Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5297/12.0TBMTS.P1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
LEGITIMIDADE
LEGITIMIDADE ADJECTIVA
LEGITIMIDADE ADJETIVA
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
EXCEPÇÃO PERENTÓRIA
ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
TRANSPORTE FERROVIÁRIO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS E DE DÍVIDAS / CESSÃO DE CRÉDITOS.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª Edição reelaborada, 2006, p. 813;
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2.ª Edição, 1974, p. 253, 257 e 347;
- Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Coimbra, Almedina, 2000, p. 103 e ss;
- J. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, p. 56;
- Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2.° Volume, 1990, p. 89 a 97 ; Cessão de Créditos, 2005, p. 285 a 291;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa , 1997, p. 460 e 461;
- Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 1982, p. 72 e 450;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª Edição, revista e actualizada, 1987, p. 400;
- Romano Martinez, Direito das Obrigações, 2.ª Edição, 2004, p. 189 e 195;
- Vaz Serra, Cessão da Posição Contratual, BMJ, n.°49, p. 10.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO DE CIVIL (CPC): - ARTIGOS 684º, N.º 2, 684º-A, N.º 1 E 636.º N.º 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 01-03-2012, RELATORA, ANA PAULA BOULAROT;
- DE 31-05-2012, RELATORA MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou.

II - A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.

III - A cessão de créditos define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, com a única modificação subjectiva que consiste na transferência do lado activo da relação obrigacional.

IV - A cessão da posição contratual distingue-se da cessão de créditos, pois que, ao contrário desta, tem por conteúdo a totalidade da posição contratual, no conjunto dos seus direitos e obrigações, transferindo-se para o terceiro cessionário os direitos e obrigações indissociáveis da posição contratual do cedente.

V - Verifica-se a excepção peremptória de ilegitimidade substantiva, que conduz à absolvição do pedido, quando alguém se arroga titular de uma relação jurídica material, que se vem a demonstrar não existir.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL



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Relatório

A "CAIXA AA, CRL", intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo civil experimental, contra "BB, LDA" e CC pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 105.119,50, acrescida de juros contados à taxa legal em vigor para as operações comerciais da data de citação até efectivo e integral pagamento.

Alegou em resumo, que, em 19/08/2011, a Ré, no âmbito da sua actividade de transporte rodoviário de mercadorias, contratou com "DD, Lda" o transporte de 4.323 pares de botas para homem, no valor total de €10S 119,SO; que a sociedade "EE" encomendara à "DD" vários pares de botas para homem nos tamanhos, cores e referências constantes da factura de fls. 13 e ss; que, de harmonia com as condições negociais estabelecidas entre a "DD" e a "EE", a venda em causa era "C.A.D.", isto é, a entrega do calçado ao destinatário seria efectuada contra efectivo pagamento da mercadoria, através de transferência bancária; que esta condição foi repetida e insistentemente comunicada à Ré, verbalmente e por escrito.

A Ré não descarregou os 319 cartões na programada "Rhenus", transportando estes, e os restantes 102 para a Holanda, onde os entregou à "EE", em dia indeterminado posterior a 22 de Agosto de 2011 e sem prévia confirmação de pagamento por parte do expedidor; que os Réus agiram voluntária e intencionalmente contra as condições de venda e entrega estabelecidas e constantes das declarações "CMR", não cumprindo as obrigações emergentes do contrato de transporte a que se vincularam.

Com a sua conduta, os Réus causaram à "DD" um prejuízo no valor de € 105 119,50, equivalente ao preço do calçado entregue, acrescido de juros contados, à taxa legal em vigor para as operações comerciais, desde a data de citação até integral pagamento.

Em sede de legitimidade, justifica que, por meio do contrato com o teor de fls. 23 e ss., a sociedade "DD" lhe cedeu o crédito invocado na presente acção,

Os Réus vieram contestar, excepcionando a ilegitimidade da Autora e a sua ilegitimidade para os termos da presente acção e contrapõem ter sido a sociedade "EE BV" quem contratou os serviços da Ré sociedade para efectuar o transporte dos autos, quem lhe deu todas as ordens e directrizes relativas a esse serviço de transporte e quem lhe pagou o respectivo serviço; que no dia 21/08/2011, a "EE" comunicou-lhes que a mercadoria deveria seguir toda para a Holanda e ser entregue nas suas instalações, o que levaram a efeito.

Concluem pedindo a sua absolvição do pedido.

No despacho saneador as partes foram julgadas legítimas.

Foi, posteriormente, proferida sentença com o seguinte dispositivo. "Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência: Condena-se ala Ré "BB, Lda" a pagar à Autora "CAIXA AA, CRL" a quantia de € 105 119,50 (cento e cinco mil cento e dezanove Euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora, às sucessivas taxas de juros comerciais, vencidos desde a data de citação da Ré e até efectivo e integral pagamento e Absolve-se o 2° Réu CC do pedido contra si formulado."

Inconformada veio a R. "BB, Lda.", interpôs recurso, para a Relação do Porto.

"A Caixa AA, CRL" apresentou contra-alegações.

Apreciando a apelação a Relação do Porto acabou por absolver os Réus da instância por ilegitimidade.

Recorreu de revista a Caixa AA, CRL. Apreciado o recurso este Tribunal veio a revogar o acórdão recorrido e ordenou a baixa dos autos à Relação «para que aprecie, sendo caso disso, a legitimidade substantiva e as demais questões suscitadas no recurso de apelação e que foram consideradas prejudicadas pela decisão proferida, bem como aquelas de que possa conhecer oficiosamente».

Em cumprimento do decidido a Relação veio a proferir novo acórdão onde concluiu pela ilegitimidade substantiva da A. e absolveu os RR., do pedido.

Mais uma vez irresignada veio a A. interpor recurso de revista, tendo nas suas alegações formulado as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. A questão central dos autos acha-se ligada à {^legitimidade substantiva do Banco A., recorrente, e gravita em torno de um contrato de cessão de créditos por meio do qual o credor inicial, a sociedade "DD, Lda:\ transmitiu ao mesmo A., recorrente, Caixa AA, CRL (AA), o direito de crédito que detinha sobre a sociedade de direito holandês "EE BV\

2. O acórdão recorrido considera que o direito de o Banco autor accionar a Ré, BB enquanto transportador que entregou a mercadoria livre, contra as indicações do expedidor, não lhe foi transmitido pelo negócio de cessão de créditos operado com o credor inicial DD, por do contrato não constar qualquer crédito contra aquela mesma BB:

3. Mais considera o acórdão recorrido que por essa razão é manifesta a ilegitimidade substantiva do Banco A., revogando a sentença recorrida e absolvendo a Ré, BB, do pedido;

4. A decisão recorrida não fez uma correcta interpretação e aplicação da lei substantiva em matéria de cessão de créditos, aplicável à factualidade dada como assente nos autos, tendo o presente recurso, por fundamento, o disposto na alínea a), n.° 1, do art.° 674.°, do CP. Civil;

5. O contrato de cessão de créditos dos autos envolve o direito de o Banco A., cessionário, accionar a ré "BB". e reclamar desta última o reembolso do crédito cedido sobre a dita EE (cfr. art.° 21.°, da Convenção CMR), independentemente de a mesma ré não figurar expressa ou nominalmente como debitar cessus;

6. Por um lado, o contrato - feito de acordo com as regras contidas no art.° 577.°, do C. Civil - consigna que a cessão implica a transferência a título definitivo para a 2o outorgante (Banco) de todos e quaisquer direitos e obrigações emergentes dos créditos a que respeitam, e abrange as garantias associadas, as quais continuarão a assegurar o cumprimento desses créditos, em beneficio da cessionária;

7. Por outro lado, o art.° 582.°, do C. Civil, estipula que a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente;

8. O contrato e a lei confirmam, assim, a possibilidade de o A. demandar a R., sendo que as "garantias" e ''acessórios'' referenciados naquele preceito legal devem ser entendidos no sentido amplo, incluindo toda e qualquer situação jurídica directamente relacionada com o crédito, como é o caso;

9.     Certo é, também, que a menção"13- EE . com sede em ..., no montante de 105. 119. 50 € (P° 1374/11.3TAVFR)", inscrita no Anexo 1, do contrato de cessão de créditos, engloba a alusão ao processo n.° 1374/11.3TAVFR, nascido de uma queixa - crime movida pela cedente '"DD" à BB e ao seu sócio, CC, com origem na entrega da mercadoria à "EE" à revelia da cláusula CA.D., cujos termos correram pelo Tribunal de …;

10. A inclusão daquele processo na dita menção demonstra, além do mais (entrega da mercadoria contra as indicações do expedidor), que a BB estava, como está, intimamente associada (como devedora) ao crédito cedido;

11. Por isso, notificada da cessão, nos termos do artigo 583.°, n.° 1, do C. Civil, com explicitação da origem do crédito e dos motivos pelos quais era exigida a sua responsabilidade (doc. n.° 11, junto com a p.i.), a R., BB, não ofereceu resposta, quando poderia e deveria fazê-lo se alguma coisa entendesse ter a opor;

12. A cessão tornou-se, assim, eficaz, perante a ré, BB, pelo que a notificação equivale à sua aceitação, sendo que a mesma ré, mantém para com o cessionário do crédito a obrigação de agir de boa - fé, em consonância com o consignado no n.° 2, do art.° 762.°, do C. Civil;

13. Nessa conformidade, subsistindo a seu favor os demais meios de defesa oponíveis ao cedente (cfr. art.° 585.°. do C. Civil), não assiste à ré o direito de invocar a ilegitimidade do Banco A., o que, em todo o caso. lhe falece;

14. Ora, em concreto, a realização/materialização do direito de crédito cedido passa inevitavelmente pela acção interposta contra a Ré, BB, de harmonia com os fundamentos vertidos no pedido formulado pela A., decorrentes do preceituado no art.° 21.° da Convenção CMR (D.L. n.° 46.235, de 18.03.65);

15. O crédito cedido tem como objecto o valor (preço) da mercadoria entregue indevidamente à EE pela BB que, por isso, responde directamente pelo seu reembolso junto do titular respectivo.

16. O direito de a DD accionar a BB advém exclusivamente do crédito sobre a EE, direito esse que, por força da cessão, foi transmitido para o Banco A;

17. O direito de o Banco A. demandar a ré, BB, é parte integrante do crédito cedido, acha-se exclusivamente conexionado com o mesmo e dele é indissociável, e mais do que um acessório, funciona como garantia ou meio para a sua realização;

18. Por força da cessão, o Banco A. é o único titular do direito de agir contra a BB para recuperar o valor (preço) das mercadorias, e esta última responde exclusivamente perante aquele pelo reembolso desse mesmo valor (preço), sendo por isso indiscutível a legitimidade substantiva do primeiro.

Termos em que dando provimento ao presente recurso, revogando o acórdão do Tribunal da Relação …, e mantendo a decisão tomada em 1 .a instância, farão Vossas Excelências, JUSTIÇA…..»

Não houve contra-alegações.


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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[1], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[2], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do  novo Cód. Proc. Civil ).

Das conclusões acabadas de transcrever decorre que a questão objecto do recurso se limita a saber se no caso ocorre a excepção peremptória de ilegitimidade substantiva da A..


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II - Dos factos

Nas instâncias foram considerados provados os seguintes factos:

«1) A Ré sociedade dedica-se ao transporte rodoviário de mercadorias.

2) No âmbito da sua descrita actividade, em 19/08/2011, a ré “BB, L.da” comprometeu-se perante a sociedade comercial denominada “DD, L.da”, com sede e estabelecimento na Rua …, n.º …, da freguesia de …, do concelho de Santa Maria da Feira, a efectuar o transporte de 4.323 pares de botas para homem.

3) Parte desse calçado foi acondicionado em 319 cartões e, outra parte, foi-o em 102 cartões, somando as mercadorias contidas nos dois cartões o valor total de € 105 119,50.

4) A dita “DD, L.da” tinha acordado com a sociedade “EE BV”, sedeada na Holanda, em …, …, 5144 NT, Waalwijk, que o preço do transporte seria suportado por esta.

5) A sociedade estrangeira “EE BV”, sediada na Holanda, sugeriu à Autora que fosse a Ré “BB” a efectuar o transporte dos autos.

6) A "EE BV" pagou à Ré sociedade o preço a acordado entre ambas para tal transporte.

7) A sociedade “EE BV” encomendara à “DD, L.da” 5.345 pares de botas para homem nos tamanhos, cores, e referências que constam da factura n.º 11…8, de 18/08/2011, no valor de € 130.408,00, com o teor de fls. 15, que aqui se dá por reproduzido.

8) Alguns dias antes, a dita “EE BV” solicitou à “DD, L.da” a entrega de, apenas, 4.323 pares de botas, emitindo esta, em 22/12/2011, a correspondente nota de crédito, no valor de € 25.288,50, que tomou o n.º 11…9, com o teor de fls. 16, que aqui se dá por reproduzido.

9) O carregamento, efectuado em 19/08/2011, abrangeu o indicado total de 4.323 pares de botas para homem, no valor conjunto de € 105.119,50 (€ 130.408,00 - € 25.288,50), que ficaram ao cuidado da Ré a partir do referido dia.

10) As indicadas sociedades “DD, L.da” e “EE BV” combinaram entre si que 319 cartões seriam entregues à sociedade “FF, Lda”, com domicílio na Travessa …, 240, Urbanização da …, 4470 - …, Maia, que posteriormente se  encarregaria de organizar o seu transporte com destino à Holanda, e que 102  cartões seriam entregues pela Ré directamente no domicílio da cliente da ”EE, BV”, denominado “F… International Bv”, sito em …, …,  2404 LH Ijsselstein, na Holanda.

11) As indicadas sociedades “DD, L.da” e “EE BV” combinaram entre si que a venda era “C.A.D.”, querendo com isto significar que, tanto a “FF” como o transportador, somente poderiam descarregar e proceder à entrega das mercadorias mediante confirmação prévia da “DD, L.da” nesse sentido, conferida após efectivo pagamento da mercadoria, no caso operado por meio de transferência bancária.

12) Sem esta condição o carregamento e o transporte não teriam sido contratados e autorizados pela “DD, L.da”.

13) Esta condição foi comunicada pela “DD, L.da” à Ré sociedade e ao seu representante legal, verbalmente e por escrito.

14) Chegado às instalações da “FF”, na …, nesse mesmo dia 19/08/2012, o camião da Ré “BB” não pôde descarregar e entregar os 319 cartões porque as referidas instalações encontravam-se já encerradas para o fim-de semana.

15) No domingo, dia 21/08/2011, a “EE” comunicou à Ré “BB” que a mercadoria que estava naquele camião deveria seguir toda para a Holanda e ser entregue nas suas instalações em …, incluindo a que se destinava inicialmente a ser entregue na “FF”.

16) No dia 22/08/2011, o representante da Ré informou a sócia gerente da "DD, L.da" de que não iria entregar os 319 cartões na "FF" e que  procederia ao transporte dos 421 cartões para a Holanda.

17) Para tanto invocou instruções, alegadamente por si recebidas da "EE", no sentido de transportar e entregar os 421 cartões na Holanda, sem passar pelo transitário "FF", a que daria cumprimento.

18) Acrescentou o mencionado representante legal que a entrega das mercadorias seria feita absolutamente livre, que o mesmo é dizer, sem prévia confirmação do pagamento e autorização para tal.

19) A “EE” informou a “DD”, por escrito na manhã do dia 22/08/2011, da alteração do destino de parte da mercadoria que estava no camião da Ré “BB”.

20) O representante legal da Ré colocou as mercadorias em trânsito e transportou todos os cartões para a Holanda, onde os e entregou à "EE" em dia indeterminado posterior a 22 de Agosto de 2011.

21) Uma vez na posse das mercadorias, a "EE" não pagou o preço das mesmas, no montante de € 105.119,50, aplicando-as no desenvolvimento da sua actividade.

22) A 1ª Ré e o seu representante agiram pela forma acima descrita com o propósito de prejudicar a "DD, L.da" e favorecer a "EE".

23) A "DD, L.da" e a aqui Autora celebraram, 22/03/2012, um contrato que  apelidaram de "Contrato de Cessão de Créditos", com o teor de fls. 23 e ss., que aqui se dá por reproduzido.

24) Em 24/07/2012, o mandatário da aqui Autora endereçou à Ré sociedade uma carta com o teor de fls. 27 e 28, que aqui se dá por reproduzido, a qual foi recebida por esta.

MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

A demais matéria de facto considerou-se como não provada, designadamente a seguinte:

- Que, cerca das 09:00 horas do dia 22/08/2011, o representante legal da Ré, CC, aqui segundo Réu, tivesse contactado a sócia-gerente da “DD, L.da”, GG, informando-a de que as mercadorias – em seu poder há três dias – ficariam retidas até que a “EE” lhe pagasse alguns serviços prestados que se encontravam em dívida;

- Que, neste mesmo dia 22/08/2011, a sócio-gerente da “DD, L.da” tivesse avisado o legal representante da Ré que deveria proceder, imediatamente, à devolução das mercadorias ou facultar a sua recolha ao expedidor…;

-Que lhe tivesse apenas referido que iria contactar a “EE”;

 - Que a sociedade estrangeira “EE BV”, sediada na Holanda, tivesse contactado a Ré “BB” para efectuar o transporte dos autos, incumbência que esta aceitou;

- Que a representante da “DD, L.da” nunca tivesse comunicado à sociedade Ré  qual o valor da mercadoria transportada e a cobrar da “EE”.


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Do Direito

A A., aqui recorrente, alicerça o pedido de condenação da R. no incumprimento de um contrato de transporte de sapatos, celebrado entre a R., enquanto transportadora e a sociedade DD, Lda, como produtora e expedidora da mercadoria, destinada a ser entregue à firma “EE BV” sob regime de cláusula C.A.D, ou seja contra entrega de documento comprovativo do pagamento. Funda a sua legitimidade “ad causam” num contrato denominado de “cessão de créditos”, celebrado entre a A., na qualidade de cessionária e a sociedade DD, Lda., na qualidade de cedente. Sustenta a recorrente que no crédito referido sob o nº 13 no anexo ao referido contrato (crédito referenciado como “13- EE. com sede em ..., no montante de 105. 119. 50 € (P° 1374/11.3TAVFR)" está englobado o crédito sobre a R.. Esta conclusão tem de resultar da factualidade apurada nas instâncias e em particular da interpretação do termos do contrato de “ cessão de créditos”.

Constitui jurisprudência firme deste Supremo Tribunal que não cabe nos seus poderes de cognição, a fixação do sentido real da vontade das partes constituindo esta matéria de facto. Todavia, já se encontra dentro do âmbito de competência cognitiva deste Órgão, verificar se foram ou não observados os parâmetros legais condicionantes da função interpretativa da declaração negocial que é cometida ao Tribunal, na sua função jurisdicional de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, de harmonia com o preceituado no artigo 5º do CPCivil.

Neste particular, porque estamos face a um negócio formal, uma vez que a cessão de créditos foi reduzida a escrito, a sobredita interpretação deverá ser efectuada com recurso aos normativos insertos nos artigo 236º a 238º do CCivil, nomeadamente a que decorre do nº1 deste último normativo que impõe que a declaração não pode valer «(…)com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso.», cfr. neste sentido inter alia os Ac STJ de 1 de Março de 2012 (Relatora, Ana Paula Boularot) e de 31 de Maio de 2012 (Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt..

A Relação, analisando o contrato denominado de cessão de créditos e a restante factualidade provada, considerou que naquele contrato não se inclui qualquer crédito do cedente sobre a R. e consequentemente a A., enquanto cessionária, não tem legitimidade substantiva para demandar a R., por não lhe ter sido cedido qualquer crédito sobre esta, mas sim sobre a EE, sendo que este se reporta ao valor da mercadoria que lhe foi vendida .

Pretende a recorrente que a referência feita a um processo judicial (de natureza criminal) intentado, alegadamente, contra a BB e ao seu sócio, CC, configura a cedência do direito da DD, de demandar a R. BB pelo incumprimento do contrato de transporte designadamente para obter o ressarcimento dos prejuízos decorrentes desse incumprimento, ou seja o preço da mercadoria que não lhe foi paga pelo comprador. No fundo sustenta que pelo dito contrato de cessão de créditos a DD cedeu a sua posição contratual no que respeita ao negócio com EE (adquirente do calçado) e que envolve a R. BB, enquanto transportadora.

Como já dissemos supra a interpretação do contrato é matéria excluída dos poderes de cognição deste Tribunal. Porém já não lhe está vedado conhecer se a interpretação feita nas instâncias respeitou as normas pertinentes. Quanto a este aspecto não podemos deixar de reconhecer que a Relação não violou qualquer preceito legal sobre a matéria, designadamente os disposto nos art.º s 236º a 238º do CC. Na verdade nem do texto nem do contexto do chamado contrato de cessão de créditos, celebrado entre a A. e a DD, alguma vez se pode induzir, quanto mais deduzir, a existência de algum crédito da cedente sobre a R. BB, pelo que nada há a censurar quanto ao sentido como a Relação interpretou o contrato.

O que a recorrente visa é um resultado completamente distinto daquele que decorre dos efeitos normais duma cessão de créditos. Outrossim, quer ver reconhecido (sem que tenha qualquer fundamento fáctico que o sustente) que com o contrato de “cessão de créditos” houve uma cessão da posição contratual da DD no tocante ao referido negócio com Vaz Serra, Cessão da Posição Contratual, BMJ, n° 49, 10.

Ora estes dois tipos de contratos não se confundem.

A cessão da posição contratual, consagrada pelo artigo 424º, n° 1, do CC, constitui o meio dirigido à circulação da relação contratual, isto é, à transferência, «ex negotio», por uma das partes contratuais [cedente], com consentimento do outro contraente [cedido], para um terceiro [cessionário], do complexo das posições activas e passivas criadas por um contrato.

O efeito típico principal desta cessão de contrato consiste na transferência da posição contratual, com a extinção subjectiva da relação contratual, quanto ao cedente, passando todas as situações subjectivas, activas e passivas, cujo complexo unitário, dinâmico e funcional, constitui a chamada relação contratual, a figurar na titularidade do cessionário[3].

Este instituto implica sempre a existência de dois contratos distintos, ou seja, o contrato inicial ou básico, celebrado, originariamente, entre o cedente e o cedido, de que resulta o conjunto de direitos e obrigações que constitui o objecto da cessão, e o contrato-instrumento da cessão, que é realizado, posteriormente, entre o cessionário e o cedente para a transmissão da posição que este último tinha no contrato-base[4].

Por seu turno, a cessão de créditos, cujos requisitos de admissibilidade constam do artigo 577°, n° 1, do CC, define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito[5], traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo- se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, com a única modificação subjectiva que consiste na transferência do lado activo da relação obrigacional[6].

A cessão de créditos pressupõe, com efeito, que o credor transmita a sua posição creditícia a terceiro, transferindo-se a posição activa do credor cedente para o terceiro cessionário[7].

A cessão de créditos é um negócio de causa variável, que pode ter por base uma venda, uma doação, uma dação em cumprimento, uma dação «pro solvendo» ou um negócio de garantia em favor de outro crédito[8] .

Efectivamente, a cessão da posição contratual distingue-se da cessão de créditos, pois que, ao contrário desta, tem por conteúdo a totalidade da posição contratual, no conjunto dos seus direitos e obrigações[9], transferindo-se para o terceiro cessionário os direitos e obrigações indissociáveis da posição contratual do cedente, sem que se trate de um somatório de créditos e dívidas transmissíveis, isoladamente, que se associaram para efeitos de transmissão[10] .

Quando do contrato somente resultam créditos para uma das partes e dívidas para a outra, não pode falar-se em cessão da posição contratual ou do contrato, mas antes em cessão de créditos ou em assunção de dívidas, porquanto para que se esteja em presença daquela primeira figura importa que do contrato derivem créditos e débitos para ambas as partes, pois que só quanto a estes contratos se pode estar perante a transferência de um complexo unitário, constituído por direitos e obrigações da parte cedente[11] .

Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que, dos termos do contrato designado de “cessão de créditos”, nada indicia que as partes tenham querido transmitir mais do que o crédito da cedente sobre a EE (adquirente do calçado) por si fornecido. Nem se compreenderia que fosse outra a conclusão. Na verdade por força do regime legal da cessão de créditos o cedente «garante ao cessionário a existência e exegibilidade do crédito ao tempo da cessão…»- art.º 587º do CC. Ora se é verdade que o crédito do cedente sobre a EE corresponde ao preço da mercadoria que lhe foi fornecida e não foi paga, o hipotético crédito da cedente sobre a R. depende de reconhecimento judicial, em acção de condenação por responsabilidade civil, facto que não está demonstrado nem sequer alegado. Assim a Relação, ao concluir que o contrato de cessão de créditos, celebrado entre a A. e a DD, Lda., não abrange qualquer crédito sobre a R., não violou qualquer norma legal sobre a interpretação de declarações designadamente os preceitos constantes dos art.ºs 236º a 239º do CC.

Não sendo a A. titular do direito que invocou sobre a R., verifica-se uma situação de ilegitimidade substantiva.

A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.

Ora perante a conclusão de que no contrato de cessão de créditos que serve de fundamento ao pedido e à acção, não figura qualquer crédito da cedente sobre a R., é óbvio que a decisão recorrida não merece qualquer censura. Com efeito estando demostrado que à A. não foi cedido nenhum crédito do cedente sobre a R., aquela não é titular do direito que se arrogou para demandar a R. e portanto não tem legitimidade substantiva, dado que não é titular da relação material controvertida invocada.

Concluindo

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Notifique.

Lisboa, em 18 de outubro de 2018.


José Manuel Bernardo Domingos (Relator)

João Luís Marques Bernardo

Fernando Oliveira Vasconcelos

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[1] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[3] Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 1982, 72 e 450.
[4] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2a edição, 1974,347 e nota (2).
[5] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2a edição, 1974,253; Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, 2° volume, 1990,89 a 97.
[6] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006,813.
[7] Romano Martinez, Direito das Obrigações, 2a edição, 2004, 189.
[8] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2a edição, 1974,257; Meneses Leitão, Cessão de Créditos, 2005, 285 a 291.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4a edição, revista e actualizada, 1987, 400.
[10] Romano Martinez, Direito das Obrigações, 2a edição, 2004, 195.
[11] Vaz Serra, Cessão da Posição Contratual, BMJ, n° 49, 10.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4a edição, revista e actualizada, 1987, 400.