Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2032/11.4JAPRT.P1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: RECURSO PENAL
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ARMA BRANCA
IN DUBIO PRO REO
EXEMPLOS-PADRÃO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
DESCENDENTE
FRIEZA DE ÂNIMO
REFLEXÃO SOBRE OS MEIOS EMPREGADOS
PREMEDITAÇÃO
INTENÇÃO DE MATAR
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
REGISTO CRIMINAL
PREVENÇÃO GERAL
CULPA
Data do Acordão: 11/13/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, pp. 11-20.
- Eduardo Correia, “Atas da Comissão Revisora do Código Penal”, p. 22.
- Fernanda Palma, “O homicídio qualificado no novo Código Penal Português”, Revista do Ministério Público, nº 15, pp. 59-74.
- Fernando Silva, Direito Penal Especial, Os Crimes contra as Pessoas, 3ª ed., pp. 53-61, 69, 83-84.
- Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 234, 235; Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pp. 25-28; 2ª ed., pp. 29-30, 39-40; Direito Processual Penal (1988-1989), pp. 145, 149.
- João Curado Neves, “Indícios de culpa ou tipos de ilícito?”, Liber Discipulorum para Figueiredo Dias, pp. 721-757.
- Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, Os Homicídios, pp. 39-67.
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pp. 108,125-127.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL / (CP): - ARTIGOS 71.º, N.º2, 72.º, N.º2, 131.º, 132.º, N.ºS 1 E 2, ALS. A) E J).
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 358.º, 359.º, 379.º, Nº 1, 400.º, N.º1, AL. F), 410.º, N.º 2, A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 8.2.1984 (BMJ 334, P. 258), UM DOS PRIMEIROS A PERFILHAR ESTA ORIENTAÇÃO, E, POR ÚLTIMO, OS ACÓRDÃOS DE 27.5.2010, PROC. Nº 11/04.7GCABT.C1.S1, DE 31.1.2012, PROC. Nº 894/09.4PBBRR.S1, E DE 18.10.2012, PROC. Nº 735/10.0JACBR.C1.S1.
-DE 13.2 2013, PROC. Nº 707/10.4PCRGR.L1.S1, E DE 8.3.2012, PROC. Nº 131/10.9JAFAR.E1.S1.
Sumário : I - O princípio in dubio pro reo estabelece que, verificando-se uma dúvida razoável quanto aos factos, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido. Sendo um princípio geral do processo penal, a sua violação importa uma questão de direito, e daí que o STJ tenha competência para apreciar essa questão. Contudo, apenas poderá pronunciar-se pela sua violação quando, com base nos elementos constantes dos autos, nomeadamente a matéria de facto e sua fundamentação, e guiando-se pelas regras da experiência comum, for visível e inequívoco que, perante dúvidas razoáveis, o tribunal decidiu contra o arguido.
II - Analisados os argumentos que sustentam a arguida violação do princípio in dubio pro reo, ressalta à evidência a inexistência de quaisquer dúvidas sobre a prova que tenham sido decididas contra o recorrente; por outras palavras, não se deteta qualquer situação em que o tribunal se tivesse visto confrontado com dúvidas quanto a determinados factos e que as tivesse resolvido contra o arguido.
III - De facto, o que o recorrente invoca e alega são as “dúvidas” que, na sua perspetiva, o tribunal deveria ter tido, as “dúvidas” que, segundo o seu ponto de vista, as provas suscitam e que ele queria ver resolvidas em sentido diferente. Ou seja, sob a invocação de violação do princípio in dubio pro reo, o recorrente procede afinal a uma contestação da matéria de facto, apresentando uma interpretação e valoração diferentes das provas produzidas. No fundo, o recorrente mais não faz do que impugnar os factos, sob a capa de arguição de violação daquele princípio.
IV - O crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132.º do CP, constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131.º do CP, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, cuja verificação determinaria a realização do tipo, como acontece no furto qualificado, mas antes em função de uma culpa agravada, de uma «especial censurabilidade ou perversidade» da conduta (cláusula geral enunciada no n.º 1), indiciada pelas circunstâncias indicadas no n.º 2.
V - A agravação da al. a) do n.º 2 do art. 132.º do CP residirá no facto de uma relação de maternidade ou paternidade constituir um fator específico de refreamento, que não existiria se a potencial vítima fosse qualquer pessoa. Contudo, a verificação da relação biológica de filiação por parte do arguido relativamente à vítima não basta para integrar a qualificativa. É preciso que o tipo de culpa agravado se verifique, pois o seu fundamento não é um maior desvalor do ilícito, mas sim uma culpa agravada.
VI - O recorrente na sua argumentação, para desqualificar o homicídio, afirma a inexistência de uma relação de afetividade, pelo menos da sua parte, em relação à vítima. Esta não seria o seu pai afetivo, mas apenas o pai biológico. Efetivamente, da parte do arguido, faltava de todo o afeto na relação com o pai, mas já não do pai para com o filho, pois é notória a tentativa séria e insistente de aproximação e de estabelecimento de uma relação parental normal por parte do pai nos últimos anos. A essa aproximação reagiu o arguido negativamente. Tão negativamente que alimentou progressivamente um forte ressentimento contra o pai, que evoluiu para um desejo de vingança, sentimentos esses que motivaram o crime. O arguido, ao matar a vítima, fê-lo motivado pelo fracasso, do seu ponto de vista, do desempenho por parte daquela do papel de pai. Por isso, não foi uma pessoa qualquer que o arguido matou, foi o pai, por não ter cumprido os seus deveres para com o filho. Foi por a vítima ser seu pai, embora um pai falhado, na sua maneira de ver, que o arguido a matou. Daí a especial censurabilidade da conduta, verificando-se a qualificativa constante da al. a) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
VII - Através da al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP o legislador agrava o crime quando cometido com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregues, ou ainda quando há persistência na intenção de matar por mais de 24 horas.
VIII - Estas situações reconduzem-se afinal a manifestações do conceito tradicional de premeditação, que normalmente revela uma vontade mais intensa e persistente de praticar o crime. A frieza de ânimo consiste numa atuação calculada ou refletida do agente, revelando sangue frio na execução e indiferença perante as consequências do ato. A reflexão sobre os meios empregues consiste na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de ação para o executar. A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas revelará premeditação na medida em que se trata de tempo considerável para o agente poder ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequências do ato. Em todos estes casos, o agente forma a sua vontade de forma calculada e refletida, ou nela persiste por tempo suficiente para vencer emoções imponderadas, revelando, assim, indiciariamente, especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime.
IX - Da matéria de facto provada resulta que o arguido planeou com minúcia e precisão a forma de matar o pai, chegando a elaborar um projeto escrito sobre a execução do crime, objetos a levar para o local, cuidados a adotar após a sua consumação, nomeadamente para eliminar os vestígios da sua atuação. E foi segundo esse plano que agiu. A forma como executou o crime mostra também uma vontade intensa e indomável de matar a vítima. Na verdade, desferiu múltiplos golpes no corpo do pai, que se encontrava deitado, mostrando-se indiferente não só ao estado de especial debilidade física e de indefesa deste, como também e sobretudo aos gritos, lamentos e apelos de compaixão que ele lhe fez, revelando assim uma determinação criminosa e um sangue-frio que impressionam. Não menos impressionante é o facto de, após a execução do crime, ter molhado um dedo no sangue do pai e com ele ter escrito na parede do quarto o nome deste, como que obedecendo a um qualquer ritual macabro de vingança, atitude esta reveladora de uma especial perversidade. Por fim, realizou metodicamente o plano que delineara com o fim de ficar impune do crime: apoderou-se de bens e valores existentes na casa da vítima, assim pretendendo simular um assalto; pegou fogo à casa, com o fim de eliminar os vestígios da sua atuação. O percurso seguido até casa e o procedimento que adotou revelam também uma reflexão antecipada sobre a forma de escapar e disfarçar a sua intervenção nos factos. Todos estes comportamentos sucessivos revelam, sem lugar para quaisquer dúvidas, que o crime foi planeado, premeditado, e executado com incontestável sangue-frio, nenhuma circunstância permitindo mitigar, muito menos ilidir, a indiciária agravação prevista na al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
X - O n.º 2 do art. 71.º do CP exclui a valoração, na determinação da pena, das circunstâncias que fazem parte do tipo, impedindo assim que a mesma circunstância seja valorada duas vezes: como elemento do tipo de ilícito; e subsequentemente como circunstância agravante na determinação da medida concreta da pena.
XI - Não haverá dupla valoração quando as circunstâncias que preenchem um elemento típico ultrapassam, em razão da intensidade ou dos efeitos, a normalidade, adquirindo um caráter superlativo. Nesse caso, podem tais circunstâncias ser valoradas em sede de medida da pena, sem que tal importe a violação da regra da proibição da dupla valoração.
XII - No caso, a decisão recorrida revela como as circunstâncias que qualificaram o crime de homicídio foram consideradas na medida da pena somente enquanto expressão extremamente desvaliosa e censurável da personalidade do arguido. Foi a extrema perversidade e censurabilidade da conduta, o seu caráter excessivo, que o tribunal (justamente) valorou. Essa ponderação não viola a regra da proibição da dupla valoração.
XIII - Para efeitos de determinação da medida concreta da pena, a ausência de antecedentes criminais do arguido é de valor quase nulo, atenta a idade do arguido (20 anos à data do crime). A integração social também não tem relevância neste tipo de criminalidade, muito menos a conflitualidade da relação com o pai, pois este esforçava-se precisamente por melhorá-la e construir uma relação normal entre ambos. Quanto ao modo de execução do crime, importa considerar a arma utilizada (uma faca com 20 cm de lâmina), a brutalidade da agressão (28 golpes), a indiferença perante a pessoa da vítima, indefesa e apelando à clemência do agressor. A tudo isto acrescem as exigências da prevenção geral, muito intensas neste tipo de criminalidade (que suscita repúdio generalizado). Nestes termos, a pena de 16 anos de prisão, fixada pelo tribunal recorrido, afigura-se justa e adequada.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório

            AA, com os sinais dos autos, foi condenado, por acórdão de 11.1.2013 do Tribunal Coletivo do 1º Juízo Criminal de Vila do Conde, como autor dos seguintes crimes:

            - homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, a) e j), do Código Penal (CP), na pena de 16 anos de prisão;

            - incêndio, p. e p. pelo art. 272º, nº 1, a), do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;

            - profanação de cadáver, p. e p. pelo art. 254º, nº 1, a), do CP, na pena de 6 meses de prisão, sendo todas as penas especialmente atenuadas por aplicação do disposto no art. 4º do DL nº 401/82, de 23-9.

            Em cúmulo, foi condenado na pena única de 17 anos de prisão.

            Deste acórdão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 8.5.2013, negou provimento ao recurso.

            Dessa decisão recorreu o arguido para este Supremo Tribunal, concluindo:

(A) O acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto confirmou a decisão de 1ª instância, na condenação de AA.

(B) Negou ainda provimento à impugnação da matéria de facto, à violação do princípio "in dubio pro reo", aos vícios invocados do art. 410° n.° 2 do CPP, à nulidade do acórdão de 1ª instância por inobservância do disposto nos arts. 358° e 359 do CPP, ex vi do art.° 379 n.° 1 al. b) do CPP, à nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (art. 379 n.° 1 al. c) do CPP), à qualificação jurídica dos crimes de Homicídio, incêndio e profanação de cadáver e por fim à medida das penas aplicadas.

(C) O Recorrente sabe que inexiste um duplo grau de recurso em matéria de facto e o que tribunal normalmente competente para conhecer do recurso em matéria de facto é, por via de regra, o Tribunal da Relação - art. 428.° do CPP.

Contudo no caso dos autos, entende o Recorrente que o acórdão da Relação do Porto não fez uma análise fundamentada de harmonia com os seus poderes de cognição, em violação dos arts. 428.°, n.° 1 e 431.° do CPP.

Não apreciou especificadamente os fundamentos do recurso em matéria de facto.

Não formulou um juízo de convicção, nem explicou, como tribunal de recurso, as razões por que acolheu a decisão da 1ª instância.

Subsistem assim dúvidas probatórias sobre os factos e a fundamentação realizada pelo tribunal a quo.

Pelo que se prefigura existir nulidade, por omissão de pronúncia.

O Recorrente cumpre o seu ónus de alegar, e remete para o Colendo Supremo o conhecimento, oficioso, nos termos dos arts. 410.°, n.° 2 e n.° 3, e 379.°, n.° 1, do CPP e violação do princípio "in dubio pro reo".

A decisão recorrida não se encontra devidamente fundamentada, violando o disposto nos arts. 97.°, n.° 5, e 374.°, do CPP,

Consubstanciando-se assim ofensa constitucional, nomeadamente ao disposto no art. 32.° nº 1 e nº 5 e 205º nº 1 da CRP.

Violou ainda as disposições legais plasmadas nos art.ºs 131.°, 132.°, n.° 2, als. a) e j), 254.°, n.°1, al. a), 272.°, n° 1, al. a), 71.° e 70.° todos do C.P.

DA OBRIGAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO APRECIAR ESPECIFICADAMENTE OS FUNDAMENTOS DO RECURSO EM MATÉRIA DE FACTO

(D) O ónus da impugnação específica imposta ao Recorrente, pelos n°s 3, 4 e 5 do art° 412° do CPP, quando está em causa a impugnação de matéria de facto, obriga o tribunal de recurso a apreciar também especificadamente os fundamentos do recurso e a apreciar, também ele, as provas produzidas, segundo os mesmos critérios legais de valoração, designadamente o da livre apreciação da prova, tendo naturalmente em conta a sua especial situação (neste sentido, Ac. STJ de 03/05/2006, relator: Sousa Fonte; in www.dgsi.pt).

(E) Assim, se "o Recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto tem de especificar as provas que impõem decisão diferente da recorrida, o tribunal da relação, em sede de fundamentação do seu acórdão, terá necessariamente de abordar especificadamente cada uma das provas e argumentos indicados, salvo naturalmente aqueles cuja consideração tiver ficado prejudicada pela resposta dada a outros [s.n.]" (Ac. STJ de 12/09/2007, relator: Pires da Graça; in www.dgsi.pt).

(F) Ora, o recurso da decisão sobre a matéria de facto não foi rejeitado, designadamente, por incumprimento das exigências do preceito do art. 412.° CPP, no exercício do poder/dever estabelecido no n.° 1 do art. 428.° do CPP; pelo contrário, o Tribunal ad quem admite que cabe nos seus poderes a cognição da prova e a eventual modificação da decisão (v. fl.80).

Portanto, o Tribunal da Relação do Porto não podia furtar-se à apreciação do mérito do recurso e a decidir em conformidade (art. 431.°, al. b), do CPP). Todavia, o Acórdão ignora toda a matéria articulada e impugnada (ao longo de 65 páginas!) pelo Recorrente. E fica-se, salvo melhor opinião, por uma fundamentação sem a consideração de qualquer elemento concreto suscitado pelo Recorrente.

(G) O Acórdão referenciado começa por desconsiderar toda a impugnação do Recorrente; citando: "não obstante a elevada quantidade de factos que põe em crise, a verdade é que os mesmos apresentam uma escassa relevância no contexto dos crimes imputados, mormente o de homicídio qualificado, que o arguido confessou, e que agora pretende apenas desqualificar, pondo em causa a prova da premeditação e frieza de ânimo e desvalorizando a particularidade de ser descendente (filho) da vitima a inexistência de circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade" [s. n.].

(H) O Recorrente confessou o crime de homicídio e manifestou na audiência sincero arrependimento, vergonha e juízo crítico. Todavia, tem agora que discordar sobre a alegada "escassa relevância" da premeditação, da frieza de ânimo e das relações de parentalidade entre o arguido e a vítima. Pois são estas as circunstâncias que permitem a qualificação ou não do crime de homicídio. A qualificação do homicídio é, na nossa lei, um juízo de culpa", uma especial censurabilidade ou perversidade". E a construção do elemento da culpa é primordial na fundamentação da pena a aplicar ao agente.

(I) Aliás, este remate do Tribunal ad quem revela uma subjetividade que ignora o direito constitucional ao recurso e ao contraditório como uma das garantias de defesa que deve ser assegurada pelo processo penal (cf. art. 32.°, n°s 1 e 5 CRP).

O Tribunal da Relação revela nesta desvalorização dos elementos constitutivos da culpa ("escassa relevância"), uma convicção anterior, fortíssima e pouco fundada da culpa agravada do agente, aqui Recorrente, que resulta {e até compreensivelmente) do tipo de crime aqui apreciado.

Esta convicção reflete-se na apreciação que fez de todas as provas impugnadas, resumindo-a a considerações gerais sobre a prova.

(J) Assim, o Tribunal da Relação diz sobre a confissão do arguido que dela resulta: "premeditação do crime de homicídio e uma reflexão prévia e cuidada do respetivo modo de execução. A aquisição dos instrumentos do crime e o planeamento do modus operandi, não pode ter decorrido de uma decisão instantânea, levou decerto mais de 24 horas [...] sem que durante esse período preparatório do crime, em algum momento o arguido tivesse deixado de o praticar” [sic].

Independentemente das considerações que posteriormente teceremos sobre o vício de contradição insanável (v. infra), sempre se diga que esta apreciação geral do Tribunal ad quem sobre a confissão do arguido não tem qualquer suporte nas suas declarações tanto que não ficaram provados os seguintes factos: (a) o arguido planeou matar o seu pai com mais de 24 horas de antecedência sobre a prática dos factos; (b) ao atuar da forma descrita, o arguido fê-lo persistindo na sua intenção de matar o seu pai por mais de 24 horas; (c) (a aquisição de qualquer faca - ficou apenas provada que o arguido as levou consigo, não que as adquiriu!) (v. sentença recorrida a fls. e transcrição da confissão)].

O acórdão evidencia neste trecho que a confissão não foi objeto de qualquer análise, mormente, concreta, como se requereu. E mesmo que o Tribunal recorrido a tenha examinado, não se discorre onde fundamenta estas considerações e que, pelas quais, os concretos argumentos do Recorrente são improcedentes.

(K) Sobre a restante prova sobre a factualidade relativa à al. j) do art. 132.°, n.° 2 do CP, diz, laconicamente, o acórdão recorrido: "a prova da factualidade em que se alicerça a circunstância qualificativa do homicídio referido naquela alínea, não pode suscitar quaisquer dúvidas face à prova produzida". E, assim, termina com a análise da restante prova identificada pelo Recorrente!

Ou seja, mais uma vez, o Tribunal ad quem não realiza o dever legal de análise e exame crítico sobre as provas feito pelo Tribunal a quo e desconsidera todo o alegado em matéria de prova com a expressão "não pode suscitar qualquer dúvida face à prova produzida".

(L) E se adiante parece o Tribunal determinado a fazer uma ponderação concreta, afirmando que a aplicação das qualificativas depende da verificação de uma especial censurabilidade e perversidade da conduta, que resulta do contexto dos crimes; acaba por ficar, mais uma vez, pela articulação geral dos factos e ignora qualquer análise específica dos mesmos.

(M) Veja-se tudo o que sobre isto se escreve: "já a circunstância prevista na alínea a) n.° 2 do artº. 132° do cód. penal, ela decorre em primeiro lugar do facto incontornável da vítima ser pai do arguido, estando obviamente subordinada a sua verificação à especial censurabilidade e perversidade da conduta e que o Recorrente põe em causa. Todavia, aqui sem razão, pois o contexto em que os crimes foram cometidos, mormente o facto de a vítima ser surpreendida, quando se encontrava deitada, fisicamente debilitada e de inferioridade física, para além do elevado número de facadas, 28 no total, (o que evidencia uma determinação e dolo direto intensos, fora do comum e raramente visto, diga-se), sendo 4 na zona da cabeça, 3 na zona do pescoço, 4 na zona do tórax, 2 na zona do abdómen, (todas zonas vitais), 11 na mão direita, 1 no braço esquerdo, 1 na mão esquerda, 1 na coxa direita e 1 na coxa esquerda. A prova destes factos é objetiva e resulta da prova pericial, sendo por isso inquestionável. As demais circunstâncias factuais (meros detalhes irrelevantes na sua maioria) nomeadamente a questão de saber se as facas da marca "tramontina" e "zara" foram previamente adquiridas pelo arguido ou se se encontravam na residência da vítima é meramente acessório, se bem que também neste ponto a prova produzida em audiência não deixa qualquer duvida. Os factos provados de onde se infere a especial censurabilidade e perversidade são inquestionáveis, não tendo o Recorrente logrado por sequer em dúvida a solidez da prova. [...] A anormal gravidade da conduta patente no modo de execução não permite o afastamento das circunstâncias referidas - uma especial censurabilidade ou perversidade - já que o arguido teve sempre o domínio completo dos factos, uma forte determinação e lucidez, para avaliar cabalmente a ilicitude dos factos" [s.n.].

(N) Os segmentos sublinhados retratam a subjetividade do exame da prova e evidenciam o desprezo que o Tribunal ad quem teve pelo recurso do Recorrente que ali se fez sobre a matéria de facto.

(O) Assim, ao contrário do que se requereu em sede de recurso para o Tribunal ad quem, não faz um exame crítico (na sua maioria, nem sequer os referindo no seu articulado!) aos factos provados e indicados com as letras aa. a bbb., que o Recorrente impugnou; e também não examina os factos dados por não provados que o Recorrente entende terem ficado provados e referenciados com as letras ccc. a iii.

(P) Fora as considerações gerais já referidas e eivadas, salvo melhor opinião, de subjetividade, o Tribunal ad quem não ponderou (de todo!) sobre os seguintes elementos de prova, conforme se requereu:

- As declarações do arguido;

- A análise da faca,

- A análise do bilhete,

- As declarações das testemunhas BB e CC,

- As declarações da Perita DD, psicóloga clínica.

Isto, conforme se articulou em sede do primeiro recurso, com vista a averiguar se a atuação do arguido ao matar o pai se coaduna com uma resolução tomada naquela noite ou antes uma resolução anteriormente pensada e planeada, (a resolução terá que ser anterior àquela noite, se o arguido levou consigo duas facas de cozinha e se o papel junto a fls 208, foi escrito num momento único; ou, ao invés, não será necessariamente anterior àquela noite, se as duas facas (marca Zara e marca Tramontina) pertenciam ao faqueiro de casa do pai e se o papel junto a fls. 208 foi escrito em dois momentos distintos, sendo o segundo momento já em casa do pai).

(Q) Assim, como não faz qualquer referência à impugnação da restante prova:

- Impugnação do facto 3: que a quantia de € 500,00 era insuficiente para os gastos que o arguido tinha - veja-se, que tal conclusão não se encontra assente em factos que evidenciem tal insuficiência. Por outro lado, o arguido obtinha rendimentos do poker. E não pode ser indiferente o facto de se ter inscrito em curso superior em faculdade do Porto, ter voltado a viver com a sua mãe, o que necessariamente diminuiu consideravelmente os seus gastos.

- A insuficiência dos factos 7 e 11 - na verdade, na versão do relato do arguido, verifica-se que as visitas eram apenas de horas e não de dias inteiros. Por outro lado, é evidenciado na prova produzida quanto à regularidade dos bens materiais que o pai dava ao seu filho.

- A insuficiência do facto 15 - aquele sentimento de humilhação e desvalorização não foi motivado pela censura do jogar no poker a dinheiro, e ter desistido do curso em Évora, e ter vendido o automóvel. Efetivamente tais factos não foram do agrado do pai. Todavia, o sentimento de humilhação e desvalorização resulta antes de todo o histórico relacional e afetivo pai/filho.

- A impugnação de parte do facto 29 - é absolutamente falso que usasse uma das luvas de mota, uma das luvas de látex, a película celofane ou as botas, durante a execução do crime, pelas seguintes razões:

- No ponto 55, refere-se que nenhuma das luvas de látex continha quaisquer vestígios de sangue, estavam apenas rasgadas;

- A luva de motard contém apenas vestígios hemáticos, mas se tivesse sido usada na luta, estaria encharcada de sangue, e conteria salpicos, o que não sucede (como se pode comprovar pela sua observação). Na versão do arguido pode concluir-se que os vestígios hemáticos que ela contém resulta do facto desta ter sido utilizada por este para recolher os vários objetos envolvidos nos acontecimentos dessa noite; ter estado em contacto com outros objetos ensanguentados, dentro da mochila e da mala;

- O rolo de papel celofane não contém quaisquer vestígios de sangue, ver ponto 55. No ponto 55 não se faz menção a um eventual pedaço de papel celofane, que tivesse sido separado do rolo original, para ser usado a proteger o braço, e não se faz menção porque não existe. O arguido recolheu todos os objetos envolvidos no crime, pelo que se existisse estaria na SAMSONITE;

- As botas contêm apenas vestígios no seu interior que resultaram de terem sido calçadas utilizando meias com vestígios de sangue, como se pode comprovar pela sua observação. Basta ver onde estão as manchas e onde deveriam de estar se fossem usadas no crime. Cf. Fotografias das botas de fls. 83 e 84 e fotografia das meias de fls. 186. O arguido estava apenas com essas meias vestidas, pois dirigia-se para a cama (ver ponto 55). Logo após o pai lhe ter aberto a porta para entrar em casa, o arguido preparou-se para dormir: retirou a ligadura da mão direita e vestiu a roupa de dormir (meias, calças de fato de treino, camisola e t-shirt). Tal é comprovado por a ligadura não conter vestígios de sangue.

- Impugnação do facto 31 - parece erroneamente formulada a superioridade física do arguido. A este respeito importa analisar o que ficou provado quanto às debilidades físicas do arguido. Estava limitado nos movimentos para as tarefas diárias.

- Impugnação do facto 33 - o facto respeitante é dado como assente que o arguido tapou a boca do seu pai para que este não gritasse. Ora, analisada toda a prova produzida, inexiste qualquer referência ou dedução plausível que possa sustentar tal versão.

- Impugnação do facto 44 - salvo melhor opinião, dever-se-ia tão só dado como provado a versão do arguido. A versão do mesmo dá conta que ele apenas colocou e espalhou líquido nos locais onde existiam vestígios. Designadamente, onde tinha deixado impressões digitais, ou seja no armário, na persiana, e os locais onde passou depois de calçar as botas, designadamente no tapete junto à cama e no corredor.

- Imprecisão e insuficiência do facto 46 - Primeiro porque é dito que o quarto da vítima ficou destruído na sua totalidade. Tal não é verdade. Não pode deixar de se dizer que merece censura a falta de indicação concreta dos objetos que ficaram danificados. A este respeito refira-se que o investigador da polícia judiciária que primeiro chegou ao local, apenas lá esteve 15 minutos. Entendeu por bem ir embora porque não se tratava de crime de incêndio mas antes de um homicídio. Logo que chegou a equipa dos homicídios abandonou o local. Apenas ficou destruída a cama e o colchão (ver fls. 54 e 55), a cadeira e o plasma (fls. 56) e a persiana. Por outro lado, na parte respeitante ao corpo da vítima, nos merece igual censura, pois bastaria o relatório da autópsia para se narrar factualmente e dizer em concreto que partes específicas do corpo da vítima ficaram sujeitas à ação do calor do fogo na cama.

- Insuficiência do facto provado 48: a falta a referência à primeira indicação que o arguido deu ao taxista: "Santo Tirso". Tal aspeto é importante, pois é completamente desconexo, e denota o estado de desorientação em que estava o arguido. Conjugado com o facto de o arguido sentir a boca seca e não conseguir falar. Daí a convicção do taxista de que este falaria em Inglês. Tal confusão poderá ser compreensível, pois que o taxista não fala a língua Inglesa.

- Impugnação do facto 54 - a conclusão de que a marreta de cabo curto, o alicate de grifos e a tesoura estavam em casa do pai do arguido, não encontra o mínimo suporte na prova produzida, pois a este respeito foi totalmente inexistente.

- Imprecisão do facto 60 - O arguido apenas ateou fogo no tapete junto à cama que depois alastrou para esta e ateou fogo à persiana.

(R) O Recorrente é sensível ao argumento usado pela Relação que o controle desse Tribunal sobre a prova é um juízo sobre a razoabilidade da convicção do tribunal da 1ª instância e expressa na fundamentação.

(S) Todavia, apenas uma referência geral (quando há!) é feita àquelas provas e não há qualquer menção concreta às razões que justificam o acerto da decisão do tribunal a quo, quanto aos factos impugnados ou pelo menos a improcedência do que alegado pelo Recorrente.

(T) O Tribunal da Relação simplesmente escreve: "a fundamentação e análise crítica da prova mostra-se consentânea com a realidade do julgamento, sem ofender o princípio da livre apreciação consagrado no art. 127° do cód. proc. penal” e segue-se uma consideração genérica e doutrinária sobre este princípio, resumindo-se na citação de um excerto de um outro aresto do mesmo tribunal: "Tal princípio não é absoluto, e entre as exceções a tal regra incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial - cfr. Ac. STJ, de 1-10-08, Proc. n° 08P2035, in www.dgsi.pt. Esta livre convicção do julgador não significa arbítrio ou decisão irracional, antes pelo contrário, exigindo-se uma apreciação crítica e racional das provas, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência, bem como na perceção da personalidade dos depoentes, para que a mencionada convicção resulte percetível e objetivável. De tal encontra-se indissociada a oralidade e imediação de que beneficia o julgador em 1ª instância, que só assim, em contacto direto com declarantes e testemunhas, pode detetar com propriedade a sua razão de ciência, serenidade, distanciamento, certezas, hesitações e contradições, linguagem e cultura, sinais, reações comportamentais e coerência de raciocínio, estendo, pois, em condições de avaliar, individuai e globalmente a prova - cfr. Ac. RL, Proc. n° 1551/05.6PSLSB.L1, de 19-1-2010. Outrossim, o tribunal de recurso, sem acesso àquela apreensão direta e emotiva dos mencionados fatores denunciados por testemunhas e depoentes encontra-se limitado à audição das passagens concretamente indicadas pelos intervenientes processuais e de outras eventualmente consideradas relevantes. É por isso que, quando a 1ª instância atribui ou não credibilidade a uma determinada prova não vinculada, o tribunal de recurso, em princípio, só a deverá censurar se for feita a demonstração de que tal opção carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum. Destarte, a atuação do princípio da livre apreciação da prova e o seu controle pressupõe a indicação na sentença dos meios de prova e o seu exame crítico, não para formar uma nova convicção através da reapreciação de todos os elementos de prova que serviram para fundamentar a decisão recorrida, mas apenas para verificar a razoabilidade da convicção alcançada pelo tribunal a quo e expressa na fundamentação, relativamente aos pontos de facto concretamente impugnados com base na avaliação das provas concretamente indicadas pelo Recorrente, conjugada com os demais elementos de prova tidos por necessários." (Ac. RP de 06/06/2012, Relator: Carlos Espírito Santo in www.dgsi.pt).

(U) Deste modo e como se disse, o Tribunal ad quem para fazer esse referenciado juízo de razoabilidade tinha necessariamente que se debruçar sobre a fundamentação da decisão da matéria de facto constante do acórdão do tribunal a quo, para concluir (ou não) pela sua improcedência.

(V) Mas os seus argumentos de improcedência da impugnação não obedecem àquela exigência de análise concreta das provas, consagrada nos arts. 428.°, n.° 1, 431.°, e 412.°, CPP, verificando-se, assim, falta de fundamentação sobre a impugnação efetuada pelo arguido e Recorrente da matéria de facto provada.

(W) E o tribunal ad quem ao confirmar a decisão de primeira instância quanto à matéria de facto dada como provada, sem a fundamentar e sem se pronunciar sobre os argumentos contra ela levantados nas conclusões indicadas com as letras D) a J) inclusive, cometeu o douto Acórdão da Relação a nulidade de falta de fundamentação prevista no art. 379°, n° 1, al. a) do CPP, violando também o dever de fundamentação exigido pelos arts. 97°, n°4 e 374°, n°2, do CPP.

(X) Ora, o Tribunal da Relação não pode refugiar-se em considerações genéricas sobre a apreciação da prova, sem analisar em concreto as razões da impugnação, inutilizando desse modo aquele direito dos sujeitos processuais; isto porque: "a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412.° n.°3, constitui a área por excelência em que se verifica o dúbio grau de jurisdição em matéria de facto" [s.n.] (Ac. STJ de 25/01/2006, relator: Silva Flor, in www.dgsi.pt).

(Y) Esta atuação (de falta de fundamentação) do Tribunal ad quem implica, porquanto, a violação do princípio constitucional consagrado no art. 32.° n.°1 da CRP, da garantia do direito ao duplo grau de jurisdição que a Constituição reconhece ao arguido.

(Z) E acarreta ainda sempre o vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio constitucional da legalidade, consagrado no art. 205° n° 1 da CRP quando entendidos e interpretados, tal como faz o acórdão recorrido.

(AA) Porquanto, deve o acórdão recorrido ser anulado e proferida nova decisão suprindo-se a referida nulidade.

ii. DOS VÍCIOS DO ART. 410.°, N.° 2 CPP DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL AD QUEM

(BB) O n.° 2 do art. 410 do CPP dispõe que cabe, nos limites dos poderes de cognição do STJ, o recurso que tenha por fundamento o vício de: (a) insuficiência da matéria de facto provada; (b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou (c) erro notório na apreciação da prova.

(CC) Isto no pressuposto de que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum.

(DD) As regras de experiência comum é um conceito intimamente ligado com a livre apreciação da prova estabelecido pelo art. 127° do CPP. Todavia, a avaliação da prova pelas regras da experiência é inteiramente objetiva (Ac STJ de 18/1/2001, proc. n° 3105/00-5ª –SASTJ, nº 47/88).

(EE) Como é referido no Ac. RP de 02/12/2009 (relator: Artur Oliveira, in www.dgsi.pt): "é nesse âmbito, de argumentação racional, que o julgador pode socorrer-se de "regras da experiência" [artigo 127°, do Código de Processo Penal] ou máximas de experiência, isto é, juízos formados na observação do que comummente acontece e que, como tais, podem ser formados em abstrato por qualquer pessoa de cultura média. Em substância, as presunções ditas naturais, de facto, simples ou de experiência são consequências, ou seja, assunções que o juiz, como homem, e como qualquer homem criterioso, atendendo à ordem natural das coisas - quod plerumque fit - extrai dos factos da causa, ou das suas circunstâncias, e nas quais assenta sua convicção quanto ao facto probando. Por outras palavras: são o resultado da experiência da vida obtida mediante observação do mundo exterior e da conduta humana e apoiadas na explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extração de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil'.

(FF) O Código Civil dispõe no seu art. 349.° [ex do art. 4.°, CPP], que as "presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido".

A jurisprudência e a doutrina têm trabalhado, de forma uniforme e coincidente, os pressupostos de funcionamento deste meio de prova. O acórdão da Relação do Porto citado (Ac. RP de 02/12/2009) faz uma resenha dos argumentos, que citamos:

"A título de exemplo referimos os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.01.1992: "I - Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. II - As presunções naturais, judiciais ou de facto são aquelas que se fundam nas regras da experiência, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos" [...] "VIII - Não são, pois, meios de prova, instrumentos de obtenção de prova, antes raciocínios, juízos hipotéticos, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, donde o seu carácter atípico, como se doutrinou no Ac. deste Supremo de 07-01-2004, Proc. n.° 03P3213, permitindo atingir continuidades imediatamente apreensivas nas correlações internas entre factos, conformes à lógica, sem incongruências para o homem médio e que, por isso, legitimam a afirmação de que dado facto é natural consequência de outro, surgindo com toda a probabilidade forte, próxima da certeza, sem receio de se incorrer em injustiça, por não estar contaminado pela possibilidade física mais ou menos arbitrária, impregnado de impressões vagas, dubitativas e incredíveis; e o Acórdão desta Relação de 03-06-1991: "O disposto nos art.ºs 349.° e 351.°, do Cód. Civil permite ao interprete tirar a ilação de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, sendo admissível nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (...)" [BMJ 408°, 643].

Também a doutrina vêm assinalando os mesmos componentes. O Professor Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, 1967/68, realça a aplicação individualizada das "regras de experiência" ao caso concreto-histórico, procurando averiguar em que medida os factos concretos e individualizados do caso - fixados pelo contexto histórico em que surgem - confirmam ou infirmam aquelas inferências gerais típicas e abstratas. E define "regras da experiência" como "critérios generalizantes e tipificantes de inferência factual", "...com validade no contexto atípico em que surgem...", e que mais não são do que "índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância", orientadores dos caminhos da investigação, oferecendo probabilidades conclusivas, mas nada mais do que isso [pág. 48]. Também A. Lopes Cardoso afirma de forma conclusiva; "Estas presunções são afinal o produto de regras de experiência: o juiz, valendo-se de certo facto e de regras de experiência conclui que aquele denuncia a existência de outro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro: procede, então, mediante uma presunção ou regra da experiência ou, se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência" [Revista dos Tribunais, 86°, 112].

(GG) Toda a prova é apresentação de verdades. O Direito pressupõe a sustentabilidade das convicções do julgador. A ausência de provas diretas não implica necessariamente o fracasso da acusação. Nem o recurso à prova por presunções naturais, de facto, simples ou de experiência [Manuel da Andrade, Noções Elementares de Direito Civil, 215] equivale, particularmente no caso do Direito Penal, à condenação com base em simples conjeturas, meras suspeitas, ou equívocas aparência" [s.n.].

(HH) Servem as anteriores considerações como pano de fundo, para a análise da decisão do Tribunal ad quem.

(II) Na apreciação da procedência da impugnação da prova feita pelo Recorrente (e na sua decisão pela improcedência!), o Tribunal da Relação tece considerações que não têm qualquer apoio nos factos provados e que também não podem decorrer de qualquer ilação natural:(")

(JJ) "Das próprias declarações e confissão do arguido, se conclui claramente pela premeditação do crime de homicídio e uma reflexão prévia e cuidada do respetivo modo de execução. A aquisição pelo arguido dos instrumentos do crime e planeamento do modus operandi não pode ter decorrido de uma decisão instantânea; levou de certo mais que as 24 h [...] sem que durante esse período preparatório do crime, em algum momento o arguido tivesse desistido de o praticar. [...] o arguido teve sempre o domínio completo dos factos, uma forte determinação e lucidez do arguido para avaliar cabalmente a ilicitude dos factos." (fls. 1596 a 1598)

(KK) Assim, o Tribunal da Relação produz decisão em contradição insanável com a fundamentação. Vejamos:

O tribunal qualifica o homicídio com apoio na al j) do art. 132.°, n.° 2 CP: "agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas". E funda esta decisão na confissão do arguido, na aquisição dos instrumentos do crime e no planeamento do modus operandi; e ainda na forte determinação e lucidez.

Ora, da decisão recorrida, resulta a seguinte fundamentação da matéria de facto:

- Facto provado (25) - "o arguido levava consigo uma mochila que ostentava a marca Nike, no interior da qual se encontrava o material descrito no plano manuscrito, acima referido (saco, luvas, película aderente, luvas de mota, camisola com capuz, camisa, casaco, calças de ganga e calças de fato de treino), bem como os objetos que decidira levar consigo para consumar a morte do seu pai - uma faca de cozinha da marca Iara, com lâmina de 11,5 cm de comprimento e 3 cm de largura, uma faca de cozinha da marca Tramontina, com lâmina de 20 cm de comprimento e 5 cm de largura" [s.n.];

- Facto não provado (b) - "O arguido planeou matar o seu pai com mais de 24 horas de antecedência sobre a prática dos factos";

- Facto não provado (q) - "Ao atuar da forma descrita, o arguido fê-lo persistindo na sua intenção de matar o seu pai por mais de 24 horas";

- Facto provado (27) - "...esteve algum tempo a beber whisky..."

(LL) Atente-se, parenteticamente, quanto à aquisição dos objetos do crime. Será que poderá resultar do facto conhecido "levava consigo os objetos para consumar a morte do seu pai' o facto desconhecido "o arguido adquiriu os objetos'? Note-se que junto do processo constam as fotografias das facas com lâminas que apresentam riscos próprios de uso (cf. fls 192 a 195). Não decorre, naturalmente, das regras de experiência, que "levar consigo" facas usadas signifique que as tenha adquirido (v. o que se explanou supra sobre as presunções de experiência). Pelo contrário, os riscos próprios do uso criam a convicção de que as facas não foram adquiridas pelo arguido.

(MM) Assim, daqui decorre a existência de contradição insanável entre a fundamentação citada (v. supra) e a decisão que o arguido “levou de certo mais que as 24h [...] sem que durante esse período preparatório do crime, em algum momento o arguido tivesse desistido de o praticar. [...] o arguido teve sempre o domínio completo dos factos, uma forte determinação e lucidez do arguido para avaliar cabalmente a ilicitude dos factos." (fls. 1596 a 1598).

Isto porque, observa-se uma clara e notória contradição entre os factos não provados (b) e (g) e o segmento de decisão de que "levou de certo mais que as 24 h".

Além que fica também claro que a ingerência de uma bebida alcoólica como o whisky tem que reduzir a lucidez de um ato. Esta presunção de experiência é natural consequência do facto de beber, surgindo com toda a probabilidade forte, próxima da certeza, sem receio de se incorrer em injustiça (v. o que ficou dito infra). Pelo que também aqui se observa a patente contradição, entre a consideração da ingerência de uma bebida alcoólica e a lucidez do ato.

(NN) A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão constitui vício, nos termos da al. b) do art. 410.° CPP que deve ser conhecido oficiosamente por este Colendo Tribunal. O que implica, salvo melhor opinião, o reenvio do processo para o Tribunal da Relação do Porto, nos termos dos arts. 426.° e 426.°-A do CPP.

iii.  DOS VÍCIOS DO ART. 410.°, N.° 2 CPP DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL A QUO

(OO) O art. 434.° do CPP determina que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no art. 410.°, n°s 2 e 3. Significa isto que, o STJ pode conhecer dos vícios aludidos no art. 410.°, n° 2, do CPP, de forma oficiosa, por sua própria iniciativa, quando tais vícios se perfilem.

(PP) Ora, também do texto da decisão a quo, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (v. supra), perfila-se pois a existência do vício aludido na al. b) n.° 2 do artº. 410.°do CPP.

(QQ) O tribunal a quo veio dar como:

Facto provado (29) - "o arguido usava [...] umas botas castanhas, e, na sua mão esquerda, colocou luvas de látex, bem como película aderente no braço esquerdo, que se encontrava engessado (em virtude de uma acidente ocorrido anteriormente com a sua mota), de molde a proteger o mesmo, e na mão direita a uma luva própria para conduzir veículos motorizados";

Em contradição com o conteúdo do Facto provado (55): desde logo importa notar que, (a) nenhuma das luvas de látex continha quaisquer vestígios de sangue, estavam apenas rasgadas; (b) a luva de motard contém apenas vestígios hemáticos, porém se tivesse sido usada na luta, estaria encharcada de sangue, e conteria salpicos, o que não sucede (como se pode comprovar pela sua observação). Na versão do arguido pode concluir-se que os vestígios hemáticos que ela contém resulta do facto desta ter sido utilizada por este para recolher os vários objetos envolvidos nos acontecimentos dessa noite e de ter estado em contacto com outros objetos ensanguentados, dentro da mochila e da mala; (c) o rolo de papel celofane não contém quaisquer vestígios de sangue. Também não se faz menção a um eventual pedaço de papel celofane, que tivesse sido separado do rolo original, para ser usado a proteger o braço - não se faz menção porque não existe: o arguido recolheu todos os objetos envolvidos no crime, pelo que se existisse estaria na samsonite; (d) as botas contêm apenas vestígios no seu interior que resultaram de terem sido calçadas utilizando meias com vestígios de sangue, como se pode comprovar pela sua observação e basta ver onde estão as manchas e onde deveriam de estar se fossem usadas no crime. Cf. Fotografias das botas de fls. 83 e 84 e fotografia das meias de fls 186; - Note-se que as ilações que aqui se tiram têm como apoio o raciocínio que supra se teceu sobre as presunções naturais ou de experiência que aqui plenamente se justificam.

- Facto provado (31) - "chegado ao quarto daquele, e beneficiando do facto de o mesmo se encontrar deitado da debilidade física da vítima assim como da sua superioridade física" e Facto provado (59) - "sabia também o arguido que o seu pai se encontrava fisicamente fragilizado, e que a sua força física era superior à do seu progenitor, e não obstante, não se coibiu de atuar;

Em clara oposição com Facto provado referido no (66): "o arguido sofreu um acidente de mota na data de 30.09.2011 no qual sofreu um traumatismo no punho direito, ombro esquerdo, cotovelo esquerdo, joelho esquerdo e dedos do pé direito, no seguimento do qual ficou uma luva gessada no braço esquerdo e uma tala no antebraço, o que limitava os seus movimentos para as tarefas diárias" [s.n.];

- Facto provado (31) - "abeirou-se do seu pai e desferiu-lhe vários golpes com a faca que empunhava, atingindo-o em várias zonas do corpo, sobretudo no peito e na cabeça" [s.n.];

Em contradição patente com o Facto provado (34) - "No total, o arguido desferiu vinte e oito facadas no corpo do seu pai - quatro na zona da cabeça, três na zona do pescoço, quatro na zona do tórax, duas na zona do abdómen, onze na mão direita, uma no braço esquerdo, uma na mão esquerda, uma na coxa direita e uma na coxa esquerda".

- Facto provado (44) - "Após, o arguido pegou numa garrafa plástica que continha acendalha líquida de cor azul, e que se encontrava na sala, e espalhou o referido líquido por todas as divisões da habitação, com particular incidência no quarto onde estava o seu pai, tendo naquela divisão despejado o referido liquido sobre os tapetes do quarto, cama, colchão, e portas do roupeiro, pretendendo desse modo que o fogo que entretanto ateou, de modo não concretamente apurado, consumisse toda a habitação, por forma a eliminar os vestígios da sua atuação." [s.n.];

O que entra em contradição como Facto provado (46) "em consequência do incêndio ateado, o quarto da vítima ficou destruído na sua totalidade, tendo o corpo da mesma ficado parcialmente queimado" [s.n.]; com a Confissão do arguido [minuto 24:38] e com o Relatório a fls. 1596, que assinala que não se registaram vestígios de álcool etílico na porta do roupeiro do quarto e no chão da sala.

- Facto provado (58) - "Bem sabia o arguido que atuava contra o seu pai, seu ascendente, pessoa a quem devia particular respeito em virtude da relação familiar que os unia"

O que se opõe aos seguintes factos: "o arguido nunca encarou a relação com o seu pai, em termos afetivos, como uma relação de pai e filho" (Facto provado (8): "no contexto familiar, a figura do tio materno esteve presente no processo de formação de AA, para quem representou e foi valorada com significado parental, traduzido, nomeadamente, na oferta dos trabalhos escolares que elaborava no âmbito do "dia do pai". (Facto provado (68).

- Facto provado (62) - "o facto de ter consumido uma quantidade não apurada de whisky antes da prática dos factos",

E que contradiz as Declarações da Testemunha EE, irmão da vítima e tio do arguido, que "logo pela madrugada foi a casa deste [...] e confirmou ainda que na sala se encontrava uma garrafa de whisky que "estava mais ou menos a meio",

E ainda se opõe ao segmento de que este facto "não retirou ao arguido qualquer discernimento nem determinou ou condicionou a sua vontade de matar o pai” (62) - v. aqui as considerações anteriormente tecidas sobre as razões de experiência.

(RR) Estas contradições entre os factos provados hão-de ter de ser necessariamente suprimidas, sob pena de não se poder decidir da causa, na sua especificidade concreta, e que somente perante o máximo de pormenores tácticos objetivos é possível vir a formular um juízo de valor seguro.

(SS) A sanação dos vícios assinalados impõe-se, nomeadamente, para efeitos de graduação da culpa, e consequente, qualificação do homicídio.

(TT) E ainda para a concreta averiguação do crime de incêndio.

(UU) A existência dos vícios supra referidos, torna impossível decidir a causa; há sim, nos termos dos arts. 426.° e 426.°-A do CPP, que reenviar o processo para novo julgamento.

iv. DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO

(VV) Segundo o princípio in dubio pro reo, que vigora no processo penal português, por força da sua consagração no artigo 32.° n° 2 da CRP - "todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação."

A presunção da inocência é também identificada por muitos autores com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido.

"A doutrina tem agasalhado e compactado o critério operante de origem anglo-saxónica, decorrente do princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência (cf. n.° 2 do art. 32° da CRP) e com base no qual o convencimento do tribunal quanto à verdade dos factos se há-de situar para além de toda a dúvida razoável. A dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given) poderá consistir na dúvida que seja "compreensível para uma pessoa racional e sensata", e não "absurda" nem apenas meramente "concebível" ou "conjetural". Nesta ótica, o convencimento pelo tribunal de que determinados factos estão provados só se poderá alcançar quando a ponderação conjunta dos elementos probatórios disponíveis permitirem excluir qualquer outra explicação lógica e plausível' (Ac. Rel. Lisboa de 04/07/12, in <www.dgsi.pt>) [s. n.]

(WW) O Recorrente é, todavia, sensível ao argumento que na aplicação da regra processual da encimada livre apreciação da prova só se haverá que lançar mão ao princípio do in dubio pro reo, se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova conduzir à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto.

Como já se articulou anteriormente, na sentença da 1ª instância, perante dois factos provados em contradição, optou, no entanto, esse tribunal coletivo por decidir sempre contra a presunção de inocência do réu - v. supra 33.

E também, no momento de ponderação e de dúvida sobre as questões como a premeditação e a relação pai e filho, optou por se posicionar contra o réu.

Assim, não respeitando o princípio do in dubio pro reo, conclui o Tribunal pela premeditação do crime pelo arguido, pese embora não se ter apurado com a necessária certeza o momento em que resolveu matar o seu pai (facto provado 19), nem o momento de escrita do plano (facto provado 20), nem do relatório da perícia psicológica demonstrar que houve uma decisão anteriormente pensada e planeada (v. por uma questão de economia processual tudo o que ficou dito nas Conclusões C) a J) do Recurso para o Tribunal da Relação, que por brevidade se dão por reproduzidas).

(XX) A versão do arguido merece ser analisada com toda a atenção (v. supra a transcrição do seu depoimento), porque, à partida, ele, enquanto tipo social e humano, não apresenta qualquer deficit de credibilidade.

O relato dos factos pelo arguido não tem fissuras assinaláveis. Descontada uma diferença: a explicação dada pelo arguido para levar para casa do pai uma luva de motard, que o tribunal deu como explicação destituída de sentido. Ora, descontada essa diferença - que não é decisiva, e até mesmo discutível - não há incongruências, na narração do arguido, que demonstrem a sua falta à verdade.

(YY) Porém, atentos os limites do conhecimento humano, muitas vezes a dúvida inicial permanece, apesar de todo o esforço desenvolvido para a ultrapassar. Em tais situações, o princípio da presunção de inocência impõe que, existindo dúvidas sobre os pressupostos da decisão a proferir, estas sejam valoradas a favor do arguido.

(ZZ) Salvo o devido respeito por opinião diversa, existe a possibilidade razoável, do arguido não ter levado para casa do seu pai as duas facas, de não ter premeditado o crime, de não ter refletido sobre os meios empregues e de não ter agido com frieza de ânimo.

Tal solução alternativa, tem suporte na prova produzida (v. mais uma vez as conclusões C) a J)), tem uma explicação racional e é plausível. Contudo não é coincidente com a dada como provada na douta sentença a este respeito.

Pelo que, nesta parte, dever-se-á aplicar a mais favorável ao arguido.

(AAA) E muito mal andou o Tribunal da Relação que adita a fls 1603 que o recurso do arguido visou censurar tão só a fase final da formação convicção na valoração da prova. Quando foi precisamente o contrário.

O recurso assentou na violação dos passos para a formação da convicção.

De facto, como aí se articulou. não existem os dados objetivos que se apontam na motivação do Tribunal a quo. Particularmente, a análise do bilhete é incorreta: não existem os mencionados factos de ausência de rasuras, uniformidade de escrita, homogeneidade de conteúdo e aproveitamento do espaço na folha de papel constante de fls. 208.

Também não é verdade que a testemunha BB seja dona da casa em que ocorreu o crime, nem é verdade que a testemunha CC seja irmã da vítima. Também objetivamente não é verdade que esta última testemunha fosse frequentemente a casa do falecido (foi tão só durante uma semana e depois em situações esporádicas e só ajudava na cozinha).

Quanto ao relatório, também se aprecie que ele não espelha uma decisão do arguido, de cometer os crimes, anteriormente pensada e planeada.

Não existe superioridade física do arguido - basta atentar para as debilidades físicas do arguido, estava limitado nos movimentos para as tarefas diárias (Facto provado 66).

O quarto da vítima não foi totalmente destruído - como ardeu o colchão, a cadeira e o plasma, é natural que as fotografias mostrem espalhada a fuligem e os detritos do incêndio desses objetos, nas paredes, no chão e nos restantes móveis do quarto.

(BBB) E por outro não se referenciam quaisquer dados objetivos na fundamentação para formar a convicção.

Particularmente no que respeita ao uso de luvas de mota, luvas de látex, da película celofane bem como as botas, durante a execução do crime, inexiste fundamentação para estes factos. Ao invés resulta dos próprios objetos que não contêm vestígios de sangue, pelo que não poderão ter sido usados na execução do crime (v. toda a argumentação expendida nas já referenciadas conclusões).

Ou ainda que a marreta de cabo curto, o alicate de grifos e a tesoura eram de casa do pai do arguido. Também aqui não existe o mínimo suporte na prova produzida. Violaram-se os princípios para a aquisição desses factos dados como provados. O juízo sobre a existência dos factos só é possível mediante a apreciação das provas. O artigo 355° n.° 1 do CPP exige que a prova válida para o julgamento seja produzida e examinada em audiência de julgamento. É evidente que aqueles objetos não foram examinados. A serem, teria sido aferida a inexistência de vestígios hemáticos.

Assim, a censura do Recorrente ao tribunal a quo, sobre a questão do in dubio pro reo, assentou, ao contrário do que diz a Relação, na violação dos passos para a formação da convicção.

(CCC) Acresce que a violação do princípio in dubio pro reo é um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só podendo ser sindicado pelo Colendo Supremo Tribunal dentro dos seus limites de cognição. Deve, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.°, n.° 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.

O Venerando Tribunal da Relação do Porto aponta como fundamento para a não aplicabilidade do princípio in dubio pro reo que o coletivo de juízes não evidenciou qualquer dúvida sobre a factualidade provada, nem se vislumbra dos autos quaisquer indícios que pudessem ou devessem, à luz das regras da experiência comum, inculcar no julgador a dúvida séria sobre a matéria de facto.

Contudo, em momento algum da fundamentação do acórdão da Relação se coloca em causa a versão dos factos apontada pelo arguido.

A fls 1601 afirma-se que mesmo nos casos em que se admita uma decisão diversa e possível não há lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo. A fls. 1596 o mesmo tribunal defende que, analisada a prova, se pode concluir no essencial pela versão dada como provada pela 1ª instância.

A contrario, se poderá dizer então, que o Tribunal da Relação mantém dúvidas em questões não essenciais.

Vejamos então o que o Venerando Tribunal considera e reporta como não essenciais. Ora, no acórdão refere-se expressamente que "não obstante a elevada quantidade de factos que põe em crise, a verdade é que os mesmos apresentam uma escassa relevância no contexto dos crimes imputados".

Ou seja, o Tribunal entende que todas questões colocadas pelo Recorrente, em sede de impugnação de prova, são não essenciais e sobre estas mantém dúvida.

Mais: se o Tribunal admite como possível a versão do arguido, se não lhe aponta fissuras assinaláveis, se a versão do arguido é incompatível com a versão dada como provada, não está o Venerando Tribunal a admitir, uma vez mais, que está em dúvida? E se tem dúvidas não haveria de recorrer ao princípio in dubio pro reo? E como seria possível que o Tribunal não tivesse dúvidas sobre a matéria de facto impugnada?

Aliás, veja-se a título de exemplo:

As botas contêm apenas vestígios no seu interior que resultaram de terem sido calçadas utilizando meias com vestígios de sangue, como se pode comprovar pela sua observação. Basta ver onde estão as manchas e onde deveriam de estar se fossem usadas no crime. Cf. Fotografias das botas de fls. 83 e 84 e fotografia das meias de fls 186;

- O arguido estava apenas com essas meias vestidas, pois dirigia-se para a cama (ver Facto provado 55). Logo após o pai lhe ter aberto a porta para entrar em casa, o arguido preparou-se para dormir: retirou a ligadura da mão direita e vestiu a roupa de dormir (meias, calças de fato de treino, camisola e t-shirt). Tal é comprovado por a ligadura não conter vestígios de sangue.

É possível não ficar com dúvidas que o arguido tenha efetivamente usado as botas no crime? E com a ligadura?

Ou ainda ao dar como provado que o arguido espalhou líquido inflamável por todas as divisões da habitação e o relatório pericial de fls 588 dar negativo na determinação de substâncias acelerantes de combustão para os vestígios recolhidos no chão da sala e no roupeiro. Não será a versão do arguido verdadeira porquanto afirma que só o espalhou no quarto?

(DDD) Pelo que, havendo dúvida, pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, sobre a factualidade provada e não provada, deve, em obediência ao princípio in dubio pro reo, ser oficiosamente apreciada, pelo Colendo Supremo Tribunal, a prova no sentido da mesma ser valorada e dada por assente nos termos da versão do Recorrente, por ser a que melhor se coaduna com a presunção da inocência do arguido.

(EEE) Isto sob pena, de se violar esse princípio constitucional em matéria de apreciação e valoração da prova nos termos do n° 2 do art. 32.° da CRP.

v.   DA QUALIFICAÇÃO DADA AO CRIME DE HOMICÍDIO

(FFF) Não se conforma o Recorrente com a qualificação dada ao crime de homicídio.

(GGG) O crime de homicídio qualificado não é mais do que uma forma agravada de homicídio simples, prevista no artigo 131.° do CP.

No crime de homicídio qualificado, a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n° 1 do artigo 132°, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n° 2 do artigo 132°.

Pelo que, no artigo 132.°, n° 2 não está indicado um critério determinante para a qualificação, apenas se elencam fatores que podem servir de indiciador de culpa agravada.

Exige-se que a atitude ou aspetos da personalidade mais desvaliosos do agente se concretizem em qualquer dos exemplos padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga;

Não será pelo facto de se verificar em concreto uma das circunstâncias referidas nos exemplos padrão - ou outras substancialmente análogas - que fica preenchido o tipo (tipo de culpa). Torna-se necessário que, além da ocorrência de qualquer delas, se possa concluir em concreto por uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.

Assim sendo, a técnica utilizada pelo legislador resultante da conjugação dos números 1 e 2 do artigo 132.° do Código Penal leva a que possa ocorrer um homicídio, no qual se verifique algumas das circunstâncias previstas no n.° 2 e, contudo, não se tratar de um homicídio qualificado, pois, no caso concreto, aquela circunstância não revela "especial censurabilidade ou perversidade", o que cremos, salvo melhor opinião, ser o caso.

(HHH) Quanto à qualificativa da alínea a) do artigo 132° do Código Penal.

Nesta fase, convém aquilatar do que resultou provado no que respeita à relação da ascendente-descendente.

De facto, com eventual relevo integrar a alínea a) do artigo 132°, do CP resultou provada, designadamente, a seguinte matéria de facto:

- O pai do arguido vinha esporadicamente a Portugal (Facto provado 2);

- Os progenitores do arguido separaram-se de facto quando este contava com meses de idade, altura em que o pai foi viver para Angola devido a problemas económicos, tendo-se separado de forma definitiva quando o arguido tinha 3 anos de idade (Facto provado 5);

- Desde essa altura, os contactos entre pai e filho limitaram-se a telefonemas esporádicos, apenas se tendo encontrado quando o arguido contava cerca de 11 anos de idade (Facto provado 6);

- ... Estavam juntos cerca de uma vez por ano, durante um dia ou dois, quando o pai vinha a Portugal (Facto provado 7);

- O arguido nunca encarou a relação com o seu pai, em termos afetivos, como uma relação de pai e filho (Facto provado 8);

- ... O arguido nunca reconheceu afetivamente a vítima como seu pai, culpabilizando-o pelo facto de o ter abandonado, assim como à sua mãe, tendo desenvolvido ao longo dos tempos um sentimento, com traços obsessivos, de ressentimento e animosidade relativamente ao progenitor (Facto provado 12);

- O arguido sempre viu como referência paterna o tio FF, irmão da mãe, que viveu com ambos até aos 10 anos de idade e sempre esteve presente no seu dia-a-dia (Facto provado 12);

- ...Sentindo-se humilhado e desvalorizado por tais repreensões do pai. (Facto provado 15);

Dos factos dados como provados e alegados pelo arguido na contestação (Facto 66)

- O progenitor do arguido foi pela primeira vez para Angola quando a mãe do arguido se encontrava grávida deste. Voltou, quando o arguido tinha três meses, e instalou-se de forma praticamente permanente em Angola quando o arguido não tinha um ano e meio de idade, local onde constituiu família. Tal facto foi motivado essencialmente por questões financeiras, de dívidas que havia acumulado. Acresceu ainda o facto de a relação com a mãe do arguido se ter entretanto deteriorado.

- A primeira memória física do arguido do seu progenitor ocorreu pelos 11 anos de idade, coincidente com uma repreensão física. Até então existiam apenas alguns contactos telefónicos entre ambos nas alturas dos aniversários deste e do progenitor. Até à idade dos 14 anos do arguido as visitas do seu progenitor eram praticamente anuais e por curtos períodos de tempo. Posteriormente e até à idade dos 16 anos do arguido, as visitas foram aumentando paulatinamente.

- A referência paterna do arguido foi o seu tio materno FF, com quem até á data dos factos falava praticamente todos os dias. Nunca o seu progenitor acompanhou o arguido em qualquer atividade da sua vida;

Dos factos dados como provados respeitantes às condições pessoais do arguido (Facto 68):

- No contexto familiar, a figura do tio materno esteve presente no processo de formação de AA, para quem representou e foi valorada com significado parental, traduzido, nomeadamente, na oferta dos trabalhos escolares que elaborava no âmbito do "dia do pai".

(c) Ora, importa que da matéria de facto provada resulte uma especial censurabilidade ou especial perversidade, revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Isto porque qualquer homicídio simples revela já censurabilidade ou perversidade do agente que o comete, pelo profundo desprezo pela vida humana.

Na verdade, o facto de a vítima ser o pai biológico do arguido e por esse facto a ação se poder enquadrar na alínea a) do n° 2 do artigo 132.°, tal apenas pode servir de indiciador de culpa agravada.

i. Da fundamentação do tribunal relativa à relação pai filho.

- A fls 1589 consta que foi apurado e dado como provado pelo Tribunal que o arguido agiu com o intuito de se vingar do seu pai, em resposta a sentimentos de ressentimento e animosidade pelo facto de o seu pai ter estado sempre ausente e procurar agora estabelecer consigo uma relação afectiva de pai/filho que não aceitava.

- Consta ainda a fls 1589 que o arguido foi relatando pormenorizadamente a sua relação com o pai desde a infância, relato do qual resultou bem claro o sentimento de ressentimento pelo facto de o pai ter estado sempre ausente, assim como o conflito interno resultante do facto de actualmente aceitar ajuda económica por parte de alguém que queria ganhar o seu afecto enquanto pai, qualidade que não lhe reconhecia, assim como não aceitava as reprimendas que este lhe dava.

(III) Cremos que será de afastar a qualificativa, atendendo desde logo às relações entre o arguido e a vítima.

Não podemos dizer, salvo melhor opinião, que, no caso em apreço, o arguido venceu as contra motivações éticas determinadas pelas relações de família que naturalmente se impõe entre pai e filho.

Conforme refere Fernando Silva (“Crimes contra as pessoas - Crimes contra a vida, Crimes contra a vida intrauterina, Crimes contra a integridade física", Quid Júris, p. 69 e 70): "O vínculo existente, bem como os poderes-deveres que se impõem, fazem criar uma maior censurabilidade ou perversidade na prática de homicídio. Para além de se revelar, à partida, como uma ação desvaliosa. É difícil conceber um motivo que torne minimamente "aceitável" a atitude do agente. A maior censurabilidade reside na decisão em matar o pai, ou o filho, ou mesmo o adotante ou o adotado. (...) Pode admitir-se mesmo que o homicídio se dê num cenário de uma menor culpa, pensando no caso de quem mata o seu pai para pôr fim ao sofrimento que este vai aguentando e que ele não suporta mais assistir, revelando mesmo um sentimento de compaixão para com o pai... Ou pode acontecer que o pai e o filho nunca tenham vivido como tal, estando separados durante anos, fazendo com que os laços existentes se diluíssem com o tempo. Situações como estas, apesar de desencadearem um efeito indiciador, não manifestam uma atitude reveladora de especial censurabilidade ou perversidade" [s.n.].

Da matéria de facto dada como provada depreende-se a existência de íntima conexão entre a emoção, a incapacidade de gerir o conflito interior, o ressentimento pelo abandono, a não-aceitação de relação afetiva, tudo sentimentos que assumiram um carácter obsessivo, e a consumação do homicídio.

(JJJ) Acresce que tais circunstâncias, ou tal estado emotivo-passional, dominavam o arguido desde a mais tenra idade. Foram pois adquiridas ao longo da sua infância, adolescência e início de fase adulta.

A Culpa é "a censurabilidade do comportamento humano, por o culpado ter atuado contra o dever quando podia ter atuado «de outra maneira», isto é, de acordo com o dever" (Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa e Direito Penal, 1995, p. 244).

O agente deve ser censurado pela sua personalidade revelada no facto, pelos aspetos desvaliosos da sua personalidade e contrários ao direito revelados no facto - culpa na formação da personalidade. "Mas a personalidade, como objeto da culpabilidade, não abrange a personalidade tal como é na sua conformação total, mas só enquanto e na medida em que for adquirida voluntariamente. É o modo voluntário de aquisição da personalidade que importa sobremaneira à delimitação da culpa referida à personalidade" (Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, 2010, II, p.12).

Assim sendo, não podem deixar de relevar as circunstâncias extrínsecas à vontade do agente e que confluíram, também, na formação da sua personalidade desvaliosa. Não pode deixar de ser considerado que o carácter obsessivo do arguido no sentimento de ressentimento e de desejo de vingança relativamente ao pai foi adquirido e vincado desde a infância.

O ressentimento pelo abandono e o carácter obsessivo na relação com o pai atingiu no arguido um nível de fixação que no mínimo roça a imputabilidade diminuída. Pelo que tal facto tenderá antes a uma atenuação e não à agravação, considerando que tal fixação lhe advém desde a infância.

(KKK) "As relações de parentesco... têm que ver com o facto, na medida em que exprimem o seu maior desvalor social, derivado da violação de um dever ético de especial respeito pela vida dos ascendentes, cuja explicação retrocede a um período arcaico do sistema social em que a salvaguarda das relações de parentesco implicava a da própria estrutura social (Fernanda Palma, O homicídio qualificado no Novo Código penal português, p. 59).

Ainda na Comissão Revisora o Cons. Sousa e Brito, propôs a eliminação da matéria desta alínea, adiantando os seguintes considerandos: "trata-se...de uma solução anacrónica, não justificável político-criminalmente e que não encontra paralelo na Alemanha, Suíça e Áustria... Ao nível familiar, as pessoas atingem um estado de fixação nas outras, ocorrendo danos psicológicos, o que em muitos casos leva a que, entre pais e filhos, ocorra imputabilidade diminuída. Regra geral, esses casos tendem à atenuação e não à agravação (Cf. ata n.° 20 da Comissão Revisora, p. 190).

O abandono não pode deixar de ser considerado como um abuso psicológico que foi sofrido durante e desde a infância.

(LLL) Não obstante isto, sempre se dirá que desde a contestação que o arguido requereu prova pericial para análise da eventual existência de vulnerabilidade e de condicionalismos na sua conduta e vontade. Bem como a análise das relações afetivo-parentais (de amor, de afetividade e de apoio) no histórico relacional pai-filho. Ainda quais as relações afetivo-parentais (de amor, de afetividade e de apoio) no histórico relacional do jovem arguido com o seu tio materno FF e as relações afetivo-parentais (de amor, de afetividade e de apoio) no histórico relacional mãe-filho. De que modo a recente relação do jovem arguido com o pai desencadeou alteração das relações afetivo-parentais com a mãe e com o tio materno, e que novos equilíbrios ou desequilíbrios surgiram. Enfim, quais foram as razões fundamentais dos comportamentos do jovem arguido em análise em relação ao pai e se ocorreu algum tipo de violências emocionais do pai para justificar o uso de agressão como meio de defesa.

Sendo que o Tribunal a quo veio a indeferir tal perícia.

O arguido renovou o pedido perfilhando o entendimento de que não carrear para o processo aqueles elementos faria perigar a análise da especial censurabilidade ou perversidade bem como a análise da culpa. Reiterou que a capacidade de controlo de ação do arguido não estaria exatamente ao mesmo nível da capacidade do homem médio. Seria necessário avaliar a sua capacidade pela aferição do homem médio com o mesmo contexto afetivo parental que o arguido.

De novo o Tribunal indeferiu o pedido.

Pelo que a prova pericial junta aos autos não foi colhida com aquele objeto de análise. Não foi facultado às Peritas os elementos necessários para o esclarecimento do contexto relacional e emotivo pai/filho.

Não pode depois o tribunal concluir (como concluiu!) das declarações da perita DD que a atuação do arguido ao matar o pai não se coaduna com uma resolução tomada por impulso naquele momento, mas sim com uma decisão anteriormente pensada e planeada.

E não pode retirar tal conclusão porque do relatório junto aos autos de fls 800 a 804, tal conclusão ali não existe. Se a perita por certo tivesse esse entendimento tê-lo-ia deixado escrito no relatório. Depois porque o Tribunal de primeira instância se recusou a fazer perícia sobre o histórico relacional e emocional pai/filho, não dotou a técnica com os elementos pertinentes e necessários a essa análise.

Retirar depois do seu depoimento baseado em conjeturas a conclusão da premeditação é violar os mais básicos passos para a formação da convicção, porque não existem esses dados objetivos no relatório pericial.

A restante prova para a qualificação, isto é o, contexto relacional pai/filho, premeditação, frieza de ânimo, não assenta na prova testemunhal. É fundamental que a justiça reconheça a história de vida do arguido parricida e que por certo aprecie as provas segundo a experiência. E não vale, aqui, uma qualquer outra experiência senão a do conhecimento da alma humana.

(MMM) O Venerando Tribunal da Relação tinha como poder e dever fazer essa análise segundo a experiência e conhecimento da alma humana.

Escudou-se na negação dessa análise no princípio da mediação da prova. Na análise objetiva do bilhete, na análise das facas, na análise do relatório pericial.

Sem isto não é possível julgar um parricídio, um crime de dimensões tão profundas, que desce ao desconhecido da alma do homem.

Para que depois possa concluir que o arguido teve sempre o domínio completo dos factos, uma forte determinação e lucidez para avaliar cabalmente a ilicitude dos factos, ou para concluir pela especial censurabilidade ou perversidade.

De modo a poder enquadrar juridicamente a qualificação do crime de homicídio.

(NNN)    Pelo exposto, cremos, que os laços familiares entre a vítima e o arguido não se equiparam a uma relação familiar pai e filho de proximidade; existe um défice nos laços afetivos entre ambos.

Para tanto, releva de forma decisiva que da matéria de facto dada como provada, conste que a referência paterna do arguido não era o seu pai biológico mas antes o seu tio materno (vid. fls 1579).

Pelo que a circunstância agravativa da alínea não se encontra preenchida.

(OOO)    Relativamente à alínea j) do n.° 2 do artigo 132° do Código Penal, a questão central é indagar sobre a (in) existência de premeditação.

Seguimos de perto, também aqui, o entendimento de Fernando Silva, na obra supra citada, pp. 83 e 84 "A ideia fundamental desta circunstância é a premeditação. (...) A premeditação surge materializada em três situações: 1 - frieza de ânimo - traduzido numa atuação calculada, em que o agente toma a sua deliberação de matar, e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima. No fundo o agente teve oportunidade de refletir sobre o seu plano, e ponderou toda a sua atuação mostrando-se indiferente perante as consequências do seu ato; 2 - Reflexão sobre os meios empregados - casos em que o agente reflete sobre a melhor forma de agir, prepara o crime, e mantém sempre a firmeza de querer matar, são exemplos os casos em que o agente estuda movimentos da vítima procurando apurar qual a melhor forma de atuar e qual o momento indicado para o fazer, ou quando pensa no modo com vai executar o facto, e, com esse intuito, compra uma arma para o efeito e prepara toda a sua forma de atuar; 3 - protelar a intenção de matar por mais de 24 horas - o número de horas é meramente indicativo, o que se pretende demonstrar é que decorre tempo suficiente para que o agente descarregue as suas emoções e medindo o alcance e as consequências da sua atuação recue nas suas intenções."

Pode ler-se na sentença, p. 36 - 1.° §, que "resulta da factualidade provada que o arguido premeditou e planeou pormenorizadamente a prática do crime...." Mais à frente no 2.° § pode ler-se o seguinte: "pese embora não se tenha provado uma premeditação (...)"[s. n.]

Não se compreende, salvo o devido respeito, este lapso argumentativo, pelo que a reflexão sobre os meios empregados, é uma forma de premeditação.

Cremos pelas razões supra aduzidas, em sede de pedido de impugnação da matéria de facto dada como provada, que damos por reproduzidas que não existiu premeditação até porque nos bilhetes escritos pelo arguido não existe nenhuma referência à arma do crime.

                Em todo o caso sempre se diga que, também, a "premeditação, ao contrário do conceito tradicional, não revela, por si mesma, perversidade ou abjeção de carácter, senão resistência à ideia criminosa. É mais perigoso aquele que mata ex improviso, mas por um motivo tipicamente perverso, do que aquele que mata depois de longa reflexão, mas por um motivo de particular valor social ou moral. O indivíduo ponderado, cujo poder de auto-inibição oferece resistência aos motivos determinantes de uma conduta anti-social, não é mais temível do que o individuo impulsivo, que não sabe sobrestar antes de começar” (NÉLSON HUNGRIA).

(PPP) No que respeita à frieza de ânimo, cremos que tal circunstância não será de aplicar, pois que, atento o facto dado com provado, que o arguido bebeu whisky. Certo que não se tenha logrado provar a quantia em concreto, contudo trata-se de uma bebida com elevado teor alcoólico.

(QQQ) O seu estado de espírito - estado de exaltação e parcial embriaguez no contexto de discussão com a vítima, o seu carácter obsessivo, a sua incapacidade de gerir o conflito interior, o ressentimento pelo abandono, a não-aceitação de relação afetiva, não podem ter deixado de influir o seu comportamento, neutralizando a aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida, de forma a considerar-se não verificada a censurabilidade e perversidade.

(RRR) Pelo exposto, entendemos que não se encontra preenchida a alínea j) do n.° 2 do artigo 132° do Código Penal.

(SSS) Assim sendo, o arguido deveria ter sido condenado, salvo melhor opinião, pelo crime de homicídio simples, previsto e punido no artigo 131° do Código Penal, na pena de prisão não superior a 8 anos e 6 meses, especialmente atenuada, por aplicação do disposto pelo artigo 4° do DL 401/82, de 23-09.

vi. DO CRIME DE PROFANAÇÃO DE CADÁVER

(TTT) O arguido foi condenado, ainda, pelo crime de profanação de cadáver, previsto e punido no artigo 254.°, n° 1 alínea a) do Código Penal.

Com relevância foi dado como provado que:

(Facto provado 46) "Em consequência do incêndio ateado, o quarto da vítima ficou destruído na sua totalidade, tendo o corpo da mesma ficado parcialmente queimado."

(Facto provado 61) "O arguido previu ainda que como consequência da sua atuação de atear fogo no quarto, que o corpo, já cadáver, do pai fosse consumido pelas chamas, resultado com o qual se conformou e aceitou."

O arguido foi pronunciado: "ao agir nos termos descritos em 46., o arguido visou ainda destruir o corpo do seu pai, deixando-o irreconhecível, dificultando dessa forma a sua identificação e a obtenção de provas relativas aos factos pelo mesmo, praticados ” (Ponto 47 da Pronúncia)

Foi assim aditado, na sentença da 1ª Instância, o facto - corpo já cadáver -.

Ocorre porquanto nulidade do acórdão, por violação do disposto no artigo 379° n° 1 do CPP, sendo, assim, nula a sentença, por condenar por factos diversos dos descritos na pronúncia, fora dos casos previstos nos arts. 358° e 359° do CPP.

(UUU) Não pode deixar de se constatar que do relatório de anatomia patológica a fls. 525 consta como "causa provável da morte colapso pulmonar à esquerda, insuficiência respiratória? Inalação de monóxido de carbono? Aspiração hemática?”

O Tribunal, ao dar como provada a causa da morte a constante a fls. 526, excluiu a causa de morte por inalação de monóxido de carbono. Se a causa de morte não fosse excluída as queimaduras poderiam não ter ocorrido em corpo já cadáver.

(VVV) Acresce que a expressão "parcialmente queimado" é redutora, subjetiva e conclusiva para que fosse preterida a investigação e a narração das áreas efetivamente queimadas. Assim, a não narração, nos factos provados e na pronúncia, das áreas de tonalidade variável entre o castanho amarelado e castanho avermelhado constantes do Relatório Pericial da autópsia de fls. 522 a 526, constitui vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410°, n°2, al. a) do CPP), que radica na insuficiência de investigação/apuramento de matéria de facto relevante.

vii. DO CRIME DE INCÊNDIO

O arguido foi condenado pela prática de um crime de incêndio, previsto e punido pelo artigo 272°, n.° 1, alínea a) do CP.

Com relevância foi dado como provado que:

(Facto provado 44) "Após, o arguido pegou numa garrafa plástica que continha acendalha líquida de cor azul, e que se encontrava na sala, e espalhou o referido líquido por todas as divisões da habitação, com particular incidência no quarto onde estava o seu pai, tendo naquela divisão despejado o referido líquido sobre os tapetes do quarto, cama, colchão, e portas do roupeiro, pretendendo desse modo que o fogo que entretanto ateou, de modo não concretamente apurado, consumisse toda a habitação, por forma a eliminar os vestígios da sua atuação."

(Facto provado 46) "Em consequência do incêndio ateado, o quarto da vítima ficou destruído na sua totalidade, tendo o corpo da mesma ficado parcialmente queimado."

(Facto provado 60) "Ao atear fogo no interior da residência da vítima, o arguido quis provocar, como provocou, um incêndio no interior da mesma por forma a eliminar todos os vestígios que o ligassem à morte do pai, tendo dessa forma colocado tal habitação, de valor não concretamente apurado mas seguramente superior a 100.000 euros, em efetivo perigo de destruição, a qual apenas não se verificou por razões estranhas à sua vontade."

(XXX) Quanto ao disposto na al. a) do n.° 1 do 272° do CP, para que a conduta seja relevante o incêndio deverá ser de tal forma que o fogo se possa propagar pelos seus próprios meios a um edifício, construção ou meio de transporte.

Porém, e como o próprio dispositivo indica, não basta um qualquer incêndio para que a conduta seja punível, sendo necessário que o incêndio seja de relevo.

Esta característica da relevância do incêndio faz parte daquilo que em direito se denomina de "conceitos indeterminados", cabendo à Doutrina e à Jurisprudência concretizar o que se deve entender como tal, reportando-se às especificidades do caso concreto. A própria norma legal refere aquilo que para o legislador pode ser considerado como incêndio de relevo, indicando como exemplos a conduta do agente que ponha fogo a edifício, construção ou meio de transporte.

Diz-nos José Francisco de Faria Costa, em O perigo em direito penal, 1992 - Coimbra Editora, o seguinte: "o incêndio de relevo é aquele com uma extensão ou com uma intensidade que se devam considerar, à luz das regras da experiência, como manifestas, indiscutíveis ou relevantes", acrescentando que a expressão "pondo fogo", utilizada na redação do preceito, não pode induzir em erro o intérprete, fazendo-o considerar como incêndio de relevo a mera conduta que desencadeie um fogo que nunca tenha hipóteses de se transformar num incêndio. Logo, o incêndio pressupõe uma tónica de excesso, que não estará necessariamente presente num mero atear de fogo".

(YYY) Como dos factos dados como provados em sentença não consta a referência a móveis ou outros bens que em concreto arderam, bem como não consta o montante dos danos efetivamente causados pelo incêndio, ter-se-á, salvo melhor entendimento, que concluir pelo não preenchimento do tipo legal do crime em apreço, pois que não se pode concluir pelo incêndio de relevo.

Padece a sentença também de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada (art.° 410 n.° 2 al. a) do C.P.P.).

viii. DA DETERMINAÇÃO DA PENA

(ZZZ) O Tribunal a quo violou, na determinação da medida da pena, o princípio da proibição da dupla valoração previsto no artigo 71° n° 2 do Código Penal.

O dever jurídico-substantivo de fundamentação previsto no artigo 71.°, n° 3 do CP visa justamente tornar possível o controlo da decisão sobre a determinação da pena.

Existem três fases da determinação da pena, a saber: - na primeira, o juiz investiga e determina a moldura penal aplicável ao caso; - na segunda, o juiz investiga e determina, dentro da moldura penal, a medida concreta da pena que vai aplicar; - na terceira, o juiz escolhe a espécie da pena que efetivamente deve ser cumprida.

Na primeira operação de determinação da pena, o juiz investigou e determinou as seguintes molduras penais abstraías:

- Crime de homicídio qualificado, previsto e punido nos artigos 131° e artigo 132°, n° 1 e n° 2 alíneas a) e j) do Código Penal;

-Crime de profanação de cadáver, previsto e punido no artigo 254°, n° 1 alínea a) do Código Penal;

-Crime de incêndio previsto e punido no artigo 272°, n° 1 alínea a) do Código Penal;

Sucede que, na 1ª fase de investigação e determinação da moldura penal entram também em conta para além das circunstâncias agravantes, as circunstâncias modificativas, ou atenuantes.

As circunstâncias atenuantes podem ser comuns e específicas. São exemplos de circunstâncias atenuantes comuns: - a atenuação especial da pena (artigo 73.° do CP); - a menoridade de imputáveis (DL n.° 401/82, de 23 de Setembro, art. 4.°);

No que diz respeito ao problema da concorrência de circunstâncias, pronunciou-se Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime – 2ª reimpressão - Coimbra Editora, páginas 268 a 273: de acordo com o referido autor, "Já no caso de concorrência de modificativas atenuantes, nada parece impedir o seu funcionamento sucessivo por uma ordem qualquer... O funcionamento sucessivo das atenuantes concorrentes só estará então justificado se (e na medida em que) a razão da atenuação seja diferente em cada uma; ou por outras palavras, quando cada uma possua um autónomo fundamento material (v.g. tentativa e menoridade imputável). Mas já não estará se a razão da atenuação for a mesma (v. g. o grau diminuto do ilícito e da culpa não poderá servir para, ao mesmo tempo, qualificar uma falsificação como de "pequena gravidade" para efeitos do artigo 228°-4, e também para fundamentar uma atenuação especial da pena nos termos do artigo 73.°). Nestes casos, deve fazer-se funcionar apenas uma circunstância modificativa - aquela cujo efeito atenuante seja mais forte - de modo a salvaguardar o princípio segundo o qual cada circunstância com eficácia atenuante deve ser considerada uma única vez: aqui pode ver-se já uma primeira manifestação do princípio da proibição de dupla valoração em matéria de determinação da pena".

Entendemos que as circunstâncias atenuantes do art. 4° do DL n.° 401/82, de 23 de Setembro e a do artigo 72° n° 2 alínea d) do CP (art. 64.° fundamentação de facto - manifestou na audiência sincero arrependimento, vergonha e juízo crítico pelo seu descrito comportamento) devem funcionar sucessivamente.

Isto porque possuem um autónomo fundamento material, na medida em que a atenuação especial da pena prevista no artigo 72° do CP, resulta de acentuada diminuição da ilicitude do facto ou da culpa do agente e o fundamento material das circunstâncias atenuantes do artigo 4.° do DL n.° 401/82, de 23 de Setembro, é a vantagem para a reinserção social do jovem condenado.

Para a segunda operação de determinação da pena: a determinação concreta da pena - o juiz serve-se do critério global contido no artigo 71.°, n°1 do CP - culpa e prevenção geral como critérios gerais ou princípios regulativos da medida da pena.

De acordo com o disposto no n° 2 do artigo 71° do CP, não devem ser tomadas em consideração, na medida da pena, as circunstâncias que já façam parte do tipo de crime.

Assim se enunciando o princípio da proibição da dupla valoração, segundo o qual o juiz não deve utilizar para determinar a medida da pena as circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto.

Pode ler-se no Ac. STJ de 05-03-2008, in <www.dgsi.pt>, o seguinte: "na determinação da pena concreta importa trazer à colação a questão da proibição da dupla valoração da culpa, impedindo que esta atue como fator de medida da pena uma vez que iá foi considerada na própria qualificação do crime. Por outras palavras, os factos que consubstanciam um crime de homicídio qualificado não podem ser novamente valorados na quantificação da culpa para efeitos de medida da pena. Segundo Figueiredo Dias (As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 235 e ss.), não devem ser tomadas em consideração na medida da pena as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime: nisto se traduz o essencial do princípio da proibição de dupla valoração, ou seja, não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto, e, portanto, não apenas os elementos do tipo de ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena".

E ainda no Ac. STJ de 03-05-2006 in <www.dgsi.pt>: "No caso do crime de homicídio, em que, de acordo com o n° 1 do art. 132°, a qualificação deve ter lugar quando a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, há aqui uma valoração global que pode levar a pensar na violação do princípio da dupla valoração quando na fixação concreta da pena já dentro da moldura encontrada para o crime qualificado o juiz atende a circunstâncias que revelem especial perversidade ou censurabilidade. Entendemos, como Teresa Serra (Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, págs. 103 e ss.), que devem ser atendidas as circunstâncias generalizadoras que - quando se verifique mais do que uma - não foram decisivas para a seleção da moldura penal agravada".

Ora, conforme se pode ler na sentença, na determinação da medida da pena (p. 40 e ss), o coletivo de juízes teceram considerações acerca das circunstâncias que revelem especial perversidade ou censurabilidade para efeitos de qualificação, pronunciando-se sobre a culpa do agente.

E, de acordo com o disposto no n° 2 do artigo 71° do C P, não podia o Tribunal a quo tomar novamente em consideração, na medida da pena, as circunstâncias que já faziam parte do tipo de crime.

(AAAA) Pelo que, entendemos que foi violado o princípio da proibição da dupla valoração previsto no artigo 71.° n° 2 do Código Penal.

(BBBB) Ao não decidir no sentido articulado, violou o acórdão os arts. 32.°, 2 e 205°, n.° 1 da CRP; 379.°, nº 1 al. b) e c), 358.°, 359.°, 410.°, n° 2, al. a) e b) todos do CPP; 131.°, 132.°, n.°2, als. a) e j), 254.°, n° 1, al. a), 272.°, n° 1, al. a), 71.° e 70.° todos do C.P.

            Respondeu o sr. Procurador-Geral Adjunto na Relação, dizendo:

1 - Do recurso

1.1 - Vem o recurso que, ora, se contra-minuta interposto pelo arguido AA do douto Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, datado de 8 de Maio de 2013 e constante de fls. 1516/1622, que conheceu do recurso interposto da decisão proferida na 1ª instância, exarada a fls. a fls. 1221/1265.

1.2 - Na 1ª instância, foi o arguido condenado pela prática dos seguintes crimes:

um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131 ° e 132°, nºs 1 e 2, als. a) e j), do C. Penal, na pena - especialmente atenuada, por aplicação do disposto no artigo 4°, do DL 401/82, de 23 de Setembro­, de 16 anos de prisão;

um crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272°, n? 1, a!. a) , do C. Penal, na pena ­especialmente atenuada, por aplicação do disposto no artigo 4° do DL 401/82, de 23 de Setembro - de 2 anos e 6 meses de prisão;

um crime de profanacão de cadáver, p. e p. pelo artigo 254°, nº 1, al. a), do C. Penal na pena - especialmente atenuada, por aplicação do disposto no artigo 4° do DL 401/82, de 23 de Setembro - de 6 meses de prisão.

Em cúmulo, foi o arguido condenado na pena única de 17 anos de prisão.

1.3 - Não se conformando com tal decisão, o arguido recorreu dela para o Tribunal da Relação do Porto, tendo sido proferido o douto Acórdão, ora, sob recurso, que confirmou integralmente o decidido em 1ª instância.

1.4 - As conclusões que formula - para além de arguir, agora, a nulidade do Acórdão da Relação por alegada omissão de pronúncia e falta de fundamentação - o recorrente, tal como fizera já relativamente à decisão da 1ª instância, invoca a inobservância do disposto nos artigos 358° e 359°, do C. P. Penal, questiona a decisão sobre a matéria de facto e insurge-se contra a qualificação jurídica dos factos e a medida concreta das penas em que foi condenado.

Cremos poder enunciar as questões suscitadas, da seguinte forma:

A decisão recorrido é nula, nos termos do disposto no artigo 379°, nº 1, als. a), b) e c), do C. P. Penal, por: (i) omissão de pronúncia, já que desconsiderou os fundamentos do recurso em matéria de facto interposto da decisão da 1ª instância e não reexaminou as provas ali indicadas, nos termos da alínea b) do nº 3 do artigo 412° do citado Código; (ii) condenação por factos diversos dos descritos na pronúncia, sem cumprimento do disposto nos artigos 358° e 359° (quanto ao crime profanação de cadáver); (iii) falta de fundamentação por não se referenciarem os dados objectivos com base nos quais o tribunal formou a convicção no sentido da prova de determinados factos.

As provas foram incorrectamente avaliadas e verificam-se os vícios decisórios a que se reporta o artigo 410°, nº 2, als. a) e b), do C. P. Penal: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (quanto aos crimes de profanação de cadáver e de incêndio) e contradição insanável da fundamentação.

Foi violado o princípio in dubio pro reo, com consequências ao nível da prova dos factos que consubstanciam as qualificativas do crime de homicídio.

É errada qualificação jurídica dos factos, quanto ao crime de homicídio, já que os mesmos preenchem, não o crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131° e 132°, nºs 1 e 2, als. a) e j), do C. Penal, com pena especialmente atenuada, por aplicação do disposto no artigo 4°, do DL 401/82, de 23 de Setembro, mas antes o crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131°, do C. Penal, com pena especialmente atenuada, por aplicação do disposto no artigo 4°, do DL 401/82, de 23 de Setembro.

Há erro na determinação da medida concreta da pena relativa ao crime de homicídio, por violação do princípio da dupla valoração previsto no artigo 70º, nº 2, do C. Penal.

2 - Questão prévia - âmbito do recurso

Como resulta do acima enunciado, o recorrente insiste em questões já apontadas à decisão da 1ª instância, designadamente - na parte que, ora, interessa - a nulidade do acórdão, nos termos do artigo 379°, nº 1, als. b) e c), do C. P. Penal, por condenação por factos diversos dos descritos na pronúncia, sem cumprimento do disposto nos artigos 358° e 359°, quanto ao crime profanação de cadáver, e por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quanto aos crimes de incêndio e de profanação de cadáver.

Por esses crimes, foi o recorrente condenado nas penas de 2 anos e 6 meses de prisão (crime de incêndio) e 6 meses de prisão (crime de profanação de cadáver).

Como decidiu o Supremo Tribunal, por exemplo, no Acórdão de 7 de Maio de 2009, in CJ (STJ), 2009, 1, II, pg. 193, e citamos: "para efeitos do disposto no art. 400º nº 1, al. f) do CPP, na redacção que lhe foi dada pela Lei n° 48/2007, de 29 de Agosto, a referência da recorribilidade é constituída pela pena aplicada, que tanto pode ser a referida a cada um dos crimes singularmente considerados, como a que se reporta ao concurso de crimes. Neste último caso o recurso será restrito à medida da pena única. a menos que algumas das penas parcelares seja também superior a 8 anos, caso em que o recurso abrange essas penas e a pena conjunta".

No mesmo sentido pode ver-se, também, o Acórdão de 18 de Março de 2010, proc. 175/06.5JELSB-5ª, disponível em www.dgsi.pt, com a seguinte pronúncia: "1- Conforme vem decidindo o STJ (Acs. de 13-112008, 16-04-2009 e 12-1/-2009), nos casos de concurso de crimes em que por cada um haja sido aplicada, em la instância, pena de prisão não superior a 8 anos, mas em que a pena única é superior a essa medida, sendo a condenação confirmada pela Relação, o recurso desta decisão para o STJ só é admissível no que se refere à operação de determinação da pena única, não o sendo no respeitante a cada um dos crimes e às respectivas penas (cf Art. 400°, nº 1, al. f), do CPP".

E mais recentemente, ainda, o Acórdão de 11 de Janeiro de 2012, proc. 158/08.0SVLSB.Ll.S1-3ª, também disponível em www.dgsi.pt, dizendo o seguinte: "Face à actual redacção do art. 400º n.° 1, ai. j), do CPP, não é admissível recurso para o STJ quanto às penas parcelares aplicadas, quando se esteja perante decisão da Relação confirmativa de condenação proferida na 1ª instância que tenha aplicado penas de prisão não superiores a 8 anos. Assim, o recurso interposto restringe-se ao conhecimento da pena conjunta (única) de 8 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido".

Será, pois, forçoso concluir que estão subtraídas ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça os crimes de incêndio e de profanação de cadáver e as correspondentes penas parcelares, uma vez que nenhuma delas ultrapassa os oito anos de prisão.

Consequentemente, salvo melhor juízo, o presente recurso não poderá deixar de ficar confinado às questões relacionadas com o crime de homicídio, a pena parcelar ao mesmo respeitante e a pena única resultante do concurso de crimes.

Assim delimitado o âmbito do recurso, formularemos a seguinte resposta:

3 - Quanto à matéria de facto

3.1 - Como é sabido, uma vez que o STJ conhece apenas de direito (artigo 434° CPP), o objecto do recurso tem de circunscrever-se apenas a questões de direito, considerando-se definitivamente decididas, pelo Tribunal da Relação, as questões de facto.

Verifica-se, no entanto, que o recorrente pugna pela alteração da decisão de facto, por forma a que seja dado como não provados determinados segmentos, que especifica, da factualidade descrita sob os pontos 3, 7, 11, 15, 29, 31, 33, 44, 46, 48, 54, 55 e 60.

E fá-lo invocando, pelo menos implicitamente, deficiência na apreciação e valoração das provas, sustentando que as declarações prestadas pelo arguido em audiência, a análise da faca referida nos pontos 25 e 30 dos factos provados, a análise do bilhete referido no ponto 20, os depoimentos das testemunhas BB e CC, as declarações da psicóloga clínica DD e uma correcta análise dos indícios fornecidos pelos objectos referidos no ponto 25, designadamente as luvas de mota, luvas de látex e a película de celofane, como também pelas botas referidas nos pontos 29 e 53, e pelos vestígios de sangue nos mesmos encontrados, imporiam decisão diferente da proferida em 1ª instância, relativamente aos segmentos da matéria de facto provada que impugna, por forma a afastar as qualificativas do crime de homicídio.

Sucede, porém, que, equacionada e apreciada que foi essa matéria de facto, o Tribunal da Relação concluiu pela sem razão do recorrente, assim confirmando o decidido, a este respeito, em 1ª instância.

Cremos, portanto, que, por esta via - a da reapreciação das provas - não logrará o recorrente alcançar os seus intentos de ver afastadas as qualificativas do crime de homicídio por que foi condenado.

3.2 - Não está, no entanto, vedado ao Supremo Tribunal, nem o conhecimento dos vícios a que alude o nº 2 do artigo 410° do C. P. Penal, se concluir que, por força da verificação de algum deles, não pode alcançar um correcta solução de direito, nem a violação do princípio in dubio pro reo, caso resultem com clareza dos textos das decisões impugnadas. – Assim, de entre outros, Ac. STJ. de 31/10/2007. proc. 07P630. sumariado em www.dgsi.pt.

3.2.1 - No caso em apreço, o recorrente invoca a existência de vício que apelida de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão - vício previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 410° - e que identifica da seguinte forma:

3.2.1.1 - Não pode ser dado como não provado que "O arguido planeou matar o seu pai com mais de 24 horas de antecedência sobre a prática dos factos" (ponto b) e que "Ao actuar da forma descrita, o arguido fê-lo persistindo na sua intenção de matar o seu pai por mais de 24 horas (ponto g), e, simultaneamente, "decidir" que o arguido "levou de certo mais que as 24h referidas na norma do art. 132º n° 2 al. j) do Cód. penal, sem que durante esse período preparatório do crime, em algum momento o arguido tivesse desistido de o praticar. "

Admite-se que a expressão "levou de certo mais que as 24h ...", utilizada pela Tribunal da Relação não está em inteira consonância com a factualidade não provada descrita sob os pontos b) e g) do respectivo elenco: não se provou que o arguido tenha planeado a morte de seu pai com mais de 24 horas de antecedência.

Já não há, no entanto, qualquer contradição ou incongruência entre aqueles factos não provados [pontos b) e g)] e a afirmação de que " ... O arguido teve sempre domínio dos factos uma forte determinação e lucidez para avaliar cabalmente a ilicitude dos factos".

Nem há qualquer contradição entre essa afirmação e o facto, provado, de o arguido ter bebido whisky antes da agressão [ponto 27]. Com efeito, como já o acórdão da 1ª instância explicitara: "' ... o arguido actuou sempre livre e com plena consciência dos seus actos, considerando não só as suas declarações, nas quais afirmou ter estado sempre consciente do que estava a fazer, sendo que o consumo de whisky terá até contribuído para 'ganhar coragem' para a prática do crime, assim como o declarado pelas referidas peritas que concluíram pela sua total imputabilidade".

Assim como não há qualquer contradição entre o ter-se dado como não provado que a "premeditação" do crime se prologou por mais de 24 horas e, ainda assim, ter-se julgado verificada a qualificativa da alínea j) do nº 2 do artigo 132° do C. Penal.

A verdade é que, se não se provou que o arguido tenha "persistido na intenção de matar por mais de 24 horas", provou-se, no entanto, que planeou e preparou o crime, com minúcia, algumas horas antes de o cometer - com o que isso implica de reflexão sobre os meios empregados e sobre a forma de execução do crime - e revelou frieza de ânimo, quando continuou a desferir facadas no corpo da vítima, apesar de esta gritar "Porquê? Porquê?", "meu filho, ai, ai, ai, acode-me", e lhe tapou a boca para evitar que os seus gritos se ouvissem, primeiro com uma das mãos e depois com uma ponta de um lençol [pontos 30 a 35 dos factos provados].

O que tanto basta para qualificar o crime de homicídio, nos termos da alínea j) do n" 2 do artigo 132° do C. Penal, e nos conduz à consideração de que, neste contexto, é de todo irrelevante a afirmação, feita no acórdão da Relação, em sede de fundamentação, de que o arguido "levou de certo mais de 24 horas ..." a preparar o crime.

Com efeito, como é sabido, o vício da "contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e decisão" traduz-se na "incompatibilidade, não ultrapassável da própria decisão recorrida, entre os factos provados e os não provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão", havendo 'contradição entre os factos quando o provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se entre si". - cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, r edição, pg. 75

Assim e a esta luz - mesmo admitindo a existência da referida dissonância - sempre seria de entender que a mesma não afecta o acórdão nem a compreensão do sentido e dos fundamentos da decisão, no segmento em que deu como verificada a referida qualificativa do crime de homicídio, pelo que não poderia deixar de ser considerada, tal dissonância, de todo irrelevante e inócua.

3.2.1.2 - Invoca, ainda, o recorrente, outra contradição insanável - esta, como as demais que se seguem, directamente apontadas à decisão da 1ª instância - entre os factos dados como provados sob o ponto 29 e os dados como provados sob o ponto 55: dar como provado que "arguido usava ... umas botas castanhas e, na sua mão esquerda, colocou luvas de latex, bem como película aderente no braço esquerdo ... e na mão direita uma luva própria para conduzir veículos motorizados" [ponto 29], é contraditório com o facto de tais objectos terem sido encontrados na mala de viagem que lhe foi apreendida sem vestígios de sangue [ponto 55].

Lendo e relendo os pontos 29 e 55 do elenco dos factos provados não detectamos ali qualquer contradição inultrapassável, susceptível de pôr em causa a validade da decisão.

Com efeito, analisado o conteúdo do ponto 55, facilmente se detecta que o mesmo se limita a relacionar os objectos que, no dia 10 de Novembro de 2011, pelas 22h00 (dia seguinte ao dos factos) foram encontrados na mala de viagem ali mencionada, não se vislumbrando que aí se dê como provado que, designadamente as luvas de latex e a película aderente que o arguido usou durante a execução do crime (ponto 29), não ficaram, nessa altura, com vestígios de sangue. Nem a mera relacionação e descrição de tais objectos, reportada ao momento da apreensão, permite tal inferência, tanto mais que não vem sequer dado como provado que as luvas de látex rasgadas e o rolo de papel celofane referidos no ponto 55 são os mesmos a que se refere o ponto 29.

De resto, diga-se de passagem, no que respeita a vestígios de sangue e à tentativa da sua ocultação, por parte do arguido, são por demais eloquentes os factos descritos sob os pontos 52, 53 e 54 do elenco dos factos provados.

3.2.1.3 - Outra contradição insanável encontra-a o recorrente entre os factos provados dos pontos 31 e 59, por um lado, e do ponto 66 por outro: não pode dar-se como provado, simultaneamente, que o arguido estava limitado nos seus movimentos por ter "uma luva gessada no braço esquerdo e uma tala no antebraço" e que tinha uma força física superior à da vítima.

Não vislumbramos que haja aqui qualquer contradição. Desde logo, porque vem dado como provado, também, que a vítima estava fisicamente fragilizada. Por outro lado, toda a factual idade respeitante ao circunstancialismo e ao modo de execução do crime, no essencial não impugnada, comprova que era enorme a superioridade física do arguido: a vítima estava deitada, o arguido pôde desferir-lhe 28 facadas e ao mesmo tempo tapar-lhe a boca para que não gritasse, tornando impossível qualquer reacção defensiva.

3.2.1.4 - Em contradição entre si estariam, também, os factos provados nos pontos 31 e 34: dar como provado que o arguido desferiu vários golpes com a faca que empunhava, sobretudo no peito e na cabeca [ponto 31], estaria em contradição com a distribuição desses mesmos golpes por diferentes zonas do corpo da vítima indicada no ponto 34.

Dos 28 golpes desferidos, 4 foram dirigidos à cabeça, 3 ao pescoço e ao 4 ao tórax e 2 ainda ao abdómen, o que, conjugado com a natureza das lesões que deram causa à morte, descritas no relatório da autópsia de fls. 666/672, não deixam dúvidas de que, na persecução do seu propósito de matar, o arguido visou sobretudo o peito e a cabeça da vítima.

3.2.1.5 - Haveria, ainda, contradição entre a factualidade provada no ponto 58 e a provada nos pontos 8 e 68: os factos, provados, de que o arguido nunca encarou a relação com o seu pai, em termos afectivos, como uma relação de pai e filho [ponto 8] e de que, no contexto familiar, a figura do tio materno foi representada e valorada pelo arguido com significado parental [ponto 68], estaria em contradição com o facto, também provado, de que o arguido sabia que actuava contra o seu pai, seu ascendente, pessoa a quem devia particular respeito em virtude da relação familiar que os unia [ponto 58].

Pretende o recorrente que, julgada verificada a contradição que entende aqui configurada, será de afastar a qualificativa do crime de homicídio prevista na alínea a) do nº 2 ao artigo 132° do C. Penal: ser o agente descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vitima.

Analisado o conjunto da matéria de facto provada, cremos que não assiste a mínima razão ao recorrente. Com efeito, e retomando aqui o que, sinteticamente, foi dito pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso interposto da decisão da 1ª instância: "O arguido sabia que a vítima era seu pai biológico, convivia com ele, desde sempre, embora espaçadamente no tempo pelo facto de o pai trabalhar em Angola, o pai financiava-o ao nível dos estudos, deu-lhe um veículo automóvel e outros bens de elevado valor, visitou o pai mais do que uma vez em Angola e havia um esforço deste, nos últimos tempos, para estreitar os laços afectivos com o filho.

Todo este quadro circunstancial é mais do que suficiente para conferir especial censurabilidade à conduta do arguido ao tirar a vida ao seu pai, por aplicação da agravante supra enunciada".

3.2.1.6 - Finalmente, o recorrente invoca a existência de contradição entre a factualidade provada no ponto 62 e uma passagem das declarações da testemunha EE, prestadas em audiência de julgamento.

Como se sabe, os vícios previstos no nº 2 do artigo 410°, do C. P. Penal, enquanto vícios decisórios que são, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Portanto, o tribunal de recurso, para os apreciar, não pode socorrer-se de qualquer elemento estranho à sentença, designadamente da documentação da prova.

Soçobra, pois, claramente, toda a argumentação recursória respeitante ao invocado contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

3.2.2 - Alega o recorrente que as instâncias decidiram sobre a matéria de facto, violando o princípio in dubio pro reo.

Perante dois factos provados em contradição e no momento de ponderação e de dúvida sobre questões como a premeditação e a relação pai e filho, no entender do recorrente, o tribunal teria decidido sempre contra a presunção da sua inocência [cfr. conclusão (WW)].

Manifestamente, essas são dúvidas que os textos dos acórdãos, tanto da lª instância como da Relação, não revelam, nem, de resto, o recorrente aí as encontra, porque aí as não pode encontrar, como resulta do acima dito acerca das invocadas contradições decisórias.

As dúvidas que o recorrente enuncia resultam apenas da apreciação pessoal que ele próprio faz da prova produzida em audiência e, sobretudo, da força probatória que atribui à sua própria versão dos factos, que apresenta como inteiramente credível e como sendo o único elemento de prova capaz de sustentar uma decisão justa.

Ora, como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 11 de Abril de 2011, proferido no processo 117/08.3PEFUN.Ll.S 1, disponível em www.dgsi.pt: «A invocação da violação do princípio in dubio pro reo arranca da consagração constitucional do princípio da presunção de inocência do art. 32. n.º 2, da CRP e o que o princípio diz é que não recai sobre quem é considerado inocente, a obrigação de ilidir a presunção dessa mesma inocência.

Se a acusação, e em última instância o próprio juiz, não conseguem reunir prova da culpabilidade do arguido, a ponto de o tribunal ficar numa situação de dúvida, então impor-se-á a absolvição. O tribunal não pode decidir-se por um non liquet: ou absolve ou condena. As limitações com que se debateu o funcionamento do ius puniendi não poderão prejudicar o arguido.

Só que a situação de dúvida tem que se revelar de algum modo, e designadamente através da sentença. A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido».

Ou seja, a dúvida ou o non liquet, necessariamente valorado a favor do arguido, não ocorre quando na sentença sejam considerados provados, para além de qualquer dúvida razoável, todos os factos relevantes e preenchidos os elementos essencialmente constitutivos do tipo incriminador em causa.

É isso mesmo que acontece no caso em apreço: não há evidência de que as instâncias tenham sido confrontadas com qualquer dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade do recorrente ou dos concretos contornos da sua actuação, pelo que improcede, também nesta parte, a pretensão recursória.

4 - Quanto à invocada nulidade por omissão de pronúncia

Alega o recorrente que o Tribunal da Relação do Porto não teria apreciado especificadamente os fundamentos de recurso que interpôs do acórdão da 1ª instância, ignorando toda a matéria ali articulada e impugnada.

Salvo o devido respeito, cremos que o essencial do juízo crítico formulado pelo recorrente resulta de uma apreciação interpretativa parcial dos fundamentos do acórdão recorrido e reconduz-nos, a final, ao que o recorrente considera ser a correcta interpretação das provas produzidas e examinadas em audiência de julgamento, em especial da sua própria versão dos factos, cuja coerência e credibilidade tem por inatacáveis.

Ora, uma leitura atenta do texto do acórdão recorrido e a consideração dos reais termos em que se desenvolve a apreciação da matéria de facto impugnada pelo recorrente, revela que, de forma satisfatória, o tribunal a quo, ora considerando certos factos meramente circunstanciais e irrelevantes, em face do tema da prova, ora considerando claramente insubsistentes as pretendidas alterações da decisão de facto, em face da prova produzida - e apreciada depois de ouvidos os depoimentos prestados através do respectivo registo gravado [cfr. fls. 1596] - conheceu de todas as questões suscitadas pelo recorrente, o que nos leva, necessariamente, à conclusão de que é insustentável a crítica pelo mesmo formulada.

De resto, como se sabe, a omissão de pronúncia só se verifica quando o julgador deixe de pronunciar-se sobre questão que lhe foi colocada e não quando, como é o caso, responde a uma questão de modo diferente do desejado pelo recorrente.

5 - Quanto à invocada nulidade por falta de fundamentação

Na conclusão (BBB), o recorrente parece aludir à falta de fundamentação da decisão de facto, por, alegadamente, não se referenciarem, no texto do acórdão impugnado, quaisquer dados objectivos com base nos quais o tribunal formou a sua convicção. É esta a expressão exacta: "... não se referenciam quaisquer dados objectivos na fundamentação para formar a convicção".

Assim argumentando, o recorrente remete-nos, mais uma vez, para a apreciação da decisão de facto (o uso, na execução do crime de luvas de mota, luvas de latex, da película de celofane e das botas), direccionando a sua crítica para o que considera ser a deficiente apreciação e valoração da prova produzida e examinada em audiência, como se o Supremo Tribunal de Justiça pudesse sindicar a decisão de facto por eventual erro de julgamento.

Sempre se dirá, no entanto, que se trata de crítica que, em nosso entender, mais uma vez, não resiste a uma simples leitura do texto dos acórdãos.

Na verdade, como resulta do disposto no artigo 374°, nº 2, do C. P. Penal, no que respeita à fundamentação da decisão de facto, não se impõe ao tribunal que proceda à indicação exaustiva dos elementos de prova apresentados na audiência, mas apenas os que serviram para formar a convicção do tribunal, podendo, por isso, dizer-se, acompanhando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que a indicação da razão de ciência de cada pessoa cujo depoimento o tribunal tomou em consideração, satisfaz plenamente a obrigatoriedade estabelecida no artigo 374 n° 2, do CPP, destinada a garantir que na sentença se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, sem necessidade de referência expressa às testemunhas ouvidas a cada facto considerado provado. - cfr., entre outros, Acs. do STJ, de 12.02.1998, BMJ, 474, pg. 309, e de 14.01.1999, CJ (ASTJ), VII, t. I, pg. 187.

Ora, no caso em apreço, identificando e descrevendo claramente os meios de prova que foram tidos em consideração e sujeitando-os ao crivo da sua apreciação crítica, as instâncias proferiram uma decisão que temos por suficientemente fundamentada, permitindo o controlo do processo lógico-­dedutivo que as conduziu ao veredicto condenatório.

Identificados que estão os elementos de prova em que o tribunal a quo fundou a sua convicção e exposto e analisado criticamente o conteúdo relevante dos mesmos, em face do tema da prova, como resulta do texto dos acórdãos, afigura-se-nos, à luz da citada jurisprudência, que tanto basta para dar por cabalmente cumpridas as exigências da fundamentação, na sua dupla função: endoprocessual (a motivação tem essencialmente um objectivo de funcionalidade técnica e tem como destinatários principais as partes e os tribunais superiores) e extraprocessual (a motivação não pretende apenas convencer as partes e esclarecer o tribunal superior; ela passa a ser o instrumento para o controlo extraprocessual e geral sobre a justiça, controlo exercido pelo povo, já que é em seu nome que a justiça é administrada). - Cfr. Eduardo Maia Costa, in “Motivação da matéria de facto da sentença penal", Revista do Ministério Público, Ano 20, Abril/Junho 1999, n° 78, pgs. 147/157

6 - Quanto à qualificação jurídica

Alega o recorrente que a sua conduta preenche o crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131°, do C. Penal, e não o crime de homicídio qualificado [artigo 132°, nºs 1 e 2, als. a) e j)], por que foi condenado.

Como é evidente, a sorte de tal pretensão está inteiramente dependente de uma eventual alteração da matéria de facto no sentido pretendido pelo recorrente, pelo que, não podendo ser acolhidas, nessa parte, as conclusões do recurso, como nos parece dever suceder, soçobrará, necessariamente, a propugnada alteração da qualificação jurídica.

7 - Quanto à escolha e medida das penas

7.1 - O segmento do recurso respeitante à escolha e determinação da medida da pena, o recorrente - renovando a crítica que já dirigira à decisão da lª instância e à qual a Relação não deu provimento - invoca a violação do princípio da dupla valoração, no que respeita ao crime de homicídio.

Lê-se nas conclusões do recurso o seguinte: "... conforme se pode ler na sentença, na determinação da medida da pena (p. 40 e ss), o colectivo de juízes teceram considerações acerca das circunstâncias que revelam especial perversidade ou censurabilidade para efeitos de qualificação, pronunciando-se sobre a culpa do agente" ... e toma-as "novamente em consideração, na medida da pena", em violação do disposto no artigo 71°, nº 2, do C. Penal [cfr. conclusões (ZZZ) - fls. 1736v].

Não é isso, porém, salvo o devido respeito, o que resulta do texto do acórdão da 1ª instância, como bem explicita o Tribunal da Relação, no segmento em que se refere à medida concreta da pena e em que rejeita a respectiva argumentação recursória [cfr. fls. 1619/1620].

Com efeito - como já dissemos no momento processual a que alude o artigo 416, nº 1 CPP - a gravidade e a intensidade do grau de ilicitude dos factos, a culpa do arguido manifestada no facto e as necessidades de prevenção foram consideradas pelo tribunal, e bem, "dentro da qualificativa de especial censurabilidade e perversidade exigida pela qualificação do crime de homicídio" [cfr. fls. 1260].

E especificamente quanto à culpa pode ler-se no acórdão: " ... a culpa do agente no facto é extremamente desvaliosa e censurável, havendo a considerar, para além da circunstância de o crime ter sido cometido contra a pessoa do pai e que foi já considerada na qualificativa do homicídio ... " [cfr. fi s. 1261]

Cremos, pois, e sem necessidade de mais desenvolvidos considerandos, que também esta crítica formulada pelo recorrente deve improceder.

7.2 - E sendo assim, considerando os critérios que presidem à escolha das penas e à determinação da respectiva medida, bem como as suas finalidades (artigos 40°, 70° e 71°, CPP), e em especial, no caso concreto, a gravidade da conduta do arguido, a intensidade do dolo e o elevado grau de ilicitude, bem como a gravidade das suas consequências - mas também a atenuação especial devida à sua juventude (artigo 4°, do DL 401/82, de 23/9) - não cremos que possam merecer qualquer censura a pena parcelar aplicada pelo crime de homicídio qualificado ou a pena única resultante do cúmulo jurídico efectuado

            8 – Pelo exposto e em conclusão:

a) Conhecendo-se da questão prévia suscitada no âmbito da presente resposta e julgada a mesma procedente, deverá confirmar-se o recurso apenas às questões relacionadas com o crime de homicídio, a pena parcelar ao mesmo respeitante e a pena única resultante do concurso de crimes.

b) O acórdão impugnado decidiu do recurso interposto pelo recorrente, mesmo no que diz respeito à impugnação da matéria de facto, conhecendo de todas as questões relevantes que havia que conhecer e fazendo-o de forma suficientemente fundamentada.

c) Nos termos do estatuído no artigo 434°, do C. P. Penal, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça só pode visar o reexame de matéria de direito, sem prejuízo da apreciação oficiosa dos vícios previstos no artigo 410°, n° 2, os quais, no caso em apreço, manifestamente, se não verificam.

d) Não resulta do texto da decisão que o tribunal tenha sido colocado perante alguma dúvida sobre a prova e que, nessa circunstância, tenha optado por qualquer solução desfavorável ao arguido, pelo que não se pode concluir pela violação do princípio in dubio pro reo.

e) Tendo o Tribunal da Relação confirmado integralmente o quadro de facto dado por assente pela 1ª instância, é inquestionável que o recorrente, com a sua conduta, preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio qualificado por que foi condenado, não merecendo qualquer reparo a qualificação jurídica operada pelas instâncias.

f) Tendo em conta os critérios de escolha das penas e de determinação da respectiva medida, bem como as suas finalidades (artigos 40°, 70° e 71°, CPP), e em especial, no caso concreto, a gravidade da conduta do arguido, a intensidade do dolo e o elevado grau de ilicitude, bem como a gravidade das suas consequências - mas também a atenuação especial devida à sua juventude (artigo 4º, do DL 401/82, de 23/9) - nenhuma censura merecem a pena parcelar aplicada pelo crime de homicídio qualificado ou a pena única resultante do cúmulo jurídico efectuado.

g) O douto acórdão recorrido é, pois, de confirmar nos seus precisos termos.

            Neste Supremo Tribunal, o sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

1. Do recurso:

                No presente recurso – tempestivamente interposto pelo arguido, AA, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 8-05-2013 e exarado a fls. 1516 e segs. –, as questões suscitadas pelo recorrente e, assim, por ele submetidas ao reexame deste Supremo Tribunal, prendem-se, como muito bem sintetizadas, na respectiva resposta, pelo magistrado do Ministério Público junto daquela Relação, com as seguintes:

                1.ª – A decisão recorrido é nula, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, als. a), b) e c), do C. P. Penal, por: (i) omissão de pronúncia, já que desconsiderou os fundamentos do recurso em matéria de facto interposto da decisão da 1ª instância e não reexaminou as provas ali indicadas, nos termos da alínea b) do nº 3 do artigo 412º do citado Código; (ii) condenação por factos diversos dos descritos na pronúncia, sem cumprimento do disposto nos artigos 358º e 359º (quanto ao crime profanação de cadáver); (iii) falta de fundamentação por não se referenciarem os dados objectivos com base nos quais o tribunal formou a convicção no sentido da prova de determinados factos;

                2.ª – As provas foram incorrectamente avaliadas e verificam-se os vícios decisórios a que se reporta o artigo 410º, nº 2, als. a) e b), do C. P. Penal: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (quanto aos crimes de profanação de cadáver e de incêndio) e contradição insanável da fundamentação;

                3.ª – Foi violado o princípio “in dubio pro reo”, com consequências ao nível da prova dos factos que consubstanciam as qualificativas do crime de homicídio;

                4.ª – É errada a qualificação jurídica dos factos quanto ao homicídio, já que os mesmos preenchem, não o crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. a) e j), do C. Penal, com pena especialmente atenuada, por aplicação do disposto no artigo 4º, do DL 401/82, de 23 de Setembro, mas antes o crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131º, do C. Penal, com pena especialmente atenuada, por aplicação do disposto no artigo 4º, do DL 401/82, de 23 de Setembro;

                5.ª – Há erro na determinação da medida concreta da pena relativa ao crime de homicídio, por violação do princípio da dupla valoração previsto no artigo 71º, nº 2, do C. Penal.

                2 - Do mérito do recurso:

                2.1 Emitindo parecer, como nos cumpre – [e excepcionando apenas, desde já, as questões que se prendem com a medida concreta da pena pelo crime de homicídio e, por via desta, também da pena única do concurso] –, cabe dizer que acompanhamos e secundamos, quanto ao mais, as considerações aduzidas pelo Ex.mo colega junto da Relação do Porto, na já acima citada resposta, que consta da peça processual exarada a fls. 1741/1753 e está subsequente, e pertinentemente, densificada nas cinco conclusões seguintes:

                (…)

                E porque nos revemos, nesta parte, na clareza e pertinência da argumentação ali desenvolvida, bem como nos fundamentos e elementos (nomeadamente factuais, doutrinários, jurisprudenciais e normativos) aduzidos – nos quais inteiramente nos louvamos, dir-se-á desde já também que nos dispensaremos, porque de todo desnecessário e redundante, do aditamento de mais desenvolvidos considerandos em defesa do decidido.

                2.2Apenas num ponto concreto, como acima já deixámos consignado, nos não revemos inteiramente na sua posição: o que se reporta, repete-se, à medida concreta da pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado e, só nessa medida, também à medida concreta da pena única do concurso.           

                Quanto àquele segmento do decidido, com efeito, (i) tomando apenas como circunstância qualificativa, para efeitos de qualificação jurídica, a densificada na alínea j) do n.º 2 do art. 132.º do CP [frieza de ânimo]; e (ii) tendo em conta que a 1.ª e 2.ª Instâncias, sem oposição, se decidiram pela atenuação especial da pena dada a idade do arguido [motivo pelo qual a respectiva moldura penal abstracta aplicável varia entre os 2 anos e 4 meses e os 16 anos e 8 meses de prisão], não cremos, com o devido respeito, que as circunstâncias concretas da prática dos factos nesta sede a ponderar, e que as instâncias devidamente enunciaram, permitam a dimensão da pena encontrada: praticamente situada no limiar máximo da moldura penal abstracta.

                Considerando na verdade, por um lado que o arguido é delinquente primário, tinha um comportamento socialmente integrado, sendo estudante universitário; e a sua relação com a vítima, seu progenitor, foi sempre conflitual; e por outro que os demais factores relativos ao modo de execução do facto não deixam de ser co-naturais ao próprio homicídio, ainda que passíveis de um juízo agravado da sua ilicitude, tudo ponderando e a tudo atendendo, diga-se que nos não repugnaria, de todo, que essa pena concreta se fixasse, antes, em medida não superior a 14 de prisão – [com a consequente e consentânea redução da pena única do concurso para medida também não superior a 15 anos de prisão] –, medida que temos ainda por suficiente para a realização das necessidades de prevenção, geral e especial, que o caso requer. Anote-se de resto que, dentro da apontada moldura abstracta, estamos perante uma pena claramente situada na sua metade superior, posto que, como se impunha, mais perto do seu limiar máximo do que do seu ponto médio.

                2.3Permitimo-nos por isso, sem necessidade de mais desenvolvidos considerandos, emitir parecer no sentido de que:

                2.3.1 – Deve ser rejeitado o recurso nos segmentos em que o recorrente convoca a reapreciação de quaisquer questões que se prendam com os crimes de “incêndio” e de “profanação de cadáver” por que foi condenado, porque relativos a crimes e penas parcelares cuja condenação viu confirmada pelo Acórdão da Relação, ora recorrido, por inadmissibilidade legal, nos termos dos arts. 432.º, n.º 1/b), 400.º, n.º 1/f) e 420.º, n.º 1/b), com referência ao art. 414.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP;
                2.3.2 – Sem prejuízo de, nos termos e pelos fundamentos acima enunciados em 2.2, ser de ponderar, como propomos, a redução da medida concreta da pena pelo crime de homicídio qualificado, e, nesse quadro, também da medida da pena única do concurso [para os sugeridos 14 e 15 anos de prisão, respectivamente] é de negar provimento ao recurso e de confirmar assim, quanto ao mais, o aresto impugnado, do Tribunal da Relação do Porto.

            Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, o recorrente nada disse.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

            II. Fundamentação

            Delimitação do objeto do recurso    

São as seguintes as questões colocadas pelo recorrente:

            a) Omissão de pronúncia do acórdão recorrido, por não ter apreciado circunstanciadamente os argumentos do recorrente em sede de impugnação da matéria de facto;

            b) Verificação dos vícios do art. 410º, nº 2, a) e b), do CPP;

            c) Violação do princípio in dubio pro reo;

            d) Qualificação do crime de homicídio;

            e) Condenação pelo crime de profanação de cadáver;

            f) Condenação pelo crime de incêndio;

            g) Violação do princípio da proibição da dupla valoração.

            Quanto às duas primeiras questões, há que arredá-las, desde já, do objeto do recurso.

            Na verdade, e no que toca à alegada omissão de pronúncia, deve recordar-se que são limitados os poderes de censura deste Supremo Tribunal sobre a apreciação da Relação em sede de julgamento da impugnação da matéria de facto. O que a este Supremo cumpre apreciar é tão-somente se a Relação se pronunciou sobre essa matéria, mas já não como o fez. Só nos casos de efetiva omissão de pronúncia sobre a matéria, pode o Supremo intervir, anulando a decisão da Relação.

            No caso dos autos, a Relação examinou desta forma a impugnação dos factos:

O recorrente considera como incorrectamente julgada parte substancial dos factos provados bem como de factos dados como não provados que constavam da contestação por si apresentada, sob os itens que apontámos e que nos dispensamos de transcrever de novo por uma questão de simplificação e síntese do acórdão.

Sustenta a existência de erro de julgamento quanto à referida matéria, no facto do tribunal não ter valorado com equidade as declarações do próprio arguido/recorrente e os depoimentos conjugados das testemunhas EE, BB, CC, GG e HH; depoimento e esclarecimentos das Senhoras Peritas, DD, psicóloga clínica, II; Psiquiatria Forense; relatório de perícia psicológica de fls. 800 a 804; fotografias das facas de fls. 192, 193, 194, 195, 385, 386, 387; fotografia do faqueiro de fls. 401 e 403, e fotografia de facas 402 e 403; fls. 54, 55 e 56; bilhete manuscrito de fls. 208; bilhete manuscrito de fls. 209; fotografias das botas de fls. 83 e 84; e fotografia das meias de fls. 186.

Segundo o recorrente, a análise e valoração destes meios de prova imporiam decisão diversa. Todavia, não obstante a elevada quantidade de factos que põe em crise, a verdade é que os mesmos apresentam uma escassa relevância no contexto dos crimes imputados, mormente o de homicídio qualificado, que o arguido confessou, e que agora pretende apenas desqualificar, pondo em causa a prova da premeditação e frieza de ânimo e desvalorizando a particularidade de ser descendente (filho) da vítima, alegando a inexistência de “circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”.

                Com efeito, analisada a produção de prova produzida em audiência e ouvidos por este Tribunal os depoimentos prestados, através do registo magnetofónico em anexo, é certo que os aludidos depoimentos foram muito esclarecedores e os outros elementos de prova constantes dos autos, mormente a prova documental e pericial conjugada com aqueles, permitem concluir, no essencial, pela versão dada como provada.

Aliás, ao contrário do que alega, das próprias declarações e confissão do arguido, se conclui claramente pela premeditação do crime de homicídio e uma reflexão prévia e cuidada do respectivo modo de execução. A aquisição dos instrumentos do crime e planeamento do “modus operandi”, não pode ter decorrido de uma decisão instantânea; levou de certo mais que as 24h referidas na norma do artº 132º nº 2 al. j) do cód. penal, sem que durante esse período preparatório do crime, em algum momento o arguido tivesse desistido de o praticar. 

A prova da factualidade em que se alicerça a circunstância qualificativa do homicídio referida naquela alínea, não pode suscitar qualquer dúvida face à prova produzida.

Já a circunstância prevista na alínea a), nº 2 do artº 132º do cód. penal, ela decorre em primeiro lugar do facto incontornável da vítima ser pai do arguido, estando obviamente subordinada a sua verificação (tal como as demais circunstâncias previstas) à especial censurabilidade e perversidade da conduta e que o recorrente põe em causa. Todavia, também aqui sem razão, pois o contexto em que os crimes foram praticados, mormente o facto da vítima ser surpreendia quando se encontrava deitada, fisicamente debilitada e de inferioridade física, para além do elevado número de facadas, 28 no total, (o que evidencia uma determinação e dolo directo intensos, fora do comum e raramente visto, diga-se), sendo 4 na zona da cabeça, 3 na zona do pescoço, 4 na zona do tórax, 2 na zona do abdómen, [todas zonas vitais], 11 na mão direita, 1 no braço esquerdo, 1 na mão esquerda, 1 na coxa direita e 1 na coxa esquerda. A prova destes factos é objectiva e resulta da prova pericial, sendo por isso inquestionável.

As demais discordâncias factuais, (meros detalhes irrelevantes, na sua maioria) nomeadamente a questão de saber se as facas da marca “tramontina” e “Zara” foram previamente adquiridas pelo arguido ou se, se encontravam na residência da vítima é meramente acessório, se bem que também neste ponto a prova produzida em audiência não deixa qualquer dúvida.

Os factos provados de onde se infere a especial censurabilidade e perversidade são inquestionáveis, não tendo o recorrente logrado por sequer em dúvida a solidez da prova.

Esta análise, embora porventura demasiado genérica, cumpre minimamente as exigências legais. Ora, pelas razões apontadas, não cabe a este Supremo Tribunal apreciar como exerceu a Relação o seu poder de cognição em matéria de facto. Não havendo, como não houve, propriamente omissão de pronúncia, não existe qualquer nulidade.

Quanto aos alegados vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, há que lembrar que a jurisprudência absolutamente uniforme deste Supremo Tribunal é no sentido da inadmissibilidade de invocação desses vícios pelas partes perante este mesmo Tribunal, sem prejuízo de, oficiosamente, o Supremo poder, em última análise, conhecer de tais vícios, quando eles forem manifestos e impedirem a decisão sobre a questão de direito.

Assim delimitado o objeto do recurso, passamos a apreciar a restante matéria da impugnação.

Para tanto, há que começar por conhecer a matéria de facto, e sua fundamentação, que se transcreve:

FACTOS PROVADOS

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

1. O arguido AA nasceu aos 01/04/1991, tendo como progenitores JJ e GG.

2. JJ encontrava-se divorciado há vários anos da mãe do arguido; era empresário na área da construção civil, encontrando-se a residir em Angola, e vindo esporadicamente a Portugal, o que fez aos 6 de Novembro de 2011, onde chegou por volta das 19h00, com o objectivo de efectuar exames médicos em virtude de um acidente de viação que tinha sofrido uns meses antes, e que o limitava na sua actividade de locomoção, tendo por tal factualidade de usar uma bengala.

3. O arguido recebia do seu pai, a título de prestação de alimentos, cerca de € 500,00, quantia insuficiente para os gastos que tinha, nomeadamente com as propinas da faculdade que frequentava e com os actos normais da sua vida diária.

4. O arguido jogava com frequência poker na Internet.

5. Os progenitores do arguido separaram-se de facto quando este contava meses de idade, altura em que o pai foi viver para Angola devido a problemas económicos, tendo-se separado de forma definitiva quando o arguido tinha 3 anos de idade.

6. Desde essa altura os contactos entre pai e filho limitaram-se a telefonemas esporádicos, apenas se tendo encontrado quando o arguido contava cerca de 11 anos de idade.

7. A partir daí estavam juntos cerca de uma vez por ano, durante um dia ou dois, quando o pai vinha a Portugal.

8. O arguido nunca encarou a relação com o seu pai, em termos afectivos, como uma relação de pai e filho.

9. Desde há cerca de 4 anos atrás que o pai resolveu estar mais presente na vida do filho, tendo passado a pagar-lhe uma pensão de alimentos mensal de cerca de 500,00 euros.

10. Nessa altura foi para Évora, para tirar a licença de piloto de aviação comercial, curso este sugerido e financiado pelo pai.

11. Para além disso o pai pagou-lhe a carta de condução, ofereceu-lhe um veículo automóvel e dava-lhe frequentemente bens materiais de elevado valor, procurando assim ganhar a confiança e aproximar-se afectivamente do filho.

12. Apesar deste comportamento do pai, o arguido nunca o reconheceu afectivamente como seu pai, culpabilizando-o pelo facto de o ter abandonado, assim como à sua mãe, tendo desenvolvido ao longo dos tempos um sentimento, com traços obsessivos, de ressentimento e animosidade relativamente ao progenitor.

13. O arguido sempre viu como referência paterna, o tio FF, irmã da mãe, que viveu com ambos até aos seus 10 anos de idade e sempre esteve presente no seu dia-a-dia.

14. Desde há alguns meses à data dos factos que as relações entre pai e filho se tinham deteriorado pelo facto de o arguido, sem conhecimento do progenitor e contra aquilo que sabia ser a vontade do pai, ter desistido do curso de aviador, ter vendido o automóvel e comprado uma moto de alta cilindrada, para além do facto de persistir em jogar regularmente poker a dinheiro, o que não era do agrado do pai.

15. Tal comportamento do arguido foi censurado pelo pai que o repreendeu, repreensão essa que o arguido não aceitava por entender que este não dispunha de autoridade paternal para o efeito, sentindo-se humilhado e desvalorizado por tais repreensões do pai.

16. O arguido começou a ter pensamentos de um dia vir a matar o seu pai, por forma a vingar-se do mesmo.

17. O arguido sabia que o seu pai vinha a Portugal no dia 6 de Novembro de 2011, tendo-lhe sido dito por um tio paterno que o pai queria que fosse a casa dele para falarem.

18. O arguido sabia que o pai o iria seguramente repreender pelo seu comportamento acima descrito e ainda pelo facto de ter entretanto sofrido um acidente com a mota no qual fracturou os dois braços.

19. Por essa altura o arguido, num crescendo do sentimento de animosidade, ressentimento e desejo de vingança contra o pai, resolveu, em momento não apurado com exactidão, efectivamente matá-lo, tendo para o efeito elaborado um plano detalhado para almejar tal desiderato.

20. Assim, em dia e local não concretamente apurados, escreveu numa folha de papel o que levaria consigo para alcançar tal intento, o que deveria fazer para o almejar e ainda as acções que deveria efectuar para fazer crer que tinha sido outra pessoa que pretendia assaltar o seu pai:

“Saco

Luvas

Película aderente

Luvas de mota

Camisola com capuz

Camisa

Casaco

Calças de ganga

Calças de fato de treino

Tirar cartões dos telemóveis

Não ligar o PC

Livrar-me da carteira.

Esperar que adormeça. Do it, esperar que tudo pare. Acalmar. Vestir sem fazer muito alarido, não trocar a t-shirt ou camisola. Meter na mala do carro. Arrumar a mala com roupa no carro, como se estivesse a ir para casa da velha. Desligar os telemóveis e pegar na carteira e nos telemóveis e vasculhar a mala no carro na garagem. Pegar no portátil, no i-pod, e tudo o que for valioso. Deixar os papéis no carro e pegar na mala com o valor. Estacionar num sítio isolado.”.

21. Escreveu ainda, nas mesmas circunstâncias, numa outra folha de papel, os horários nocturnos do Metro entre as estações de Sete Bicas e Vila do Conde, bem como que deveria comprar um bilhete, vulgo Andante, novo, carregar o mesmo e andar a pé:

“Vila do Conde: 5:49

6:24

6:45

6:57

Sete bicas: 23:23

23:53

00:23

00:53

- Comprar andante novo.

- Carregar com duas viagens Z6;

- Andar a pé.”.

22. Tais elementos referiam-se aos horários de metro para casa do seu pai e ao que deveria fazer nas circunstâncias planeadas para a prática dos factos.

23. No dia 9 de Novembro de 2011, o arguido decidiu pôr o seu plano em prática, deslocando-se para o efeito à habitação do pai, sita na Rua do C… do A…, n.º xx, nesta cidade e comarca, onde entrou a hora não concretamente apurada, mas após a meia noite.

24. Fê-lo usando o Metro como meio de transporte, tendo para o efeito adquirido o cartão andante com o n.º xxxxxxxx, no dia 8 de Novembro de 2011, pelas 23:34:09, na Estação de Metro Fonte do Cuco, e tendo o mesmo sido validado na referida estação pelas 23:43:00.

25. O arguido levava consigo uma mochila que ostentava a marca Nike, no interior da qual se encontrava o material descrito no plano manuscrito acima referido (saco, luvas, película aderente, luvas de mota, camisola com capuz, camisa, casaco, calças de ganga e calças de fato de treino), bem como os objectos que decidira levar consigo para consumar a morte do seu pai – uma faca de cozinha da marca Zara, com lâmina de 11,5 cm de comprimento e 3 cm de largura, uma faca de cozinha da marca Tramontina, com lâmina de 20 cm de comprimento e 5 cm de largura.

26. No interior da habitação, no quarto de dormir do pai, sito no 1.º andar da aludida morada, este e o arguido envolveram-se em acesa discussão, na qual o progenitor o repreendeu uma vez mais pelo facto deste ter vendido o carro e comprado a mota sem autorização e continuar a jogar poker, dizendo-lhe, além do mais, que assim “nunca iria a lado nenhum”, “nunca seria ninguém na vida”, o que aumentou o estado de ressentimento e cólera que o arguido nutria pelo pai.

27. Nessa altura o arguido saiu do quarto do pai e desceu para a sala, local em que esteve algum tempo a beber whisky e a meditar sobre o sucedido, tendo reiterando o seu propósito de executar o plano de matar o pai que tinha delineado.

28. Assim, a hora não concretamente apurada desse mesmo dia, mas por volta das 04h00, o arguido dirigiu-se ao quarto do seu progenitor onde o mesmo já se encontrava deitado na cama.

29. O arguido usava uma t-shirt de cor branca da marca Hurley, uma camisola de manga comprida preta da marca Jack Jones, umas calças de fato de treino de cor cinza, marca Elisabeth Sharon, meias escuras, umas botas castanhas, e, na sua mão esquerda, colocou luvas de latex, bem como película aderente no braço esquerdo, que se encontrava engessado (em virtude de um acidente ocorrido anteriormente com a sua mota), de molde a proteger o mesmo, e na mão direita uma luva própria para conduzir veículos motorizados.

30. O arguido empunhava, na sua mão direita, a referida faca de cozinha de marca Tramontina com lâmina de 20 cm de comprimento e 5 cm de largura, que levou consigo, com o objectivo de tirar a vida ao seu progenitor.

31. Chegado ao quarto daquele, e beneficiando do facto de o mesmo se encontrar deitado, da debilidade física da vítima assim como da sua superioridade física, abeirou-se do seu pai e desferiu-lhe vários golpes com a faca que empunhava, atingindo-o em várias zonas do corpo, sobretudo no peito e na cabeça.

32. A vítima gritou por socorro, por várias vezes, tendo sido ouvida nas residências vizinhas, dizendo “Porquê? Porquê?” “meu filho, ai, ai, ai, acode-me”.

33. Não obstante, o arguido continuou a desferir vários golpes no peito da vítima, tendo tapado a boca daquela com uma das mãos, para evitar que os seus gritos se ouvissem.

34. No total, o arguido desferiu vinte e oito facadas no corpo do seu pai - quatro na zona da cabeça, três na zona do pescoço, quatro na zona do tórax, duas na zona do abdómen, onze na mão direita, uma no braço esquerdo, uma na mão esquerda, uma na coxa direita e uma na coxa esquerda.

35. Após, pegou num lençol que se encontrava na cama da vítima e enrolou-o à volta da cara do seu pai, colocando uma das pontas na boca do mesmo, evitando dessa forma que aquele gritasse por socorro.

36. Em virtude da actuação do arguido, o corpo da vítima ficou caído no chão, do lado direito da cama, junto ao roupeiro, com a cabeça virada para a janela e as pernas, para a cabeceira da cama.

37. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido, JJ sofreu as lesões constantes do relatório de autópsia médico-legal de fls. 666 a 672, o qual se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, as quais foram causa directa e necessária da sua morte; com efeito, a morte da vítima ficou a dever-se a hemorragia maciça, associada a insuficiência aguda por atelectasia pulmonar, a qual, bem como as lesões traumáticas sofridas, são compatíveis com traumatismo de natureza cortoperfurante, como o decorrente de agressão por instrumento cortoperfurante.

38. Depois, o arguido molhou um dos seus dedos no sangue existente no chão, e pertencente ao seu pai, e escreveu na parede do quarto onde aquele se encontrava prostrado, o nome do mesmo: “JJ”.

39. Lavou-se, fazendo uso de um sabonete que também colocou na mochila, e trocou de roupa, vestindo aquela que trazia na mochila – um blusão grosso de cor castanho escuro, um kispo de cor preta, um par de calças de ganga azuis, uma camisola de algodão preta com capuz – guardando a que se encontrava ensanguentada na mesma, bem como as facas – a que usou e as que havia trazido consigo, as luvas de látex e a luva de motard.

40. O arguido apoderou-se de uma pasta contendo documentação pessoal de JJ e da empresa do mesmo, A…, do computador portátil pertença do seu pai, que se encontrava no quarto daquele, de marca Mac Book Pro de cor cinza com o n.º de série xxxxxx, de um IPHONE modelo A1332, com o IMEI xxxxx, de um IPOD 16GB com o n.º de série xxxxx, de dois relógios, de marcas OMEGA Speedmaster, com o n.º de série xxxx, e RADO Jubile com o n.º de série xxxx, que estavam numa gaveta de uma das mesas de cabeceira, de várias chaves, incluindo a da morada onde estava, da bolsa que o mesmo usava a tiracolo e onde estava a carteira, documentos e os cartões de crédito e de débito do mesmo.

 41. O arguido apoderou-se ainda da quantia monetária de 500 dólares, pertença de JJ e que se encontrava em casa daquele.

 42. Pegou ainda numa bengala pertencente à vítima, tendo separado a mesma em duas partes, e guardou os objectos pertencentes ao seu pai, referidos em 26., num saco ao mesmo pertencente.

 43. O arguido pretendia desse modo simular um assalto e por isso guardou e levou consigo tais objectos e dinheiro.

 44. Após, o arguido pegou numa garrafa plástica que continha acendalha líquida de cor azul, e que se encontrava na sala, e espalhou o referido líquido por todas as divisões da habitação, com particular incidência no quarto onde estava o seu pai, tendo naquela divisão despejado o referido líquido sobre os tapetes do quarto, cama, colchão, e portas do roupeiro, pretendendo desse modo que o fogo que entretanto ateou, consumisse toda a habitação, por forma a eliminar os vestígios da sua descrita actuação.

 45. Em seguida, o arguido pegou na sua mochila, no saco acima referido, na bengala de JJ e na garrafa de acendalha líquida, já vazia, e saiu da residência pela porta da sala com acesso ao terraço das traseiras, saltou o muro da habitação e fugiu do local.

 46. Em consequência do incêndio ateado, o quarto da vítima ficou destruído na sua totalidade, tendo o corpo da mesma ficado parcialmente queimado.

 47. O arguido percorreu a pé várias artérias de Vila do Conde, em direcção à Praça S. João, tendo pelo caminho abandonado a garrafa de acendalha liquida, que arremessou para o cimo do telhado do n.º 207 da Rua Comendador António Fernandes da Costa, e a bengala, que colocou em cima de uma floreira existente na Rua 5 de Outubro.

 48. Na Praça S. João, nesta comarca, na Praça de Táxis ali existente, apanhou um táxi por volta das 06h24. Falando em inglês ao taxista que o transportou, e fazendo-se passar por estrangeiro, o arguido solicitou-lhe que o levasse ao aeroporto Francisco Sá Carneiro, tendo para o efeito escrito “Pedras Rubras” no seu telemóvel, que lhe mostrou.

 49. Ali chegado, por volta das 06h45, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento Cotacâmbios, onde procedeu à troca dos 500 dólares por quantia correspondente em euros.

 50. De seguida, o arguido apanhou outro táxi a fim de se deslocar para a sua residência, sita em S. Mamede de Infesta.

 51. A hora não concretamente apurada, mas anterior às 10h30 do dia 9 de Novembro de 2011, o arguido dirigiu-se à residência de LL, seu amigo, tendo pedido àquele que lhe guardasse uma mala azul de marca Samsonite, que tinha atada uma etiqueta de bagagem com a inscrição TOP ATLÂNTICO e com o nome “AA” e uma morada de Évora.

 52. Pelas 10h35, o arguido dirigiu-se à Lavandaria G…, sita na Rua G… de F…, em S. Mamede de Infesta, onde deixou a roupa a que se fez alusão em 25., e que havia usado, para lavar.

 53. Nesse trajecto, colocou o par de botas a que se aludiu em 25. num contentor de lixo existente na Rua José Coutinho, em S. Mamede de Infesta.

 54. O arguido, chegado a casa da sua mãe onde residia, dado ter o gesso do seu braço esquerdo ensanguentado, retirou o mesmo, usando para o efeito uma marreta de cabo curto, um alicate de grifos e uma tesoura, que estavam em casa de seu pai, e colocou-o no interior da sua mochila.

 55. Aos 10 de Novembro de 2011, pelas 22h00, a mala de viagem rígida de cor azul-bebé da marca SAMSONITE, com pequenos autocolantes com as iniciais XXX, colados na parte superior, tendo atada uma etiqueta de bagagem com a inscrição “T… A…” e manuscrito: “AA, AV. P… Á… C…, n.º xx, Évora – Portugal, xxxxxxxxx” foi apreendida, contendo no seu interior:

- Um sabonete oval, de cor clara com cerca de 10 cm de comprimento;

- Um saco plástico com publicidade à Confeitaria F…. em tons de branco e Azul, contendo no seu interior:

- Um par de boxer´s de cor escura da marca Intimissimi; Um par de calças de treino de cor cinza e marca ELISABETH SHARON, tamanho XL, com várias manchas hemáticas;

- Uma mochila da marca NIKE de cores beije e azul escuro, com rebordo azul claro, e duas alças com dois compartimentos com fecho de correr apresentando vestígios hemáticos, contendo no seu interior:

- Um rolo de papel celofane;

- Um martelo com cabeça metálica de cor preta e cabo de madeira branco e vermelho, com a inscrição XPLOIT com cerca de 27 cm de comprimento;

- Um telemóvel da marca NOKIA;

- Duas luvas amarelas de látex, ambas rasgadas;

- Um cartão SIM da operadora TMN que se encontra queimado e envolto em fuligem negra;

- Uma tesoura de cabo de plástico, de cor azul e preto, marca Donau Rostfrei com cerca de 17 cm de comprimento total, com vestígios hemáticos;

- Um alicate de grifos em metal oxidado, com um cordel branco de nylon enrolado;

- Um par de meias pretas com vestígios hemáticos;

- Dois pedaços de panos de algodão com riscas em tons de verde e branco, um dos quais atado com dois nós, com vestígios hemáticos e de um pó branco, aparentemente gesso;

- Um canhoto de bilhete de avião, da empresa Linhas Aéreas de Angola, em nome de JJ, para o voo Luanda – Porto, datado de 06-NOV-11H com carimbo no verso datado de 06 Nov. de 2011 e a inscrição Luanda;

- Uma luva de motociclista, em pele, com soqueira e protecção de dedos em plástico, em tons de preto, branco e vermelho, da marca DAINESE, tamanho L e com vestígios hemáticos;

- Um pedaço de gesso branco envolvido em ligadura de cor branca, com várias inscrições manuscritas e vestígios hemáticos, encontrando-se partido, sendo perceptível ainda uma parte circular intacta;

- Uma faca de cozinha com cabo em madeira de cor castanha, com comprimento total de 24 cm, tendo a lâmina 11,5 cm de comprimento, 3 cm de largura máxima e 1,5 mm de espessura;

- Uma faca de cozinha com cabo em madeira de cor castanha, marca TRAMONTINA com comprimento total de 34,5 cm, tendo a lâmina 20 cm de comprimento, 5 cm de largura máxima e 3 mm de espessura, com vestígios hemáticos;

- Uma faca de cozinha, com cabo metálico envolto em fita adesiva de papel de cor branca, da marca JIANTING, com comprimento total de 31,5 cm, tendo a lâmina 19,5 cm de comprimento, 4 cm de largura máxima, e 1,5 mm de espessura, com vestígios hemáticos;

- Uma pasta em material sintético de cor preta, com duas asas curtas e fita de tiracolo, composta por quatro divisórias com fechos de correr e uma divisória fechada com velcro, da marca WENGER, contendo no seu interior:

- Uma T-shirt, de cor branca e marca Hurley, tamanho L, com o logótipo da marca na parte frontal, com vestígios hemáticos;

- Uma camisola de manga comprida, em algodão, de cor preta, com a inscrição frontal de várias letras, em vermelho e lilás, da marca JACK&JONES, tamanho L e vários vestígios hemáticos;

- Uma ligadura em tom beije, com cerca de dois metros de comprimento;

- Um copo em vidro, de cor lilás transparente, contendo no interior, um pedaço de tecido, comprimido, em tom azul acinzentado, que uma vez aberto se constatou ser uma fronha de almofada, com vestígios hemáticos;

- Um porta-chaves em couro, de cor preta, da marca BUGATY TROPHY, com uma mola, duas chaves metálicas e uma chave em plástico com o símbolo da SAMSONITE e o número 114, contendo vestígios hemáticos;

- Um envelope de papel com o timbre da LAND ROVER, contendo no interior um documento – proposta de compra e venda – datado de 14/04/2011, com o número 342, emitido em nome de JJ e ainda um cartão de visita;

- Um talão do BPI em nome JJ; - Vários cartões de visita da empresa A…;

- Uma folha de papel de cor amarela, manuscrita; - Um cartão de visita em nome de P… T…;

- Duas agendas do BPI, sendo uma do ano de 2006 e outra de 2010, apresentando apontamentos manuscritos em algumas folhas;

- Uma pen drive, da marca Lexar, de cor azul;

- Uma pen drive, da marca Kingston, com a capacidade de 16GB;

- Um porta-minas;

- Uma embalagem de minas de carvão;

- Três esferográficas;

- Uma caneta da marca PARKER;

- Duas chaves metálicas, aparentes pertencentes a portas interiores ou de mobiliário;

- Um isqueiro da marca BIC, de cor amarela;

- Uma bisnaga com a inscrição: “Epiderme Creme”;

- Um inalador da marca VICKS;

- Um porta-cartões de visita da marca MILANO, contendo no interior diversos cartões;

- Uma caixa plástica transparente, contendo no seu interior um rato da marca MACINTOSH, de cor branca;

- Uma carteira de documentos, em pele preta, contendo um cartão da World Series of Poker e um cartão da empresa Mais Óptica, ambos em nome de JJ;

- Um canhoto de viagem, vários outros papéis e 1,95€ em moedas várias;

- Um envelope com o timbre da empresa A…, contendo documentação diversa;

- Uma embalagem de pastilhas elásticas;

- Uma ficha adaptadora de tomadas eléctricas de cor branca;

- Uma capa de telemóvel, em plástico de cor cinza;

- Uma agenda da marca MOLESKINE com capas de cor preta do ano de 2011 com diversos apontamentos manuscritos;

- Uma pen de acesso ao serviço de banda larga da empresa TMN;

- Uma carteira de documentos em pele castanha da marca CUMAR, contendo diversa documentação pessoal, cartões bancários e o cartão de cidadão de JJ;

- Uma bolsa de alça tiracolo, em material sintético, de cor preta e beije, da marca TIMBERLAND, com três compartimentos contendo:

- Uma bolsa em material sintético, de cor laranja, com a inscrição: “Intours”, contendo:

- Um boletim de saúde titulado por JJ e um documento referente a dois bilhetes electrónicos de viagens aéreas entre Angola e Portugal, com datas de 06 de Novembro e de 12 de Novembro de 2011;

- Vários papéis, cartões de visita, um corta-unhas, três canetas, um isqueiro e um livro de cheques do BPI em nome da empresa H… U…, Ldª;

- Várias pastas plásticas, contendo documentos diversos;

- Um passaporte português, com o n.º xxxx, titulado por JJ, emitido em 05.06.2009 em Luanda;

- Um relógio da marca RADO, com bracelete metálica de cor preta e mostrador analógico com fundo da mesma cor, apresentando-se o vidro riscado e com vestígios hemáticos;

- Um relógio da marca Ómega, com mostrador analógico de fundo cinza e preto e bracelete em couro de cor preta;

- Um par de calças de tecido cinzento, da marca MASON’S, tamanho 50, com vários bolsos e com vestígios hemáticos, tendo introduzido nas presilhas um cinto de couro, de cor castanha;

- Um livro de SUDOKU;

- Uma embalagem de lenços de papel;

- Um isqueiro em cor preta da marca CLIPPER SOFT;

- Duas argolas com três chaves metálicas, cada uma;             

- Uma caneta azul com logótipo do Jornal de Notícias;

- Duas folhas pautadas, formato A5, manuscritas a tinta de cor preta, contendo uma listagem de itens diversos e um texto descrevendo um plano da acção criminosa.

56. Ao actuar da forma descrita, o arguido fê-lo prevendo e querendo tirar a vida do seu progenitor, o que logrou fazer.

57. Agiu de modo premeditado, de acordo com um plano que previamente elaborou para o efeito, o que fez com o intuito de se vingar do seu pai, tirando-lhe a vida, em resposta a sentimentos de ressentimento e animosidade pelo facto de o seu pai ter estado sempre ausente e procurar agora estabelecer consigo uma relação afectiva de pai/filho que não aceitava.

58. Bem sabia o arguido que actuava contra o seu pai, seu ascendente, pessoa a quem devia particular respeito em virtude da relação familiar que os unia.

59. Sabia também o arguido que o seu pai se encontrava fisicamente fragilizado, e que a sua força física era superior à do seu progenitor, e não obstante, não se coibiu de actuar.

60. Ao atear fogo no interior da residência da vitima, o arguido quis provocar, como provocou, um incêndio no interior da mesma por forma a eliminar todos os vestígios que o ligassem à morte do pai, tendo dessa forma colocado tal habitação, de valor não concretamente apurado mas seguramente superior a 100.000 euros, em efectivo perigo de total destruição, a qual apenas não se verificou por razões estranhas à sua vontade.

61. O arguido previu ainda que como consequência da sua actuação de atear fogo no quarto, que o corpo, já cadáver, do pai fosse consumido pelas chamas, resultado com o qual se conformou e aceitou.

62. O facto de ter consumido uma quantidade não apurada de whisky antes da prática dos factos, não retirou ao arguido qualquer discernimento nem determinou ou condicionou a sua vontade de matar o pai, conforme havia já planeado.

63. O arguido actuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

64. Manifestou em audiência sincero arrependimento, vergonha e juízo crítico pelo seu descrito comportamento, que disse não conseguir justificar.

65. Até à data da prática dos presentes factos o arguido sempre se havia comportado como uma pessoa responsável, respeitadora e respeitada no meio onde está inserido.

66. Para além dos acima expostos, com relevância para a discussão da causa, resultaram ainda provados os seguintes factos, alegados pelo arguido na contestação.

- O progenitor do arguido foi pela primeira vez para Angola quando a mãe se encontrava grávida deste. Voltou, quando o arguido tinha três meses, e instalou-se de forma praticamente permanente em Angola quando o arguido ainda não tinha um ano e meio de idade, local onde constituiu família.

- Tal facto foi motivado essencialmente por questões financeiras, de dívidas que havia acumulado. Acresceu ainda o facto de a relação com a mãe do arguido se ter entretanto deteriorado.

- A primeira memória física do arguido do seu progenitor ocorreu pelos 11 anos de idade, coincidente com uma repressão física.

- Até então existiam apenas alguns contactos telefónicos entre ambos nas alturas dos aniversários deste e do seu progenitor.

- Até à idade dos 14 anos do arguido as visitas do seu progenitor eram praticamente anuais e por curtos períodos de tempo. Posteriormente e até à idade dos 16 anos do arguido, as visitas foram aumentando paulatinamente.

- A referência paterna do arguido foi o seu tio materno FF, com quem até à data dos factos falava praticamente todos os dias.

- Nunca o seu progenitor acompanhou o arguido em qualquer actividade da sua vida.

- No período posterior aos 16/17 anos do arguido as relações afectivo-parentais alteraram-se devido a uma aproximação do seu pai.

- As visitas do seu pai começaram a ser mais frequentes, passando este a vir mais vezes a Portugal e a privar com o arguido.

- O arguido acompanhou o seu pai em torneios de poker em que este participou.

- No final do 12° ano o seu pai participou activamente e de forma decisiva na escolha do curso em Évora, cujos custos, cerca de 60.000,00 euros, pagou.

- O arguido recebia ajuda do pai no valor de € 500,00 mensais, a qual nunca lhe foi cortada.

- Após terá abandonado, por sua iniciativa, o curso em Évora, o arguido inscreveu-se num outro curso superior em faculdade do Porto e voltou a viver em casa da sua mãe.

- O arguido sofreu um acidente de mota na data 30.09.2011 de no qual sofreu traumatismo no punho direito, ombro esquerdo, cotovelo esquerdo, joelho esquerdo e dedos do pé direito, no seguimento do qual ficou uma luva gessada no braço esquerdo e uma tala no antebraço, o que limitava os seus movimentos para as tarefas diárias.

- Não foi do agrado do seu pai a desistência do curso que frequentava em Évora, a venda do carro bem como a aquisição de um motociclo de alta cilindrada e nova inscrição em faculdade do Porto.

- O arguido soube da presença do pai em Portugal, pelo seu tio EE, o qual lhe disse que deveria ir falar com o seu pai.

- Posteriormente escreveu num papel que se encontra junto a fls. 209 os horários do metro a fim de visitar o seu pai bem como os horários que teria da parte de manha do dia seguinte para ir às aulas;

- O arguido receava falar com o pai e a fim de abreviar a conversa entendeu por bem ir mais tarde, tendo por isso chegado a casa do seu pai depois das 24:00h.

67. Mais se apurou, no que se refere às condições pessoas do arguido, que:

- O arguido AA, sendo filho único, nasceu quando o seu pai começava a inserção laboral em Angola, que tinha iniciado quando a cônjuge já estava grávida, fase em que vinha com frequência visitá-la, bem como à restante família.

- Desde os primeiros meses de vida de AA, o progenitor passou a residir em permanência naquele país e foi rareando o contacto presencial com o cônjuge e o filho, situação que evoluiu para separação de facto.

- AA e a mãe integraram então o núcleo familiar de origem desta, residente em S. Mamede de Infesta.

- O processo de desenvolvimento de AA decorreu assim no agregado da avó materna, junto desta, da mãe e do tio, FF.

- Os contactos entre o arguido e o pai foram escassos e a participação deste no seu sustento, intermediada por familiares paternos, foi quase inexistente.

- Em 1996 foi decretado o divórcio dos pais de AA, sendo estipulada a pensão de alimentos prestar pelo progenitor, regularmente respeitada desde então, bem como o regime de visitas, que este concretizava quando se deslocava a Portugal, em férias ou negócios.

- Na idade normal, AA iniciou a formação escolar que efectuou sem dificuldades e com bom aproveitamento até concluir o 12° ano, no ano lectivo de 2008/09.

- Paralelamente, desde os oito anos de idade, iniciou a actividade de praticante de andebol, no Futebol Clube de Infesta, onde progrediu nos vários escalões.

- No contexto familiar, a figura do tio materno esteve presente no processo de formação de AA, para quem representou e foi valorada com significado parental, traduzido, nomeadamente, na oferta dos trabalhos escolares que elaborava no âmbito do “dia do Pai”.

- Em duas ocasiões, quando AA tinha quinze e dezassete anos de idade, o pai levou-o para Angola em período de férias. Contudo, a proximidade relacional entre ambos não ocorria, por o seu pai estar ocupado em actividades profissionais, convivendo o arguido mais tempo com a companheira do pai e os filhos dela, de anterior relacionamento, facto que lamentava.

- O arguido também mantinha contacto com o pai quando este se deslocava a Portugal, porém alguns encontros ocorriam num só dia, num centro comercial, onde tomavam uma refeição e o pai comprava-lhe uns ténis de marca ou outro bem que a capacidade económica da mãe não permitia, encontros que o arguido considera não favorecerem o estreitamento da relação pai/filho.

- O pai de AA, além da actividade empresarial na área da construção civil também era jogador profissional de poker.

- Influenciado e ensinado por este, o arguido começou a participar no jogo, aos dezassete anos, primeiramente via internet e limitado pelo facto de ser menor, e posteriormente em torneios ao vivo, com e sem a presença do pai.

- A manutenção desta actividade apesar de ter proporcionado lucros a AA, foi a partir de determinada altura contrária à vontade do pai que temia que por via dela o filho se afastasse dos estudos.

- Concluído o ensino secundário, AA inscreveu-se no curso de Ciências do Desporto, escolha que não foi do agrado paterno.

- Neste contexto apresentou como alternativa a frequência de um curso de aviação comercial, hipótese face à qual o pai reagiu favoravelmente e decidiu participar na sua concretização, suportando a mensalidade de frequência no valor de 3.500€, acrescida do montante de 500€ de dinheiro de bolso.

- Durante 2010, AA avaliou negativamente a qualidade de ensino do curso de piloto aviador na escola que frequentava, optando por suspender a frequência no final desse ano, sem dar conhecimento da situação ao progenitor, que continuou a pagar as mensalidades.

- Em Janeiro de 2011, em Évora, quando o arguido conduzia a viatura onde viajava com o pai, sofreu um acidente de viação, com danos pessoais para este, que à data do falecimento ainda apresentava mobilidade condicionada, carecendo do uso de bengala.

- Posteriormente regressou ao Porto, a casa da mãe, a tempo para se candidatar à frequência do curso de engenharia informática na Universidade Fernando Pessoa, onde foi admitido, com o apoio e satisfação da progenitora. Retomou então a prática do andebol e o namoro anteriormente suspenso.

- Em Setembro iniciou a frequência escolar, tendo no mês anterior comprado uma moto.

- À data dos factos, o arguido continuava a integrar o agregado materno. Visitava com frequência os elementos do grupo familiar alargado, nomeadamente os avós e o tio paternos, que o referenciam pela amabilidade e respeito às orientações que lhe transmitiam.

- Estabelecia contacto com o pai via correio electrónico e presencial quando aquele se deslocava a Portugal, havendo um conflito recente entre ambos, resultante, nomeadamente, do abandono do curso de aviador, da venda da viatura, da aquisição da mota, e da consequente avaliação da sua postura global.

- Como utente da colectividade e praticante de andebol desde a infância, o arguido revelou-se um atleta com qualidade e muito bem notado ao nível comportamental, quer com os outros atletas, quer com treinadores e responsáveis.

- Frequentava com entusiasmo o curso universitário, nomeadamente pela participação activa como caloiro nas actividades da praxe académica e motivado para a aprendizagem.

- Em Outubro, o arguido sofreu um acidente de viação quando conduzia a moto e face aos danos que apresentou nos membros superiores, ambos foram parcialmente engessados.

- É descrito pelos amigos, professores, vizinhos e outras pessoas com quem contactava no dia-a-dia como um jovem cordato, pacífico e responsável.

- Não tem antecedentes criminais.

Com relevância para a discussão resultaram por não provados os seguintes factos:

a) O pai do arguido tinha-lhe cortado, em data não concretamente apurada mas próxima do dia 09.11.2011, a mesada que lhe entregava mensalmente.

b) O arguido planeou matar o seu pai com mais de 24 horas de antecedência sobre a prática dos factos, por motivos relacionados com dinheiro.

 c) Actuou por questões relacionadas com o facto de o seu pai ter deixado de lhe dar as quantias monetárias a que estava acostumado e a que entendia ter direito.

 d) O arguido levou consigo uma faca de cozinha de marca Jianting, com lâmina de 19,5 cm de comprimento e 4 cm de largura (cujo cabo se encontrava envolvido em fita adesiva).

 e) O pai do arguido encontrava-se adormecido quando o arguido se lhe dirigiu e lhe desferiu os descritos golpes de faca.

 f) O arguido fechou a persiana do quarto do seu pai porque ouviu barulho de pessoas no exterior da residência do seu progenitor,

 g) Ao actuar da forma descrita, o arguido fê-lo persistindo na sua intenção de matar o seu pai por mais de 24 horas

h) Ao lançar fogo à residência da vítima, o arguido previu como possível que, com a sua actuação, pudesse colocar em perigo as habitações vizinhas e a integridade física das pessoas que ali habitavam, designadamente, nas moradias confinantes com a do seu pai.

Com relevância para a discussão da causa, resultaram por não provados os seguintes factos alegados pelo arguido na contestação.

a) No dia 8.11.2011, antes de entrar na casa do seu pai, o arguido apenas escreveu no papel junto a fls. 208 os seguintes dizeres: - “saco, luvas, película aderente, luvas de mota, camisola com capuz, camisa, casaco, calças de ganga, calças de fato de treino”.

b) Aquando da referida discussão com o seu pai no interior da residência, este insultou o arguido e a sua mãe e bateu-lhe com a bengala.

c) O arguido ingeriu cerca de meia garrafa de “Uísque”, por ser a bebida preferida do pai e como forma de retaliação.

d) O álcool não lhe permitiu sair daquele estado, tendo aumentado de forma exacerbada a sua agressividade.

e) Tais circunstâncias alteram, de tal forma as condições normais de determinação do arguido, de tal sorte que foi somente nesse momento que pensou e decidiu em retirar a vida ao seu pai, escrevendo então no papel junto a fls. 208 escreveu os mais dizeres nele constantes.

f) Pelas 04:00h subiu para se deitar, tendo discutido novamente com o seu pai que se encontrava na cama a ver televisão, em discussão acompanhada de agressões verbais e físicas confrontos e provocações mútuas,

g) Foi então que desceu ao andar de baixo e foi buscar uma faca com a qual desferiu os golpes no corpo do pai que lhe tiraram a vida.

                Motivação do acórdão recorrido

                A convicção do tribunal resultou de uma análise crítica e global do conjunto da prova produzida, considerando, nomeadamente:

As declarações do arguido, o qual confessou na sua quase totalidade a prática dos factos que lhe são imputados na pronúncia, nomeadamente, o facto de ter morto o seu pai pela forma descrita na pronúncia assim como o facto de posteriormente ter espalhado líquido inflamável por toda a casa e ter ateado fogo no quarto onde ficou caído o corpo do pai depois de ter morto. Confessou ainda integralmente o seu comportamento posterior a tais factos nos precisos termos descritos na pronúncia.

                Dos factos que lhe são imputados na pronúncia o arguido apenas não confessou, antes negou, a premeditação do crime por mais de 24 horas assim como o facto de ter agido por questões relacionadas com o facto de o seu pai ter deixado de lhe dar as quantias monetárias a que estava acostumado e a que entendia ter direito.

                A este propósito o arguido afirmou ter apenas decidido matar o pai na própria noite dos factos, pelas 04:00h, o que sucedeu depois de uma discussão havida entre ambos no decurso da qual o seu pai lhe bateu com uma bengala, o que lhe criou um sentimento de exaltação e cólera porquanto que nunca considerou o pai como um verdadeiro pai, e que, depois de ter saído do quarto do pai e ter bebido whisky, sentiu essa cólera crescer e resolveu, num impulso, munir-se de uma faca que estava na cozinha e dirigir-se ao quarto do pai, onde o esfaqueou até à morte.

                Entendeu, contudo, o Tribunal que a prova produzida permitia dar por provado com a necessária certeza e segurança que o arguido havia já anteriormente decidido e planeado matar o pai, pese embora não se tenha apurado se tal premeditação se prolongou por mais de 24 horas, considerando que:

                As declarações das testemunhas, BB, companheira do falecido, e CC, tia paterna do arguido.

                Por estas testemunhas, a primeira por ser a dona da casa em que ocorreu o crime, pese embora tenha afirmado que a frequentava poucas vezes por ano já que reside em Angola, afirmou, depois de ter revelado uma menor certeza quando lhe foi exibida por fotografia, de forma peremptória e isenta de hesitação ou dúvida quando lhe foi exibida em audiência, que a faca fotografada a fls. 385 que o arguido, confessadamente, utilizou para matar o pai, não fazia parte do faqueiro nem nunca a viu lá em casa. No mesmo sentido foram as declarações da testemunha CC que afirmou que quando o seu falecido irmão se encontrava em Portugal ia frequentemente a casa deste cozinhar, e que, quando lhe foi exibida tal faca em audiência, afirmou de forma peremptória nunca ter visto tal faca lá em casa.

                Ora, vista presencialmente a faca em causa, a mesma, pese embora se trate de uma faca de cozinha, não é, devido às suas grandes dimensões - comprimento total de 34,5 e lâmina de 20 cm - facilmente confundível, razão pela qual as declarações das indicadas testemunhas se nos afiguraram sinceras e credíveis, contrariando assim de forma decisiva as declarações do arguido que afirmou não ter levado consigo mas pegado nessa faca do faqueiro da cozinha onde se encontrava.

Declarações da perita DD, Psicóloga Clínica, que elaborou o relatório de perícia psicológica junto aos autos a fls. 800 a 804, e afirmou que a actuação do arguido ao matar o pai, não se coaduna com uma resolução tomada por impulso naquele momento, mas sim com uma decisão anteriormente pensada e planeada.

Teor do escrito junto a fls. 208 que o arguido afirmou ser da sua autoria e do qual consta: “Livrar-me da carteira. Esperar que adormeça. Do it, esperar que tudo pare. Acalmar. Vestir sem fazer muito alarido, não trocar a t-shirt ou camisola. Meter na mala do carro. Arrumar a mala com roupa no carro, como se estivesse a ir para casa da velha. Desligar os telemóveis e pegar na carteira e nos telemóveis e vasculhar a mala no carro na garagem. Pegar no portátil, no i-pod, e tudo o que for valioso. Deixar os papéis no carro e pegar na mala com o valor. Estacionar num sítio isolado.”.

                Neste ponto o arguido disse ter inicialmente, na véspera do crime, apenas escrito a parte referente a roupa e outros objectos que iria levar para casa do pai, e ter escrito os demais dizeres relativos à execução do crime nos momentos que o antecederam, mais precisamente na altura em que esteve na sala a beber whisky.

                Ora da compulsa do escrito em tal folha de papel, que não apresenta rasuras, sinais ou diferenças de escrita que indiquem ter sido escrita em momentos diferentes, aquilo que se indicia é, pela uniformidade da caligrafia, aproveitamento do espaço na folha de papel e homogeneidade do seu conteúdo, ter sido escrita toda numa mesma ocasião, conclusão que é, aliás, a que melhor se coaduna com as regras da experiência comum.

                Acrescente-se ainda que quando interrogado acerca da razão porque escreveu, na véspera, em tal papel e levou para casa do pai uma luva de motard, deu a explicação de que o fez para mostrar ao pai que tinha comprado equipamento de segurança para andar de mota, explicação esta que se nos afigurou totalmente destituída de sentido.

                Assim e considerando o exposto concluiu o Tribunal que o arguido cometeu os crimes em causa de forma premeditada e de acordo com um plano previamente estabelecido que escreveu na folha junta a fls. 208, pese embora não se tenha apurado com a necessária certeza se tal premeditação foi em tempo superior a 24 horas conforme lhe é imputado na pronúncia.

                No que se refere à motivação do arguido para a prática do crime é-lhe imputado que terá agido por questões relacionadas com o facto de o seu pai ter deixado de lhe dar as quantias monetárias a que estava acostumado e a que entendia ter direito.

                Ora, pelo arguido foi negada tal motivação, dizendo que o seu pai nunca lhe cortou a mesada mensal que lhe entregava nem deixou de o apoiar financeiramente sempre que precisava. Pela testemunha BB, assim como pela testemunha, GG, mãe do arguido, foi confirmado que o falecido nunca deixou de pagar a “mesada ao filho” ou de lhe dar dinheiro que este necessitasse, assim como prova alguma foi feita em sentido contrário ao declarado por estas testemunhas.

                Neste ponto aquilo que foi apurado e dado por provado pelo Tribunal foi que o arguido agiu com o intuito de se vingar do seu pai, em resposta a sentimentos de ressentimento e animosidade pelo facto de o seu pai ter estado sempre ausente e procurar agora estabelecer consigo uma relação afectiva de pai/filho que não aceitava, considerando:

                As declarações do arguido, nas quais, pese embora tenha repetidamente afirmado não conseguir justificar “porque fez o que fez”, sempre foi relatando pormenorizadamente a sua relação com o pai desde a infância, relato do qual resultou bem claro o sentimento de ressentimento pelo facto de o pai ter estado sempre ausente, assim como o conflito interno resultante do facto de actualmente aceitar ajuda económica por parte de alguém que queria ganhar o seu afecto enquanto pai, qualidade que não lhe reconhecia, assim como não aceitava as reprimendas que este lhe dava quanto à condução da sua vida, nomeadamente quanto à compra e da mota e mudança de curso assim como quanto ao facto de continuar a jogar poker, o que o pai lhe censurava por entender que o fazia distrair dos estudos, pese embora o tenha inicialmente, uma vez que o pai era jogador profissional, incentivado a jogar.

                No mesmo sentido foram as declarações das peritas médicas que elaboraram os relatórios de psiquiatria e psicologia juntos aos autos, e que descreveram o sentimento de ressentimento e de desejo de vingança do arguido relativamente à figura paterna, sentimentos que assumiram um carácter obsessivo que terá estado na origem do crime, pese embora tenham sido unânimes em considerar inexistir, em termos médicos, qualquer perturbação ou anomalia da personalidade que tenha retirado ou por qualquer forma diminuído a capacidade do arguido de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com essa avaliação.

                A prova de ter sido o arguido o autor dos factos que lhe são imputados na pronúncia foi, para além da sua descrita confissão, que foi aceite pelo Tribunal nos termos referidos, abundante, considerando, além do mais:

O teor do relatório de autópsia de fls. 666 a 672, do qual resulta que morte da vítima ficou a dever-se a hemorragia maciça, associada a insuficiência aguda por atelectasia pulmonar, a qual, bem como as lesões traumáticas sofridas, são compatíveis com traumatismo de natureza cortoperfurante, ou seja, com a faca examinada a fls. 385 contendo vestígios hemáticos, assim como a roupa do arguido examinada a fls. 391 a 395, sendo que esta e duas outras facas, roupas ensanguentadas, os referidos escritos juntos a fls. 208 e 209, assim como outros objectos que foram retirados da casa do falecido, foram encontrados no dia seguinte aos factos no interior de uma mala - conforme reportagem fotográfica de fls. 172 a 206 - que a testemunha LL confirmou que o arguido, conforme este confessou, lhe tinha pedido para guardar na madrugada desse dia.

Certidão de óbito de fls. 220.

Reportagens fotográficas do local do crime juntas aos autos, das quais resulta que as lesões no corpo da vítima, posição e estado em que o corpo se encontrava, correspondem ao declarado pelo arguido, assim como resulta que o arguido derramou por toda a casa, e não só no quarto que ardeu, líquido inflamável, conforme foi constatado pela testemunha R… C…, agente da P.J. que foi ao local e que referiu ainda que aí se encontrava uma luva de motard e a outra do par em casa do arguido.

Fotografias juntas a fls. 105 a 107 quanto ao facto de o arguido ter escrito na parede do quarto com sangue da vítima o nome do mesmo: “JJ”.

Declarações das testemunhas:

- R… V…, agente da P.J. que foi à lavandaria, por indicação do arguido, apreender a roupa que este vestia aquando do crime e constatou que esta tinha vestígios hemáticos, tendo confirmado o teor do RDE junto a fls. 132 a 135 quanto ao percurso seguido pelo arguido depois do crime e quanto ao local onde este referiu ter abandonado alguns dos objectos.

- EE, tio do arguido, que confirmou que o arguido tinha ido a casa do pai nessa noite e que logo pela madrugada foi a casa deste e se deparou com o cadáver do irmão e a casa parcialmente ardida, e confirmou ainda que na sala se encontrava uma garrafa de whisky que “estava mais ou menos a meio”.

- GG, mãe do arguido, que declarou que logo no dia seguinte o seu filho lhe confessou o crime e confirmou ainda que o JJ se encontrava debilitado fisicamente ao nível das pernas em consequência de um acidente de viação.

- HH, taxista, que confirmou ter transportado o arguido até ao Aeroporto, assim como o teor dos fotogramas de fls. 425 a 460 reveladoras da presença do arguido no Aeroporto de Sá Carneiro, no tempo e circunstâncias indicadas na pronúncia.

- J… T… e M… S…, vizinhos da casa do falecido, e que afirmaram terem ouvido na noite do crime gritos e lamentos vindos da casa deste, nomeadamente “Porquê? Porquê?”, “meu filho”, e se aperceberam pela manhã que a persiana do quarto estava queimada.

- BB, companheira do falecido que confirmou que o mesmo se encontrava debilitado ao nível das pernas, necessitando de uma bengala para caminhar, tendo-se deslocado a Portugal nessa data para tratamento médico.

                Deu-se por provado que apesar de ter consumido álcool, o arguido actuou sempre livre e com plena consciência dos seus actos, considerando não só as suas declarações, nas quais afirmou ter estado sempre consciente do que estava a fazer, sendo que o consumo de whisky terá até contribuído para “ganhar coragem” para a prática do crime, assim como o declarado pelas referidas peritas que concluíram pela sua total imputabilidade.

Perante tudo o exposto foi dada por provada, no essencial, a versão dos factos descrita na pronúncia, com excepção da motivação do agente e tempo de premeditação pelas razões já referidas.

Não se deu por provado que o arguido tenha previsto que com a sua actuação pudesse colocar em perigo de incêndio as casas vizinhas e seus habitantes, já que nenhuma prova foi feita no sentido de que tais casas tenham corrido concreto perigo de incêndio. Todavia e no que respeita à casa do falecido cujo valor, de acordo com as regras da experiencia comum, sempre ascenderia a mais 100.000 euros, resulta bem claro, desde logo do teor das fotografias de fls. 97 a 102 e 105 a 114 das quais se constata que o mobiliário da habitação foi consumido pelo fogo e que arguido derramou líquido inflamável - conforme se concluiu no exame pericial junto a fls. 586 a 588 - por toda a casa, que a mesma correu efectivo perigo de ser consumida pelo fogo ateado pelo arguido, perigo este que o arguido seguramente previu e quis causar, porquanto que apesar de ter dito que apenas pretendia atear fogo no quarto, não se compreenderia qual a razão pela qual derramou líquido inflamável pelo resto da casa.

                Quanto ao demais comportamento do arguido depois da prática do crime e sua motivação, foram aceites as suas declarações no sentido de que agiu com o intuito de simular um assalto à casa do pai e destruir, pelo fogo, vestígios que o ligassem à prática do crime.

                Não se deu por provado que o arguido tenha querido destruir o corpo do seu pai para dessa forma dificultar a sua identificação, não só porque o arguido negou tal intenção, mas sobretudo porque faz pouco sentido que, residindo o falecido nessa habitação, a destruição do corpo pelo fogo dificultasse a sua identificação. Todavia o arguido não poderia, seguramente, deixar de prever a possibilidade de destruição pelo fogo do corpo do seu pai como resultado do facto de ter ateado fogo ao quarto em que o cadáver se encontrava, tendo-se conformado com tal resultado, o que foi assim dado por provado.

                Por falta de prova nesse sentido e porque tais factos foram negados pelo arguido, foi dado por não provado - que o arguido tenha levado consigo a faca de cozinha de marca Jianting, com lâmina de 19,5 cm de comprimento e 4 cm de largura, que o arguido disse apenas ter utilizado na sua residência para tirar o gesso e que não foi, aliás, utilizada na execução do crime; - que o pai do arguido estivesse adormecido quando o arguido se lhe dirigiu e lhe desferiu os descritos golpes de faca e que o arguido tenha fechado a persiana do quarto do seu pai porque ouviu barulho de pessoas no exterior da residência do seu progenitor e que o arguido tenha retirado o gesso do braço na casa do pai, na medida em que declarou tê-lo feito já depois do crime na casa da mãe.

                Quanto às demais condições pessoais, comportamento e personalidade do arguido até ao momento dos factos, foram considerados os depoimentos das testemunhas de defesa inquiridas, que declaram ser amigos, vizinhos ou professores do arguido, o qual revelaram conhecer de forma próxima, tendo-o todos descrito como um jovem cordial, pacífico, amigo, desportista, boa pessoa e bom estudante que nada fazia prever que pudesse cometer semelhante crime.

                Foi igualmente considerado o teor do relatório social junto aos autos cujo teor se mostra concordante com o afirmado pelas ditas testemunhas quanto às condições de vida do arguido e com o dito pelo arguido na contestação quanto à relação do arguido com o seu pai e nessa parte foi aceite pelo Tribunal, que o não aceitou na parte em que aí é referido que o arguido expressa pensamentos potencialmente legitimadores de comportamentos agressivos e violentos face a determinadas vítimas, porquanto que tal conclusão não foi de forma alguma explicada em audiência pelo técnico de reinserção social seu relator, o qual, para além de generalidades e abstracções que relatou, não soube explicar qual a razão para ter chegado a uma tal conclusão relativa à personalidade do arguido.

                Neste ponto foram ainda atendidas as declarações da perita DD, psicóloga, que se pronunciou no sentido de que a agressividade e perigosidade do arguido se dirigiam unicamente à pessoa do seu pai, e da inexistência de qualquer perigo da prática de outros crimes por parte do arguido.

                Relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido, considerou-se o teor do respectivo certificado de registo criminal junto aos autos.

Analisemos agora as questões suscitadas.

Violação do princípio in dubio pro reo

O princípio in dubio pro reo estabelece, como é sabido, que, verificando-se uma dúvida razoável quanto aos factos, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido. Nas palavras de Figueiredo Dias, “um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo.[1]

Sendo um princípio geral do processo penal, a sua violação importa uma questão de direito, e daí que o Supremo Tribunal de Justiça tenha competência para apreciar essa questão.[2] Contudo, apenas poderá pronunciar-se pela sua violação quando, com base nos elementos constantes dos autos, nomeadamente a matéria de facto e sua fundamentação, e guiando-se pelas regras da experiência comum, for visível e inequívoco que, perante dúvidas razoáveis, o tribunal decidiu contra o arguido.

Deve precisar-se ainda que o que importa considerar são as dúvidas com que o tribunal se defrontou efetivamente, e que decidiu em determinado sentido, mas já não evidentemente as “dúvidas” que as partes entendem que o tribunal deveria ter tido… Poderemos, nessa situação, estar perante outros vícios da matéria de facto, mas nunca perante uma violação do princípio in dubio pro reo.

Analisados os argumentos do recorrente que sustentam a arguida violação do princípio in dubio pro reo (ponto iv. das conclusões), ressalta à evidência a inexistência de quaisquer dúvidas sobre a prova que tenham sido decididas contra o recorrente; por outras palavras, não se deteta qualquer situação em que o tribunal se tivesse visto confrontado com dúvidas quanto a determinados factos e que as tivesse resolvido contra o arguido.

Pelo contrário, a fundamentação dos factos escalpeliza com pormenor e desenvolvimento as provas produzidas, o seu valor e coerência, a credibilidade e sustentação de cada uma face à globalidade da prova.

O que o recorrente afinal longamente invoca e alega são as “dúvidas” que, na sua perspetiva, o tribunal deveria ter tido, as “dúvidas” que, segundo o seu ponto de vista, as provas suscitam e que ele queria ver resolvidas em sentido diferente. Ou seja, sob a invocação de violação do princípio in dubio pro reo, o recorrente procede afinal a uma contestação da matéria de facto, apresentando uma interpretação e valoração diferentes das provas produzidas. No fundo, o recorrente mais não faz do que impugnar os factos, sob a capa de arguição de violação daquele princípio.

Carece, pois, manifestamente de fundamento o recurso neste ponto.

Qualificação do crime de homicídio (al. a) do nº 2 do art. 132º do CP)

Contesta o recorrente a qualificação do crime de homicídio, quer pela al. a), quer pela al. j), do nº 2 do art. 132º do CP.

Afirma ele que a verificação de um dos exemplos-padrão do nº 2 do citado art. 132º não importa o preenchimento automático do crime de homicídio qualificado, sendo necessário que em concreto se verifique uma especial perversidade ou censurabilidade do agente.

Não se contestam estas considerações. Na verdade, o crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132º do CP, constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131º do CP, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, cuja verificação determinaria a realização do tipo, como acontece no furto qualificado, mas antes em função de uma culpa agravada, de uma “especial censurabilidade ou perversidade” da conduta (cláusula geral enunciada no nº 1), indiciada pelas circunstâncias indicadas no nº 2.

Estas circunstâncias constituem “exemplos-padrão”, ou seja, indícios da culpa agravada referida no nº 1, que constitui o elemento típico do homicídio qualificado (tipo de culpa). Ainda quando essas circunstâncias envolvam eventualmente uma maior ilicitude do facto, não é esse acréscimo de ilicitude que determinará a qualificação do crime. Só se as ditas circunstâncias revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta (uma culpa especialmente intensa) se verificará a qualificação.

Assim, como meros indícios, as circunstâncias do nº 2 têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do nº 1. Da interação entre os nºs 1 e 2 do art. 132º pode, pois, resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131º. Como pode também, precisamente pelo seu caráter meramente indiciário, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer dos exemplos-padrão.

Esta interação entre os nºs 1 e 2 do art. 132º, por um lado, permite uma maior flexibilidade e plasticidade no tratamento dos casos concretos, na realização da justiça do caso, e, por outro, assegura uma delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos para que não seja lesado o princípio da legalidade.

Esta é, em traços muito sintéticos, a posição da doutrina maioritária, seguida correntemente pela jurisprudência, nomeadamente deste Supremo Tribunal.[3]

Argumenta o recorrente que a existência da relação biológica entre o recorrente e a vítima não é suficiente para qualificar o crime, à luz da al. a) do nº 2 do art. 132º. E acrescenta que os laços familiares entre eles existentes não se equiparavam a uma relação pai/filho, pelo défice de afetividade entre ambos.

A este propósito, importa atentar nos nºs 1 a 15, 66 e 67 da matéria de facto. Aí se refere a separação, aos 3 anos de idade, entre a mãe e o pai do arguido, a perda quase total de contactos entre o arguido e o pai, contactos limitados a telefonemas esporádicos, até aos 11 anos de idade do arguido, tendo a partir daí havido uma maior aproximação por parte do pai, que resolveu estar mais presente na vida do filho, passando a dar-lhe uma pensão mensal (500,00 €), a interessar-se pelos seus estudos, que financiou (como o curso de piloto-aviador), a oferecer-lhe frequentemente bens materiais de elevado valor, como foi o caso de um automóvel, procurando assim ganhar a confiança e a afetividade do filho. Em contrapartida, ou em complemento, passou também a dar-lhe conselhos e recomendações e a dirigir-lhe censuras contra os comportamentos do filho que o pai considerava errados, como a desistência do curso de aviador, a venda do automóvel, e sobretudo a dedicação ao jogo do poker a dinheiro na internet.

Do lado do arguido, essas tentativas de aproximação por parte do pai não tiveram recetividade. Pelo contrário, estimularam progressivamente um forte ressentimento da parte do arguido para com o pai, que se converteu num desejo de vingança pelo abandono a que tinha sido relegado na infância, sentimento que se agudizou com as censuras que o pai lhe dirigia pelo seu comportamento (ver especialmente o nº 57 da matéria de facto).

Mais se provou que o arguido nunca viu na vítima, pai biológico, o seu pai afetivo, figura essa preenchida por um tio materno.

Perante esta situação de facto, estará verificada a agravante da al. a) do nº 2 do art. 132º, que diz que é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade o facto de o agente ser descendente da vítima?

A razão de ser da agravação residirá numa “maior energia criminosa, uma vez que o agente venceu as contra-motivações éticas determinadas pelas relações de família que naturalmente se impõem entre pai e filho”[4]; ou, por outras palavras, no facto de uma relação de maternidade ou paternidade constituir um “fator específico de refreamento, que não existiria se a potencial vítima fosse outra qualquer pessoa”.[5]

Contudo, a verificação da relação biológica de filiação por parte do arguido relativamente à vítima não basta para integrar a qualificativa. Na al. a), como nas restantes alíneas do nº 2 do art. 132º, é preciso que o tipo de culpa agravado se verifique, pois o seu fundamento não é um maior desvalor do ilícito, mas sim uma culpa agravada.[6]

Mas verifica-se esse agravamento no caso dos autos?

O recorrente, na sua argumentação para desqualificar o homicídio, afirma insistentemente a inexistência de uma relação de afetividade, pelo menos da sua parte, em relação à vítima. Esta não seria o seu pai afetivo, mas apenas o pai biológico.

Efetivamente, da parte do arguido, faltava de todo o afeto na relação com o pai, mas já não do pai para com o filho, pois é notória a tentativa séria e insistente de aproximação e de estabelecimento de uma relação parental normal por parte do pai nos últimos anos.

A essa aproximação reagiu o arguido negativamente. Tão negativamente que alimentou progressivamente um forte ressentimento contra o pai, que evoluiu para um desejo de vingança, sentimentos esses que motivaram o crime. O arguido, ao matar a vítima, fê-lo motivado pelo fracasso, do seu ponto de vista, do desempenho por parte daquela do papel de pai. Por isso, não foi uma pessoa qualquer que o arguido matou, foi o pai, por não ter cumprido os seus deveres para com o filho. Foi por a vítima ser seu pai, embora um pai falhado, na sua maneira de ver, que o arguido a matou. Daí a especial censurabilidade da conduta.

Tanto basta para afirmar, sem hesitação, a verificação da al. a) do nº 2 o art. 132º do CP.

Qualificação do crime de homicídio (al. j) do nº 2 do art. 132º do CP)

Contesta igualmente o recorrente a qualificação do homicídio por meio da al. j) do nº 2 do art. 132º, que agrava o crime quando cometido com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregues, ou ainda quando há persistência na intenção de matar por mais de 24 horas

Estas situações reconduzem-se afinal a manifestações do conceito tradicional de premeditação, que normalmente revela uma vontade mais intensa e persistente de praticar o crime.

A frieza de ânimo consiste numa atuação calculada ou refletida do agente, revelando sangue frio na execução e indiferença perante as consequências do ato.

A reflexão sobre os meios empregues consiste na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de ação para o executar.

A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas revelará premeditação na medida em que se trata de tempo considerável para o agente poder ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequências do ato.[7]

Em todos estes casos, o agente forma a sua vontade de forma calculada e refletida, ou nela persiste por tempo suficiente para vencer emoções imponderadas, revelando, assim, indiciariamente, especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime.

Mas só indiciariamente, porque, tal como acontece com as demais circunstâncias do nº 2, esse efeito indiciário pode ser ilidido por outras circunstância do caso.[8]

Analisemos agora o caso dos autos.

Atentemos em especial nos nºs 16 e 19 a 25 da matéria de facto. Deles resulta que o arguido planeou com minúcia e precisão a forma de matar o pai, chegando a elaborar um projeto escrito sobre a execução do crime, objetos a levar para o local, cuidados a adotar após a sua consumação, nomeadamente para eliminar os vestígios da sua atuação (documento junto aos autos a fls. 208 e reproduzido no nº 20 da matéria de facto). E foi segundo esse plano que o arguido agiu.

A forma como executou o crime (nºs 26 a 35) mostra também uma vontade intensa e indomável de matar a vítima. Na verdade, desferiu múltiplos golpes (28 ao todo) no corpo do pai, que se encontrava deitado, mostrando-se indiferente não só ao estado de especial debilidade física e de indefesa deste, como também e sobretudo aos gritos, lamentos e apelos de compaixão que ele lhe fez, revelando assim o arguido uma determinação criminosa e um sangue-frio que impressionam.

Não menos impressionante é o facto relatado no nº 38: após a execução do crime, o arguido molhou um dedo no sangue do pai e com ele escreveu na parede do quarto o nome deste, como que obedecendo a um qualquer ritual macabro de vingança, atitude esta reveladora de uma especial perversidade.

Por fim, realizou metodicamente o plano que delineara com o fim de ficar impune do crime: apoderou-se de bens e valores existentes na casa da vítima, assim pretendendo simular um assalto; pegou fogo à casa, com o fim de eliminar os vestígios da sua atuação (nºs 40-44).

O percurso seguido até casa e o procedimento que adotou (nºs 48-50) revelam também uma reflexão antecipada sobre a forma de escapar e disfarçar a sua intervenção nos factos.

Todos estes comportamentos sucessivos revelam, sem lugar para quaisquer dúvidas, que o crime foi planeado, premeditado, e executado com incontestável sangue-frio.

Nenhuma circunstância permite mitigar, muito menos ilidir, a indiciária agravação prevista na al. j) do nº 2 do art. 132º do CP.

Improcedem, pois, os argumentos do recorrente.

Condenação pelos crimes de profanação de cadáver e de incêndio

Impugna o recorrente, de seguida, a sua condenação pelos crimes referidos, alegando, relativamente ao primeiro, a ocorrência da nulidade dos arts. 358º, 359º e 379º, nº 1, do CPP, e ainda o vício de insuficiência da matéria de facto (art. 410º, nº 2, a), do CPP); e, quanto ao segundo, o mesmo vício da matéria de facto.

Acontece, porém, que a decisão recorrida não é impugnável nesta parte. Na verdade, o arguido foi condenado, em 1ª instância, pelo crime de incêndio na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, e pelo crime de profanação de cadáver na pena de 6 meses de prisão, penas estas que foram confirmadas pela Relação.

Sendo as penas inferiores a 8 anos de prisão e tendo havido confirmação da condenação, a decisão recorrida é insuscetível de recurso, nessa parte, por força da al. f) do nº 1 do art. 400º do CPP, ficando prejudicado o conhecimento de quaisquer nulidades ou vícios eventualmente praticados no âmbito do conhecimento desses crimes.

Determinação da pena do homicídio: dupla valoração das mesmas circunstâncias

Considera, por fim, o arguido que foi violado o princípio da proibição da dupla valoração, estabelecido no nº 2 do art. 72º do CP, porque, em seu entender, na determinação da medida da pena (do homicídio, presume-se) foram tecidas considerações acerca das circunstâncias que relevaram para a qualificação do crime.

O citado nº 2 do art. 72º do CP exclui a valoração, na determinação da pena, das circunstâncias que fazem parte do tipo, impedindo assim que a mesma circunstância seja valorada duas vezes: como elemento do tipo de ilícito; e subsequentemente como circunstância agravante na determinação da medida concreta da pena.

Aplicar-se-á esta regra também aos “exemplos-padrão” do art. 132º, nº 2, do CP, que não são elementos do tipo de ilícito, mas sim do tipo de culpa?

A resposta deve ser afirmativa, dada a similitude entre uns e outros.[9] E, acompanhando Figueiredo Dias, pode ainda dizer-se que “não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto; e portanto não apenas os elementos do tipo-de-ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena.”[10]

Contudo, como alerta o mesmo autor, “não obsta em nada, porém, a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso”.[11]

Por outras palavras, não haverá dupla valoração quando as circunstâncias que preenchem um elemento típico ultrapassam, em razão da intensidade ou dos efeitos, a normalidade, adquirindo um caráter superlativo. Nesse caso, podem tais circunstâncias ser valoradas em sede de medida da pena, sem que tal importe a violação da regra da proibição da dupla valoração vertida no nº 2 do art. 71º do CP.

Volvendo ao caso dos autos, o acórdão da 1ª instância fundamentou desta forma a medida da pena do homicídio:

Quanto ao crime de homicídio qualificado, a moldura atenuada aplicável é de pena de prisão de dois anos e 4 meses a 16 anos e oito meses.

Ainda dentro da qualificativa de especial censurabilidade e perversidade exigida pela qualificação do crime de homicídio qualificado pelo qual vai condenado, quer o grau de ilicitude dos factos, quer a culpa do agente manifestada no facto, quer as necessidades de prevenção, são extremamente graves e altas a exigirem, todas elas, a aplicação de pena próxima do limite máximo da moldura abstracta.

No que se refere ao grau de ilicitude do facto, ou seja o grau de violação e consequente necessidade de tutela dos bens jurídicos cuja protecção é estabelecida pelo tipo-legal de crime, haverá a considerar a agravação resultante de:

- O instrumento utilizado pelo arguido para consumar o crime, faca de cozinha com 20 centímetros de lâmina.

- O modo de execução do crime, traduzido no desferir de 28 facadas no corpo de pessoa que se encontrava deitada e debilitada na sua capacidade de locomoção, e que, tudo o indica, foi totalmente colhida de surpresa pela brutalidade da agressão.

- O dolo directo de extrema intensidade, resultante da persistência na resolução de matar.

Pela via da culpa e enquanto grau de censura ao agente pelo seu facto e grau exigibilidade de um agir diferente, conforme supra se já referiu em termos de qualificação jurídica da conduta, a culpa do agente no facto é extremamente desvaliosa e censurável, havendo a considerar, para além da circunstância de o crime ter sido cometido contra pessoa do pai e que foi já considerada na qualificativa do homicídio, a personalidade especialmente desvaliosa revelada pelo arguido, que planeou ao pormenor a sua execução, assim como a forma de se eximir da responsabilidade do seu acto, nunca hesitando no seu propósito criminoso apesar dos pedidos e lamentos da vítima.

Mesmo quanto a motivação para o agir criminoso deve merecer um especial repúdio, porquanto que, apesar do ressentimento pelo abandono na infância, à data dos factos o arguido era já pessoa adulta que foi aceitado sem reservas a aproximação e ajuda financeira que o pai lhe dava, revelando assim uma personalidade altamente perversa ao decidir o conflito interior de ressentimento e egocentrismo na aceitação de tal ajuda, tirando a vida ao seu pai sem outra causa justificativa que satisfazer o desejo de vingança que foi acumulando.

Em termos de prevenção geral de integração haverá que considerar que este tipo de crimes, homicídio executado com extrema violência, é particularmente repudiado e causa especial alarme sobretudo pelo justificado sentimento de insegurança que produz, sendo assim de considerar particularmente altas as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada.

A favor do arguido nada mais se alcança que o seu bom comportamento até à data dos factos, a sua reinserção social e arrependimento, factores de prevenção especial que foram, todavia, já atendidas na decisão de aplicação da atenuação especial da pena.

Mesmo no que se refere à confissão a mesma pouca, ou nenhuma, relevância assumiu para a descoberta da verdade tão clara e abundante foi a prova produzida, afigurando-se, inclusive, que o arguido pretendeu ainda aligeirar a gravidade da sua actuação ao negar o planeamento do crime, conforme veio a ser apurado.

Tudo ponderado, perante a extrema gravidade da ilicitude dos factos e a não menos extrema censurabilidade e perversidade da conduta do arguido e exigência das necessidades de prevenção, entendemos como equitativo e adequado a assegurar as referidas finalidades da punição dentro da moldura especialmente atenuada, condenar o arguido na pena de 16 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado.

Esta fundamentação, que foi inteiramente ratificada pela Relação do Porto (fls. 1619-1620), revela como as circunstâncias que qualificaram o crime de homicídio foram consideradas na medida da pena somente enquanto expressão extremamente desvaliosa e censurável da personalidade do arguido. Foi a extrema perversidade e censurabilidade da conduta, o seu caráter excessivo, que o tribunal (justamente) valorou. Essa ponderação não viola, pelas razões atrás apontadas, a regra da proibição da dupla valoração.

Por fim, haverá que tratar da medida da pena propriamente dita, questão que não é expressamente colocada pelo recorrente, mas é suscitada pelo sr. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, que propõe a redução da pena do homicídio para 14 anos de prisão, e da pena conjunta para 15 anos de prisão.

Argumenta ele fundamentalmente com o facto de a pena do homicídio (16 anos de prisão) ter sido fixada muito próximo do limite máximo (16 anos e 8 meses), havendo algumas circunstâncias atenuantes a relevar, como a ausência de antecedentes criminais, a integração social, a relação conflitual com a vítima, e o carácter conatural dos fatores relativos ao modo de execução do crime.

Discorda-se, porém, desta análise. A ausência de antecedentes criminais é de valor quase nulo, atenta a idade do arguido (20 anos à data do crime). Por sua vez, a integração social também não tem relevância neste tipo de criminalidade. Muito menos a conflitualidade da relação com o pai, pois este se esforçava precisamente por melhorá-la e construir uma relação normal entre ambos.

Discorda-se frontalmente de que o modo de execução do crime seja de alguma forma “conatural” neste tipo de crime. Na verdade, pela arma utilizada (uma faca com 20 cm de lâmina), pela brutalidade da agressão (28 golpes), pela indiferença perante a pessoa da vítima, indefesa e apelando à clemência do agressor, abstraindo de outros fatores intensamente desfavoráveis ao arguido, é notório e incontestável que o modo de execução foi claramente excessivo.

A tudo isto acrescem naturalmente as exigências da prevenção geral, muito intensas neste tipo de criminalidade, e que não vale a pena enfatizar, bastando lembrar o repúdio generalizado que suscita.

Recorda-se ainda que o arguido já beneficiou da atenuação especial resultante da aplicação do regime especial para jovens, em homenagem aos interesses da ressocialização.

Improcedem, pois, os argumentos do recorrente, assim como as razões invocadas pelo sr. Procurador-Geral Adjunto, não havendo qualquer razão para censurar o acórdão recorrido.

III. Decisão

Com base no exposto, decide-se:

a) Rejeitar o recurso na parte em que invoca omissão de pronúncia do acórdão recorrido e a verificação dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, e impugna a condenação pelos crimes de profanação de cadáver e de incêndio;

b) Negar provimento ao recurso na parte restante.

Vai o recorrente condenado em 10 (dez) UC de taxa de justiça.

Lisboa, 13 de novembro de 2013
Maia Costa (relator) **
Pires da Graça



[1] Direito Processual Penal (1988-1989), p. 145.
[2] Figueiredo Dias, ob. cit., p. 149.
[3] Assim, desde logo Eduardo Correia, “Atas da Comissão Revisora do Código Penal”, p. 22; Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pp. 25-28; Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pp. 125-127 (em síntese); e Fernando Silva, Direito Penal Especial, Os Crimes contra as Pessoas, 3ª ed., pp. 53-61. No sentido de se tratar de um tipo de ilícito, Fernanda Palma, “O homicídio qualificado no novo Código Penal Português”, Revista do Ministério Público, nº 15, pp. 59-74; Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, Os Homicídios, pp. 39-67; Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, pp. 11-20, e, por último, João Curado Neves, “Indícios de culpa ou tipos de ilícito?”, Liber Discipulorum para Figueiredo Dias, pp. 721-757.
Na jurisprudência, ver, a título exemplificativo, no sentido da doutrina maioritária, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 8.2.1984 (BMJ 334, p. 258), um dos primeiros a perfilhar esta orientação, e, por último, os acórdãos de 27.5.2010, proc. nº 11/04.7GCABT.C1.S1, de 31.1.2012 (Cons. Pires da Graça), proc. nº 894/09.4PBBRR.S1 (do presente relator), e de 18.10.2012, proc. nº 735/10.0JACBR.C1.S1 (Cons. Souto de Moura).
[4] Fernando Silva, ob. cit., p. 69.
[5] Acórdão deste Supremo Tribunal de 18.10.2012, já citado na nota 3.
[6] Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2ª ed., pp. 29-30.
[7] Sobre esta matéria, ver Figueiredo Dias, loc. cit. pp. 39-40; e Fernando Silva, ob. cit., pp. 83-84.
[8] Incisivamente sobre este ponto, reportando-se a esta alínea, Figueiredo Dias, loc. cit., p. 40.
Ver também os acórdãos deste Supremo Tribunal de 13.2 2013, proc. nº 707/10.4PCRGR.L1.S1 (Cons. Pires da Graça), e de 8.3.2012, proc. nº 131/10.9JAFAR.E1.S1 (Cons. Souto de Moura).
[9] Assim, Teresa Serra, ob. cit., p. 108.
[10] Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 234.
[11] Ob. cit., p. 235.