Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18252/19.0T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE DO PRODUTOR
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
COMPRA E VENDA
PRODUTO DEFEITUOSO
ÓNUS DA PROVA
NEXO DE CAUSALIDADE
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PRESUNÇÃO LEGAL
DEVER DE INFORMAÇÃO
EQUIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 03/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
I - A definição ampla do n.º 1 do art. 2.º do DL n.º 383/89, de 06-11, compreende não só o produtor real, mas também o chamado produtor aparente, que, sob o seu próprio nome, firma ou marca, oferece e lança no mercado produtos.

II - O DL n.º 383/89, de 06-11, consagra o carácter objetivo da responsabilidade do produtor.

III - Por produto defeituoso entende-se, não aquele que é inapto para o fim a que se destina, mas ele que carece da segurança legitimamente esperada, decorrente de um defeito de conceção, de fabrico ou de informação.

IV - O defeito do produto, por falta de segurança legitimamente esperada, pode derivar da forma como o produto é colocado em circulação, designadamente da forma como é apresentado, e das instruções e avisos que o acompanham.

V - O produtor deve ter o cuidado de apresentar, de forma apropriada, pragmática, explícita, clara e sucinta, as advertências e instruções exigíveis segundo a possibilidade tecnológica, em ordem a obter o resultado pretendido, o esclarecimento adequado do destinatário acerca dos riscos envolvidos.

VI - Os danos não patrimoniais estão compreendidos nos danos resultantes de lesão pessoal referidos no art. 8.º do DL n.º 383/89, de 06-11.

VII - Conforme jurisprudência consolidada deste STJ, o juízo de equidade em que se funda a fixação do montante da indemnização pelas instâncias só é passível de censura se não se contiver dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que a legitima, tendo por referência a evolução da jurisprudência e a observância do princípio da igualdade no tratamento prudencial de situações similares.

VIII - Tendo em conta a perturbação e angústia sofrida por cada um dos autores com o incêndio que deflagrou na sua habitação quando o autor reabastecia a lareira, e que a consumiu quase por completo, e destruiu todos os objetos que aí existiam, em momento em que passavam a véspera de natal com familiares e o seu filho de três anos de idade, acabando por passar a noite de natal no hospital e ambulância, os momentos de angústia e perturbação que sentiram durante os tempos seguintes, e que, durante muito tempo, os impediu, e ao filho, de dormirem, mostra-se moderado, ponderado e equitativo o montante de € 10 000,00 fixado pela Relação a título de indemnização, para cada um dos autores, pelos danos não patrimoniais sofridos.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça

RELATÓRIO

Em 13.9.2019, AA e esposa, BB, intentaram a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra Clearfire, Lda., pedindo a condenação da R. a ressarci-los: a) a título de danos patrimoniais, com a quantia de €38.572,17 (trinta e oito mil quinhentos e setenta e dois euros e dezassete cêntimos), acrescida dos juros vincendos à taxa legal desde a data da citação da R. até efetivo e integral pagamento; e b) a título de danos não patrimoniais, no valor de €70.000,00 (setenta mil euros), acrescido dos juros à taxa legal vincendos desde a data da citação da Ré e até efetivo e integral pagamento.

Citada, a R. contestou, por impugnação (no que ora importa), e terminou pedindo a improcedência da ação, e a condenação dos AA., como litigantes de má fé.

Depois da realização de perícia e audiência de julgamento, em 18.10.2023, foi proferida sentença, que julgou a ação improcedente e absolveu a R. do pedido, bem como julgou improcedente o pedido de condenação dos AA. como litigantes de má fé.

Inconformados com a decisão, apelaram os AA., tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, em 22.10.2024, proferido acórdão em que julgou a apelação parcialmente procedente, e, em consequência, revogou a decisão recorrida, e condenou a R. a pagar aos AA.: - a título de danos patrimoniais, o valor que vier a ser liquidado, correspondente à destruição do interior do imóvel, da decoração e mobiliário, e que se cifra entre €2.964,76 e €38.572,17, deduzido do valor de €500,00 a que alude o art. 9º do DL nº 383/89, de 6.11, com juros de mora legais desde a sua liquidação e até integral pagamento; - a título de danos morais, o valor de €20.000, com juros de mora legais desde a citação até integral pagamento.

A R./apelada interpôs recurso de revista, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

I. Os Autores intentaram uma ação declarativa de condenação contra a Ré, Clearfire, Lda., visando a sua responsabilização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados por um incêndio originado por uma lareira de bioetanol vendida pela Ré a estes.

II. Os Autores peticionaram a condenação da Ré ao pagamento de €38.572,17 a título de danos patrimoniais e €70.000,00 a título de danos não patrimoniais, ambos acrescidos dos respetivos juros.

III. A Ré contestou a ação, alegando que a responsabilidade pelo incêndio é dos Autores, devido ao uso negligente da lareira, e não por qualquer defeito ou má instalação por parte da Ré.

IV. A Ré afirmou que explicou detalhadamente o funcionamento e as medidas de segurança da lareira no momento da compra e instalação, e que a instalação foi feita corretamente, utilizando um nível de laser para garantir que a lareira estava nivelada.

V. A Ré argumentou que o incêndio ocorreu porque os Autores não seguiram as instruções de segurança.

VI. A Ré negou responsabilidade pelos danos materiais e pessoais alegados pelos Autores, argumentando que os valores dos danos patrimoniais apresentados são inflacionados e não devidamente comprovados, e que os danos não patrimoniais são exagerados e sem fundamento.

VII. Na sentença de primeira instância, o Tribunal julgou improcedente a ação, absolvendo a Ré do pedido, com base na conclusão de que a lareira não tinha defeitos de fabrico ou instalação, e que os Autores não lograram demonstrar a sua pretensão.

VIII. O Tribunal de primeira instância considerou que a lareira era segura e que os Autores não seguiram corretamente as instruções de segurança, nomeadamente, não fecharam a portinhola de segurança antes de reacender a lareira.

IX. Os Autores interpuseram recurso da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando que a Ré deveria ser responsabilizada pelas instruções de segurança incompletas ou incorretas fornecidas com a lareira.

X. O Tribunal da Relação de Lisboa revogou a sentença de primeira instância, condenando a Ré a pagar aos Autores uma indemnização pelos danos patrimoniais, a liquidar entre €2.964,76 e €38.572,17, e €20.000,00 a título de danos não patrimoniais, com juros de mora legais.

XI. O Tribunal da Relação considerou que a Ré é responsável pelas instruções de segurança incompletas ou incorretas fornecidas com a lareira, que não ofereceu a segurança que legitimamente seria de esperar em condições normais de utilização.

XII. O Tribunal da Relação fundamentou a sua decisão na Lei de Defesa do Consumidor e no Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de novembro, que estabelece a responsabilidade objetiva do produtor pelos danos causados por defeitos dos produtos que coloca no mercado.

XIII. O Tribunal da Relação considerou que a Ré se apresenta como produtora da lareira, nos termos do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 383/89, por ter aposto o seu logótipo no manual de instruções e não ter identificado outro produtor.

XIV. O Tribunal da Relação concluiu que o defeito do produto reside na incompletude ou incorreção das instruções de segurança fornecidas pela Ré, que não alertavam adequadamente para a necessidade de fechar a portinhola de segurança e aguardar o arrefecimento completo do queimador antes de reabastecer a lareira.

XV. O Tribunal da Relação considerou que os danos materiais e morais sofridos pelos Autores resultaram diretamente da incompletude ou incorreção das instruções de segurança fornecidas pela Ré.

XVI. O Tribunal da Relação fixou a indemnização por danos não patrimoniais em €10.000,00 para cada Autor, totalizando €20.000,00, com base na gravidade dos danos sofridos e na responsabilidade objetiva da Ré.

XVII. Acontece que a lareira não é um produto defeituoso, que as instruções de segurança fornecidas são adequadas e completas, e que foram sim os Autores que não seguiram corretamente as instruções.

XVIII. A lareira foi corretamente instalada e os Autores tinham perfeito conhecimento de que deveriam esperar pelo menos cinco minutos antes de reabastecer a lareira, conforme consta do manual de instruções, sendo que no queimador estava inscrito e gravado a laser os símbolos de não abastecer com chama e o símbolo não abastecer quando está quente.

XIX. O manual de instruções é claro ao indicar que a chama deve estar apagada antes de reabastecer e que a portinhola de segurança deve ser fechada para extinguir a chama.

XX. Ora, resultou claramente dos factos dados como provados que os Autores nem sabiam que existia uma portinhola de segurança (mas o procedimento de apagar a chama foi explicado aos Autores e vem descrita no manual).

XXI. O Tribunal da Relação errou ao interpretar a matéria de facto e na sua subsunção ao direito ao considerar que as instruções de segurança são incompletas ou incorretas.

XXII. Não existe qualquer defeito no produto comercializado, o mesmo foi perfeitamente instalado, o manual de instruções vem perfeitamente instruído, sendo que o sinistro ocorreu devido, simplesmente, à não observância das instruções de segurança pelos Autores.

XXIII. Mesmo que assim não se entendesse, o montante da indemnização por danos não patrimoniais fixado pelo Tribunal da Relação, é flagrantemente arbitrário, desproporcional e exagerado face à culpa mínima ou inexistente da Ré.

XXIV. Caso se considere que o produto é defeituoso, a indemnização por danos não patrimoniais deve ser reduzida para €2.000,00 por cada Autor, de forma a evitar o enriquecimento injustificado dos Autores.

XXV. O Acórdão do Tribunal da Relação deve, pois, ser anulado e substituído por outro que mantenha a absolvição da Ré do pedido, ou, subsidiariamente, que a indemnização por danos não patrimoniais seja reduzida para um valor justo e proporcional.

Termina pedindo a anulação da decisão recorrida, mantendo-se a absolvição da R. do pedido, ou, caso assim não se entenda, que a indemnização por danos não patrimoniais seja reduzida ao valor de 2.000,00€ (dois mil euros) por cada Autor, sendo tal valor justo e proporcional.

Não se mostram juntas contra-alegações.

QUESTÕES A DECIDIR

Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir são:

a) responsabilidade da R. pelos prejuízos sofridos pelos AA. - se o produto comercializado foi corretamente instalado e o manual de instruções está perfeitamente instruído; se foram os AA. os responsáveis pela ocorrência do sinistro devido à não observância das instruções de segurança;

b) se o montante da indemnização fixada a título de danos não patrimoniais deve ser reduzido.

Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Vêm dados como provados os seguintes factos:

1. Os Autores são casados entre si, desde 28/09/2013;

2. Os Autores têm um filho, nascido em .../.../2015;

3. Por contrato celebrado em 25/02/2015, os Autores tomaram em arrendamento o imóvel sito na Rua ..., ... ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o art. ...08, e descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial de ... com o nº ...8;

4. A R. vendeu uma lareira de bioetanol, modelo cronos, de exposição, que foi instalada na casa dos AA supra referida, em data concretamente não apurada mas que se situa entre o dia 17 e o dia 19 de dezembro de 2019;

5. Os AA sabiam que a lareira era de exposição e pretenderam a mesma;

6. Os AA sabiam que para reabastecer de combustível a lareira, a chama tinha de estar apagada, e esperarem cerca de cinco minutos para reacender após o queimador ter sido apagado;

7. Tal consta das informações do manual de instruções e segurança que a R. enviou aos AA e que consta de fls. 66v a 69 dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e que estes leram;

8. A lareira foi corretamente instalada na casa dos AA, pelo legal representante da R., não tendo a instalação sido a origem da explosão;

9. No dia 24 de Dezembro de 2018, véspera de Natal, e na companhia do seu filho de três anos, sogros e pais (respetivamente), cunhados e irmã e marido (respetivamente) e sobrinha,

10. Ao reabastecer a lareira pela segunda vez nesse dia, e já momentos após o apagar da chama da lareira, a qual à vista desarmada afigurava-se apagada, o Autor ouviu um estalo e de imediato uma bola de fogo saltou em direção à sua face;

11. A lareira tinha extinguido a chama momentos antes, tendo inclusivamente o sogro e pai dos Autores, respetivamente, informado que “o lume estava apagado”.

12. Assim, o Autor terminou a preparação do jantar do seu filho; deu o jantar ao seu filho e posteriormente tentou reabastecer o depósito;

13. Atendendo ao risco criado pela bola de fogo na cara do Autor, de imediato o Autor afastou-se tentando proteger a cara.

14. Contudo, dado que a bomba de sucção utilizada para o reabastecimento continuou ligada, atendendo ao risco real e imediato de que o Autor tentou proteger-se, o líquido combustível caiu no chão tendo a chama “agarrado” o líquido combustível utilizado para atestar a lareira em crise;

15. O locado incendiou-se, tendo a sala e hall de entrada ficado totalmente destruídos, e os quartos, casas-de-banho e cozinha, parcialmente destruídos;

16. Todos os bens pertencentes aos Autores ficaram totalmente destruídos ou inutilizados;

17. A irmã da Autora tentou ainda apagar o fogo que de imediato deflagrou no chão, mas o único resultado obtido foi queimadura de grau 2;

18. A mãe da Autora, doente oncológica desde Abril de 2018, teve de interromper os tratamentos entre 26 de Dezembro de 2018 e 16 de Janeiro de 2019, fruto de uma pneumonia diagnosticada em 9 de Janeiro de 2019, no decurso de tosse com expetoração que iniciou em 26 de Dezembro de 2018, sendo a pneumonia decorrente dos fumos inalados e de terem de sair do imóvel com a roupa que tinham vestida na noite de natal para fugir do fogo;

19. A noite de natal foi passada no hospital e ambulância, sendo que durante muito tempo os AA e o seu filho menor não dormiram e viveram momentos de angústia e perturbação durante os tempos seguintes;

20. O interior do imóvel ficou todo destruído, assim como a decoração e mobiliário, em valor concretamente não apurado, e que se cifra entre €2.964,76 e €38.572,17;

21. Nas lareiras como as dos AA existe uma portinhola que fechando impede a circulação de ar e faz extinguir a chama.

*

E foram dados como não provados os seguintes factos:

1. Aos AA foi dito, como norma de segurança, apenas que deviam ter cuidado com os brinquedos poderem ser atirados para a lareira;

2. A lareira foi instalada incorretamente com inclinação para um dos lados da lareira;

3. A lareira foi utilizada nos dias 20, 21, 23 e 24 de Dezembro de 2018.

4. Durante a utilização da lareira, o consumo do combustível foi feito até o depósito da lareira estar totalmente vazio, tal como o sobredito técnico indicou aos Autores;

5. Desde a sua instalação, a lareira foi usada duas vezes por dia, sempre com reposição do combustível após total extinção da chama, o que pressupunha que o combustível anteriormente depositado estaria totalmente ardido.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

São duas as questões colocadas na presente revista, a saber, se a R. é responsável pelos prejuízos sofridos pelos AA., e, na afirmativa, ponderar o montante indemnizatório fixado a cada um dos AA. pelos danos não patrimoniais por eles sofridos.

1. Resulta da factualidade provada que em Dezembro de 2018 a sociedade R. vendeu uma lareira de bioetanol, modelo cronos, de exposição, que foi instalada na habitação dos AA., a pedido destes, e que esteve na origem de um incêndio, na noite de 24 de dezembro, que destruiu totalmente parte da casa dos AA. e parcialmente outra parte, tendo destruído ou inutilizado, também, todos os bens a estes pertencentes.

O tribunal de 1ª instância julgou a ação improcedente, porquanto entendeu que a R. (vendedora) apenas seria responsável por um defeito no funcionamento da lareia que vendeu aos AA. ou pela sua inadequada instalação, o que não resultou demonstrado nos autos; e pelo facto das instruções de segurança constantes do manual de instruções serem inadequadas, incompletas e poderem conduzir a falta de segurança, como resultou demonstrado, apenas o produtor, e não a vendedora, podia ser responsabilizado, não o tendo os AA. demandado.

Já o tribunal recorrido entendeu que a R. deve ser considerada produtora do bem em causa, nos termos do disposto no art. 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 383/89, de 6.11, não podendo eximir-se à responsabilidade decorrente do defeito da lareira, ainda que tal defeito se reporte a deficiências/omissões das respetivas instruções de segurança, estando em causa uma responsabilidade objetiva que dispensa a culpa, e por terem os AA. logrado demonstrar o defeito do produto, os danos sofridos e o nexo de causalidade entre o defeitos e os danos, pelo que revogou a sentença recorrida e condenou a R.

Insurge-se a Recorrente contra o decidido, sustentando que:

- A lareira vendida pela R. não é um produzo defeituoso, era perfeitamente segura, no queimador estava inscrito e gravado a laser os símbolos de não abastecer com chama e o símbolo não abastecer quando está quente, não tinha quaisquer defeitos de fabrico, dispunha de todos os mecanismos necessários para uma utilização correta, normal e segura, tendo sido bem instalada pela R.;

- Ao contrário do que concluiu o tribunal recorrido, não resulta dos factos provados que os AA., ao reabastecerem a lareira, tenham observado as instruções de segurança que lhes foram transmitidas pela R, e respeitado os símbolos que estavam inscritos e gravados a laser no queimador “não abastecer com chama/não abastecer quando quente”;

- O tribunal recorrido aponta como “defeito” da lareira a incompletude/incorreção das instruções de segurança da mesma, mas tal interpretação dos factos está incorreta, atendendo à matéria dada como provada, uma vez que no Manual de Instruções de Segura33nça (cujo teor foi dado como reproduzido), está disposto que nunca se deve reabastecer o queimador enquanto a chama estiver acesa, explicando, no parágrafo imediatamente seguinte das instruções que se deve apagar a chama fechando a portinhola de segurança que corta a circulação do oxigénio e extingue a chama;

- Todas as instruções de que os utilizadores necessitam para fazer um uso seguro da lareira estão no manual entregue pela R. aos AA., não existindo, assim, qualquer defeito no produto comercializado pela R. na vertente do manual de instruções ou qualquer outro que seja;

- Foram os AA. que não leram o manual com atenção, ignoraram completamente as instruções que lhes foram transmitidas pela R., não fazendo uso dos mecanismos de segurança ao seu dispor e que claramente constam do manual de instruções.

Apreciemos.

Não vem posto em causa que os AA. devem ser considerados consumidores nos termos e para os efeitos do disposto no art. 2º, nº 1, da Lei nº 24/96 de 31.07 (LDC, Lei de Defesa do Consumidor), na versão em vigor à data dos factos 1, uma vez que aos mesmos foi fornecido um bem destinado a uso não profissional (venda de uma lareira para uso na habitação) por uma sociedade comercial que exerce uma atividade económica com vista à obtenção de lucro, como consideraram as instâncias.

Ao consumidor é reconhecido o direito à qualidade dos bens e serviços que lhe são fornecidos (art. 4º da LDC 2), à proteção da sua saúde e segurança (art. 5º da LDC 3), à informação (art. 8º da LDC 4), e à reparação dos danos (art. 12º da LDC 5), com consagração constitucional (art. 60º da CRP).

Por seu turno, o art. 1º do Decreto-Lei nº 383/89, de 6.11, que transpôs a Diretiva 85/374/CEE, de 25.07.1985, em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 131/2001, de 24.4), estabelece a responsabilidade objetiva do produtor (“independentemente de culpa”) pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação.

Nos termos do nº 1 art. 2º do Decreto-Lei nº 383/89, de 6.11, “Produtor é o fabricante do produto acabado, de uma parte componente ou de matéria-prima, e ainda quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal

distintivo.”.

O tribunal recorrido considerou que a R. se enquadra no conceito de produtor, respondendo objetivamente, nos termos do citado art. 2º, nº 1, justificando nestes termos o seu entendimento: “… Não se pode contudo restringir a figura do produtor ao fabricante do produto, pois conforme resulta do art. 2º do DL 383/89 supra indicado, para este efeito, o produtor é não só o fabricante do produto (ainda que só de uma parte componente ou de matéria prima) mas também quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca, ou outro sinal distintivo; … Ora, no caso dos autos, verificamos que a Recorrida foi quem vendeu o produto (lareira) aos recorrentes e quem lhes transmitiu as respetivas instruções de segurança (Manual e Instruções de Segurança), as quais foram juntas aos autos com a contestação e dadas como reproduzidas na matéria de facto provada. E tais instruções, como bem referem os Recorrentes, contêm o logotipo da recorrida (não contendo qualquer referência a outra qualquer entidade), que assim sendo se apresenta como produtora do bem nos termos e para os efeitos do art. 2º nº 1 do DL 383/89 de 6/11, sendo certo que em momento algum do processo identificou qualquer outro produtor, como também referem os recorrentes.”.

A Recorrente não põe em causa que deve ser considerada produtora nos referidos termos (arts. 20º e 21º das alegações), e assim deve ser de facto.

Como escreve João Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Reimpressão, 1999, págs. 549/552, a definição ampla do artigo compreende não só “o produtor real, em sentido verdadeiro e próprio, mas também se estende a outras pessoas que como tal se apresentem”, como “o chamado produtor aparente (Anscheinsproduzent), também designado por quase-produtor (Quasi-Hersteller)”, que “sob o seu próprio nome, firma ou marca, oferecem e lançam no mercado produtos”, explicando que é a aparência assim criada, a “impressão de produção própria assim provocada que justifica e fundamenta a extensão do conceito de produtor a tais pessoas humanas ou jurídicas que, apresentando o produto como próprio surgem aos olhos do consumidor nessa veste.” 6.

Nesta sequência o tribunal recorrido concluiu que a Recorrente não se podia eximir “à responsabilidade decorrente do defeito da lareira, ainda que tal defeito se reporte a deficiências/omissões das respetivas instruções de segurança”.

É quanto à verificação do mencionado defeito que a Recorrente se insurge.

O art. 4º do Decreto Lei nº 383/89, de 6.11, dá a definição de defeito, para efeitos do referido diploma nos seguintes termos: “1 - Um produto é defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação. 2 - Não se considera defeituoso um produto pelo simples facto de posteriormente ser posto em circulação outro mais aperfeiçoado.”.

Por outro lado, o art. 3º do Decreto Lei nº 69/2005, de 17.03, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva nº 2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Dezembro, relativa à segurança geral dos produtos, define, na al. b), “Produto Seguro” como “qualquer bem que, em condições de utilização normais ou razoavelmente previsíveis, incluindo a duração, se aplicável a instalação ou entrada em serviço e a necessidade de conservação, não apresente quaisquer riscos ou apresente apenas riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados conciliáveis com um elevado nível de proteção da saúde e segurança dos consumidores, tendo em conta, nomeadamente: i) As características do produto, designadamente a sua composição; ii) A apresentação, a embalagem, a rotulagem e as instruções de montagem, de utilização, de conservação e de eliminação, bem como eventuais advertências ou outra indicação de informação relativa ao produto; iii) Os efeitos sobre outros produtos quando seja previsível a sua utilização conjunta; iv) As categorias de consumidores que se encontrarem em condições de maior risco ao utilizar o produto, especialmente crianças e os idosos", e, na al. c), “Produto perigoso”, como “qualquer bem não abrangido pela definição de «produto seguro» a que se refere a alínea b)”.

Como sublinha João Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, 5ª edição, pág. 197, “Num e noutro dos diplomas, o cerne da noção de defeito repousa na falta de segurança legitimamente esperada do produto e não na falta de conformidade ou qualidade, na aptidão ou idoneidade do produto para a realização do fim a que se destina.” 7.

O art. 4º do Decreto Lei nº 69/2005, de 17.3, estipula que só podem ser colocados no mercado produtos seguros, sendo destinatário dessa obrigação geral de segurança o produtor (art. 5º), dever que é complementado pelas obrigações adicionais elencadas no art. 6º.

Como entendeu o tribunal recorrido, e a Recorrente não põe em causa, “o defeito do produto, por não oferecer a segurança com que legitimamente se pode contar, pode derivar da forma como o produto é colocado em circulação, designadamente da forma como é apresentado, e das instruções e avisos que o acompanham”.

Sobre os defeitos de informação, João Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Reimpressão, 1999, págs. 659/660, escreve que “…, um produto pode ser ilegitimamente inseguro por falta, insuficiência ou inadequação de informações, advertências ou instruções sobre o seu uso e perigos conexos. Em si mesmo não defeituoso, porque bem concebido e fabricado, o produto pode, todavia, não oferecer a segurança legitimamente esperada porque o seu fabricante o pôs em circulação sem as adequadas instruções sobre o modo do seu emprego, sem as advertências para os perigos que o seu uso incorreto comporta, sem a menção das contra indicações da sua utilização, sem as informações sobre as suas propriedades perigosas – v.g. toxicidade, inflamabilidade – e efeitos secundários, etc. Os defeitos de informação ou de instrução (Instruktionsfehler), resultantes do não cumprimento ou cumprimento imperfeito do dever de advertir ou instruir (warnings or instructions), são, pois, vícios extrínsecos, não ínsitos ao produto, diferentemente dos defeitos de conceção e de fabrico que são vícios intrínsecos, inerentes à própria estrutura do produto. Esta terceira categoria de defeitos pode assemelhar-se à dos defeitos de conceção: respeita igualmente a produtos que intrinsecamente cumprem os padrões impostos pelo produtor a si mesmo, produtos esses que não são em si defeituosos mas que requerem o acompanhamento das adequadas advertências e instruções; a falta destas acarreta a responsabilidade do produtor, porque o produto não oferece a segurança com que legitimamente se possa contar. … No quadro do uso razoavelmente previsível, o produtor deve ter o cuidado de apresentar, de forma explícita, clara e sucinta, as advertências e instruções exigíveis segundo a possibilidade tecnológica, em ordem a obter o resultado pretendido – o esclarecimento adequado do consumidor. Mas dizer que as informações devem ser claras, precisas e sucintas, corresponde a afirmar que elas devem ser dadas obrigatoriamente no idioma () das pessoas a que se destinam os produtos, em linguagem simples e compreensível para o grande público – e não em formulações técnicas que só os especialistas entendem -, e que devem esclarecer cabalmente o que fazer e o que não fazer quanto ao seu emprego, chamando a atenção para eventual perigo resultante de mau uso.” 8.

Tal como entendeu o tribunal recorrido 9, no caso dos autos estamos perante um defeito extrínseco, uma vez que o vício não resulta do conteúdo, das características ou composição do produto (da lareira), mas sim de deficiência das instruções de utilização do produto fornecidas pela R. aos AA.

Com efeito, resultou provado que os AA. sabiam que para reabastecer de combustível a lareira, a chama tinha de estar apagada, e esperarem cerca de cinco minutos para reacender após o queimador ter sido apagado.

Mais se provou que tal consta das informações do manual de instruções e segurança que a R. enviou aos AA. e que consta de fls. 66v a 69 dos autos e cujo teor se deu por integralmente reproduzido nos factos provados.

0A Recorrente sustenta que o manual tinha todas as instruções de que os utilizadores necessitam para fazer um uso seguro da lareira, e que foram os AA. que não leram o manual com atenção e não cumpriram as instruções aí constantes.

No mencionado “manual de instruções de segurança”, junto pela R. em anexo à contestação, no que respeita ao reabastecimento do queimador com combustível, que é a operação que desencadeou o incêndio na habitação dos autores, consta na segunda página um parágrafo realçado a negrito com o seguinte teor:

Atenção: Na hora de reabastecer o queimador, recomenda-se esperar que o queimador arrefeça (5 minutos). Depois poderá reabastecer e acender novamente. NUNCA verter bioetanol no queimador enquanto a chama estiver acesa.”.

Depois desta advertência surge um parágrafo relativo à sobra de combustível no reservatório e, de seguida, um ponto 3 relativo aos procedimentos para apagar a chama, nos seguintes termos:

• Se após uma utilização sobrar bioetanol no reservatório poderá voltar a acender a chama após ter deixado arrefecer (uns 5 minutos).

3. Como apagar a chama?

Biolareira com queimadores cilíndricos

• Para apagar a chama, utilizar o apagador para tapar a abertura do queimador. Biolareira com queimador de fenda

• As biolareiras com fenda dispõem de uma chapa de fecho. Para apagar a chama, fechar a chapa com o manipulo de fecho metálico, nunca fechar diretamente com as mãos, risco de queimaduras.

Queimadores Clearfire

• Os queimadores dispõem de um manipulo de regulação da chama. Para apagar, feche a chapa de regulação. Caso persista a combustão, espere alguns minutos e volte a repetir o processo.

Nunca sopre sobre a chama com objetivo de apagar, só fará aumentar as chamas!”.

Na advertência sublinhada a negrito acima referida apenas consta que não se deve reabastecer o queimador enquanto a chama estiver acesa e que se deve esperar que o queimador arrefeça durante 5 minutos.

Tendo ficado provado que “nas lareiras como as dos autores existe uma portinhola que fechando impede a circulação de ar e faz extinguir a chama” (ponto 21 da fundamentação de facto), esse procedimento não consta da referida advertência sobre os procedimentos para reabastecer o queimador.

Os procedimentos para apagar a chama surgem nas referidas instruções de segurança num outro campo, dois parágrafos abaixo, sendo diversos os procedimentos consoante o tipo de biolareira (com queimador cilíndrico, com queimador de fenda ou com queimador clearfire), mas, no caso em apreço, não consta da factualidade provada qual o tipo de queimador da lareira fornecida aos AA., nem se tal informação foi fornecida a estes.

Conforme supra realçado, “o produtor deve ter o cuidado de apresentar, de forma apropriada, explícita, clara e sucinta, as advertências e instruções exigíveis segundo a possibilidade tecnológica, em ordem a obter o resultado pretendido – o esclarecimento adequado do destinatário acerca dos riscos envolvidos. Se a informação, na fórmula legal, deve ser clara, completa e adequada, ela deve, em linguagem simples e compreensível, esclarecer cabalmente o que fazer e o que não fazer quanto ao seu emprego, chamando à atenção para o eventual perigo de um mau uso” (Ac. do STJ de 5.01.2016, P. 2790/08.3TVLSB.L1.S1 (Pinto de Almeida), em www.dgsi.pt).

No caso sub judice tal não sucedeu, pois tratando-se de um equipamento com evidentes riscos para o consumidor (na medida em que se baseia na combustão de material altamente inflamável para produzir calor), era exigível especial cuidado na redação das instruções de utilização do mesmo, para que, de modo explícito, simples, claro e da forma mais sucinta possível, o consumidor pudesse ter pleno conhecimento do que devia fazer quando fosse necessário reabastecer o queimador.

Era exigível que na referida advertência sobre o procedimento de reabastecer o queimador constasse, expressamente, que o utilizador devia, em primeiro lugar, fechar a portinhola de segurança que corta a circulação do oxigénio e extingue a chama e, após, aguardar que o queimador arrefecesse durante, pelo menos, 5 minutos, e só depois reabastecer e acender novamente, ou, em alternativa, podia constar uma remissão expressa e inequívoca para os procedimentos de extinção completa da chama descritos no ponto 3 do manual de instruções.

A concreta redação constante do manual de instruções é passível de induzir em erro o utilizador, pois apenas refere que nunca deve ser vertido bioetanol no queimador “enquanto a chama estiver acesa”, o que permite a interpretação de que bastará a constatação visual de que a chama está apagada.

Sucede que tal constatação visual é geradora de riscos elevados, pois a chama pode ser bastante curta, sendo apenas visível se o utilizador introduzir a sua cabeça junto ao queimador num ângulo que não é certamente aconselhável, pelo sério risco de queimadura.

Por outro lado, um consumidor médio não é especialista na utilização deste tipo de equipamentos, nem tem de ter conhecimentos de física e de química para saber que o método seguro para que, naquele caso concreto, não possa existir qualquer chama é o corte absoluto do ar, pois o fogo só existe na presença dos respetivos reagentes, que neste caso são o combustível (bioetanol) e o comburente (que é normalmente o oxigénio do ar).

Em conclusão do que se deixa escrito, afigura-se-nos que a informação contida no referido manual de instruções não é suficientemente clara, explícita, simples e adequada a evitar a ocorrência de acidentes como o que é objeto dos presentes autos, motivo pelo qual, foram violados os direitos à informação e à proteção da saúde e da segurança física dos AA., consumidores, além de tal vício nas instruções de segurança tornar o próprio produto fornecido defeituoso por deixar de ser apto a satisfazer os fins a que se destina, deixando de ser um produto seguro, nos termos dos artigos suprarreferidos.

Face à factualidade provada, torna-se evidente que foi a referida deficiência das instruções de segurança do produto que propiciou a ocorrência do sinistro e a produção dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos AA.

Com efeito, resultou provado que os AA. sabiam que para reabastecer de combustível a lareira, a chama tinha de estar apagada, e esperarem cerca de cinco minutos para reacender após o queimador ter sido apagado.

Sucede que, ao reabastecer a lareira pela segunda vez no dia do sinistro e já momentos após a chama da lareira se ter apagado, a qual à vista desarmada afigurava-se apagada, o A. ouviu um estalo e de imediato uma bola de fogo saltou em direção à sua face.

A lareira tinha extinguido a chama momentos antes, tendo inclusivamente o sogro e pai dos AA., respetivamente, informado que "o lume estava apagado".

Assim, o A. terminou a preparação do jantar do seu filho, deu o jantar a este, e, posteriormente, tentou reabastecer o depósito.

Atendendo ao risco criado pela bola de fogo na cara do A., de imediato este se afastou tentando proteger a cara.

Contudo, dado que a bomba de sucção utilizada para o reabastecimento continuou ligada, atendendo ao risco real e imediato de que o A. tentou proteger-se, o líquido combustível caiu no chão tendo a chama "agarrado" o líquido combustível utilizado para atestar a lareira em crise, tendo-se o locado incendiado, ficando a sala e hall de entrada totalmente destruídos, e os quartos, casas-de-banho e cozinha, parcialmente destruídos.

Da referida factualidade resulta que o A. cumpriu o que constava do manual de instruções, na advertência relativa ao procedimento de reabastecimento do queimador, ou seja, constatou visualmente que a chama estava apagada e esperou pelo menos 5 minutos para reabastecer o queimador (período que foi certamente superior pois provou-se que, entretanto, ainda terminou a preparação do jantar do seu filho e deu o jantar ao mesmo).

Uma vez que a bola de fogo que surgiu no momento do reabastecimento apenas pode ter surgido pela ignição do combustível (bioetanol), tal ignição só poderia ter sido causada ou pela presença de chama, não visível à vista desarmada, ainda existente no queimador, ou pela excessiva temperatura que se verificasse no mesmo.

Esta última hipótese é afastada pelos factos provados (o A. esperou certamente mais do que 5 minutos para reabastecer o queimador), podendo-se concluir que ainda existia chama, embora não visível, no momento em que o A. iniciou o reabastecimento, o que provocou a referida bola de fogo e todos os factos posteriores.

Tal terá sucedido porque o A. não fechou a portinhola existente no equipamento que, uma vez fechada, impede a circulação de ar e faz extinguir a chama, mas tal conduta omissiva daquele decorre, nos termos acima expostos, da deficiente informação constante do manual de instruções fornecido pela R.

Tal como se entendeu no referido Ac. do STJ de 5.1.2016, partindo de uma formulação (negativa) mais ampla da causalidade adequada, também no presente caso existe causalidade adequada entre a venda do referido produto defeituoso e os danos sofridos pelos autores (art. 563º do CC), pois não se provou que estes tenham contribuído para a verificação do sinistro com alguma conduta negligente, sem observar as instruções de utilização da lareira fornecidas pela ré, nem se provou que, para a ocorrência do sinistro, tenham concorrido outras circunstâncias, extraordinárias ou fortuitas, suscetíveis de quebrar o nexo de causalidade entre aquele ilícito e o dano, tal como concluiu o tribunal recorrido 10.

Os AA. são, pois, titulares do direito ao ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais provocados pela violação do referido dever de informação e do fornecimento de produto defeituoso, sendo a R., enquanto produtora do bem, responsável, independentemente de culpa (arts. 8º, nº 5, e 12º, nºs 1 e 2, da Lei nº 24/96, de 31.07 e 1º, 8º e 9º do Decreto-Lei nº 383/89, de 6.11).

Em conclusão, não merece censura a decisão do tribunal recorrido, improcedendo a revista nesta parte.

II. A Recorrente sustenta que o montante da indemnização fixada pelo tribunal recorrido a título de danos não patrimoniais é “flagrantemente arbitrário, desproporcional e exagerado face à culpa mínima ou inexistente da Ré”, devendo ser reduzida para o montante de €2.000,00 para cada autor, de forma a evitar o seu enriquecimento sem causa.

O acórdão recorrido considerou que os danos morais não podem deixar de estar compreendidos nos danos resultantes de lesão pessoal referidos no art. 8.º do DL 383/89, já que o artigo não alude a lesão corporal, mas antes a lesão pessoal, abrangendo, em nosso entendimento, os danos sofridos pela pessoa na sua integralidade”, e, recorrendo à equidade (art. 496º, nºs 1 e 4, do CC), concluiu que “no caso dos autos, desconhecem-se as condições económicas dos AA/recorrentes bem como a situação financeira da sociedade Ré/recorrida. Impõe-se, todavia, relevar que a responsabilidade desta é uma responsabilidade meramente objetiva. Assim sendo, entende-se fixar a indemnização por danos morais em €10.000,00 (dez mil Euros) para cada Autor, no total de €20.000,00 (vinte mil Euros).”.

A Recorrente não põe em causa, não obstante a sua discordância quanto à sua responsabilidade, que os AA. sofreram danos não patrimoniais, ou que estes não mereçam a tutela do direito, como merecem 11, mas, apenas, sustenta que o montante fixado é exagerado.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 10.2.1998, in CJASTJ, Tomo I., pág. 67, “A equidade é a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente dos critérios normativos fixados na lei” devendo o julgador “ter em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida”.

Oliveira Ascensão, em O Direito. Introdução e Teoria Geral, pág. 477, escreve que “A resolução dos casos segundo a equidade contrapõe-se à resolução dos casos segundo o direito estrito. Pode haver regras e haver equidade, quando o juiz estiver autorizado a afastar-se da solução legal e a decidir de harmonia com as circunstâncias do caso singular. ( … ) ( A equidade ) está em condições de tomar em conta as circunstâncias do caso, que a regra despreza, como a força ou a fraqueza das partes, as incidências sobre o seu estado de fortuna, etc., para chegar a uma solução que se adapta melhor ao caso concreto, mesmo que se afaste da solução normal, estabelecida por lei. De todo o modo, na equidade ( … ) não há por natureza aplicação da regra, antes há uma criação para o caso singular.”.

Também Inocêncio Galvão Telles, em Introdução ao Estudo do Direito, Vol. I, págs. 149/150, refere que “A equidade visa temperar a rigidez da lei. Esta é formulada em termos genéricos, tendo em vista, sem dúvida, as circunstâncias reais da vida, mas numa perspetiva abstrata, sem descer às particularidades dos casos concretos. Dessa abstração podem resultar, e resultam por vezes, desajustamentos entre a justiça da solução legal e a justiça desejável na hipótese individual submetida à apreciação do julgador. A equidade é o instrumento idóneo para afastar ou evitar estes desajustamentos. Daí a imagem aristotélica de equiparar a equidade à régua lésbica. A lei é como uma régua vulgar, que não se adapta às sinuosidades do objeto medido. A equidade é como uma régua lésbica, adotada para certos efeitos na edilidade de Lesbos (daí o seu nome), com a particularidade de acompanhar os objetos nas suas irregularidades.”.

Equidade não se confunde com arbitrariedade, com a entrega da solução a critérios assentes em puro subjetivismo do julgador, devendo antes traduzir a justiça do caso concreto, flexível e humana.

Conforme este Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo, o juízo de equidade em que se funda a fixação do montante da indemnização pelas instâncias só é passível de censura se não se contiver dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que a legitima, tendo por referência a evolução da jurisprudência e a observância do princípio da igualdade no tratamento prudencial de situações similares.

De facto, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido de forma consolidada que “o juízo de equidade das instâncias deve ser mantido salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, isto é, se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, numa jurisprudência evolutiva e atualística” – Ac. do STJ de 30.03.2023, P. nº 15945/18.3T8PRT.P1.S1 (Manuel Capelo), em www.dgsi.pt.

No mesmo sentido, pode ler-se no sumário do Ac. do STJ de 3.05.2023, P. n.º 291/09.1TCFUN-A.L2.S1 (Ana Resende), em www.dgsi.pt, que “I. … II. Quando o cálculo de um montante indemnizatório tenha assentado em juízos de equidade, não compete ao STJ a determinação do valor pecuniário, até porque a pura aplicação de tais juízos já não se consubstancia, em bom rigor, numa apreciação de uma questão de direito. III. As atribuições do STJ reportam-se a sindicar se o recurso à equidade foi indevidamente utilizado, porquanto competia ao tribunal aplicar critérios de cariz normativo, decorrentes dos preceitos normativos atendíveis, bem como aferir se foram ultrapassados os limites do acervo fáctico apurado, pois tal constitui violação da lei, e nessa medida abrangidos pelos poderes desse tribunal.”.

Neste sentido, podem ver-se, ainda, entre outros, os Acs. do STJ de 11.05.2023, P. nº 552/07.4TVPRT.P2.S2 (Oliveira Abreu), de 12.04.2023, P. nº 935/20.4T8VRL.G1.S1 (Jorge Dias), de 28.03.2023, P. nº 3410/20.3T8VNG.P1.S1 (Isaías Pádua), de 31.01.2023, P. nº 795/20.5T8LRA.C1.S1 (Manuel Aguiar Pereira), e de 15.09.2022, P. nº 2374/20.T8PNF.P1.S1 (Fátima Gomes), todos em www.dgsi.pt.

Retomando ao caso sub judice, verifica-se que resultou provado que a habitação dos AA. se incendiou, tendo a sala e hall de entrada ficado totalmente destruídos, e os quartos, casas-de-banho e cozinha, parcialmente destruídos.

Mais se provou que todos os bens pertencentes aos AA. ficaram totalmente destruídos ou inutilizados e que a noite de Natal na qual ocorreu o sinistro foi passada no hospital e ambulância, sendo que durante muito tempo os AA. e o seu filho menor 12 não dormiram e viveram momentos de angústia e perturbação durante os tempos seguintes.

Tendo em conta os critérios definidos no artigo 494º do CC, por remissão do nº 4 do art. 496º do mesmo Código, importa ter em conta na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais, que a responsabilidade da ré é objetiva, desconhecendo-se a situação económica das partes.

Atendendo a tal factualidade e ao acima exposto, cremos que o juízo de equidade do tribunal recorrido ao fixar o valor dessa indemnização em €10.000,00 para cada um dos AA., se contém dentro da margem de discricionariedade legalmente consentida, não tendo o critério adotado se afastado, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, numa jurisprudência evolutiva e atualista, que a Recorrente não refere minimamente.

Com efeito, o montante fixado não se afasta do valor de indemnizações que têm sido fixadas pelo Supremo Tribunal de Justiça a título de danos não patrimoniais em casos cuja gravidade não se afasta substancialmente da gravidade dos factos provados na presente ação.

Assim, nos seguintes acórdãos, todos consultáveis em www.dgsi.pt:

- No Ac. do STJ de 14.12.2016, P. nº 492/10.0TBPTL.G2.S2 (Tomé Gomes), em que estavam em causa os danos não patrimoniais decorrentes de incómodos, preocupações e frustrações inerentes à privação de uma casa de habitação (provando-se que a privação provocou nos lesados tristeza, nervosismo, angústia e revolta por não poderem tirar partido da casa, tornando-se tema de conversas e zangas, o que deteriorou o convívio familiar), fixou-se o valor da indemnização no montante de €7.000,00;

- No Ac. do STJ de 14.07.2021, P. nº 1168/13.1T2STC.E2.S1 (Vieira e Cunha), em que estava em causa a responsabilidade de um condomínio pelo ressarcimento de danos provocados por inundações na cave de uma fração autónoma, por via do entupimento de uma conduta de águas residuais do edifício (provando-se que o cheiro nauseabundo e o perigo de doenças decorrente das referidas inundações, impossibilitaram a autora lesada, proprietária da fração, de utilizar a cave em período de férias nos anos de 2014 a 2016, num período total de cerca de 9 dias, causando à mesma e à sua família um profundo transtorno e ansiedade, quer pela impossibilidade de gozo da fração, quer pelas mudanças nos planos de férias, a que acresceram, durante seis anos, as horas gastas em deslocações, contactos com o condomínio e demais empresas e técnicos, bem como em vistorias, reparações, elaboração de relatórios, arquivo de documentos, e em limpezas na fração devido a infiltrações e inundações), considerou-se que os aborrecimentos, frustração e ansiedade (para além da ameaça à saúde da A., nos períodos de vilegiatura), justificam a indemnização no montante arbitrado pela Relação de €10.000,00;

- No Ac. do STJ de 24.09.2020, P. nº 4871/18.6T8VNF.G1.S1 (Olindo Geraldes), em que estava em causa o uso ilícito de um estaleiro de construção civil, junto da habitação do lesado (provando-se que durante cerca de um ano, com particular incidência no início da manhã e no fim da tarde (de segunda a sexta-feira), a regular laboração de veículos pesados (incluindo máquinas retroescavadoras) e as cargas e descargas de materiais de construção provocou a emissão de ruídos, trepidações, cheiros a combustível e fumos, bem como o levantar de poeiras que se propagaram aos prédios vizinhos, incluindo a habitação do lesado, situação que afetou, gravemente, a sua tranquilidade, sossego e qualidade de vida, provocando-lhe ansiedade e nervosismo), considerou-se que se justificava a fixação da indemnização no valor de €9.000,00.

No caso dos autos, salienta-se, desde logo, a perturbação e angústia sofrida por cada um dos AA. com o próprio incêndio que deflagrou na sua habitação e que a consumiu quase por completo, em momento em que estavam presentes os seus familiares, em que se inclui o seu filho com apenas três anos, na noite da véspera de Natal, o que agrava substancialmente o intenso desgaste psicológico sofrido por tal evento traumático nessa quadra festiva.

Com efeito, resultou provado que o resto da “noite de Natal foi passada no hospital e ambulância, sendo que durante muito tempo os autores e o seu filho menor não dormiram e viveram momentos de angústia e perturbação durante os tempos seguintes.”

A tal sofrimento acresce necessariamente a perturbação e angústia sofridas por cada autor com a perda de todos os bens que existiam no interior da habitação em consequência do acidente, tendo de sair da sua habitação, naquela noite, com a roupa que traziam no corpo.

Tudo ponderado, afigura-se-nos que a indemnização pelos danos não patrimoniais fixada pelo tribunal recorrido se mostra em montante moderado, ponderado e equitativo, tendo em conta as circunstâncias do caso.

Em conclusão, não merece censura a decisão do tribunal recorrido, improcedendo a revista na totalidade.

As custas, na modalidade de custas de parte, são a cargo da recorrente, por ter ficado vencida – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar revista.

Custas pela recorrente.

*

Lisboa, 2025.3.11

Cristina Coelho (Relatora)

Luís Espírito Santo

Ricardo Costa

SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora):

_____________________________________________

1. Ou seja, com as alterações introduzidas pela Declaração de Retificação nº 16/96, de 13.11, Lei nº 85/98, de 16.12, DL nº 67/2003, de 8.04, Lei nº 10/2013, de 28.01 e Lei nº 47/2014, de 28.07.

2. Que dispõe que “Os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor.”.

3. Que estatui que “É proibido o fornecimento de bens ou a prestação de serviços que, em condições de uso normal ou previsível, incluindo a duração, impliquem riscos incompatíveis com a sua utilização, não aceitáveis de acordo com um nível elevado de proteção da saúde e da segurança física das pessoas.

4. Que estabelece que “1 - O fornecedor de bens ou prestador de serviços deve, tanto na fase de negociações como na fase de celebração de um contrato, informar o consumidor de forma clara, objetiva e adequada, a não ser que essa informação resulte de forma clara e evidente do contexto, nomeadamente sobre: a) As características principais dos bens ou serviços, tendo em conta o suporte utilizado para o efeito e considerando os bens ou serviços em causa; (…) 5 - O fornecedor de bens ou o prestador de serviços que viole o dever de informar responde pelos danos que causar ao consumidor, sendo solidariamente responsáveis os demais intervenientes na cadeia da produção à distribuição que hajam igualmente violado o dever de informação. (…).”.

5. Que dispõe que “1 - O consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos. 2 - O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei.”.

6. Neste sentido ver Vera Lúcia Paiva Coelho, Responsabilidade do produtor por produtos defeituosos “Teste de resistência” ao DL n.º 383/89, de 6 de novembro, à luz da jurisprudência recente, 25 anos volvidos sobre a sua entrada em vigor, na Revista Eletrónica de Direito, nº 2, Junho 2017, págs. 10/11.

7. Neste sentido, cfr. o Ac. do STJ de 11.03.2003, P. nº 02A4341 (Afonso Correia), em www.dgsi.pt, a propósito da noção de defeito no regime especial do DL. nº 383/89, de 6.11.

8. Sobre a noção de defeitos de informação, ver José Engrácia Antunes, Direito do Consumo, Almedina, 2019, pág. 89/92, Vera Lúcia Paiva Coelho, na ob. cit., pás. 20/21, e Paulo Luiz Netto Lôbo, A informação como direito fundamental do consumidor, em Estudos de Direito do Consumidor, nº 3, Centro de Direito do Consumo, FDUC, Coimbra, 2001, págs. 35/37 e 42/43.

9. Na esteira do que havia entendido o tribunal de 1ª instância, e ao contrário do que a Recorrente sustenta – conclusão VIII.

10. Com interesse, cfr. os Acs. do STJ de 15.09.2016, P. nº 207/09.5TBVLP.G1.S1 (Maria da Graça Trigo), e de 14.3.2019, P. 2411/10.4TBVIS.C1.S1 (Ilídio Sacarrão Martins), em www.dgsi.pt.

11. Sobre esta questão, ver Calvão da Silva, em Responsabilidade do Produtor, pág. 677 e ss., e Vera Lúcio Cardoso, na ob. cit., págs. 31/34.

12. Que, efetivamente, não representam na ação, mas cujo sofrimento e ansiedade se repercutiu nos próprios AA., que vivenciaram, necessariamente, desgosto, angústia e preocupação com as reações do filho, tão pequeno, à situação.