Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12223/16.6T8PRT.P2-B.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE LEAL
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
QUESTÃO NOVA
RECLAMAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I. Na reclamação para a conferência deduzida no âmbito do art.º 643.º do CPC não cabe a suscitação de questões ou argumentos novos, não deduzidos na reclamação inicial.

II. O art.º 671.º n.º 3 do CPC não enferma de inconstitucionalidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Em ação declarativa de condenação em que permaneceram como Autora M..., Lda. e como Ré Portprimland, S.A., em 17.5.2022 foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, na procedência parcial da presente ação intentada pela autora M..., Lda. contra a ré Portprimland, S.A.:

− absolvo a ré do pedido de condenação na resolução do contrato celebrado com a autora;

− condeno a ré a pagar à autora a quantia correspondente à diferença entre o preço que a ré tenha pago à autora pela venda de 15.275 Kg de kiwis da colheita de 2015 e o preço devido (de € 4,00 por Kg), a liquidar em incidente ulterior, acrescido dos juros de mora à taxa legal (art. 559.º do Cód. Civil), calculados sobre a parte do preço em falta que se vier a liquidar, desde a data da citação da ré Portprimland, S.A. para a presente ação e até integral pagamento.

Custas da ação a cargo de ambas as partes em partes iguais”.

2. Do assim decidido apelaram a A. e a R., tendo em 26.6.2023 a Relação do Porto proferido acórdão que culminou com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedentes os recursos interpostos por A. e R., consequentemente confirmando a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente.

3. A A. interpôs revista do dito acórdão, rematando com as seguintes conclusões:

1ª - O pedido da acção é a resolução de contrato de fornecimento da fruta produzida pela A, na campanha de 2015, por incumprimento do preço pela Ré e a correspondente indemnização.

2ª – A indemnização pedida corresponde ao valor equivalente da fruta, já consumida, cuja restituição era impossível. (artigo 566º nº 1, 433º e 289º nº 1 do CC)

3ª - Pela P... foi transmitido, à Ré, o contracto fornecimento da fruta produzida pela A, que esta celebrara com a P... (facto 5) – nele se inserindo a venda, na campanha de 2015, a que a A estava já obrigada.

4ª - A Ré incumpriu o transmitido contrato de fornecimento, não pagando o preço, acordado para a campanha de 2015.

5ª - O incumprimento do preço acordado, com revelada intenção de incumprir, confirmada nos preliminares da acção (e no comportamento processual) - é fundamento da pedida resolução.

6ª - Confirmando a sentença da 1ª instância, o Acórdão recorrido fez errada aplicação do artigo 886º do CC.

7ª - O articulado superveniente tem como causa de pedir o incumprimento do mesmo contrato de fornecimento, causa de pedir da acção.

8ª – O pedido de indemnização, constante do articulado superveniente, é ampliação da pedida na petição inicial – fundamentado em supervenientes factos danosos.

9ª - Violados foram os artigos 886º do CC e 265º nº 2 do CPC

Nestes termos, DEVE o recurso ser julgado procedente -. revogando-se o Acórdão recorrido

a)- condenando-se a Ré a ver resolvido o contrato de fornecimento de fruta, (que lhe foi transmitido pela P...) (Factos provados 4 e 5);

b) - mandando-se admitir o articulado superveniente, e

c) – anulando-se o julgamento, para ampliação da correspondente matéria de facto”.

4. A R. contra-alegou, pronunciando-se pela inadmissibilidade da revista, por ocorrer “dupla conforme” e, caso assim não se entendesse, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção do acórdão recorrido.

5. Em 27.10.2023 foi proferido despacho de rejeição da revista, em virtude de o acórdão recorrido ter confirmado a sentença recorrida, sem fundamentação essencialmente diferente.

6. A recorrente reclamou deste despacho.

7. Realizou-se conferência na Relação, tendo sido proferido acórdão em que se confirmou a decisão reclamada, mantendo-se a não admissão do recurso.

8. Desse acórdão reclamou o A., ao abrigo do art.º 643.º do CPC, nos seguintes termos, que se transcrevem:

“O extenso Acórdão recorrido decidiu a apelação da Autora, em sintética meia dúzia de linhas – como se transcreve:

No que respeita ao recurso da A., no que à resolução contratual concerne – em causa o contrato verbal de venda da colheita de 2015 e apenas esse foi celebrado entre A. e R. – tão pouco lhe assiste qualquer razão.

A A.. “peticionou o cumprimento do contrato, ou seja, a condenação da R. ao pagamento do valor a que se obrigara nos termos contratuais. Tal direito foi-lhe reconhecido. E como tal inexiste fundamento para uma alegada resolução contratual.”

A qual aliás seria contrária ao previsto no artigo 886º do CC como bem notou o tribunal a quo.

1 Essencialmente diferente é a fundamentação da sentença – começando pela definição do objeto do litígio (o pedido):

“Condenação da ré a ver resolvido o contrato celebrado com a autora, por incumprimento culposo/ condenação da ré a pagar à autora uma indemnização a liquidar em incidente subsequente, correspondente à diferença entre o preço devido pela campanha de 2015 e o efetivamente pago, acrescida de juros à taxa legal.

A diferença na fundamentação é essencial

Pedido foi a resolução contratual por incumprimento do preço acordado.

Em vão se insistiu que houve que pedir a restituição do equivalente valor da fruta prestada. (artigo 566º nº 1 do CC) O valor correspondente – na expressão do pedido.

Impossível era a restituição, porque já consumida a fruta prestada.

2 A diferença nas duas decisões espelha-se na fundamentação.

Na 1ª instância, fez-se apelo ao artigo 886º do CC, quanto ao pedido resolutório. Transmitida a propriedade da coisa vendida - fica impedida a resolução, por incumprimento do preço.

Uma vez mais - as instâncias estão distanciadas na fundamentação.

II A reclamante pedira que se fundamentasse a invocada dupla conformidade – mediante qualificação jurídica dos factos provados.

E arguiu inconstitucionalidade, por tal falta de fundamentação – a de tal despacho. A falta de fundamentação deste, posterior ao Acórdão recorrido – era imprevisível à data das alegações da revista.

3 A recorrente foi notificada para pronunciar-se sobre proposta convolação desta reclamação, para reclamação para a conferência, no tribunal quo.

4 Segundo o Acórdão reclamado – “ao contrário do que alega a recorrente, o tribunal a quo claramente afirmou que “resulta da fundamentação de facto que entre a autora e a ré existiu uma relação comercial pela qual a autora, em agosto de 2015, no exercício da sua atividade de exploração agrícola, produzindo kiwis das variedades Tahi e Rua, declarou vender à ré, declarando esta comprar (acordo verbal) 15.275 Kg.de kiwi das variedades Tahi e Rua, da campanha de 2015, frutos; que a autora entregou à ré e que foram por esta recebidos.”

E que “o que existe juridicamente entre as partes desta ação é um contrato verbal (consensual) de fornecimento de frutas pela autora à ré”.

Concluiu o Acórdão reclamado:

Assim afastando a pela ora reclamante invocada ocorrência de uma qualquer transmissão unilateral da posição contratual da “P...” para a Ré. Não obstante (a sentença da 1ª instância) referir que tal relação contratual surgiu “na sequência da comunicação efetuada pelo representante da P... de que passaria a ser a ré a adquirir e comercializar a fruta que, até então era, no âmbito e em execução/cumprimento do acordo escrito referido em 4 – factos provados −, vendida à sociedade P....”

5 Com o devido respeito, a reclamante terá de confessar que não se entende – um contrato de fornecimento (facto provado nº 4), com notificada transmissão à Ré (facto 5) - no mesmo momento, deixa de existir!

“O designado contrato de fornecimento reconduz-se, em regra, a um contrato de compra e venda desenvolvido por sucessivas, contínuas e periódicas prestações autónomas de coisas pelo vendedor mediante o pagamento pela contraparte do respectivo preço.

Acórdão do STJ de 29/11/2005 - in

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/9DE731A42E6392F1802570EC003F1871

Segundo a jurisprudência, do STJ, no contrato de fornecimento há uma só venda, com sucessivas e autónomas e periódicas prestações, ao longo do tempo, mediante o pagamento do preço de cada uma.

6 Como é que provada a notificação da transmissão do contrato de fornecimento da fruta (facto 5 - faculdade reservada à sublicenciada P... – por força do contratado com a S...) – tal contrato de fornecimento e sua transmissão passam a inexistir ?

O Acórdão recorrido confundiu os factos.

A qualificação jurídica não pode operar a sua alteração.

Havia, ou não um contrato de fornecimento?

7 Vamos por partes.

O facto provado nº 4 é um contrato de fornecimento, celebrado pela Autora, com a P..., com vigência até 2022.

Quando estava a iniciar-se a colheita de 2015, o representante da P... notificou aos produtores que a sua posição contratual passaria a ser ocupada pela Ré (ainda não constituída)

Ponto 2.

A partir daí, ocorre alteração subjetiva, na relação contratual.

Os produtores ficaram obrigados a entregar a fruta à Ré.

Pela entrega da fruta à Ré, em tal contrato de fornecimento fica enxertado contrato de venda à Ré - sem necessidade de declaração de vontade expressa, na realização de tal venda.

8 É assim que o Acórdão reclamado deixa a descoberto a confusão em que se incorreu no Acórdão recorrido.

A relação contratual com a Ré não nasceu de contrato com a ela celebrado.

Donde que

Se havia tal contrato de fornecimento, com vigência até 2022 – fica em crise a fundamentação do Acórdão recorrido, numa venda isolada da fruta da campanha de 2015.

É a primeira confusão do Acórdão recorrido levando à limitação do objeto do contrato à produção de 2015. E à improcedência da pedida resolução.

Com efeito,

9 O facto 5, transcrito no Acórdão é a notificação da transmissão da posição contratual - facto a que os produtores foram estranhos.

Foram notificados dessa transmissão – quando a Ré nem estava ainda constituída, facto que aqueles desconheciam.

Inexistindo ainda a Ré (facto 7) – com ela não poderia ser celebrado contrato.

10 Com uma relevante alteração.

Após essa notificação alterou-se a relação, por modificação subjetiva.

A entrega da fruta pelos produtores, mediante o preço acordado, passou a constituir venda, agora à Ré.

Venda não contratada entre A e Ré – mas resultante do transmitido contrato de fornecimento. É o erro de base do Acórdão recorrido.

Estes os factos – os singelos factos.

11 O Acórdão reclamado deixa a descoberto o equívoco do Acórdão recorrido. A relação contratual é de um contrato de fornecimento - com vigência até 2022.

12 A entrega da fruta de 2015, não cumpriria o objeto do contrato - mas só pequena parcela. Não estaria preenchido o preceituado no artigo 886º do CC)

Este foi o erro básico, na sentença da 1ª instância - distinto do da Relação, lendo mal o pedido da ação . Ora,

13 A incumpridora Ré entendeu continuar a atormentar a Autora, com base no contrato de fornecimento, que lhe foi transmitido (facto 4 da sentença.)

14 Mostra-se nos autos que a Ré, pelos comuns representantes do seu grupo, constituído por ela, a S... e a P..., há mais de 6 anos exige da Autora indemnização de mais de meio milhão de euros, por (justificadamente) ter deixado de fornecer a fruta, à incumpridora Ré. (DOCs que, anexam, para mais fácil consulta)

15 Para a dupla conformidade não basta dizer-se que “o Acórdão da relação confirmou o decidido pela 1ª instância.

REQUER a V. Exª que, revogado o despacho reclamado – seja mandado admitir o recurso interposto.”

9. A reclamada respondeu, pugnando pela improcedência da reclamação.

10. Por decisão singular proferida em 28.02.2024, o relator (no STJ) julgou a reclamação improcedente e consequentemente manteve o acórdão reclamado.

11. A reclamante/recorrente reclamou desta decisão para a conferência, nos seguintes termos, que se transcrevem:

“I A recorrente foi notificada de despacho da Exº Relatora na Relação, não admitindo a interposta revista – nos seguintes termos:

“Recurso da A. “M..., Lda.”:

O Acórdão recorrido confirmou a decisão proferida pela 1ª instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente.

Assim e porquanto não estamos perante caso em que o recurso seja sempre admissível, verificada a dupla conforme e não tendo sido interposto recurso ao abrigo do artigo 672º nº 1 do CPC, verifica-se a inadmissibilidade do recurso interposto. Pelo que se decide não admitir o recurso de revista interposto

1

Arguida nulidade deste despacho - o Acórdão reclamado passou da falta de fundamentação de direito, do despacho da Exª Relatora, à contradição na fundamentação.

Não são compatíveis as afirmações de que, entre a A e a Ré houve uma venda isolada da produção de 2015.

Para de seguida passar a dizer-se que “o que existe é um contrato de fornecimento, pela A à Ré”.

Que “tal contrato de fornecimento desmente que tenha havido qualquer transmissão unilateral da posição contratual.” – contradizendo o que se diz de seguida: que tal fornecimento aconteceu “na sequência da comunicação efetuada pelo representante da P... de que passaria a ser a ré a adquirir e comercializar a fruta que, até então era, no âmbito e em execução/cumprimento do acordo escrito referido em 4 – factos provados −, vendida à sociedade P....” (facto provado nº 5)

II O douto despacho reclamado decidiu, nos termos que se transcrevem:

A sentença reconheceu à A. o direito ao pagamento do preço de € 4,00 por kg, relegando para liquidação ulterior a determinação da diferença entre o montante devido e o montante que a R. tivesse pago à A., qualificando essa prestação devida como cumprimento do contrato, que não indemnização, qualificação essa que fora invocada pela A.”

2

Com o devido respeito - o despacho, ora reclamado, não leu corretamente a sentença.

Eis a fundamentação desta, quanto ao negado direito de resolução.

Não se afigura que a autora tenha o invocado direito de resolução do contrato de compra e venda dos kiwis da colheita de 2015 celebrado com a autora, desde logo por não verificação do incumprimento definitivo que é pressuposto do direito de resolução (art. 801.º, n.º 2, do Cód. Civil).

Com efeito, o incumprimento definitivo apenas ocorre – arts. 801.º a 803.º e 808.º do Cód. Civil − quando:

d) o devedor manifeste que não quer cumprir ou que não cumprirá, podendo esta manifestação resultar de declaração expressa ou de atos concludentes.

Consideramos que, face aos factos apurados, não é possível afirmar o preenchimento de nenhuma destas hipóteses.

Ainda que assim se não entendesse – por se considerar que o litígio entre as partes quanto ao preço devido seria passível de se subsumir na hipótese prevista na al. d) − sempre se nos afigura que o direito de resolução invocado pela autora (vendedora) se encontra excluído por ser aplicável ao caso sub judice o disposto no art. 886.º do Cód. Civil.

Em conformidade, improcede o pedido de condenação da ré a ver resolvido o contrato celebrado com a autora, por incumprimento culposo.

3

A causa de pedir consiste no facto jurídico concreto ou no complexo de factos jurídicos concretos, realmente ocorridos, participantes, portanto, da relação material controvertida invocada pelo autor na petição inicial, dos quais procede o efeito jurídico pretendido, a pretensão por si deduzida em juízo. (Acórdão da Relação de Guimarães de 9/10/2018, in

https://www.dgsi.pt/Jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/adadd828a36d7612802583 3c00371762?OpenDocument

Inadvertidamente, no momento da decisão, a sentença da 1ª instância alterou a provada causa de pedir da acção: o contrato e fornecimento da fruta, até 2022, transmitido pela P.... (factos dos nºs 4 e 5 da sentença)

E substitui-a pela entrega duma parcela da prestação, a que a A se obrigou – a relativa à produção de 2015 – mediante o preço acordado. (facto nº 6)

Ao contrário da sentença – o Acórdão da Relação altera, ainda, o pedido da acção.

E nada se diz da jurisprudência citada, quanto à natureza jurídica do contrato de fornecimento, que seria ocioso repetir aqui.

Segundo esta, no contrato de fornecimento há uma venda, com prestações divididas, no caso, pelos anos de vigência, até 2022.

Nada se diz da alteração subjetiva, no transmitido contrato de fornecimento da fruta – implicando que a entrega da fruta à Ré, passe a ser venda à Ré, sendo inútil expressa declaração de vontade de vender.

A venda resultava já do contrato, celebrado com a P....

O Acórdão reclamado nada diz sobre a necessidade e suficiência do acordo no preço, para a entrega de 2015 – operada que estava tal transmissão do contrato de fornecimento. (facto 6)

Entrega que podia ser feita ao funcionário da receção nas instalações da Ré

III

A entrega de 2015 não cumpriu a prestação, a que a Autora se obrigou, até 2022. (factos 4 e 5)

A direta consequência deste erro foi ter por cumprida a prestação da A – tomada pelo todo do contrato de fornecimento, a entrega da parcela de 2015 - com errada aplicação do artigo 886º do CC.

Erradamente considerando que na entrega da produção de 2015 se esgotava a “obrigação emergente da relação contratual que existiu entre as partes” (alteração da causa de pedir - factos 4 e 5 da sentença) - a sentença condenou a Ré no pagamento do incumprido preço. (factos 9 e 10)

4

Na sentença não se diz que o pedido é de cumprimento do contrato.

Repetidamente – em vão, a recorrente alegou que, um ano depois da entrega da fruta, esta tinha sido consumida.

A devida restituição do prestado à Ré, só poderia fazer-se por equivalente valor (artigo 566º mº 1 do CC)

Ao contrário do Acórdão da Relação - na sentença não se afirmou que o pedido é de cumprimento do contrato.

Esta é uma inveracidade, na fundamentação do Acórdão reclamado.

À alterada causa de pedir, o Acórdão da Relação acrescenta que a obrigação da entrega da produção de 2015, à Ré, resulta de contrato celebrado entre a A e a Ré – acrescentando ter sido o único que as vinculava, contrariando o facto 5 da matéria de facto.

Salvo o devido respeito - o contraditório só se cumpre ouvindo as partes, atentando no alegado. Não basta a cópia deste, no relatório das decisões.

Assim se nega às partes o direito a um processo equitativo. (artigo 20º nº 4 da CRP)

IV

É inconstitucional, por ofensa dos artigos 13º, 20º nºs 1 e 4, 202º nº 2 e 205º nº 1 da CRP, o artigo 671º nº 3 do CPC, interpretado no sentido de permitir leitura, que altera o pedido e a causa de pedir da acção.

Ofensa do artigo 13º, porque há tratamento desigual, no confronto com a generalidade dos cidadãos.

Do artigo 20º nº 1, porque assim se nega o acesso ao direito.

Do artigo 20º nº 4, porque violado o princípio da igualdade, nega-se o direito ao processo equitativo.

Do artigo 202.º nº 2 porque, deste modo, os tribunais deixam de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Violação do artigo 205º nº 1, porque pior que falta de fundamentação é uma fundamentação que não corresponda à verdade processual.

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Vista tal fundamentação do Acórdão reclamado - este é o primeiro momento processual, para aquela arguição de inconstitucionalidade da norma, cuja mobilização era imprevisível – na expressão do Acórdão do TC, nº 92/2024.

O que releva, na questão da admissibilidade de recurso para o TC.

REQUER a V. Exªs que seja conhecida a suscitada inconstitucionalidade.

Terá de concluir-se que há diferença essencial na fundamentação da decisão das instâncias.

DEVE julgar-se procedente a presente reclamação e admitir-se a revista.”

12. A reclamada respondeu à reclamação, pugnando pela sua improcedência.

13. Colheram-se os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A reclamação para a conferência visa possibilitar que o coletivo de juízes do tribunal ad quem reaprecie a impugnação que foi alvo da decisão singular do relator (tudo nos termos conjugados dos artigos 643.º n.º 4 e 652.º n.º 3 do CPC).

Essa reapreciação terá como objeto as mesmas questões suscitadas na impugnação sobre a qual o relator se debruçou, como se a impugnação fosse apreciada, pela primeira vez, pelo coletivo.

Conforme pondera Abrantes Geraldes, em nota ao art.º 652.º do CPC, “[m]ais do que encarar o requerimento da parte no sentido da convocação da conferência como uma forma de impugnação da decisão singular do relator, trata-se de um instrumento que visa a substituição dessa decisão por uma outra com intervenção do coletivo, passo fundamental para que possa ser interposto recurso de revista nos termos gerais” (Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, 2022, Almedina, p. 303).

Daí que na reclamação não podem ser suscitadas questões novas ou apresentados novos argumentos (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 304; José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, 3.ª edição, 2022, Almedina, p. 149; STJ, 17.10.2019, processo n.º 8756/16.1T8LSB.L1.S2, consultável em www.dgsi.pt).

Tudo sem prejuízo da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso.

Recorde-se, também, que em sede da reclamação prevista no art.º 643.º não cabe apreciar o mérito do recurso que foi alvo da rejeição reclamada.

In casu, a decisão reclamada (proferida pela Relação) rejeitou a revista interposta pela A. (ora recorrente/reclamante) com base na dupla conforme, obstáculo ao recurso que considerou verificar-se.

É nesta perspetiva que iremos averiguar do bem fundado do indeferimento do recurso.

Nessa senda assentar-se-á no teor da decisão singular ora reclamada, com a qual se concorda.

2. O factualismo relevante a levar em consideração é o supra exposto no Relatório (I).

3. O Direito

Dúvidas não existem quanto à admissibilidade geral da revista, quanto ao seu objeto, valor e sucumbência (artigos 671.º n.º 1 e 629.º n.º 1 do CPC).

É sabido, porém, que o n.º 3 do art.º 671.º do CPC consagra o obstáculo à revista comummente designado de “dupla conforme”:

Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

A jurisprudência do STJ tem densificado o conceito da dupla conforme no sentido de que apenas inexiste dupla conforme quando se esteja perante “uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância” (acórdão do STJ de 19.02.2015, processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt,– sublinhados nossos).

Isto significa que a verificação de fundamentação essencialmente diferente, “não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que o âmago fundamental do enquadramento jurídico seguido pela Relação seja completamente diverso daquele que foi seguido pela 1.ª instância.” Ou seja, só deixa de existir dupla conforme “quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada” (acórdão do STJ, de 31.3.2022, processo n.º 14992/19.2T8LSB.L1.S1). Por isso, como se diz no mesmo acórdão (STJ, de 31.3.2022), citando-se Abrantes Geraldes,a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representa, efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância”.

Expostas estas premissas, vejamos então o caso a que se reporta esta reclamação, deduzida nos termos do art.º 643.º do CPC.

A 1.ª instância alicerçou a sua decisão nos seguintes fundamentos:

- Entre a A. e a R. foi celebrado, em agosto de 2015, um contrato de compra e venda mercantil, que teve por objeto mediato a colheita de 2015 de kiwis produzidos pela A. e adquiridos pela R.;

- A propriedade dos frutos transmitiu-se da A. para a R., com a entrega daqueles pela A. à R.;

- Atendendo ao disposto no art.º 883.º do Código Civil, o preço que a R. deveria pagar à A., de acordo com a vontade das partes e em cumprimento pontual do contrato celebrado, era de € 4,00/kg;

- A A. não tem o invocado direito à resolução do contrato de compra e venda dos kiwis da colheita de 2015, desde logo por não verificação do incumprimento definitivo que é pressuposto do direito de resolução (art.º 801.º n.º 2 do Código Civil);

- Ainda que assim não se entendesse, o direito de resolução por parte da A. estaria excluído, por ser aplicável ao caso sub judice o disposto no art.º 886.º do Cód. Civil;

- Assim, a A. tem direito ao pagamento da diferença entre o preço que a R. tiver pago e o preço devido (de € 4,00/kg x 15 275 kg), a liquidar em incidente ulterior;

- Sendo certo que o tribunal é livre na subsunção dos factos ao direito, pelo que a R. vai condenada nessa quantia a título de cumprimento integral da obrigação emergente da relação contratual que existiu entre as partes, e não como indemnização, qualificação usada pela A..

Quanto à qualificação do contrato como sendo um contrato de compra e venda mercantil, veja-se a seguinte transcrição da sentença:

Assim, face a tal factualidade é de qualificar a relação ou acordo entre as partes, referente ao fornecimento de kiwis da colheita de 2015, como um contrato de compra e venda mercantil, que teve por objeto mediato a colheita de 2015 de kiwis produzidos pela autora e adquiridos pela ré, no exercício da sua atividade comercial de compra e venda de frutas: é um contrato de compra e venda objetiva e subjetivamente comercial, de frutos naturais pendentes, conforme resulta das disposições conjugadas do art. 212.º, n.º 1 e n.º 2, do Cód. Civil, aplicável ex vi art. 3.º do Cód. Comercial, com os arts. 13.º, 2.º, 230.º e 463.º, n.º 1, todos do Cód. Comercial”.

Repete-se, a sentença negou à A. a pretendida (na tese da 1.ª instância) declaração de resolução do contrato de compra e venda mercantil da produção de fruta do ano de 2015, por se entender que não se provara que a R. incumprira definitivamente o contrato e que, de todo o modo, tal não seria possível atendendo ao disposto no art.º 886.º do Código Civil (operada que fora a transmissão da propriedade da fruta e efetuada a respetiva entrega, a vendedora não podia resolver o contrato por falta de pagamento do preço). A sentença reconheceu à A. o direito ao pagamento do preço de € 4,00 por kg, relegando para liquidação ulterior a determinação da diferença entre o montante devido e o montante que a R. tivesse pago à A., qualificando essa prestação devida como cumprimento do contrato, que não indemnização, qualificação essa que fora invocada pela A..

Ora, o acórdão recorrido manteve esse mesmo veredito, não alterando a respetiva fundamentação.

A propósito da apelação da R., a Relação concordou com a decisão do tribunal de 1.ª instância, ao considerar que o pedido formulado pela A. contra a R. era um verdadeiro pedido de cumprimento contratual, ainda que a A. o tivesse qualificado como pedido indemnizatório.

Veja-se o que se escreveu no acórdão:

Convocando uma vez mais o já citado princípio de que ao tribunal incumbe a integração e qualificação jurídica dos factos (vide artigo 5º nº 3 do CPC), resulta claro que o pedido formulado pela autora contra a R. era o do pagamento por si entendido como devido pela venda dos seus frutos. E como tal de um verdadeiro pedido de cumprimento contratual se trata, ainda que a autora o tenha qualificado como pedido indemnizatório”.

Quanto à qualificação jurídica do contrato celebrado entre a A. e a R. Portprimland, vejam-se os seguintes trechos do acórdão:

Tal como resulta do relatório supra, na sequência do decidido pelo Ac. do STJ proferido em 17/12/2020 prosseguiram os presentes autos apenas contra a R. “Portprimland” e para a apreciação do pedido deduzido pela autora contra esta mesma R., fundado em contrato verbal entre ambas celebrado – contrato de venda comercial de frutos naturais pendentes”.

“Os autos prosseguiram, portanto, para apreciação do pedido formulado pela autora contra a R. tendo por referência um alegado contrato comercial verbal celebrado entre A. e R., tendo por objeto a venda de frutos naturais pendentes.

Contrato este regulado nos termos previstos nos artigos 2º, 13º, 230º e 463º do C. Com., e ex vi artigo 3º do mesmo código, artigos 212º nºs 1 e 2, 879º, 880º e 408º nº2 do CC (este quanto à transferência da propriedade).

Os termos em que as partes regularam a sua relação comercial, são os que se extraem dos pontos 5 e 6, 8 e 10 dos factos provados.

Destes resulta que embora as partes tenham tido presente um valor de referência para o preço a pagar pelo kg de fruta, o mesmo ficou de ser definido a final, após concluída a comercialização de toda a fruta.

Nessa altura a R. indicou à A. o valor de € 2,82 kg como preço final. Valor do qual a A. discordou, atendendo ao que fora referido e mencionado em 6 dos factos provados – ou seja de que e salvo circunstâncias anormais, o preço a praticar seria o de € 4,00/kg.

Circunstâncias anormais que a R. não alegou existirem.

Tendo aliás sido esse o valor pago aos produtores franceses – vide facto provado.

Valor que assim se entende, de acordo com o previsto no artigo 883º do CC e perante o quadro factual apurado ser o devido à A., tal como o tribunal a quo o justificou”.

E, especificamente no seio da apelação da A., no acórdão exarou-se o seguinte:

No que respeita ao recurso da A., no que à resolução contratual concerne – em causa o contrato verbal de venda da colheita de 2015 e apenas esse foi celebrado entre A. e R. – tão pouco lhe assiste qualquer razão.

A A. por via desta ação e nos termos que deixámos já analisados peticionou o cumprimento do contrato, ou seja, a condenação da R. ao pagamento do valor a que se obrigara nos termos contratuais. Tal direito foi-lhe reconhecido. E como tal inexiste fundamento para uma alegada resolução contratual.

A qual aliás seria contrária ao previsto no artigo 886º do CC como bem notou o tribunal a quo” (negritos nossos).

Isto é, convergindo com o veredito da inexistência de fundamento para a resolução do contrato (o contrato verbal celebrado entre a A. e a R. em agosto de 2015, único tido em consideração por ambas as instâncias) e com a condenação da R. no cumprimento do contrato, no que concerne ao preço devido, a Relação alinhou o seu juízo pelo da 1.ª instância.

Conclui-se, assim, que o acórdão da Relação confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância.

Assim, verifica-se a “dupla conforme” prevista no n.º 3 do art.º 671.º do CPC, o que configura obstáculo à admissibilidade da revista.

Sendo irrelevantes, para afastar a constatação da dupla conforme, os alegados vícios de contradição na fundamentação e de “inveracidade” que a reclamante só agora imputa ao acórdão reclamado (cfr. I 1 e III 4 da reclamação para a conferência). Tais vícios, não sendo de conhecimento oficioso (tanto mais que não são evidentes), extravasam o âmbito de conhecimento por parte desta conferência. Por outro lado, a dupla conforme afere-se pelo teor da sentença e do acórdão recorridos, e não pela interpretação que deles alegadamente foi feita pelo acórdão reclamado.

Em sede de reclamação para a conferência a reclamante alega que “É inconstitucional, por ofensa dos artigos 13º, 20º nºs 1 e 4, 202º nº 2 e 205º nº 1 da CRP, o artigo 671º nº 3 do CPC, interpretado no sentido de permitir leitura, que altera o pedido e a causa de pedir da acção”.

A inconstitucionalidade de norma de direito ordinário que se tenha por aplicável é questão de conhecimento oficioso.

Ora, não se vislumbra que, nestes autos, tenha sido dada ao art.º 671.º n.º 3 do CPC a interpretação apontada pela reclamante.

O art.º 671.º n.º 3 foi aplicado em harmonia com o fim a que se destina, a racionalização do acesso ao STJ.

A jurisprudência constitucional é unânime no sentido de que, afora os casos atinentes ao sancionamento penal, o direito de acesso aos tribunais não impõe a garantia (como regra ou em termos gerais) do duplo grau de jurisdição (cfr., muito em síntese, v.g., acórdãos do Tribunal Constitucional, 740/2020, de 10.12.2020 e 176/2021, de 06.4.2021).

E, se assim é, por maioria de razão se reconhece ao legislador ordinário ampla margem de conformação do direito ao recurso na vertente de uma tripla atuação jurisdicional, isto é, no que concerne ao acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto terceiro e último grau de decisão do litígio. A imposição de restrições ao recurso para o STJ justifica-se por razões de economia de meios e de salvaguarda da necessária razoabilidade do prazo de resolução dos litígios, em linha com o disposto no n.º 4 do art.º 20.º da CRP (cfr., v.g., acórdão do Tribunal Constitucional 361/2028, de 28.6.2018).

De todo o modo, a restrição imposta pela dupla conforme admite exceções, em termos que adequam a dita restrição ao princípio de proporcionalidade emanado do art.º 2.º da CRP.

Com efeito, o obstáculo da dupla conforme poderá ser excecionalmente ultrapassado, se se verificar alguma das três situações previstas no n.º 1 do art.º 672.º do CPC:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

In casu, não foi invocada nenhuma dessas situações excecionais.

Assim, verificada que foi a reiteração de idêntica fundamentação nos juízos das duas instâncias, a revista não pode ser admitida.

Pelo exposto, a reclamação improcede.

III. DECISÃO

Pelo exposto julga-se a reclamação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão singular reclamada, confirmando-se a rejeição da revista pelo tribunal a quo.

As custas da reclamação são a cargo da reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (art.º 7.º n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais, tabela II).

Lx, 23.4.2024

Jorge Leal (Relator)

António Magalhães

Jorge Arcanjo