Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RUI MACHADO E MOURA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE CONTRATUAL CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA MORA INCUMPRIMENTO DEFINITIVO PERDA DE INTERESSE DO CREDOR RECUSA DE CUMPRIMENTO INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA RESOLUÇÃO DO CONTRATO INDEMNIZAÇÃO SINAL DIREITO DE RETENÇÃO PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE DA CONFISSÃO VALOR PROBATÓRIO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVA PLENA | ||
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Data do Acordão: | 02/27/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
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Sumário : | I - As confissões qualificadas e complexas convocam a aplicação do regime da indivisibilidade da confissão, ou seja, a confissão só pode ser aceite ou rejeitada na sua globalidade (cfr. art.360º do C.C.); II - Por isso, a declaração de reconhecimento de factos desfavoráveis, quando feita sem os requisitos exigidos para que tenha eficácia probatória plena, apenas pode valer como meio de prova sujeito à regra da livre apreciação do julgador (cfr. arts.361º do C.C. e 466º, nº 3, do C.P.C.), não sendo, tal prova, sindicável pelo STJ (cfr. art.682º nº2 do C.P.C.). III - Em regra, o direito de resolução de um contrato implica a verificação de incumprimento definitivo, valendo este princípio também para a resolução do contrato-promessa bilateral. IV - A jurisprudência do STJ tem considerado que, salvo se da interpretação da vontade negocial resultar diversamente, o não cumprimento da obrigação de contratar constitui o devedor em simples mora, à qual não se aplica, sem mais, o regime da perda/exigência do sinal em dobro previsto no art. 442.º, n.º 2, do CC. V - Mas, para que tal regime seja aplicável é necessário: (i) que exista mora nos termos do art. 805º do CC; e (ii) que esta se transforme em incumprimento definitivo por uma das vias do art. 808.º do CC: perda do interesse do credor apreciada objectivamente; decurso de um prazo adicional razoável fixado pelo credor (interpelação admonitória). VI - Além disso, a doutrina e a jurisprudência também admitem a relevância de uma declaração antecipada de não cumprimento (expressa ou tácita) por parte do devedor. VII - No caso em apreço, o réu desinteressou-se de fazer as obras que tornavam o imóvel habitável e desvinculou-se das obrigações decorrentes do contrato-promessa, nomeadamente a obrigação de obter a respectiva licença de utilização do imóvel, nada tendo feito para a sua obtenção até à data em que a autora lhe comunicou que perdia o interesse definitivo na aquisição da moradia, o que levou a que se tornasse impossível, em termos definitivos, o cumprimento do contrato-promessa aqui em análise. VIII - Assim sendo, esta actuação da autora converteu a mora do réu em incumprimento definitivo e, por isso, impõe-se fazer operar nos presentes autos o mecanismo do sinal, previsto no nº 2 do art. 442.º do C.C., uma vez que os fundamentos acima referidos, determinantes da perda do interesse da autora, são elementos essenciais do contrato-promessa celebrado entre as partes e como tal, face ao incumprimento definitivo de tal contrato pelo réu, deve o mesmo ser condenado na entrega do sinal em dobro à autora, conforme livremente estabelecido na cláusula 7ª, nº1, do contrato-promessa entre eles celebrado. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Nos presentes autos de acção comum intentada por AA contra BB foi proferida sentença na qual se decidiu o seguinte: a) Declarar resolvido o Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado a 20-4-2018 pelo réu BB e a autora AA; b) Condenar o réu BB a pagar à autora AA o dobro do valor que recebeu a título de sinal no âmbito do aludido Contrato Promessa de Compra e Venda, ou seja a quantia de € 118.000,00 (Cento e dezoito mil euros), acrescida dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos, desde o dia 25-5-2018 e até integral e efectivo pagamento; c) Condenar o réu BB a entregar à autora AA todos os seus pertences que se encontram no interior da casa objecto do Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado a 20-4-2018, cuja descrição consta da “Lista de Bens” acima indicada na parte final do ponto K. dos factos dados como provados, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido; d) Reconhecer à autora o direito de retenção sobre a casa objecto do Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado a 20-4-2018 (prédio urbano descrito na CRP de ... sob o n.º ..84/União das Freguesias de ...), para garantia do crédito acima expresso em b) (artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil); e) Absolver na íntegra a reconvinda AA dos dois pedidos reconvencionais formulados pelo reconvinte BB; f) não condenar o réu/reconvinte BB como litigante de má-fé. Inconformado com tal decisão dela apelou o réu para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão datado de 22/10/2024, decidiu julgar parcialmente procedente o recurso, revogando a decisão recorrida nos segmentos das alíneas b) e d), que foram substituídos pelos seguintes: b) Condena-se o réu BB a pagar à autora AA o valor que recebeu a título de sinal no âmbito do aludido Contrato Promessa de Compra e Venda, ou seja, a quantia de € 59.000,00 (cinquenta e nove mil euros), acrescida dos respetivos juros de mora vencidos e vincendos, desde 19 de maio de 2021 até integral e efetivo pagamento. d) Julga-se improcedente o pedido de reconhecimento do direito de retenção sobre a casa objeto do Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado a 20/04/2018 (prédio urbano descrito na CRP de ... sob o n.º ..84/União das Freguesias de ...). Veio agora a Autora, mostrando-se inconformada, interpor recurso de revista para o STJ, pedindo a revogação do acórdão da Relação supra referido e a repristinação da sentença proferida na 1ª instância. Ora, tendo em conta o valor da causa e da sucumbência, a legitimidade da recorrente, a natureza e o conteúdo do acórdão recorrido e, bem assim, a tempestividade da impugnação, conclui-se pela admissibilidade do recurso de revista apresentado, nos termos do disposto nos arts. 629.º nº1, 631.º nº1, 671.º nº1 e 674.º nº 1 alínea a), todos do C.P.C. Para o efeito apresentou a Autora as suas alegações de recurso, terminando as mesmas com as seguintes conclusões: 1.ª - As declarações de parte do Réu no que respeita à confissão da operada mudança das fechaduras têm que ser analisadas conjuntamente com o teor da sua carta de 14/04/2020, na qual o Réu informa a Autora que “Já foram realizadas todas as reparações necessárias”. 2.ª - O Tribunal da Relação, salvo o devido respeito por melhor opinião, não pode concluir, como concluiu, que: “o circunstancialismo não permite deduzir o intuito de não cumprir o contrato, antes pressupõe que o R. pretendia realizar as obras para que pudesse obter a licença de utilização...”, desde logo, porque pela lógica e experiência da vida, ninguém pode querer realizar obras e, ao mesmo tempo, dizer que iá foram todas realizadas! 3.ª - É verdade que nos termos do artigo 360.º do CC a parte que se queira aproveitar da declaração confessória tem também de aceitar como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, “salvo se provar a sua inexactidão”. 4.ª - A Autora provou a inexatidão dos outros factos ou circunstâncias invocadas pelo Réu através da manifesta contradição entre o teor da carta do Réu de 14/04/2021 e as suas declarações de parte, no que respeita à sua intenção de fazer as obras. 5.ª - Articulando o teor da carta de 14/04/2021, de que “Já foram efetuadas todas as reparações necessárias” com as declarações de parte do Réu, prestadas posteriormente, em sede de julgamento, em que diz “aquilo é meu (...) fui lá ver e tomei conta da casa, levei logo naquele dia pessoas para mudarem as fechaduras...” com as demais circunstâncias do caso, nomeadamente a tradição da moradia a favor da Autora, a reunião havida em janeiro de 2020, nas instalações da imobiliária E.., e a resposta, então, dada pelo Réu: “se a autora queria dinheiro, fosse para Tribunal” e ainda o resultado da vistoria à moradia, temos por seguro que a verdadeira intenção do Réu nunca foi a de fazer as obras, ao contrário do que deduziu o Acórdão da Relação aqui sindicado mas sim a de se apossar da moradia o que contraria a narrativa do Réu e comprova a inexatidão da explicação do Réu dada para justiçar a mudança das fechaduras. 6.ª - A Relação ao não ampliar a matéria de facto, como requerido pela Autora, isto é, “De que no mês de abril de 2021, o Réu entrou na habitação referida em C) e substituiu as Fechaduras”, acabou por fazer uma errada interpretação e aplicação dos artigos 352.º e 360.º ambos do Código Civil. 7.ª - A Autora quando celebrou o contrato-promessa pretendia adquirir a moradia para nela habitar com a sua mãe (finalidade de uso), mas estando ela impedida de o fazer, por falta de condições de habitabilidade, a ponto de ter que sair e procurar uma alternativa habitacional, não poderá deixar-se de considerar grave toda a inexecução do cumprimento ao ponto de impossibilitar o credor (Autora) de a aplicar ao uso que tinha em vista e àquele que é, aliás, a aptidão para um uso normal da moradia. 8.ª - O facto da Autora, Recorrente, ter de deixar de viver na moradia em Abril de 2020, por falta de condições de habitabilidade (Alíneas N); F); O); P); Q); R) e S); dos Factos Provados) configura uma situação em que a prestação deixa de satisfazer o interesse do credor e leva a que este perca o interesse na obrigação. 9.ª - A perca de interesse do credor tem que ser apreciada objetivamente segundo “o critério da razoabilidade própria do comum das pessoas” e “não numa simples mudança de vontade ou capricho do credor”. Veja-se, entre outros, o Prof. Menezes Cordeiro (in Estudos de Direito Civil, Vol. l, pág. 55 e o Prof. Pedro Soares Martinez (In Cumprimento Defeituoso Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, pág. 333 e 334). Ou como diz o douto Acórdão do STJ, proferido no processo 1350/14.4TBLRA.D.C1, de 27/02/2018, esse interesse do credor (fins/motivos), susceptíveis de relevar em termo de resolução “serão sempre determinados e perspectivados objetivamente: objetividade que significa que o interesse afetado pelo incumprimento há-de ser apreciado por qualquer outra pessoa (designadamente pelo Juiz) e não segundo o bel-prazer, o capricho ou o juízo arbitrário do credor.” Sublinhado nosso. Concluindo este Acórdão que “É justamente tal situação de relevância do fim-motivo negocial para efeito de inexecução do negócio, que se encontra prevista no artigo 808º, nº 1, primeira parte, do CC, quando diz que se considera para todos os efeitos não cumprida a obrigação sempre que, em consequência da mora, o credor perder o interesse na obrigação.” Sublinhado nosso. 10.ª - No caso dos autos, estamos perante uma situação em que a prestação deixa de satisfazer o interesse do credor desde logo, porque a Autora deixou de poder habitar a moradia por falta de condições de habitabilidade (cfr. Alíneas N); O); P); Q); R); S); e Auto de Vistoria, Alínea F) dos Factos Provados) e viu-se forçada a procurar uma solução habitacional alternativa como deu conta ao Réu, na sua carta de 06/04/2021 (Alínea H) dos Factos Provados), o que configura objetivamente uma situação de incumprimento definitivo. 11.ª - Cabe perguntar sobre quem é que quereria prosseguir com o contrato-promessa de um imóvel que não oferecia as condições mínimas de habitabilidade a ponto de ter que sair de lá? E quem arriscaria comprá-lo naquele estado e que os factos considerados provados comprovam? (cfr. Alíneas N); O); P); Q); R); S); e Auto de Vistoria, Alínea F). E a resposta é: ninguém! 12.ª - Face aos Factos Provados, temos como verificada objetivamente a perda de interesse da Autora, em consequência da mora do Réu, isto é, do promitente faltoso, que, protelou sucessivamente a realização das obras e, com isso, impediu, por um lado, que a Autora lá vivesse e, por outro lado, a obtenção da licença de utilização, necessária para a outorga da escritura - (uma das vias previstas no artigo 808º, nº 1, do CC, para transformar a mora em incumprimento definitivo). E quando assim acontece, a doutrina e a jurisprudência entendem que não há necessidade de interpelação admonitória para obter a resolução do contrato-promessa, embora consideremos que ela ocorreu através da conjugação das cartas de 06/04/2021 e 19/04/2021. (Alíneas H) e K) dos Factos Provados). 13.ª - A perda objetiva do interesse da Autora é confirmada pelo Acórdão recorrido, quando relata que: “três anos depois da celebração do contrato promessa, à luz do homem médio que celebra um contrato-promessa com vista à aquisição de um imóvel para sua habitação, defeitos que afetam a sua finalidade (habitação), constitui motivo razoável e aceitável para a invocada perda de interesse na celebração do contrato prometido. (...) Assim, nos termos do disposto no artigo 808º do CC à A. tem-se por verificada a perda objetiva de interesse na celebração do contrato promessa por parte da A., o que comunicou por carta datada de 19/04/2021…”. (cfr. pág. 48 e 49 do acórdão recorrido) 14.ª - Ocorrendo, como ocorreu, a perda objetiva de interesse na celebração do contrato-promessa por parte do credor, aqui Recorrente, isso faz com que à luz do disposto no artigo 808º, nº 1, do CC se considere “não cumprida a obrigação” o que conduz à conversão da mora em incumprimento definitivo do contrato. Nestes casos, a doutrina e a jurisprudência entendem que se aplicam as sanções estabelecidas no artigo 442º, nº 2, do CC. Entre outros, veja-se o acórdão do STJ, proferido no proc. nº 868/08.2TBCBR.C1.S1, de 06/07/2011, quando diz que: “o regime do contrato-promessa deve ser articulado com o regime do sinal. O sinal funciona como fixação das consequências do incumprimento, uma vez que, se a parte que constituiu o sinal deixou de cumprir a sua obrigação, a outra parte tem direito de fazer sua a coisa entregue. Se o não cumprimento partir de quem recebeu o sinal, tem este que o devolver em dobro (artigo 442º nº 2, 1ª parte). Temos, assim, que o sinal só pode ser exigido em caso de incumprimento definitivo da obrigação pela outra parte, funcionando como pré-determinação das consequências desse incumprimento.” Sublinhado nosso. E o acórdão do STJ de 02/02/2017, proferido no Processo nº 280/13.1TBCDN.C1.S1, ao referir que para que se aplique o regime do artigo 442º, nº 2 do CC é necessário “(i) que exista mora; (ii) que a mora se transforme em incumprimento definitivo por uma das vias do artigo 808º do CC: perda de interesse do credor apreciada objetivamente; ou decurso de um prazo adicional razoável fixado pelo credor (...)” 15.ª - A tese do Acórdão Recorrido, de afastar a aplicação do artigo 442º do CC não só não encontra qualquer suporte legal como viola diretamente o regime específico e próprio do contrato-promessa, vertido naquele artigo, designadamente no que respeita às sanções estabelecidas para o seu incumprimento. 16.ª - Está provado que a Autora entregou ao Réu a título de sinal a quantia de 59.000€ (cfr. Alíneas C) e E) dos Factos Provados) e uma vez verificado que houve incumprimento definitivo por parte do Réu, por perda do interesse da Autora na prestação, resulta que o Réu não pode deixar de ser condenado - (como foi pelo Tribunal da 1ª Instância) - no pagamento do dobro do valor do sinal, como decorre da aplicação do artigo 442º, nº 2, do CC. 17.ª - Perante o circunstancialismo do caso concreto - protelamento sucessivo do Réu na realização das obras necessárias para resolver as graves patologias da moradia (Cfr. Alíneas F); O); P); Q); R) E S) dos Factos Provados), apesar de ter conhecimento delas desde o Outono de 2018 (Cfr. Alíneas T); U) e V) dos Factos Provados), sabendo que com esse comportamento impedia não só que a Autora lá continuasse a viver, como a emissão da Licença de Utilização, sem a qual não era possível outorgar a escritura ao mesmo tempo que diz à Autora, na reunião de janeiro de 2020, que “se (...) queria dinheiro fosse para Tribunal” (Alínea W) dos Factos Provados) e, depois de interpelado pela Autora, responde, por carta de 14/04/2021, que “Já foram efetuadas todas as reparações necessárias” (Alínea l) dos Factos Provados) e ato continuo introduz-se no interior da moradia e muda as fechaduras (Confissão do Réu), não podendo ignorar que, deste modo, comprometia o interesse da Autora no contrato promessa o que, aliás, a Autora lhe manifestou, formalmente, por carta de 19/04/2021 (Cfr. Alínea K) dos Factos Provados), tendo o Réu informado apenas por carta, datada de 19/05/2021, que “A Licença de Habitação será emitida no próximo dia 04/06/2021...”, — aquilo que resulta, com toda a probabilidade, aos olhos do critério do homem médio, é que estamos perante um “comportamento concludente” ou, como refere a doutrina, uma “declaração antecipada de não cumprimento”. 18.ª - A propósito desta questão, quer a doutrina quer a jurisprudência desde há muito que vêm defendendo que “é de considerar como definitivamente incumprido um contrato, quando tal resulte do comportamento do devedor que demonstre, inequivocamente, que o mesmo não pode ou não quer cumprir o contrato, desde que tal comportamento seja concludente nesse sentido. (...) Entendimento este que tem vindo a ser mantido por este Supremo Tribunal, como decorre da análise da jurisprudência do STJ, podendo, por último, dar-se como exemplo o seu Acórdão de 02 de Fevereiro de 2017, Processo nº 280/13.1TBCDN.CI.S1, disponível no respetivo sítio do itij, no qual se cita inúmera jurisprudência e doutrina no mesmo sentido. 19.ª - Como ali se refere, apoiando-se nos ensinamentos de Galvão Teles (...) Almeida Costa (...) Brandão Proença (...), entre outros, é de considerar a existência de mora debitória, independentemente de interpelação, para além das hipóteses previstas no artigo 805, nº 1, do Código Civil, se o devedor declara ao credor, de forma, inequívoca, definitiva, conscientemente e de forma peremptória, a sua intenção de não cumprir, o que pode revestir a forma expressa ou tácita, exigindo-se, nesta ultima hipótese, que tal intenção tem de se deduzir de factos que, com toda a probabilidade a revelam, em conformidade com o disposto no artigo 217º nº 1, do Código Civil.” (in Acórdão da Relação de Coimbra de 27/02/2018, Proc. nº 1350/14.4TBLRA-D.C1). Sublinhado nosso. 20.ª - Em suma, o Réu desinteressou-se de fazer as obras que tornavam a moradia habitável e desvinculou-se das obrigações decorrentes do contrato-promessa máxime a de obter a Licença de Utilização, nada tendo feito para a obter, pelo menos, até à altura em que a Autora lhe comunicou que perdia o interesse definitivo na aquisição da moradia (19/04/2021), o que levou a que se tornasse impossível, em termos definitivos, o cumprimento do contrato-promessa. 21.ª - Os beneficiários da promessa de transmissão que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, gozam de direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º do Código Civil (artigo 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil). 22.ª - Depois de tudo quanto ficou dito nas conclusões supra, salvo o devido respeito, que é muito, entendemos que o acórdão da Relação de Lisboa deve ser revogado, por erro de interpretação e aplicação do regime vertido no artigo 442º, nº 2, do CC, aplicável ao presente caso, pelas razões aduzidas, e substituído por outro que, em consequência da verificada perda objetiva de interesse definitivo da Autora na celebração do contrato promessa (por conversão da mora em incumprimento definitivo ou pela verificação de um comportamento concludente do Réu com relevância declarativa - artigo 808º do CC) aplique o regime previsto naquele artigo e as sanções daí resultantes, nomeadamente a devolução à Autora do valor do sinal em dobro, acrescido dos juros de mora, e mantenha o invocado direito de retenção sobre o imóvel a favor da Autora. 23.ª Termos em que deve o presente recurso de revista ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido, na parte em que alterou a decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância, substituindo-o por outro que acolha as conclusões supra apresentadas, condenado o Réu no pagamento do valor do sinal em dobro, acrescido dos juros de mora até integral e efectivo pagamento e reconheça à Autora o direito de retenção sobre o imóvel objecto do contrato promessa até ao integral e efectivo pagamento. Assim se fazendo a costumada Justiça. O réu apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela inadmissibilidade de parte do recurso de revista respeitante à impugnação da matéria de facto, nos termos do art. 674.º do CPC e, no mais, pela improcedência do recurso. Foram colhidos os vistos junto dos Ex.mos Juízes Adjuntos. Cumpre apreciar e decidir: Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º nº 1 do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem. Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (art. 635º nº3 do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº4 do mesmo art. 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso. No caso em apreço emerge das conclusões do recurso apresentadas pela Autora, aqui recorrente, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões: 1º) Por um lado, saber se no acórdão recorrido existiu erro de interpretação e aplicação dos arts. 352º e 360º do Código Civil; 2º) Por outro, saber se no acórdão recorrido houve errada interpretação do regime do sinal a que alude o art.442º nº2 do Código Civil, pelo que deverá o réu ser condenado a restituir à autora o sinal em dobro por esta prestado. Antes de nos pronunciarmos sobre a questão supra referida importa ter presente a factualidade que foi dada como provada nas instâncias, a qual, de imediato, passamos a transcrever: A. Pela apresentação n.º 1 de 2000/09/26, o prédio urbano descrito como “casa de rés do chão” está inscrito a favor do reconvindo por compra. B. Em Agosto de 2010, o reconvinte construiu um primeiro andar sob a habitação acima referida, sem que tenha apresentado projecto de alteração no Município de .... C. Em escrito datado de 20 de Abril de 2018 e encimado pela expressão “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, o Réu e a Autora, aí respectivamente designados como “PRIMEIRO CONTRAENTE ou PROMITENTE VENDEDOR” e “SEGUNDO CONTRAENTE ou PROMITENTE COMPRADORA”, declararam «(…) É celebrado e reciprocamente aceite o presente contrato promessa de compra e venda constante das cláusulas seguintes: Cláusula Primeira (Direitos e Situação Registral do Imóvel) 1. O PROMITENTE VENDEDOR é proprietário e legítimo possuidor do imóvel pertencente ao prédio urbano em regime de propriedade totaI sem andares nem divisões susceptiveis de utilização independente, sito na Azinhaga ..., União das Freguesias de ..., Concelho de Vila Franca de Xira (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... (…), com o Alvará de Utilização n.° .72/71, emitido em 03/02/1971 pela Câmara Municipal de .... Cláusula Segunda (Promessa de Compra e Venda) Pelo presente contrato promessa, o PROMITENTE VENDEDOR promete vender à PROMITENTE COMPRADORA, livre de quaisquer ónus, encargos e responsabilidades de qualquer natureza e totalmente desocupado de pessoas, de bens e no estado em que se encontra, para uso de habitação, e esta promete comprar àquele, o imóvel objeto do presente Contrato Promessa de Compra e Venda, descrito e identificado na cláusula anterior, nos termos e condições constantes das cláusulas seguintes. Cláusula Terceira (Preço e Forma de Pagamento) 1.O preço da venda é 190.000€ (cento e noventa mil euros). 2.Este preço será pago da seguinte forma: a) No momento da outorga do presente contrato, a PROMITENTE COMPRADORA paga ao PROMITENTE VENDEDOR, a título de sinal e início de pagamento do aludido preço a quantia de 19.000,00€ (dezanove mil euros) (…), de que assinatura do original do presente contrato dá a respetiva quitação após boa cobrança. b) O remanescente do preço, ou seja, 171.000,00€ (cento e setenta e um mil euros), será pago pela PROMITENTE COMPRADORA ao PROMITENTE VENDEDOR, por meio de cheque bancário ou visado, no momento da celebração da prometida escritura de compra e venda, a qual deverá realizar-se num prazo 180 dias contados a partir da assinatura do presente contrato. Cláusula Quarta (Data e local da escritura) A prometida Escritura de Compra e Venda ou Documento Particular Autenticado de Compra e Venda será outorgada/o em dia, hora e local a indicar pela PROMITENTE COMPRADORA ao PROMITENTE VENDEDOR, com pelo menos 10 (dez) dias úteis de antecedência sobre a data designada. Cláusula Quinta (Documentação) O PROMITENTE VENDEDOR obriga-se a obter todos os documentos necessários à outorga da prometida escritura, o qual deverá atempadamente facultar à PROMITENTE COMPRADORA. (…) Cláusula Sétima (Incumprimento) 1. As partes acordam em sujeitar o presente contrato promessa ao regime da execução específica, previsto no artigo 830° do Código Civil, podendo ainda a PROMITENTE COMPRADORA, em caso de incumprimento culposo imputável ao PROMITENTE VENDEDOR, optar por exigir a devolução das quantias pagas a título de sinal em dobro. Se o incumprimento for da responsabilidade da PROMITENTE COMPRADORA, o PROMITENTE VENDEDOR terá o direito de fazer suas as quantias entregues a título de sinal, ou igualmente, e em alternativa, optar pela execução específica. 2.O presente contrato, bem como as prestações nele previstas, fica expressamente condicionado à concessão de empréstimo bancário que a PROMITENTE COMPRADORA requereu junto de uma instituição bancária. 3.Caso a PROMITENTE COMPRADORA não obtenha o empréstimo bancário referido no número anterior, ser-lhe-á devolvidas, em singelo, todas as quantias entregues a título de sinal, sem prejuízo de o presente contrato poder ser prorrogado por mais 30 dias, por acordo entre as partes. (…)». D. Por acordo entre as partes, em Abril de 2018, a Autora, com a sua mãe, passou a confeccionar refeições, dormir e a receber a correspondência na habitação referida em A) supra. E. Em escrito encimado pela expressão “ADENDA AO CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA DATADO DE 20 DE ABRIL DE 2018, o Reconvinte e a Reconvinda, aí respectivamente designados como “PRIMEIRO CONTRAENTE ou PROMITENTE VENDEDOR” e “SEGUNDO CONTRAENTE ou PROMITENTE COMPRADORA”, declararam «(…) A cláusula Terceira do contrato-promessa de compra e venda anteriormente realizado é aditada a quantia € 40.000, como reforço de sinal e entrega de chaves do imóvel da parte do promitente vendedor. (…)». F. Em auto de vistoria datado de 29 de Outubro de 2020 emitido pela Câmara Municipal de ... exarou-se que «(…) procederam os técnicos abaixo assinados (…) a uma vistoria à moradia sita na Azinhaga ..., União das Freguesias de ..., identificada com o artigo matricial ..81. Os projetos de legalização de alterações e ampliação para esta obra, foram aprovados em nome de BB, tendo sido emitida a Licença de Obras de Construção n.º15, em 13 de fevereiro de 2020. Verificaram os técnicos no local, que se trata de uma moradia, de tipologia T I, destinada a habitação, anexo e alpendre, que não se encontra construída em harmonia com o projeto de arquitetura aprovado e que não reúne as condições de salubridade necessárias para a utilização prevista (habitação), nomeadamente: 1. O revestimento da cobertura do anexo em fibrocimento, não respeita o previsto em projeto (telha cerâmica tipo "Lusa") 2. Não existe sistema de ventilação nas instalações sanitárias, conforme preconizado na memoria descritiva do projeto da especialidade de águas residuais; 3. As paredes e tetos interiores da moradia, ao nível da sala de estar/jantar, do quarto e dos compartimentos de arrumos situados no 2º piso, apresentam patologias graves, nomeadamente, destacamentos e empolamentos do revestimento, acompanhados pelo desenvolvimento de fungos e eflorescências, derivado da infiltração de água e deficiente ventilação interior da habitação, potenciando risco de curto-circuito da instalação elétrica e comprometendo a saúde dos moradores. Face ao anteriormente exposto, considera-se que não pode a Autorização de Utilização ser concedida. (…)». G. Em comunicação da Câmara Municipal de ..., exarou-se «(…) Assunto: PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO DE UTILIZAÇÃO PARA ALTERAÇÕES DE AMPLIAÇÕES DE MORADIA AZINHAGA ...- ... - Reporta-se o assunto acima referenciado e, na sequencia da vistoria efetuada à moradia sita no local acima referenciado, com a sua presença, em conformidade com o despacho exarado em 2020/11/02, pelo Vice-Presidente da Câmara, Sr. CC, informa-se V Ex.ª – na qualidade de arrendataria, do seguinte: Foi verificado que a moradia em apreço não está construída em conformidade com o projecto aprovado, bem como não reúne as condições de salubridade necessárias para a utilização prevista (habitação). Nesta conformidade, face ao acima referido, foi notificado o proprietário do imóvel para apresentar um projeto de legalização (…)». H. Em escrito datado de 6 de Abril de 2021 e remetido ao Réu, a Autora declarou «(…) Assunto: Incumprimento do contrato promessa de compra e venda, por razões imputáveis exclusivamente ao promitente vendedor e interpelação para legalizar a moradia e entregar os documentos para instruir a escritura. Exmo. Senhor, No dia 20 de Abril de 2018 celebrámos um contrato promessa de compra e venda de uma moradia, composta de rés-do-chão e 1º andar, sita na Azinhaga ... (…) Posteriormente, mais propriamente no dia 25 de Maio de 2018, foi feita uma adenda ao contrato promessa e, de acordo com ela, paguei, a título de reforço do sinal, a quantia de €40.000,00 (…) e entrei na posse da moradia. Algum tempo depois de estar na posse da moradia esta começou a apresentar vários problemas, nomeadamente infiltrações de água, constantes entupimentos de esgotos, as paredes manchadas e com fissuras e um cheiro a gás insuportável, que tornam impossível a vida no local. Disso dei conta a V.Exa que, mais uma vez, voltou a referir-me que estava a tratar do assunto na Câmara de modo a resolver todos os problemas e podermos fazer a escritura, o que até ao momento ainda não aconteceu, pese embora já ter decorrido quase três anos, após a outorga do contrato promessa. Pelo contrário, à medida que o tempo ia passando a situação deteriorava-se ainda mais, ao ponto de ser forçada a sair da moradia por falta de condições de habitabilidade, com todos os prejuízos que a situação acarreta. Entretanto procurei saber junto da Câmara Municipal de ... qual a situação da moradia e, para meu espanto, fui recentemente informada, por carta de 09/02/2021, que "a moradia em apreço não está construída em conformidade com o projeto aprovado bem como não reúne as condições de salubridade necessárias para a utilização prevista (habitação)". Ora, V.Exa nunca me tinha dito que havia este problema de desconformidade da construção com o projeto. O que é muito grave, pois, quando celebrei o contrato fi-lo no pressuposto de que a moradia, de rés-do-chão e 1º andar, estava legal e em perfeitas condições de habitabilidade. Enfim, V.Exa andou sempre a omitir a real situação da moradia e, apesar do tempo já decorrido, não assegurou nem a legalidade do construído, nem a sua conformidade com o projeto, nem garantiu as necessárias condições de habitabilidade, impedindo assim a sua utilização para o fim pretendido. E por estas razões, imputáveis exclusivamente a si, a escritura não foi nem podia ser celebrada no prazo estabelecido no contrato ou em qualquer outro, dado que V.Exa até ao momento continua sem cumprir com todas as exigências camarárias, ou seja, ainda hoje não resolveu os problemas da moradia nem obteve a licença de utilização necessária para a escritura. (…) Ora, V.Exa sabe e tem perfeito conhecimento que quando celebrei o contrato promessa fi-lo porque necessitava da moradia para nela habitar com o meu agregado familiar (minha mãe, com quase 80 anos), o que é impossível fazer no estado em que a moradia se encontra. Toda esta situação, que dura há praticamente três anos, acrescida da manifesta falta de condições de habitabilidade da moradia, levou a que tivesse de lá sair e encontrar uma solução habitacional alternativa. Em todo o caso, como não posso continuar indefinidamente à espera que V.Exa resolva todos os problemas existentes na moradia, desde logo, a desconformidade do construído com o projeto aprovado e a falta de condições de salubridade, venho pela presente carta interpelar V.Exa para proceder, no prazo máximo de 30 dias, contados da sua receção, à legalização da moradia em conformidade com as exigências camarárias e à entrega da documentação necessária para instruir a escritura pública de compra e venda. (…)». I. Em escrito datado de 14 de Abril de 2021 e dirigido à Autora, o Réu declarou «(…) Assunto: Sobre a escritura de compra e venda, em cumprimento do contrato promessa de compra e venda da moradia sita na Azinhaga .... Exmos. senhora Recebida a sua carta datada 6 de Abril de 2021, sou a dizer o seguinte: «(…) 2 - Lamento o teor da sua carta quando se afasta da verdade e não declara que era do seu conhecimento, quando celebrou o contrato promessa de compra e venda, que a licença de utilização não incluía o primeiro andar da moradia e que a sua construção constava de projecto que submetido a apreciação na Câmara Municipal de ..., após a celebração do contrato promessa de compra e venda, o que era do seu conhecimento. (…) 4 – Lamento que afirme que a moradia apresentava vários problemas de infiltração de água e odores a gás. O Entupimento a esgotos foi desentupido pelo SMAS, por mim solicitado, após ter sido por si informado. Em conformidade com o contrato promessa de compra e venda e com os factos descritos e que eram do seu conhecimento, apresentado antes do contrato promessa o projecto de alteração da moradia, incluída a construção do primeiro andar e o barbecue/forno no pateo, cumpridas todas as exigências legais, solicitada foi nova vistoria, conforme documento em anexo, com vista à emissão de licença de utilização a breve prazo, esperando-se a sua rápida emissão com vista à celebração da escritura de compra e venda da moradia conforme contrato promessa celebrado. Já foram efetuadas todas as reparações necessárias.. É quanto importa comunicar e esclarecer, para além de tudo o que é já do seu inteiro conhecimento, como é do seu conhecimento que se aguarda emissão da licença de utilização, atrasada na Câmara Municipal de ..., devido à epidemia. (…)». J. Em 19 de Abril 2021 encontravam-se pessoas no interior da habitação referida em C) supra. K. Em escrito datado de 19 de Abril de 2021 e remetido ao Réu, a Autora declarou «(…) Assunto: Incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda, celebrado em 20 de Abril de 2018, por razões imputáveis exclusivamente ao promitente vendedor Exmo. Senhor, Acuso a recepção da sua carta, com data de 14 de Abril de 2021, à qual passo a responder. (…) Em abono da verdade, V.Exa sabe perfeitamente que não realizou quaisquer obras e que tudo se mantem na mesma, apesar de a Câmara ter emitido, em seu nome, no dia 13 de fevereiro de 2020, há mais de um ano, a licença de obras, nº 15. Portanto, não adianta negar aquilo que é uma evidência. E foi por não ter feito as obras necessárias e de acordo com o projeto, e só por isso, que a Câmara ainda não emitiu a licença de utilização, o que impede, como bem sabe, a realização da escritura. Por outro lado, em clara violação de tudo o que foi acordado entre nós, nomeadamente, depois de ter assinado uma adenda ao contrato promessa, no dia 25 de Maio de 2018, na qual ficou estabelecido o reforço do sinal em mais €40.000,00 (quarenta mil euros), quantia que paguei, por transferência bancária, e a entrega das chaves da moradia, que me constituiu na posse da mesma, V.Exa, em vez de resolver os graves problemas da habitação, evidenciados pela vistoria da Câmara, aproveitou o facto de não estar lá a viver, por manifesta falta de condições de habitabilidade, para se introduzir no interior da moradia e, na minha ausência e contra a minha vontade, substituiu as fechaduras. Mais, no dia de hoje quando me desloquei à moradia fui confrontada com uma serie de pessoas no seu interior que desconheço a que titulo lá estão, pois, nada me foi dito, sendo que estou na sua posse, conforme me foi transmitida pela entrega das chaves, conforme o estipulado na Cláusula Oitava do Contrato Promessa e na Adenda. Este comportamento, para além dos contornos criminais, que não deixarei de participar às entidades competentes, revela ainda da parte de V.Exa que não pretende honrar o contrato promessa que celebrou comigo e, por via dele, celebrar a escritura de compra e venda. Caso contrário, depois de ter recebido a minha carta registada, datada de 06/04/2021, na qual lhe fixei um prazo para a execução e conclusão das obras, que se encontra a decorrer, ter-me-ia contactado a dar-me conta que ia realizar as obras indicadas na vistoria, em vez de despudoradamente dizer que "já realizou todas as reparações necessárias." A que acresce, como já referido, o facto de ter abusivamente procedido à referida substituição das fechaduras, o que reforça a ideia que nunca foi sua intenção fazer as obras, nem outorgar a escritura. Dito isto, a grande verdade é que esta situação já se arrasta há vários anos e a moradia continua sem apresentar as necessárias condições de habitabilidade, como confirmaram os técnicos da Câmara, na referida vistoria. E nem sequer pode queixar-se de falta de tempo para cumprir as suas obrigações e honrar os seus compromissos contratuais, dado que, apesar das minhas insistências para fazer as obras V.Exa só no inicio de 2020 solicitou a licença de obras, sendo que nada foi feito, nem antes nem depois da sua emissão. Toda a situação acima descrita é insustentável e leva inevitavelmente à perda de interesse na aquisição da moradia prometida vender, para além do enorme desgaste físico e psíquico que provoca, agravado, agora, peio clima de insegurança, causado pela sua intromissão no interior da moradia. Com efeito, perante a gravidade da situação e a sua afirmação de que "já realizou todas as reparações necessárias", sem que tenha realizado qualquer obra na moradia, considero definitivamente perdido o interesse na sua aquisição. (…)». Anexo: Lista de bens no interior da moradia Moradia sita na Azinhaga ..., ... LISTA DE BENS -Uma mobília de quarto com uma mesa de cabeceira e um cadeirão; -Uma mobília de quarto com um sofá; - Uma mobília de sala de estar, incluindo um sofá de dois lugares; - Duas televisões; - Um frigorifico; - Um esquentador; - Uma placa de forno; - Um fogão; - Um exaustor; - Loiças diversas; - Dois candeeiros; - Um gradeamento para fazer a separação do prédio vizinho; - Vários artigos de jardim; - Uma Scooter; e - Uma bicicleta (…)». L. Em escrito datado de 10 de Maio de 2021 e remetido ao Ré, a Autora declarou «(…) Assunto: Incumprimento definitivo do contrato promessa celebrado no dia 20 de abril de 2018 — Interpelação para pagar o sinal em dobro no montante de €118.000,00 Exmo. Senhor, (…) E assim sendo venho por este meio interpelar V.Exa para proceder, no prazo máximo de oito dias, contados da rececão da presente carta, à devolução do sinal em dobro, no valor de €118.000,00 (cento e dezoito mil euros), tal como resulta do estabelecido no contrato promessa e no artigo 442º do C. Civil. Findo aquele prazo, sem que V.Exa proceda voluntariamente à devolução da referida quantia (…) irei recorrer aos meios judiciais para defesa dos meus direitos. Por último, aproveito também para solicitar a V.Exa a devolucão de todos os meus pertences que ainda se encontram no interior da moradia, conforme relação que anexei à minha carta de 19/04/2021, aguardando que indique dia e hora para o efeito. (…)». M. Em escrito datado 19 de Maio de 2021 e remetido à Autora, o Réu declarou «(…) No seguimento da sua carta em epigrafe, informo que já entreguei a totalidade dos projetos necessários. A Licença de Habitação será emitida no próximo dia 04/06/2021, pelo que já está em condições de proceder à marcação da escritura de Compra e Venda do prédio urbano, sito na Azinhaga ..., em consequência do Contrato Promessa e Venda celebrado em 20/04/2018. (…)». N. A autora e a sua mãe na casa em apreço residiram até ao mês de Abril de 2020, por falta de condições da mesma. O. No Outono de 2018, em data não concretamente apurada, começaram a aparecer os primeiros sinais de humidade e infiltrações nas paredes da aludida casa. P. Em momento anterior ao mês de Outono de 2018, a casa tinha já apresentado problema de entupimento de esgotos. Q. No Inverno de 2018/19, as aludidas humidades e infiltrações agravaram-se, tendo surgido manchas pretas e empolamentos da pintura. R. No Outono de 2019, a situação agravou-se, uma vez que as machas pretas, os empolamentos da pintura e os fungos espalharam-se por toda a casa. Neste âmbito dá-se aqui por integralmente reproduzidas as fotografias juntas com a PI como documentos n.ºs 6, 7 e 9 (fls. 14 verso a 16). S. Existia falta de ventilação nas casas de banho. T. Do expresso nos pontos anteriores, a autora ia informando o réu. U. Em Janeiro de 2020, a autora e o réu reuniram nas instalações da imobiliária E.., sita em .... V. Na dita reunião, a autora expressou que, a manter-se as anomalias acima referidas, deixaria de ter interesse na compra da casa e que, assim, queria o seu dinheiro de volta. W. Na sequência do exposto no ponto anterior, o réu respondeu que: era divorciado, não tinha filhos e que não tinha nada em seu nome; tendo dito ainda que, se a autora queria dinheiro, fosse para Tribunal. X. Em Maio de 2020, a autora foi aos serviços da Câmara Municipal de ..., com vista a tentar saber qual a efectiva situação da casa. Y. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da carta datada de 25-5-2021, a qual foi dirigida, através de registo postal, pela autora ao réu, com a epígrafe “Incumprimento definitivo do contrato promessa: devolução do sinal em dobro” (documento n.º 21 da PI). Através da aludida missiva, a autora reitera as suas cartas anteriores; afirma que a falta da licença de utilização se deveu apenas ao facto do réu se ter recusado a fazer as obras necessárias na casa; reitera o pedido de pagamento do sinal em dobro. Z. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento n.º 1 junto com a réplica, o qual dispõe da epígrafe “Contrato de Crédito Pessoal”, datado de 14-12-2018, celebrado entre o Banco Santander Totta, Sa. e a ora autora. Do aludido contrato consta a menção, nas respectivas condições particulares que o “Montante total de crédito: 116.000,00 €”. AA. Projecto de alteração da licença de construção da casa, devido à ampliação da mesma, deu entrada nos serviços da Câmara Municipal de ... a 27-8-2018 (tudo conforme decorre do teor do ofício camarário que constitui o documento n.º 5 da contestação, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido). BB. Na casa objecto do Contrato Promessa ficaram os bens acima indicados na denominada “Lista de Bens” mencionada, por sua vez, na carta reproduzida no ponto K. CC. No âmbito do expresso no ponto anterior e tendo presente o expresso na contestação, o reconvinte/réu admite devolver à reconvinda/autora a motorizada e a bicicleta. DD. A 11-11-2019, a reconvinda esteve reunida nas instalações da A...,Unipessoal, Lda (E..), sitas em ..., tendo sido acompanhada por DD e foi recebida pela directora comercial EE. EE. Conforme referido no Auto de Vistoria indicado em F., a 13-02-2020 foi emitido pelo Município de ... o alvará de obras de construção n.º 15/2020 que se junta como documento n.º 11 da contestação, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido. FF. Da emissão do aludido alvará foi o réu/reconvinte notificado a 20-01-2020, conforme documento n.º 12 da contestação, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido. GG. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da carta dirigida pelo reconvinte à reconvinda, datada de 26-10-2020, com o assunto: “Vistoria para Autorização de Utilização”, junta como documento n.º 13 com a contestação. HH. A 14-4-2021, o reconvinte pediu nova vistoria ao Município de ..., conforme cópia do requerimento junto como documento n.º 18 com a contestação, cujo teor aqui se considera reproduzido. II. A 27-01-2021, o reconvinte foi notificado por correio electrónico pelo Município de ... para um oficio com o n.º 346, o qual não se encontrava efectivamente junto; sendo que o reconvinte dirigiu imediato pedido de envio do aludido oficio, tudo conforme consta das respectivas mensagens de correio electrónico juntas como documento n.º 21 da contestação. JJ. Apenas a 7-5-2021, o réu foi notificado do oficio 1412, acompanhado com cópia do acima aludido oficio n.º 346. O aludido oficio n.º 346 informava ser necessário apresentar projecto de legalização (cfr. documento n.º 22 junto com a contestação, cujo teor aqui se considera reproduzido). KK. Dá-se aqui por reproduzido o teor do requerimento datado de 10-6-2021, assinado pelo Sr. Eng.º FF. Destacam-se os seguintes excertos do requerimento: - concluiu-se que uma das razões para a não emissão do alvará de autorização de utilização para a moradia unifamiliar e anexo em apreço, deveu-se ao facto da mesmo não reunir as condições mínimas de salubridade necessárias para a afectação de habitação. - convém esclarecer que a falta de condições de salubridade deveu-se às más condições de utilização e de vivência no interior do imóvel, que se verificou nestes últimos meses. - durante o período de licenciamento, o imóvel tinha sofrido trabalhos de reabilitação, dado o facto de ter estado devoluto durante vários anos e nessa altura, o mesmo estava em perfeitas condições de utilização. Existem até fotos desse período. - todavia os ocupantes da moradia nestes últimos meses já foram retirados do interior da mesma, o que permitiu que o proprietário realizasse novamente obras de reabilitação e recuperação no interior do imóvel, conforme se demonstra nas fotos que se juntam em anexo. - sobre a necessidade de apresentação de um projecto de legalização de alterações, não se encontram razões para isso, porque o processo de licenciamento referiu-se a uma legalização, sendo que o projecto representou a realidade existente no local. - a única situação que se verificou foi que a cobertura do anexo na altura da realização da vistoria para efeitos de emissão de autorização de utilização, não tinha ainda sido substituída para o tipo de telha previsto no projecto aprovado e licenciado. - todavia, recentemente foi efectuada a substituição da telha e neste momento, a moradia e anexo, salvo melhor opinião, encontram-se em condições de utilização para habitação e executadas de acordo com o projecto aprovado. Juntam-se fotografias em anexo que demonstram esse facto [tais fotografias consubstanciam o documento n.º 24 junto com a contestação, as quais aqui se consideram reproduzidas]. - desta forma, tendo em conta os argumentos agora apresentados, solicita-se então que a Câmara Municipal possa emitir o alvará e autorização de utilização, de forma a concluir-se o processo de licenciamento. - caso haja necessidade de se fazer uma nova vistoria ao local por parte da fiscalização municipal, então aguarda-se a informação de uma nova data e hora para essa visita.” LL. O imóvel que a Autora prometeu comprar e que o Réu prometeu vender era composto de moradia de rés-do-chão e lº andar e ainda de um anexo - (facto aditado no acórdão recorrido). Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pela Autora, aqui recorrente – saber se no acórdão recorrido existiu erro de interpretação e aplicação dos arts. 352º e 360º do Código Civil – importa adiantar, desde já, que o aresto da Relação não merece censura na parte relativa à reapreciação da matéria de facto que pode ser sindicada pelo STJ. Com efeito, nos casos em que a parte, para além de assumir um facto que lhe é desfavorável – confissão simples – acrescenta factos que impedem ou excepcionam a eficácia do facto desfavorável, estamos perante uma confissão qualificada ou complexa. Assim, e conforme é afirmado por Luís Filipe Pires de Sousa, “as confissões qualificadas e complexas convocam a aplicação do regime da indivisibilidade da confissão (confessio dividit non debet), segundo o qual a parte que queira aproveitar-se da eficácia do facto confessado como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexatidão, ou seja a confissão só pode ser aceite ou rejeitada na íntegra. Este princípio da indivisibilidade da confissão radica na unidade da declaração confessória. (…) Colocada perante uma confissão qualificada ou complexa, a contraparte pode assumir uma de três posições: i. Rejeita a confissão na sua globalidade, não se aproveitando dela. Caso em que a declaração confessória será livremente apreciada pelo julgador (art. 3612). ii. Aceita a declaração confessória na sua totalidade, considerando-se plenamente provados os factos referidos pelo confitente. Neste caso, a declaração de aceitação funciona como condição legal da eficácia da confissão e corresponde também a uma segunda confissão, em sentido inverso, de tais factos. iii. Aceita a confissão sob reserva do direito de provar, por qualquer meio, a inexatidão dos factos que lhe são desfavoráveis e, consequentemente, favoráveis ao confitente. Neste caso, a confissão tem eficácia de prova plena, mas a realidade dos factos desfavoráveis à contraparte apenas fica definitivamente estabelecida se esta não lograr fazer prova- por qualquer meio- do contrário desses factos. Isto mesmo que o ónus da prova relativamente aos factos aditados à confissão recaísse sobre o confitente pois, nessa eventualidade, a aceitação da confissão tem por efeito a inversão do ónus da prova quanto à parte favorável ao confitente” – cfr. Direito Probatório Material Comentado, 2021, 2.ª Ed., págs.108 e segs. No caso em apreço, o réu foi ouvido em declarações de parte, nos termos do art. 466.º do CPC, estando, assim, as suas declarações sujeitas à livre apreciação do julgador, à excepção da parte que constitua confissão, que, por ser prova vinculada, está submetido ao regime previsto nos arts. 352.º e ss. do C.C. e 452.º e ss. do C.P.C. De acordo com o que foi referido no acórdão recorrido, o réu, nas suas declarações de parte, para além de ter assumido que entrou no imóvel prometido vender, sem autorização da autora, substituindo a respectiva fechadura, referiu, igualmente, que o veio fazer porque sabia que a autora já não se encontrava aí a residir e porque se sentiu na obrigação de tomar a casa por 30 dias para repará-la. Por isso, não merece censura o acórdão recorrido ao considerar que, uma vez que a recorrente/autora não aceita a declaração confessória na sua globalidade, mas tão só a parte que lhe aproveita, e porquanto não logrou a autora fazer a não prova dos factos que favorecem o réu, procedeu o acórdão recorrido à livre apreciação destes factos desfavoráveis, desconsiderando na totalidade as declarações de parte - cfr. neste sentido Luís Filipe Pires de Sousa , obra citada, pág.112. Além disso, sempre se dirá que, na verdade, e porquanto a confissão complexa em causa não se mostra conforme com os requisitos exigidos para que a declaração confessória alcance força probatória plena (cfr. arts. 358.º, n.º 1, do C.C., 463.º e 466.º do C.P.C., pois não foi reduzida a escrito em acta, com cumprimento das formalidades aí previstas, temos que se mostra sujeita à livre apreciação do julgador, nos termos do art. art.361.º do C.C., não sendo, por isso, sindicável pelo STJ (cfr. art.682º nº2 do C.P.C.). ******Neste sentido, veja-se o Ac. do STJ de 21-11-2019 (Relatora Rosa Tching), disponível in www.dgsi.pt, no qual se afirmou que: “A declaração de reconhecimento de factos desfavoráveis, quando feita sem os requisitos exigidos para que tenha eficácia probatória plena, pode apenas constituir meio de prova sujeito à regra da livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no art. 361.º do CC e art. 466.º, n.º 3, do CPC.”. Ademais, conjugar as declarações de parte do réu com a prova documental identificada pela autora/recorrente mostra-se sujeita à livre apreciação do julgador, o que, como é óbvio, escapa à sindicância deste Supremo Tribunal de Justiça. Assim sendo, improcede esta primeira questão recursiva, nada havendo que aditar à factualidade apurada nas instâncias. Analisando agora a segunda questão levantada pela autora/recorrente – saber se no acórdão recorrido houve errada interpretação do regime do sinal a que alude o art.442º nº 2 do C.C., pelo que deverá o réu ser condenado a restituir à autora o sinal em dobro por esta prestado – haverá que referir a tal propósito que, relativamente à qualificação do negócio jurídico celebrado entre as partes, temos por assente que entre autora e réu foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda, nos termos do qual as partes se obrigaram a celebrar, em momento posterior, um contrato de compra e venda de um bem imóvel - cfr. art.410.º, n.º 1, do C.C. Ora, o direito à resolução do contrato-promessa - invocado pela A. - depende do seu incumprimento definitivo, sendo que, em regra, a mora do devedor é insuficiente para obter a extinção do contrato. No que respeita ao incumprimento definitivo do contrato-promessa veja-se, entre muitos outros, Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 10.ª edição, revista e atualizada, 2000, pp. 344 e ss.), Ana Prata (O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, Almedina, 1994, pp. 624 e ss.), Almeida Costa (Contrato-Promessa – uma síntese do regime vigente, 8.ª edição revista e aumentada, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 54 a 70) e Menezes Leitão na sua obra Direito das Obrigações, Almedina, 11.ª edição, 2017, pp. 259 e ss.. E, como é consabido, para que ocorra a conversão da mora em incumprimento definitivo, deverá o credor interpelar o devedor para cumprir a prestação, fixando um prazo razoável, com a advertência clara de que a falta da prestação o fará incorrer em incumprimento definitivo. Conforme se afirmou no Ac. do STJ de 23-06-2022, (Relator Fernando Baptista), disponível in www.dgsi.pt, para que a interpelação admonitória seja considerada válida e eficaz, “deve conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.” Todavia, o incumprimento definitivo do contrato-promessa verifica-se, de igual modo, sempre que ocorra “recusa de cumprimento (“repudiation of a contract” ou “riffuto di adimpieri”); termo essencial (prazo fatal); cláusula resolutiva expressa (impositiva de irretractibilidade); perda do interesse na prestação” de acordo com o que se deixou escrito nos Acs. do STJ de 28-06-2011 (Relator Sebastião Póvoas), de 29-01-2014 (Relator Mário Mendes) e de 28-03-2023 (Relatora Clara Sottomayor), todos disponíveis in www.dgsi.pt. No caso em apreço, face ao alegado pela autora, aqui recorrente, e do que se mostra apurada nas instâncias, importa aferir se se verificou incumprimento definitivo por perda do interesse do credor ou uma recusa de cumprimento por banda do devedor. A este propósito o art. 808.º do C.C. (sob a epígrafe “Perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento”) estipula o seguinte: 1 - Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação. 2 - A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente. Conforme dispõe este n.º 2, a perda de interesse deve ser aferida em termos objetivos, tendo por base, quer a realidade negocial, quer os contornos da relação contratual. Maria da Graça Trigo e Mariana Nunes Martins, a respeito da perda objectiva de interesse afirmam que: - “Do n.º 2 resulta a exigência de que a perda de interesse do credor seja apreciada objetivamente: configurando-se como insuficiente, o «juízo valorativo arbitrário do próprio credor» (Ac. STJ 06.02.2007). Daqui resulta que, embora a importância de tal interesse deva ser «aferida em função da utilidade concreta que a prestação teria para o credor» (Almeida Costa, 2009: 1054), se exige que esse juízo surja alicerçado em. elementos suscetíveis de serem valorados segundo um critério de razoável normalidade negocial, própria do comum das pessoas (Acs. STJ 12.01.2010 e 28.06.2011), no quadro específico do complexo contratual em causa, que permitam concluir pela afetação objetiva da economia da relação. Importa, contudo, precisar que a rejeição de um juízo puramente subjetivo não determina o abandono da consideração do interesse subjetivo do credor, exigindo-se apenas que à perda subjetiva do interesse corresponda a suscetibilidade de justificação objetiva” – cfr. Comentário ao Código Civil, Universidade Católica Portuguesa, 2018, págs.1140 e segs. Deverá, desta forma, ser aferida a perda de interesse, de forma objectiva, de acordo com a factualidade demonstrada e, por isso, não se mostra suficiente para a perda de interesse, uma mera perda de interesse subjectiva, dependente (apenas) da vontade do declarante. No que à recusa do cumprimento se refere, salientamos, porque relevante, o Ac. do STJ de 18-06-2024 (Relator Nelson Borges Carneiro), disponível in www.dgsi.pt, no qual é afirmado que “a efetivação da interpelação admonitória para verificação de uma situação de incumprimento definitivo é dispensável quando se verifique a recusa antecipada de cumprimento por parte do outro promitente, ou perante a verificação de circunstâncias que, analisadas objetivamente, revelem um comportamento concludente no sentido do incumprimento definitivo do contrato.” A propósito da recusa de cumprimento, explica Brandão Proença que “para lá de a declaração ter que ser assumida por um devedor imputável e apresentar-se como manifestação intencional, pessoal e unilateral, ela deve ser suficientemente clara, unívoca e séria de modo a justificar o exercício de certos direitos e a defesa perante pretensões do declarante. Uma declaração unívoca é uma comunicação não viciada, precisa, com ausência de pedidos de esclarecimento ao (pelo) credor e que mostra a intenção categórica, o propósito claro de o devedor não cumprir” – cfr. Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, UCE, 2011, 3.ª ed., págs. 342 e segs. Temos, assim, que a recusa de cumprimento por parte de devedor, para ser equiparada a uma situação de incumprimento definitivo não pode ser genérica, nem suscitar dúvidas, devendo, antes, de forma evidente, demonstrar a vontade de não cumprir de forma pontual e integral a obrigação assumida ao abrigo de um dado contrato. No que toca à perda do interesse objectivo por parte da recorrente constata-se que se verificou a perda de interesse da recorrente na celebração do contrato prometido devido à falta de condições de habitabilidade do imóvel prometido vender, uma vez que tal resulta claramente do teor da missiva que a autora remeteu ao réu, datada de 19-04-2021 (facto provado K) – “a grande verdade é que esta situação já se arrasta há vários anos e a moradia continua sem apresentar as necessárias condições de habitabilidade, como confirmaram os técnicos da Câmara Municipal, na referida vistoria. E nem sequer pode queixar-se de falta de tempo para cumprir as suas obrigações e honrar os seus compromissos contratuais, dado que, apesar das minhas insistências para fazer as obras V.Exa só no inicio de 2020 solicitou a licença de obras, sendo que nada foi feito, nem antes nem depois da sua emissão. Toda a situação acima descrita é insustentável e leva inevitavelmente à perda de interesse na aquisição da moradia prometida vender, para além do enorme desgaste físico e psíquico que provoca, agravado, agora, peio clima de insegurança, causado pela sua intromissão no interior da moradia.”. Ademais, resulta, igualmente provado que o contrato-promessa foi celebrado em 20-04-2018, com a entrega de sinal no montante de € 19 000,00, sendo certo que nesse mesmo mês de Abril, a autora passou a residir com a sua mãe no imóvel prometido vender, e entregou ao réu mais a quantia de € 40 000,00 como (reforço de) sinal, o que foi reduzido a escrito. Porém, em face da falta de condições de habitabilidade do imóvel a autora e a sua mãe deixaram de aí residir desde Abril de 2020, sendo que em Outubro de 2018 começaram a aparecer os primeiros sinais de humidade e infiltrações nas paredes, em momento anterior entupimento de esgotos, verificando-se um agravamento da situação, com o aparecimento de manhas pretas, empolamentos de pintura e fungos, durante o Outono de 2019, para além de inexistir ventilação nas casas de banho. Acresce que a autora sempre foi informando o réu desta situação, relativa aos defeitos detectados no imóvel - cfr. factos provados N a T. Ora, decorridos cerca de 3 anos depois da celebração do contrato-promessa, ainda que não se entenda que o prazo de celebração do contrato prometido fosse elemento essencial da promessa, e atento o teor das comunicações trocadas entre as partes, em especial a carta da autora de 19-04-2021, é patente a perda de interesse objectivo por parte desta, em virtude da falta de condições de habitabilidade que o imóvel prometido apresentava há já vários anos. Por outro lado, também a falta de licença de utilização é igualmente motivo para a perda de interesse da recorrente conforme se constata pelo teor das missivas enviadas em 06-04-2021 (facto provado H) – “Enfim, V.Exa andou sempre a omitir a real situação da moradia e, apesar do tempo já decorrido, não assegurou nem a legalidade do construído, nem a sua conformidade com o projeto, nem garantiu as necessárias condições de habitabilidade, impedindo assim a sua utilização para o fim pretendido. E por estas razões, imputáveis exclusivamente a si, a escritura não foi nem podia ser celebrada no prazo estabelecido no contrato ou em qualquer outro, dado que V. Exa até ao momento continua sem cumprir com todas as exigências camarárias, ou seja, ainda hoje não resolveu os problemas da moradia nem obteve a licença de utilização necessária para a escritura. (…) Ora, V. Exa sabe e tem perfeito conhecimento que quando celebrei o contrato promessa fi-lo porque necessitava da moradia para nela habitar com o meu agregado familiar (minha mãe, com quase 80 anos), o que é impossível fazer no estado em que a moradia se encontra. Toda esta situação, que dura há praticamente três anos, acrescida da manifesta falta de condições de habitabilidade da moradia, levou a que tivesse de lá sair e encontrar uma solução habitacional alternativa. Em todo o caso, como não posso continuar indefinidamente à espera que V.Exa resolva todos os problemas existentes na moradia, desde logo, a desconformidade do construído com o projeto aprovado e a falta de condições de salubridade, venho pela presente carta interpelar V. Exa para proceder, no prazo máximo de 30 dias, contados da sua receção, à legalização da moradia em conformidade com as exigências camarárias e à entrega da documentação necessária para instruir a escritura pública de compra e venda.” – e em 19-04-2021 (facto provado K) – “E foi por não ter feito as obras necessárias e de acordo com o projeto, e só por isso, que a Câmara ainda não emitiu a licença de utilização, o que impede, como bem sabe, a realização da escritura.”. Ademais, as obras de que o imóvel necessitava para ter condições de salubridade, para além daquelas relativas à desconformidade com o projecto, são também as que são indicadas no auto de vistoria 29-10-2020 (facto provado F), necessárias para a competente emissão da licença de utilização – “Verificaram os técnicos no local, que se trata de uma moradia, de tipologia T I, destinada a habitação, anexo e alpendre, que não se encontra construída em harmonia com o projeto de arquitetura aprovado e que não reúne as condições de salubridade necessárias para a utilização prevista (habitação), nomeadamente: 1. O revestimento da cobertura do anexo em fibrocimento, não respeita o previsto em projeto (telha cerâmica tipo "Lusa"). 2. Não existe sistema de ventilação nas instalações sanitárias, conforme preconizado na memoria descritiva do projeto da espacialidade de águas residuais; 3. As paredes e tetos interiores da moradia, ao nível da sala de estar/jantar, do quarto e dos compartimentos de arrumos situados no 2º piso, apresentam patologias graves, nomeadamente, destacamentos e empolamentos do revestimento, acompanhados pelo desenvolvimento de fungos e eflorescências, derivado da infiltração de água e deficiente ventilação interior da habitação, potenciando risco de curto-circuito da instalação elétrica e comprometendo a saúde dos moradores. Face ao anteriormente exposto, considera-se que não pode a Autorização de Utilização ser concedida. (…)”. E, nesta sequência, a Câmara Municipal de ... enviou uma comunicação à autora, da qual resulta que o réu já havia sido notificado para apresentar projecto de legalização do imóvel, com o seguinte teor: “Assunto: PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO DE UTILIZAÇÃO PARA ALTERAÇÕES DE AMPLIAÇÕES DE MORADIA AZINHAGA ... - ... - Reporta-se o assunto acima referenciado e, na sequência da vistoria efetuada à moradia sita no local acima referenciado, com a sua presença, em conformidade com o despacho exarado em 2020/11/02, pelo Vice-Presidente da Câmara, Sr. CC, informa-se V Ex.ª – na qualidade de arrendatária, do seguinte: Foi verificado que a moradia em apreço não está construída em conformidade com o projecto aprovado, bem como não reúne as condições de salubridade necessárias para a utilização prevista (habitação). Nesta conformidade, face ao acima referido, foi notificado o proprietário do imóvel para apresentar um projeto de legalização (…)” – facto provado G. No caso dos autos, face do teor das missivas referidas e do envio pela autora da comunicação datada de 10-05-2021(facto provado L), na qual declara a verificação do incumprimento definitivo e solicita a devolução do sinal em dobro, irrelevante se torna a posterior actuação do réu, ao enviar a missiva datada de 19-05-2021 (facto provado M), na qual declara que a licença de utilização será emitida em 04-06-2021, pelo que estará em condições de proceder ao agendamento da escritura, constituindo tão só uma previsão da data de emissão (que não resultou provada nos autos). Assim sendo, forçoso é concluir que a falta de condições de salubridade do imóvel prometido vender estão directamente conexionadas com a falta de emissão de licença de utilização, não sendo um fundamento autónomo e independente daquele, pela sua própria natureza e bem assim pelo que resulta da factualidade provada. Na verdade, a perda de interesse da autora na celebração do contrato prometido, apreciada de modo objectivo, resulta não só da falta de condições de salubridade do imóvel, bem como na falta de licença de utilização, sendo esses dois fundamentos directamente imputáveis ao réu, pois a resolução de ambos estava dependente da actuação deste último, como proprietário e vendedor do imóvel em questão. Com efeito, da factualidade apurada nos autos (nomeadamente das cartas enviadas pela autora ao réu em 6-04-2021 e em 19-04-2021 – cfr. alíneas H e K dos factos provados) e tendo presente o disposto no art.808º do C.C., temos como verificada objectivamente a perda de interesse da autora na realização do negócio, em consequência da mora do réu, ou seja, do promitente faltoso, que, com a sua conduta, protelou sucessivamente a realização das obras para correcção dos defeitos no imóvel (cfr. alíneas F, O, P, Q, R e S dos factos provados), apesar de ter conhecimentos de tais defeitos desde Outubro de 2018 (cfr. alíneas T, U e V dos factos provados), sendo que, com isso, impediu, por um lado, que a autora lá vivesse com a sua mãe e, por outro, que fosse obtida a licença de utilização, a qual se mostrava necessária para a outorga da respectiva escritura, tendo-se assim convertido a mora do réu em incumprimento definitivo. Neste sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 02-02-2017 (Relatora Graça Trigo), disponível in www.dgsi.pt, no qual se afirmou que: - Em regra, o direito de resolução de um contrato implica a verificação de incumprimento definitivo, valendo este princípio também para a resolução do contrato-promessa bilateral. A jurisprudência do STJ tem considerado que, salvo se da interpretação da vontade negocial resultar diversamente, o não cumprimento da obrigação de contratar constitui o devedor em simples mora, à qual não se aplica, sem mais, o regime da perda/exigência do sinal em dobro previsto no art. 442.º, n.º 2, do CC. Mas, para que tal regime seja aplicável é necessário: (i) que exista mora nos termos do art. 805º do CC; e (ii) que esta se transforme em incumprimento definitivo por uma das vias do art. 808.º do CC: perda do interesse do credor apreciada objectivamente; decurso de um prazo adicional razoável fixado pelo credor (interpelação admonitória). Além disso, a doutrina e a jurisprudência também admitem a relevância de uma declaração antecipada de não cumprimento (expressa ou tácita) por parte do devedor. Na verdade, aquilo que resulta, com toda a probabilidade, no caso em apreço, aos olhos do critério do homem médio e comum, é que, além da perda de interesse da autora na realização do negócio, também estamos perante um “comportamento concludente” ou, uma “declaração antecipada de não cumprimento” por parte do réu, pois a sua conduta omissiva demonstrou, de forma inequívoca, uma intenção de não querer eliminar os defeitos e as graves anomalias detectadas no imóvel, impeditivas da obtenção da licença de utilização junto da Câmara Municipal, sendo equiparável, quanto a nós, a uma declaração tácita de não cumprimento por parte do réu, a qual só a ele é imputável. Por isso, em jeito de conclusão, diremos que o réu desinteressou-se de fazer as obras que tornavam o imóvel habitável e desvinculou-se das obrigações decorrentes do contrato-promessa, nomeadamente a obrigação de obter a respectiva licença de utilização do imóvel, nada tendo feito para a sua obtenção até à data em que a autora lhe comunicou que perdia o interesse definitivo na aquisição da moradia (carta de 19-04-2021), o que levou a que se tornasse impossível, em termos definitivos, o cumprimento do contrato-promessa aqui em análise. Ora, como sabemos, são aplicáveis ao contrato-promessa as regras gerais da falta de cumprimento e da mora, previstas nos arts. 798.º e segs. do C.C., sendo que o incumprimento do contrato-promessa, relativo à recusa de celebração do contrato prometido mostra-se sujeito ao regime geral do não cumprimento das obrigações, sem prejuízo das especificidades respeitantes à execução específica do contrato e à sua resolução, nos termos do disposto nos arts. 442.º e 830.º do C.C. “In casu”, as partes estabeleceram no contrato-promessa de compra e venda a entrega de uma quantia a título de sinal, no montante de € 19.000,00, e, em seguida, através de adenda ao referido contrato-promessa, a entrega de nova quantia, no montante de € 40.000,00, à qual também atribuíram expressamente o carácter de sinal – cfr. factos provados C e E. O sinal constitui uma cláusula acessória que integra contratos onerosos, nos termos da qual uma das partes entrega à outra, por ocasião da celebração do contrato ou posteriormente, uma coisa fungível ou infungível, usualmente uma quantia em dinheiro, mas que pode ou não ter natureza diferente da obrigação contraída pela parte. A este propósito João Calvão da Siva define duas modalidades de sinal: - o sinal confirmatório ou confirmatório-penal, nos termos do (…) qual a intenção dos contraentes foi a de confirmar contrato, dando para o exterior uma prova ou sinal (signum) da sua celebração ou existência, e garantir ou reforçar o vínculo negocial e o cumprimento das obrigações assumidas, sendo inclusive princípio de cumprimento (…) e, perante o não cumprimento contratual, as partes estipulam uma sanção contra o contraente faltoso, podendo a parte fiel fazer seu o sinal ou exigir à outra parte a restituição do sinal em dobro, consoante o incumprimento seja imputável a quem o entregou ou a quem o recebeu; - o sinal penitencial, quando (…) as partes quiseram reservar (para uma ou para ambas) a faculdade de retractação ou de recesso do contrato, sendo, assim, possível qualquer um dos contraentes se libertar do vínculo assumido, voltando atrás na sua palavra, embora com a perda do sinal entregue ou com a sua restituição em dobro, consoante o aja entregue ou recebido – cfr. Sinal e Contrato-Promessa, 15.ª ed., 2020, págs. 83-85. Por sua vez António Pinto Monteiro entende que, da análise conjugada dos arts. 441.º, 442.º, n.ºs 2 e 3, e 830.º, n.º 2, do CC, o sinal previsto no contrato-promessa aproxima-se mais da modalidade de sinal penitencial uma vez que estamos perante um meio de desvinculação livremente estabelecido entre os promitentes, através da qual uma das partes se reserva a faculdade de não cumprir ou de resolver o contrato ad nutum, estando antecipadamente fixada a indemnização devida (cfr. artigo 811º do Código Civil) - Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, Coimbra, 1990, págs. 175-185. De igual modo, Mário Júlio de Almeida e Costa afirma que: “O sinal aproxima-se, então, da natureza de arras penitenciais, correspectivo da faculdade de desistir do contrato («ius poenitendi») e sanção ou montante indemnizatório predeterminado para o seu incumprimento definitivo.” Esclarece, ainda, que, nos casos de resolução do contrato-promessa é mister apurar se as partes estabeleceram a fixação de sinal ou não. Caso o sinal não haja sido estabelecido entre as partes, a indemnização do promitente cumpridor alcança-se através das regras gerais da indemnização civil, com o intuito de cobrir os danos efectivos. Nos casos em que as partes estabeleceram livremente um sinal, a lei prevê uma disciplina específica que se mostra plasmada no art. 442.º do C.C. – cfr. Contrato-Promessa – Uma síntese do Regime Vigente, 8.ª edição, Coimbra, Almedina, 2004, págs. 69 e segs. No caso sub judice, uma vez que existe sinal entregue entre as partes, impõe-se chamar à colação o art. 442.º do CC, sendo que o seu n.º 2 preceitua que: “Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.” Nos termos da cláusula 7.ª do contrato-promessa celebrado entre as partes, foi previsto este regime legal em conjugação com o disposto no art. 830.º do CC, cfr. n.º 2 do art. 442.º do CC, uma vez que os promitentes estabeleceram a possibilidade de o contraente fiel recorrer ao regime do sinal em caso de incumprimento do contrato. Ora, conforme já supra expendemos, a autora/recorrente perdeu definitivamente e de forma objectiva o interesse na celebração do contrato prometido, devido à falta de condições de habitabilidade do imóvel prometido vender, por não realização de obras, e bem assim por falta da entrega da licença de utilização do réu à autora, estando estes dois fundamentos intrinsecamente conexionados entre si. Devido a esta objectiva perda de interesse por parte da autora na celebração do contrato prometido, veio esta, em 10-05-2021, a resolver o contrato-promessa celebrado com o réu e a solicitar a devolução do sinal em dobro. Sumariamente diremos que a resolução de um contrato, com fundamento na lei ou em convenção (cfr. art. 432.º do C.C.), pode efetivar-se através de mera declaração unilateral receptícia (cfr. arts. 224.º, n.º 1, e 436.º, n.º 1, do C.C.), que, após recebimento pelo destinatário, se torna irrevogável, sem prejuízo de acordo em contrário (cfr. art. 230.º, n.º 1, do C.C.), não sendo a culpa um seu requisito essencial. Nas palavras de Brandão Proença a resolução consiste no “poder unilateral de extinguir um contrato (maxime bilateral) válido, em virtude de circunstâncias posteriores à sua conclusão e frustrantes do interesse na execução contratual ou desequilibradoras da relação de equivalência económica entre as prestações e desencadeado uma normal «liquidação» retroativa” – cfr. Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações, Coimbra, Editora, 2011, pág. 288. Se a falta da entrega da documentação para a celebração da escritura constituía uma obrigação expressa do réu, nos termos apostos no contrato-promessa, e que, de todo, não foi cumprida pelo réu, pelo menos, antes da resolução do contrato-promessa, o qual perdurou por mais de três anos, sem que fosse cumprida esta obrigação, também a falta de condições de habitabilidade e as consequentes e necessárias obras para corrigir os defeitos do imóvel, apesar de não constarem expressamente do referido contrato-promessa, impunham-se-lhe com igual acuidade. Destarte, o contrato-promessa recaía sobre a venda de um imóvel, o qual, inexistindo qualquer cláusula que previsse o contrário, deveria reunir condições de habitabilidade, pois essa é a primordial função de um imóvel para habitação. Tanto assim é que, na sequência de o réu ter entregue à autora o imóvel em tradição, para que lá pudesse habitar com a sua mãe, foi entregue pela autora ao réu mais uma quantia em dinheiro (40.000,00 €) também como (reforço de) sinal. Com efeito, qualquer homem médio e comum que celebre um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel para habitação espera naturalmente que o imóvel que vai adquirir apresente as condições mínimas de habitabilidade e salubridade para lá poder residir. Por isso, é perfeitamente admissível e compreensível que haja uma justificada perda objectiva do interesse no contrato prometido quando, depois da autora ter residido no imóvel durante cerca de dois anos, vê-se obrigada a de lá sair devido à falta de condições de habitabilidade e salubridade do imóvel, o que foi devidamente confirmado e constatado, em vistoria, pela Câmara Municipal, tendo afirmado os técnicos camarários que tais defeitos não permitiam a emissão de licença de utilização, sem a realização de obras para tanto, para além de outras desconformidades com o projecto, o que se mantinha passados cerca de três anos após a celebração do contrato-promessa, ou seja, na data da declaração de resolução do contrato-promessa por parte da autora. Deste modo, impõe-se fazer operar nos presentes autos o mecanismo do sinal, previsto no nº 2 do art. 442.º do C.C., uma vez que os fundamentos que determinaram a perda de interesse da autora - a falta de condições de habitabilidade do imóvel (com a consequente falta de obras a realizar pelo réu para correcção dos defeitos), e a falta de entrega da licença de utilização para o agendamento da escritura - são elementos essenciais do contrato-promessa celebrado entre as partes e como tal, face ao incumprimento definitivo de tal contrato pelo réu, deve o mesmo ser condenado na entrega do sinal em dobro à autora, conforme livremente estabelecido na cláusula 7.ª, n.º 1, do contrato-promessa junto aos autos e por força do disposto no já citado art. 442.º, n.º 2, do C.C. Neste sentido, é de salientar o recente Ac. do STJ de 19-09-2024 (Relatora Fátima Gomes), disponível in www.dgsi.pt, no qual é afirmado o seguinte: - Ao contrato-promessa é aplicável o regime geral dos contratos, sendo-lhe aplicáveis, designadamente, as regras atinentes à falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor, tendo este ainda um regime específico quanto às sanções aplicáveis, quando tenha havido constituição de sinal (convencionado ou presumido) (arts. 440.º, 441.º, e 442.º do CC). - A resolução do contrato-promessa e as sanções da perda do sinal ou da sua restituição em dobro só têm lugar, no entanto, em caso de incumprimento definitivo da promessa, que pode resultar da conversão da mora em incumprimento definitivo, por actuação do promitente comprador. Quantos aos juros de mora devidos, porque peticionados, são os juros à taxa legal civil, nos termos do art. 805.º do C.C., desde a data da resolução do contrato-promessa, mas uma vez que não se mostra provada a data da recepção pelo réu da carta da autora enviada a 10-05-2021, atende-se à data da resposta do réu à autora, isto é, 19-05-2021. Por último, invoca ainda a autora o seu direito de retenção do imóvel identificado nos autos, nos termos do art. 755.º, n.º 1, alínea f), do C.C., uma vez que o seu direito de crédito resulta do disposto no art. 442.º do C.C. Ora, preceitua o art. 754.º do C.C. que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados. E, nos termos da citada alínea f) do n.º 1 do art. 755.º, goza, em específico, do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442.º. Assim sendo, uma vez que a autora beneficiou da tradição do imóvel, pois ficou provado que, por acordo entre as partes, a autora passou a residir (com a sua mãe) no imóvel prometido vender, e detém um crédito sobre o réu adveniente do contrato-promessa que celebraram – ou seja, a restituição do sinal em dobro - goza a autora do direito de retenção sobre o imóvel prometido vender, nos termos das disposições legais supra transcritas. Além disso, sempre será irrelevante a circunstância de a autora já não residir no imóvel, por de lá ter saído devido à falta de condições de habitabilidade, uma vez que o direito de retenção do promitente comprador existe, obtida a tradição da coisa, com o fito de assegurar o crédito de indemnização devido pelo incumprimento do contrato promessa e não para lhe garantir o uso da coisa prometida vender. Pelo exposto, atentas as razões e fundamentos supra elencados, forçoso é concluir que o acórdão recorrido não se poderá manter, de todo, revogando-se o mesmo em conformidade e, em consequência, alteram-se as alíneas b) e d) da primitiva decisão (proferida na 1ª instância) nos seguintes termos: b) Condena-se o réu BB a pagar à autora AA o dobro do valor que recebeu a título de sinal no âmbito do aludido contrato promessa de compra e venda entre eles celebrado, ou seja, a quantia de 118.000,00 € (cento e dezoito mil euros), acrescida dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde o dia 19-05-2021 até integral e efectivo pagamento; d) Reconhece-se à autora o direito de retenção sobre o imóvel objecto do contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes em 20-04-2018 (prédio urbano descrito na CRP de ... sob o n.º ..84/União das Freguesias de ...), para garantia do crédito expresso na dita alínea b). *** Finalmente, atento o estipulado no nº 7 do art.663º do C.P.C. passamos a elaborar o seguinte sumário: - As confissões qualificadas e complexas convocam a aplicação do regime da indivisibilidade da confissão, ou seja, a confissão só pode ser aceite ou rejeitada na sua globalidade (cfr. art.360º do C.C.); - Por isso, a declaração de reconhecimento de factos desfavoráveis, quando feita sem os requisitos exigidos para que tenha eficácia probatória plena, apenas pode valer como meio de prova sujeito à regra da livre apreciação do julgador (cfr. arts.361º do C.C. e 466º, nº 3, do C.P.C.), não sendo, tal prova, sindicável pelo STJ (cfr. art.682º nº2 do C.P.C.). - Em regra, o direito de resolução de um contrato implica a verificação de incumprimento definitivo, valendo este princípio também para a resolução do contrato-promessa bilateral. - A jurisprudência do STJ tem considerado que, salvo se da interpretação da vontade negocial resultar diversamente, o não cumprimento da obrigação de contratar constitui o devedor em simples mora, à qual não se aplica, sem mais, o regime da perda/exigência do sinal em dobro previsto no art. 442.º, n.º 2, do CC. - Mas, para que tal regime seja aplicável é necessário: (i) que exista mora nos termos do art. 805º do CC; e (ii) que esta se transforme em incumprimento definitivo por uma das vias do art. 808.º do CC: perda do interesse do credor apreciada objectivamente; decurso de um prazo adicional razoável fixado pelo credor (interpelação admonitória). - Além disso, a doutrina e a jurisprudência também admitem a relevância de uma declaração antecipada de não cumprimento (expressa ou tácita) por parte do devedor. - No caso em apreço, o réu desinteressou-se de fazer as obras que tornavam o imóvel habitável e desvinculou-se das obrigações decorrentes do contrato-promessa, nomeadamente a obrigação de obter a respectiva licença de utilização do imóvel, nada tendo feito para a sua obtenção até à data em que a autora lhe comunicou que perdia o interesse definitivo na aquisição da moradia, o que levou a que se tornasse impossível, em termos definitivos, o cumprimento do contrato-promessa aqui em análise. - Assim sendo, esta actuação da autora converteu a mora do réu em incumprimento definitivo e, por isso, impõe-se fazer operar nos presentes autos o mecanismo do sinal, previsto no nº 2 do art. 442.º do C.C., uma vez que os fundamentos acima referidos, determinantes da perda do interesse da autora, são elementos essenciais do contrato-promessa celebrado entre as partes e como tal, face ao incumprimento definitivo de tal contrato pelo réu, deve o mesmo ser condenado na entrega do sinal em dobro à autora, conforme livremente estabelecido na cláusula 7ª, nº1, do contrato-promessa entre eles celebrado. Decisão: Pelo exposto acordam os Juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o presente recurso de revista e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, alterando-se as alíneas b) e d) da primitiva decisão (proferida na 1ª instância) nos seguintes termos: b) Condena-se o réu BB a pagar à autora AA o dobro do valor que recebeu a título de sinal no âmbito do aludido contrato promessa de compra e venda entre eles celebrado, ou seja, a quantia de 118.000,00 € (cento e dezoito mil euros), acrescida dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde o dia 19-05-2021 até integral e efectivo pagamento; d) Reconhece-se à autora o direito de retenção sobre a casa objecto do contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes em 20-04-2018 (prédio urbano descrito na CRP de ... sob o n.º ..84/União das Freguesias de ...), para garantia do crédito expresso na referida alínea b). Custas pelo réu, ora recorrido. *** Lx., 27/2/2025 Rui Machado e Moura (Relator) Ferreira Lopes (1º Adjunto) Barateiro Martins (2º Adjunto) |