análise configuram os recorrentes uma suposta situação de caso julgado formal, já que está em causa uma decisão incidente sobre a relação processual, proferida dentro do processo (sopesado este na sua globalidade), que alegadamente já tinha sido implicitamente decidida com trânsito em julgado, no apenso de reclamação nos termos do art. 643º do CPC, e que fora de novo suscitada. Desde logo, importa dizer que o caso julgado formal, tal como o caso julgado material, visa evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão. Resulta do n.º 1 do artigo 619.º do CPC o seguinte: “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”. Estabelecendo o art. 621º do mesmo diploma que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado um determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo de preencha ou o facto se pratique.” Por seu turno, o n.º 1 do artigo 580º dispõe que “as excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete, estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado.” Dispondo o art. 581º nos termos seguintes: “1 - Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. 2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. 3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. 4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (...)”. O caso julgado pode ser material ou formal conforme resulta dos arts. 619.º e 620.º do Código de Processo Civil. O caso julgado material, que é aquele que aqui interessa, é normalmente considerado numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como autoridade de caso julgado. Enquanto excepção, o caso julgado, tem uma função negativa, a qual pressupõe a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e tem por fim evitar que o tribunal, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie ou reafirme o anteriormente decidido, já enquanto autoridade de caso julgado, o mesmo tem uma função positiva que corresponde à imposição da primeira decisão à segunda decisão de mérito, isto é, decidida com força de caso julgado material uma determinada questão de mérito, não mais poderá ela ser apreciada numa acção subsequente, quer nela surja a título principal, quer se apresente a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu. Assim, a excepção dilatória do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois da primeira, entre as mesmas partes, sobre o mesmo objecto e baseada na mesma causa de pedir, ter sido decidida por sentença que não admita recurso ordinário, e obsta ao conhecimento do mérito da causa e, consequentemente importa a absolvição da instância (tudo conforme arts. 576.º, n.º 1, 577.º, al. i), 578.º e 580.º, todos do Código de Processo Civil). Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 578, (lição que se mantém actual): “O caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (art. 659.°, n.º 2, “in fine”, e 713.° n.º 2), que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento ou indeferimento da providência solicitada. Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos”. E conforme referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto (in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 681), “o despacho que recai unicamente sobre a relação processual não é (…) apenas o que se pronuncia sobre os elementos subjectivos e objectivos da instância (…) e a regularidade da sua constituição (…) mas também todo aquele que, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito”. “Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objecto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão” (Ac. do STJ de 18-03-2018 (Proc. nº 1306/14.7TBACB-T.C1.S1). Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão” – (destaque nosso) “A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério ecléctico, que sem tomar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado” – Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, 3.°-253. Vejamos o nosso caso: Na dita reclamação (apenso F onde fora proferido o Acórdão de 14 de Março de 2019), os reclamantes pugnam pela revogação do despacho que não admitiu a apelação do despacho de 6 de junho de 2019, sustentando que se trata de um despacho que tem interferência na questão de mérito, ofendendo direitos processuais das partes e envolveu interpretação da Lei, não sendo acertado dizer que se destinou a regular os termos do processo e, como tal, se tratou de um despacho de mero expediente. Pronunciando-se a Relação naquele Acórdão nos termos seguintes, depois de transcrever os nºs 3 a 5 do art. 14º do RAU: “Este artigo 14.° tem antecedente no anterior regime da acção de despejo por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção, o qual previa acção de despejo enxertada noutra acção da mesma espécie, e que permitia mediante prova documental do depósito das rendas vencidas. De todo o modo havia sempre intervenção final do juiz, cuja decisão dependia, naturalmente, da prova feita ou da ausência dessa prova. Agora o regime é algo diferente. A lei não explicita, mas a notificação a que alude o citado artigo 14.° é pessoal e está dependente de prévio despacho do juiz. (Laurinda Gomes et ai., Arrendamento Urbano, 3.a ed., 2009: 52). O juiz, posto perante o requerimento do senhorio, deve apreciar se este pode lançar mão do incidente, porquanto situações há em que o mesmo não pode ter lugar. Com efeito a notificação depende da existência de um contrato de arrendamento válido e que seja indiscutida a existência da obrigação de pagamento de rendas por parte do réu (op. cit: 56). Se o inquilino não fizer prova documental pode ser determinado o despejo imediato do locado. Perante este regime, só em traços largos descrito, não pode deixar de se concluir que o despacho recorrido não é de mero expediente nem foi proferido no uso de um poder discricionário (art. 630.°, 1, CPC). São despachos de mero expediente os que destinam a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes, ao passo que se consideram proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador (art. 152.°, 4, CPC). Realmente a decisão liminar do julgador interfere no caso sujeito com os direitos processuais do arrendatário, que mesmo na míngua de motivos para a acção prosseguir se vê chamado ao processo para se defender, sob grave cominação. Não é manifestamente despacho de mero expediente, nem despacho na discricionariedade do juiz. Entendemos assim, sempre com o devido respeito por opinião contrária, que assiste razão aos reclamantes. …”. E admitiu a apelação. O que resulta deste aresto é a consideração de que o despacho em causa, de 6 de Junho de 2017 (que ordenou a notificação dos requeridos para, no prazo de 10 dias, procederem ao depósito condicional, à ordem dos autos, das rendas que se venceram durante pendência da ação, sob a cominação de despejo imediato), não deve ser considerado como um mero despacho de mero expediente (perdoe-se a redundância), “nem despacho na discricionariedade do juiz”, mas sim um despacho que, por ter interferência nos direitos dos litigantes, máxime dos notificandos, porquanto se vêem estes compelidos a demonstrar o efectivo pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob pena de, não o fazendo, serem “despejados”, deve ser ponderado, constituindo uma decisão liminar que, em ordem a tal ponderação, não deverá se proferido sem audição prévia da parte contrária, é isso que sustentam os reclamantes e é nesse ponto que, em nossa interpretação do da decisão proferida, se deve extrair da decisão quando refere que “assiste razão aos reclamantes”, apreciando-se, só depois de pronúncia dos visados inquilinos, da adequação do requerido ao caso concreto, em face dos interesses e direitos em causa. Tratando-se de um despacho com tais contornos, não impondo a lei que o mesmo seja proferido nos termos requeridos, subentende-se do mesmo, interpretando-o nos termos supra referidos, que o juiz deverá ordenar o exercício do contraditório (art. 3º nº 3 do CPC), ouvindo previamente os inquilinos requeridos. E como tal considerando esse despacho (ou decisão), o Acórdão que decidiu aquela reclamação apartou a decisão recorrida do leque daquelas que, sendo de mero expediente, não admitem recurso, nos termos do art. 630º nº 1 do CPC (norma que não refere). E, repete-se, admitiu a apelação. Consigne-se, embora já tendo sido referido, que este Acórdão foi proferido em conferência nos autos de Reclamação do art. 643º do CPC, em que o relator inicial acabara por votar vencido, por entender que “Verificada, objectivamente, a situação de "...as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados...", o Juiz notifica o arrendatário em falta "... para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas afinal...", não lhe sendo permitido actuar doutro modo.” Considera o Senhor Juiz Desembargador vencido que a Lei que lhe impõe tal procedimento, outro não lhe facultando, porquanto “o fundamento legal radica no pressuposto de em alguém (muitas vezes ardilosamente) não pagar as rendas devidas, continuando a residir gratuitamente, e arrastando o processo judicial o mais que pode, para no fim... (eventualmente).. nada pagar...”, resultado este que o Legislador (de todo) quer que isto aconteça, pois o contrário seria a admissão da inadimplência social no arrendamento. Por isso, a notificação em análise, não está na disponibilidade do Julgador. A Lei impõe, objectiva e imperativamente, que ele faça essa notificação, porque antes têm de constatar o incumprimento desencadeador.” Mais considerando no voto de vencido que “Este despacho de notificação destina-se a regular, de harmonia com a Lei, os termos do processo. Pode ser entendida como de mero expediente, ou como uma imposição legal. Tanto faz. O que importa é perceber a ratio da Lei”. E questionando “qual a defesa então do arrendatário em todo este contexto?”, aduz-se naquele voto de vencido que “ela vem no n° 5: "...Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.° 7 do artigo 15." e nos artigos 15.°, 15.° K e 15.º M a 15.° O...". Mais considerando que “aqui o Julgador pode, ou não, deferir (note-se que a norma fala: "...em caso de deferimento do requerimento...") o pedido de despejo imediato. Este decisório já não é de mero expediente, mas de raciocínio jurídico, portanto, impugnável, posto que interfere no conflito essencial de interesses entre as partes. Assim, esta particularidade admite recurso.” E finaliza assim o voto de vencido: “Em suma: Uma coisa é a execução de um despejo, que, como «imediato» que é, razoavelmente tem de ser sopesado. Outra: É permitir que alguém não pague as rendas e depósitos, continuando a residir gratuita e parasitariamente, arrastando o processo em Tribunal o mais que pode, para no fim... (eventualmente) ...nada pagar... não obstante ter usufruído de um bem por muito tempo sabe-se lá quanto...”. E aquela decisão obteve vencimento, transitando em julgado. Sucedeu que, admitido por aquele Acórdão a apelação, esta veio a ser relatada por este Juiz Desembargador que votara vencido, vindo a manter a decisão recorrida - o despacho proferido no dia 6 de junho de 2019, já por nós sobejamente conhecido, exactamente pela mesma ordem de razões que determinaram aquele voto de vencido, entendendo o Acórdão ora recorrido que “a notificação prevista no art. 14°, n°4, da N.R.A.U., de que "...o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida...", a ser decretada por um Juiz, destina-se a prover ao bom andamento do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes, porque a Lei assim o exige e determina. Esta notificação não está no poder discricionário do Julgador. Ela é normativa. É verdade (sempre o poderemos dizer) que contende com os «interesses» da parte. Mas não com os seus «direitos», dado que se trata de uma imposição legal incontornável. Dada a natureza jurídica imperativamente legal da notificação do art. 14° n°4, do N.R.A.U., sempre com o devido respeito por entendimento diverso, entendemos que assiste razão aos fundamentos constantes no despacho impugnado”. Sucedendo, assim, que este Acórdão, ora recorrido, inculca uma decisão totalmente contrária à proferida no Acórdão que fora proferido no apenso F de reclamação (art. 643º do CPC) e que transitara em julgado, veio a ser subscrito pelo relator deste último, tendo voto de conformidade da Senhora Desembargadora que também subscrevera o Acórdão da Reclamação. Como se afirma no Acórdão deste STJ de 08-03-2018 (proc. n.º 1306/14.7TBACB-T.C1.S1), “Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objecto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão. Assim, o Acórdão ora recorrido, ao conhecer a natureza do despacho impugnado, que era objeto da apelação, entendeu que o mesmo se destina a prover ao bom andamento do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes, porque a Lei assim o exige e determina, tratando-se de uma notificação que não está no poder discricionário do Julgador, sendo imperativa, normativa, tratando-se de uma imposição legal incontornável, sem necessidade de ouvir a parte contrária, no fim de contas um despacho de mero expediente. E que, assim sendo, por se tratar de despacho com natureza jurídica imperativa, que dimana dos termos do art. 14° n°4 do RAU, não merece o despacho impugnado qualquer censura, porque ao juiz não é conferida alternativa legal. Ora, o que é dito no Acórdão recorrido contraria frontalmente o que fora dito no Acórdão de 14-03-2019, pois que aqui, e em momento anterior ao Acórdão recorrido, o tribunal, ao decidir em conferência a reclamação do art. 643º do CPC, sustenta que despacho dependente de prévio despacho do juiz, que deverá ponderar da oportunidade e dos contornos da sua prolação, devendo apreciar previamente se o senhorio pode lançar mão do incidente, concluindo não se tratar de despacho de mero expediente nem proferido no uso de um poder discricionário, sendo sim uma decisão liminar que deve ser proferida com o cuidado e delicadeza exigida pelos direitos processuais do arrendatário, a quem deve ser dado o direito de defesa (tal se subentende quando aduz que o arrendatário “se vê chamado ao processo para se defender, sob grave cominação” e quando refere que “que assiste razão aos reclamantes”), não se tratando, assim, de despacho “normativo”, resultante de “imposição legal incontornável”. Ou seja, com todo respeito, os Senhores Juízes que fizeram maioria no Acórdão de 14.03.2019 (que tivera voto de vencido do relator inicial), deram o dito por não dito no Acórdão recorrido, pois que subscreveram este, que fora relatado por aquele Senhor Juiz vencido, mantendo os termos daquele voto. Haverá, assim, que concluir, que o Acórdão recorrido violou o caso julgado formal subjacente ao Acórdão de 14-03-2019, que terá de ser respeitado, independentemente do seu mérito, que aqui não cumpre conhecer. Pelo que o Acórdão recorrido deverá ser desconsiderado e, como tal, revogado, impondo-se-nos também, nos termos do art. 682º nº 1 do CPC, a revogação do despacho de 6 de junho de 2019 proferido pela 1ª instância, e anulado todo o processado posterior. Deverão, pois, os autos ser remetidos à 1ª instância, a fim de serem ouvidos os requeridos sobre o requerimento apresentado pelo Autor (de notificação dos Réus BB e CC para, nos termos prevenidos no art. 14° da N.R.A.U., efetuarem o pagamento ou o depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob cominação de não fazendo, ser decretado o despejo imediato do imóvel arrendado, objecto da acção principal), após o que aí será proferida a decisão do incidente. DECISÃO Por todo o exposto, Acordam os juízes que integram a 7ª Secção deste Supremo tribunal de Justiça em julgar procedente a revista, revogando o Acórdão recorrido e bem assim o despacho proferido pela 1ª instância, remetendo-se o processo a este tribunal a fim de serem ouvidos os requeridos sobre o requerimento apresentado pelo Autor (de notificação dos Réus BB e CC para, nos termos prevenidos no art. 14° da N.R.A.U., efetuarem o pagamento ou o depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob cominação de não fazendo, ser decretado o despejo imediato do imóvel arrendado, objecto da acção principal), após o que aí será a proferida decisão do incidente. Custas pelo recorrido.
Relator: Nuno Ataíde das Neves 1ª Juíza Adjunta - Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza 2ª Juíza Adjunta: Senhora Conselheira Fátima Gomes |