Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
733/17.2JAPRT.G2.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
VIOLAÇÃO
REGIME ESPECIAL PARA JOVENS
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 01/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO RECURSO DO M. P. E NAGADO O PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A aplicação do regime penal especial para jovens não é obrigatória nem automática, sendo necessário que se tenha estabelecido positivamente que há razões para crer que dessa atenuação especial resultem vantagens para a reinserção social do jovem sem ser afectada a exigência de prevenção geral, isto é, de protecção dos bens jurídicos e da validade das normas.

II -O juízo a formular sobre as vantagens da atenuação especial para a reinserção social tem de assentar em condicionalismo que, não se reduzindo à idade do agente, atenda a todo o condicionalismo do cometimento do crime.

III - Assim, não será de aplicar o regime dos jovens delinquentes quando do conjunto dos factos praticados e a sua gravidade o desaconselham em absoluto, por não se mostrar passível de prognose favorável à reinserção social do arguido.

IV - A adequada reinserção social do arguido, ou seja, a sua correcta reintegração na sociedade, depende necessariamente de considerações de natureza preventiva, particularmente especial, cuja avaliação deve ter presente, designadamente, a gravidade do facto ou factos perpetrados e as suas consequências, o tipo e a intensidade do dolo, os fins que subjazem ao ilícito, o comportamento anterior e posterior e a personalidade do arguido à luz dos factos, isto é, neles manifestada e reflectida.

V - As medidas propostas no regime penal especial para jovens, como resulta do próprio preâmbulo do DL n.º 401/82, de 23-09 (ponto 7), não deverão ser aplicadas quando, em concreto, se mostre necessário defender a comunidade e prevenir a criminalidade, que será à partida, embora carecendo de apreciação, o caso de a pena aplicável ser de prisão superior a dois anos.

VI - Assim, razões atinentes às necessidades de reprovação e de prevenção do crime poderão levar à não aplicação daquele regime, designadamente quando a ele se opuserem considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínima e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico.

VII - Um juízo de prognose, como o que está ínsito no mencionado regime penal dos jovens, pressupõe uma valoração do conjunto dos factos e da personalidade do arguido, quanto a saber se, em termos prospectivos, a imagem global indicia positivamente uma esperança fundada de que da atenuação especial da pena resultem vantagem para a reinserção do arguido.

VIII - A avaliação das vantagens da atenuação especial para a reinserção do jovem tem de ser equacionada perante as circunstâncias concretas do caso e do percurso de vida do arguido, e não por considerações abstractas desligadas da realidade; do julgamento do caso concreto tem de resultar claramente a convicção do juiz sobre a natureza expressiva das [sérias] vantagens da atenuação para a reinserção do jovem condenado.

IX - As condições do arguido, reveladas nos factos provados, integradores da prática de três crimes de violação agravada, não permitem concluir, como impõe o art. 4.º do DL n.º 401/82 que haja «sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado»; bem em diverso, apontam mais para sérias dúvidas sobre a verificação do pressuposto de aplicação de regime específico para jovens adultos.

X - O arguido não demonstrou arrependimento nem evidenciou actos demonstrativos de contrição, sendo que, como se recolhe do relatório da perícia médico-legal de psicologia, o mesmo «tende a atribuir os seus actos abusivos a causas externas a si (locus de causalidade externa) e a responsabilizar a irmã (ofendida) pela prática destes».

XI - Segundo o mesmo relatório, o arguido, «[c]olocado perante factos cometidos por alguém em abstrato, em situação similar à descrita nos autos, mostrou-se pouco capaz de efetuar uma análise crítica acerca deste tipo de comportamentos, tendendo a efetuar atribuições externas dos mesmos. Denota, na generalidade, uma análise pouco reflexiva/crítica sobre a realidade envolvente, caracterizada por uma certa subvalorização de aspetos éticos/sociais fundamentais».

XII - A gravidade das infracções praticadas e a dimensão da culpa e da ilicitude, evidenciadas no caso vertente, justificam a conclusão de que uma atenuação especial induzida pela idade não se compagina com as exigências da sociedade perante infracções que contendem com valores nucleares.

XIII - Assim, entende-se por correcta a não aplicação ao arguido da medida de atenuação especial contida no DL n.º 401/82, procedendo, nesta parte, o recurso interposto pelo MP.

XIV - De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 71.º do CP, a medida da pena é determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o art. 40.º, n.º 2, do mesmo Código.

XV - Na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71.º, n.º 2, do CP).

XVI - Tendo presente as considerações já feitas supra sobre a conduta do arguido, «considerando a alarmante natureza dos crimes sexuais e no eco com que se apresentam na sociedade e naquilo que constitui o recorrente flagelo que invariavelmente se repete com eco na comunicação social naquilo que constituem agressões físicas e sexuais, e aquilo que são as concretas acções do arguido para com a ofendida contemporâneas aos actos de violação, perante a moldura abstracta “normal”, acentuando-se as exigências de prevenção geral que assumem aqui uma especial intensidade, devendo ter-se em devida atenção a intensidade da culpa do arguido manifestada na execução dos crimes, revelando uma personalidade particularmente desvaliosa em todo o processo de execução dos mesmos, entendemos justa e adequada a pena de 5 anos e 6 meses para cada um dos crimes de violação agravada.

XVII - A pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art 71º, n.º 1, do CP, um critério especial: «na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

XVIII - Na determinação da pena concreta conjunta, importa, pois, averiguar sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente, reflectida nos factos.

XIX - Na leitura compreensiva dos factos provados, o circunstancialismo que rodeou a execução, de forma reiterada, dos crimes de violação, revela um ilícito global muito grave e uma personalidade do arguido muito desvaliosa que não respeitou valores essenciais ao viver em sociedade e desde há muito sedimentados na comunidade.

XX - Ponderando os factos, a natureza do bem jurídico violado, perante a gravidade do ilícito global e a personalidade muito desvaliosa do arguido, considera-se justa e adequada a pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



       I – RELATÓRIO


1. Após anulação de anterior acórdão, por decisão proferida em 3 de Março de 2020 no Juízo Central Criminal …. – Juiz …. - Comarca …., em julgamento de processo comum e perante Tribunal Colectivo, foi o arguido AA, filho de BB e de CC, nascido em … .10.1998, natural .…, …., solteiro, residente na Travessa …, …., …., condenado pela prática de três crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a), 177.º, n.os 1, alínea a) e 7, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um deles.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.

2. Inconformados, recorrem o Ministério Público e o arguido.


2.1. O Ministério Público formula as seguintes conclusões (transcrição):


«CONCLUSÕES

1 - AA foi condenado nos presentes autos pela prática de “três crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1, al. a), 177.º, n.º 1, al. a) e 7, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um dos crimes praticados” (…) e em cúmulo jurídico “na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão”;

2 - Aderindo-se sem rebuços ao julgamento da matéria de facto, o presente recurso não constitui mais que o reafirmar da posição por nós manifestada seja em sede de alegações finais e naquilo que já fora expendido no anterior recurso interposto nos autos e no conforto do teor do parecer do Exm.º Senhor Procurador-Geral adjunto proferido na altura mantendo o entendimento que por se tratar de uma conduta de especial censurabilidade e desvalor acentuado espelhado no conjunto de factos dados como provados e pela personalidade ali manifestada, com acentuadas exigências de prevenção especial e geral, tudo isso, diferente do decidido, ingredientes bastantes para afastar a aplicação ao arguido do regime de jovens adultos e a fixação de penas parcelares e única mais elevadas;

3 - Bem presentes que o legislador concedeu uma larga margem de critério para o julgador ao não estabelecer expressamente índices ou factores especificamente definidores da reinserção social do jovem condenado, no subjaz pensamento de que se atingirá melhor, com a pena atenuada, o fim da pena, consagrado no artigo 40º, do Código Penal, da reintegração do agente criminoso, porque jovem, na sociedade, a aplicação deste regime especial passa pela verificação múltipla de factores endógenos (ligados à personalidade) e exógenos (ligados às condições de vida, circunstâncias do crime, etc.) com relação ao jovem agente do ilícito;

4 - Como se afirma, a título de exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.05.2006 (processo nº 06P1771, in www.dgsi.pt) “Com a atenuação especial da pena na delinquência jovem, atendendo às vantagens para a reinserção social do jovem condenado daí advindas, pretende-se evitar que uma reacção penal severa, na fase latente da formação da personalidade, possa comprometer definitivamente a socialização do jovem. Mas deve ter-se igualmente presente a gravidade do crime cometido, patente na medida da pena aplicável, indicada, aliás, pelo legislador como critério a atender também, sem se comprometer acriticamente aquele desiderato. Haverá que apreciar, em cada caso concreto, a personalidade do jovem, a sua conduta anterior e posterior ao crime, a natureza e modo de execução do crime e os seus motivos determinantes”.

5 - Na decisão ora em crise fundamenta-se a aplicação do regime previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23.09, ponderando-se essencialmente a sua jovem idade e a falta de antecedentes criminais, o certo é que para quem é jovem como o arguido surpreendente seria se o mesmo tivesse já averbada condenação penal;

6 - Os aspectos da sua personalidade, melhor explanados nos factos provados e no relatório pericial junto aos autos, a sua postura em julgamento nos presentes autos, a ausência de qualquer confissão ou arrependimento e a absoluta ausência de respeito pelo próximo revelado nos actos por si praticados, bem como a ausência de quaisquer outras circunstâncias relevantes que militem a seu favor, é de molde a afirmar, diversamente do decidido pelo tribunal a quo, que a atenuação da pena em nada contribuiria para a reintegração do arguido, não sendo este merecedor da aplicação de um tal instituto;

7 - Sopesadas as aludidas circunstâncias, o grau da ilicitude e da culpa referidas ao acto delituoso, a sua personalidade que, em momento algum, revelou ter assumido a prática dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, e não manifestou, consequentemente, qualquer tipo de arrependimento e bem assim as enunciadas actuais condições de vida do arguido, tudo é de molde a justificar plenamente uma decisão de não aplicação in casu do regime penal para jovens e por conseguinte que o mesmo não beneficie da atenuação especial da pena, nos termos do artigo 4º, previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23.09;

8 - É que qualquer atenuação especial da pena, para além de manifestamente imerecida no caso em apreço, poderia, outrossim, comprometer a necessária e urgente necessidade do arguido interiorizar o respeito por valores fundamentais e elementares da vida em sociedade.

9 - Numa avaliação global dos factos dados como provados, a natureza e modo de execução, a personalidade do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao crime, bem como condições de vida, tudo ponderado resulta líquida a afirmação que a moldura penal do crime em questão não é excessiva tendo em vista os fins de socialização do jovem condenado;

10 - Na ponderação das mencionadas circunstâncias concretas do caso é possível afirmar que não se está na presença de um conduta isolada ou ocasional próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil, mas sim, perante um comportamento próprio de alguém que praticou aquele conjunto de factos, não se abstendo de os realizar contra a sua própria irmã a despeito da resistência/ negação oferecida e que impõe o combate, firme e sem condescendência, por meio da utilização de instrumentos de recomposição, pelo que não se mostra justificada a formulação de um juízo de prognose favorável à atenuação especial.

11 - Por outro lado, importa também salvaguardar naturalmente as exigências de prevenção geral ligadas à protecção de bens jurídicos, ponderando-se a importância fundamental que para essa protecção assume a reinserção do agente, das exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e de garantia de protecção dos bens jurídicos, assumidas, em sede de prevenção geral;

12 - Como vem sendo repetidamente decidido pelo STJ, a aplicação do regime penal especial para jovens não pode manter-se à margem da consideração das exigências de prevenção geral, assentando em preocupações exclusivas, ou sequer predominantes, de ressocialização do agente jovem, de prevenção especial, sobrepondo-se-lhes, já que não se pode abdicar de considerações de prevenção geral, sob a forma de "exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico" e garantia de protecção dos bens jurídicos de básica, o que conduz a que no caso dos autos se não aplique o regime previsto no referido artigo 4º;

13 - Pelo que assim, afastada a atenuação especial decorrente da aplicação do estatuído no artigo 4.º do D.L. n.º 401/82, de 23/9, perante a moldura abstracta que corresponde a cada um dos crimes e nos factores considerados pelo tribunal para a medida da pena, é de considerar que relativamente ao crime de violação agravada deve ser fixada uma pena situada entre os 5 anos e 6 meses e os 6 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, uma pena única situada entre os 7 anos e 6 meses e os 8 anos e 6 meses de prisão;

14 - Pois que, tendo presente as elevadíssimas razões de prevenção geral, o grau da ilicitude do facto (elevado) e a gravidade das suas consequências, o modo como se comportou, os motivos que estiveram subjacentes à sua actuação, a intensidade do dolo, os factores relativos à sensibilidade à pena e susceptibilidade de por ela ser influenciado, qualidades da personalidade manifestadas no facto e conduta anterior e posterior o facto, não favorecem a responsabilidade criminal do arguido, acentuam de forma considerável as exigências de prevenção especial, as acrescidas as necessidades de ressocialização e sensibilidade à pena criminal que lhe venha a ser aplicada, traduzidas do meio de onde provém, as condições pré-existenciais e existentes a data do cometimento dos factos e a postura que teve em julgamento.

15 - Assim, ao ter aplicado aquele regime e ao ter fixado aquelas penas o douto acórdão violou, para além dos preceitos incriminadores acima mencionados, o disposto nos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2, 71.º e 77.º todos do Código Penal e o disposto no artigo 4.º do D.L. n.º 401/82, de 23/9.


Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogar-se o douto acórdão proferido nos autos e substitui-lo por outro que afaste a aplicação do regime estatuído pelo D.L. n.º 401/82 de 23.09 e 73.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e condene o arguido pela prática, em autoria material, três crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1, al. a), 177.º, n.º 1, al. a) e 7, do Código Penal, numa pena entre 5 anos e 6 meses e 6 anos e 6 meses de prisão por cada um dos crimes praticados e em cúmulo jurídico numa pena única situada entre os 7 anos e 6 meses e os 8 anos e seis meses de prisão.


2.2. Por sua vez, o arguido remata a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

«CONCLUSÕES

1. O arguido recorre da douta sentença proferida nos presentes autos que o condenou pela prática de três crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164º, nº 1, al. a), 177º, nº 1, al. a) e 7 do Código Penal, na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.

2. Salvo, porém, o devido respeito, considera o arguido, ora recorrente, que a condenação na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão não se coaduna com a medida da culpa, sendo exagerada e desproporcional face à prossecução dos fins da prevenção geral e especial.

3. Constam dos autos elementos bastantes que sustam uma decisão mais favorável, nomeadamente, para fundamentar a aplicação de pena de prisão inferior a 5 anos, suspensa na sua execução, atenta a condição humana do arguido, ora recorrente.

4. Através do requerimento apresentado nos autos no dia 4 de março de 2019, o arguido veio declarar expressamente que aceitava o acompanhamento psicológico especializado que lhe era proposto no Relatório de Perícia Médico-Legal de Psicologia.

5. Do Relatório de Perícia Médico-Legal de Psicologia resultam, através das entrevistas realizadas ao recorrente, as seguintes conclusões quanto à Avaliação do Risco e das Necessidades de Intervenção: “Da avaliação do risco de violência sexual, conclui-se que AA apresenta um nível global de risco baixo, por apresentar escassez de critérios relevantes nos níveis de risco avaliados (ajustamento psicossocial, ofensas sexuais e planos futuros) (cf.SVR-20). A par dos fatores de risco identificados é igualmente de mencionar a existência de alguns fatores protetores. A este respeito, salienta-se o facto de AA, após a denúncia, não ter voltado a manter qualquer contacto com a irmã (ofendida) e de continuar a dispor e suporte da progenitora e do companheiro desta, com quem reside.”

6. Do Relatório de Perícia Médico-Legal de Psicologia extrai-se a seguinte Conclusão: Face ao anteriormente exposto e, atendendo à existência de algumas fragilidades, em especial no que respeita à intimidade e sexualidade e à forma como este se posiciona face aos atos por si praticados (i.e., locus de causalidade externa, responsabilização da irmã), entendemos como fundamental o encaminhamento de AA para acompanhamento psicológico especializado, que vise a promoção de competências sociais e relacionais (em específico no que respeita à intimidade e sexualidade).”

7. Do Relatório Social para determinação da sanção junto aos autos, constam as seguintes considerações: Em caso de condenação e se a pena concretamente aplicada o permitir, parece-nos que AA reúne condições para uma medida de execução na comunidade que contemple a obrigação de se submeter a uma intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e sexualidade.”

8. O arguido, ora recorrente optou por se manter em silêncio, não obstante, ter admitido nas perícias realizadas (avaliação psiquiátrica forense e avaliação psicológica forense) e no relatório social, que teve relações sexuais com a ofendida em três ocasiões, verbalizando arrependimento (cfr. relatório social de fls 332 e ss e relatório da perícia médico-legal de psicologia de fls 367 e ss dos autos).

9. O Tribunal a quo ao determinar a aplicação de uma pena única de 5 anos e três meses pela prática de três crimes de violação agravada de que vinha acusado, não salvaguardou a reintegração do Recorrente na sociedade, como determinam os artigos 71.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

10. Desde Março de 2017, que o arguido vive com a sua mãe e o companheiro desta, DD, em … .

11. Não tendo desde essa altura mantido qualquer contacto com a ofendida.

12. Pelo que, está completamente afastada a hipótese de voltar a haver novo crime, conforme conclui o tribunal a quo na sentença recorrida.

13. Além disso, resulta ainda do Relatório de Perícia-Legal de Psiquiatria de fls. 353 e ss que “entende-se não existirem critérios para admitir a perigosidade de que venha a praticar atos da mesma natureza, nem haver necessidade de tratamento clínico psiquiátrico.”

14. Do Relatório de Perícia-Legal de Psicologia de fls 367 e ss resulta que “Da avaliação de risco de violência sexual, concluiu-se que AA apresenta um nível global de risco baixo”.

15. Não obstante, a sentença ora recorrida não valorou devidamente os elementos de prova recolhidos através das perícias realizadas ao arguido.

16. Em especial, no que concerne ao Relatório de Perícia-Legal de Psicologia, o qual, a nosso ver, faz uma descrição completa e credível da condição humana do arguido, no contexto familiar, social e económico, marcado pela violência familiar, promiscuidade e baixa valorização de um ambiente adequado à construção da intimidade e de relações salutares.

17. Uma conjunção de fatores negativos, que a o relatório social concluiu como desinibidores situacionais e circunstanciais que potenciam a promiscuidade, especialmente em jovens que ainda estão a formar o seu carácter e as suas crenças.

18. A sentença ora recorrida fez uma errada apreciação da prova e, nomeadamente, quanto às conclusões do relatório social e do relatório de perícia-legal de psicologia que vão no sentido do arguido reunir condições para uma medida de execução na comunidade que contemple a obrigação de se submeter a uma intervenção psicoterapêutica especializada, direcionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais designadamente na área da intimidade e sexualidade.

19. A condição humana do arguido, bem espelhada nos relatórios sociais e de avaliação psicológica, demonstram que o arguido é pouco capaz de efetuar uma análise crítica acerca do tipo de comportamentos pelos quais se encontra acusado, tendendo a efetuar atribuições externas dos mesmos e a subvalorizar aspetos éticos/sociais, essenciais para a vida em comunidade.

20. Os relatórios são claros quanto à viabilidade e potencialidade de uma medida de execução na comunidade, atendendo a que o arguido se mostra atualmente inserido social e profissionalmente, além de ser jovem e da opção pela execução da pena na comunidade ser mais apta à reintegração nos paradigmas da sociedade e da moral, corrigindo as falhas de carácter e subvalorização de aspetos éticos que foram evidentes nas perícias realizadas.

21. Porquanto, o arguido, desde março de 2017 tem adotado um estilo de vida assente nas regras sociais vigentes e continua a dispor do suporte da progenitora e do companheiro desta, com quem reside.

22. Além disso, o recorrente afastou-se da ofendida, a fazer crer que comportamentos similares não irão repetir-se (facto provado nº 28).

23. Atualmente o arguido está a trabalhar como operário ……. na empresa E...., LDA, conforme contrato de trabalho a termo certo junto aos autos no requerimento de 04.03.2019 (facto provado nº 29).

24. O recorrente tem apoio da mãe e do companheiro desta, com quem vive em …. (facto provado nº 27).

25. O recorrente é um jovem de 20 anos, não tem antecedentes criminais e está social, profissional e familiarmente inserido, conforme resulta do Relatório de Perícia-Legal de Psicologia e do Relatório Social.

26. No entanto, não pode deixar de se relevar o contexto familiar, social e económico do recorrente, do seu seio familiar e de todos os fatores situacionais e circunstanciais que, com o devido respeito, não foram devidamente valorados pelo tribunal a quo na determinação da sanção.

27. O recorrente não tem a escolaridade obrigatória e deixou a escola aos 17 anos (cfr. relatório social e relatório de perícia-legal de psicologia).

28. O arguido e a sua família são altamente carenciados de meios económicos, sociais e humanos, sem apoio de quem quer que seja, até do Estado.

29. A promiscuidade em que esta família foi devotada, a exposição a situações de violência familiar e a baixa valorização de um ambiente adequado à construção da intimidade e de relações positivas e seguras, enquanto fatores desinibidores situacionais e circunstanciais, fez com que esta situação ocorresse.

30. Sendo que, à data da prática dos factos, o arguido e a assistente, para além de não frequentarem a escola, viviam em condições muito precárias.

31. O arguido não tem antecedentes criminais e apesar de se ter remetido ao silêncio, aquando a realização da avaliação psicológica forense o arguido verbalizou arrependimento (fls.367 e ss), tendo em conta ainda a circunstância do arguido em julgamento se haver remetido ao silêncio não poder ser valorada em seu desfavor, na medida em que exerce um direito seu (art. 343.º, n.º 1, do CPP), Ac. STJ de 15/02/2007, proc. nº 15/07, 5ª, e Ac. STJ de 10/01/2008.

32. O arguido não mantém qualquer contacto com a ofendida desde março de 2017 (facto provado nº 28) e não foi identificada problemática aditiva, ou de consumo excessivo do álcool e não foram reportados comportamentos sociais desajustados, passíveis de constituir fator de risco ou de reatividade social (cfr. relatório social fls.367 e ss).

33. Por conseguinte, a prática dos ilícitos em causa foi motivada pela situação miséria humana em que o arguido e a ofendida estavam inseridos, na destruturação familiar, pautada pela violência doméstica que o progenitor de ambos exercia sobre a mãe de ambos e de maus tratos do progenitor para com o arguido – cf. relatório de perícia legal de psicologia de fls.367 de ss.

34. São evidentes várias fragilidades em especial no que respeita à valorização e capacidade de promover um ambiente adequado ao desenvolvimento da intimidade e de relações íntimas salutares (ex. a irmã do arguido, FF, partilhava o mesmo quarto com os pais; o arguido já adulto partilhava o mesmo quarto com a irmã FF, contexto aliás em que terão ocorrido os episódios descritos na acusação; familiares com diferentes relacionamentos de intimidade e com filhos dos diferentes relacionamentos).

35. Basicamente, o recorrente é jovem mas não tem adquiridos os conceitos relativos à moral sexual, tem instrução insuficiente e dificuldades em manter um adequado padrão a nível profissional, apesar de estar atualmente a trabalhar.

36. De igual modo, conforme consta do relatório social e do relatório de perícia-legal de psicologia, verificam-se no arguido várias fragilidades ao nível do estabelecimento de relacionamentos íntimos, mantendo relações tendencialmente breves e com coabitação precoce.

37. Existem vários fatores que, a nosso ver, nomeadamente a condição humana do arguido e contexto familiar, social e económico em que estava inserido, que diminuem a sua culpa e, consequentemente a medida da pena, verificando-se vários benefícios na ressocialização do arguido caso lhe seja aplicada uma pena inferior a 5 anos, suspensa na sua execução e condicionada ao cumprimento de injunções, onde se incluiu o acompanhamento psicológico especializado, que vise a promoção de competências sociais e relacionais (em específico no que respeita à intimidade e sexualidade).

38. Por outro lado, o relatório social concluiu que o arguido é pessoa idónea ao cumprimento da pena na comunidade, com todos os benefícios daí advenientes para a sua reintegração, propondo ainda que a obrigação de se submeter a uma intervenção psicoterapêutica especializada, direcionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e da sexualidade.

39. O arguido não é um caso perdido, mas uma sentença pesada como esta que lhe foi aplicada, o risco de não serem cumpridas as exigências de reintegração social do arguido é elevado, pois o arguido é jovem e socialmente integrado, mas teve um ambiente familiar pautado pela violência doméstica e pela promiscuidade dos relacionamentos, com familiares que tem vários parceiros e filhos dos diferentes relacionamentos, pouco rígido a nível de moral sexual.

40. O arguido não tem antecedentes criminais e desde a data dos factos tem atuado conforme as regras vigentes e nunca mais voltou a contactar a ofendida.

41. Com a aplicação de uma pena inferior a 5 anos e suspensa na sua execução, arguido tiver oportunidade de cumprir a pena em comunidade, com o devido acompanhamento psicológico especializado poderá ser-lhe dada uma oportunidade para corrigir o seu carácter e as suas crenças sexuais.

42. Além de ser uma forma de integrar o arguido nos cânones sociais e morais que regem a nossa sociedade, seria uma foram do próprio Estado reparar as suas próprias falhas no devidamente acompanhamento dos jovens de risco.

43. Estamos em crer que o contexto familiar, social, económico e moral do arguido conduziu a esta situação, sendo um caso com várias falhas a vários níveis: falhas da comunidade, falhas da família, falhas do Estado e de todos os seus organismos criados para proteger e acompanhar jovens especialmente vulneráveis e com propensão para o risco e delinquência.

44. Posto isto, não desconsiderando a culpa do arguido, não podemos menosprezar o contexto em que o arguido e a ofendida viviam, com os exemplos familiares e de relacionamentos que tinham, da falta de valorização de um ambiente adequado ao desenvolvimento da intimidade e da privacidade, com abstenção escolar e padrão profissional precário e inconstante.

45. Posto isto, considerando as exigências de prevenção geral e especial e a medida da culpa, relativas ao caso concreto, entendemos ser razoável, adequada e proporcional a aplicação de uma pena de prisão inferior a cinco anos e suspensa na sua execução, condicionada ao cumprimento de várias injunções, como a não prática de crimes desta ou de outra natureza, e, especialmente, ser alvo de acompanhamento psicológico especializado, que vise a promoção de competências sociais e relacionais, em específico no que respeita à intimidade e sexualidade.

46. Apesar de se ter remetido ao silêncio, o arguido percebe a ilicitude dos atos e verbalizou arrependimento na avaliação psicológica forense, tendo-se afastado da ofendida desde março de 2017, fazendo crer que comportamentos similares, com a ofendida, não irão repetir-se.

47. O recorrente, ao tempo dos factos, tinha 18 anos, sendo assim necessário, como é opção do legislador (art. 53.º, n.º 3 do CP), e vem aconselhado no relatório social e no relatório de perícia-legal de psicologia para melhor promover a inserção, que a suspensão da execução da pena inferior a 5 anos seja acompanhada do regime de prova e da obrigatoriedade de um intervenção psicoterapêutica especializada, direcionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais na área da intimidade e sexualidade.

48. Em face do exposto, considerando as exigências de prevenção geral e especial do caso concreto, entendemos ser adequada a fixação de uma pena inferior a 5 anos, suspensa na sua execução e condicionada a regime de prova e intervenção psicoterapêutica especializada, conforme proposto no relatório social e no relatório perícia-legal de psicologia.

49. De tudo quanto ficou exposto, resulta que, a sentença proferida nos presentes autos violou os

- artigos 40.º, 71.º, n.º 1, nº 2, c), d) e e), 72º, nº 1, 73º e 74º todos do Código Penal e no art.º 4º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23.09 (REGIME PENAL APLICÁVEL A JOVENS DELINQUENTES).

- preconizou uma errada valoração da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, al. c) do CPP.

Assim, revogando a decisão recorrida que condenou o arguido na pena única em 5 anos e 3 meses de prisão, substituindo-a por outra que repute como adequada e necessária a fixação de pena única inferior a 5 anos, suspensa na sua execução, condicionada ao cumprimento de várias injunções, em especial, a obrigação intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos  interpessoais na área da intimidade e sexualidade …»


3. Foram apresentadas respostas aos recursos interpostos.

4. Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

I    «Introdução

Afigura-se que nada obsta ao conhecimento do recurso interposto pelo arguido AA, não se verificando motivos para a sua rejeição, nem qualquer causa extintiva do procedimento criminal que ponha termo ao processo.

O presente recurso deve ser julgado em conferência, por força do disposto no art. 419º, nº 3, al. c), do Cod. Proc. Penal.

II - Relatório

1. O Juízo Central Criminal …. - Juiz ……, da Comarca …, proferiu um novo acórdão, no âmbito do Proc. nº 733/17…., em obediência à decisão deste Supremo Tribunal de 18/12/2019, e condenou o arguido AA, pela prática de três crimes de violação agravada, p. p. pelos arts. 164º, nº 1, al. a), 177º, nº 1, al. a), e nº 7, do Cod. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, por cada um dos crimes praticados e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão;

2.    O Ministério Público junto da 1ª Instância não se conformou com esta nova decisão e interpôs novo recurso, restrito a matéria de direito, pugnando pela não aplicação ao arguido do regime estatuído pelo Dec. Lei nº 401/82 de 23 de Setembro, e pelo art. 73º, nº 1, e nº 2 do Cod. Penal, e pela sua condenação pela prática, em autoria material, de três crimes de violação agravada, p. p. pelos arts. 164º, nº 1, al. a), 177º, nº 1, al. a), e nº 7, do Cod. Penal, numa pena entre 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses e 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes de violação praticados, e em cúmulo jurídico, numa pena única situada entre os 7 (sete) anos e 6 (seis) meses e os 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.

3.    O arguido AA, também não se conformou com esta nova decisão e interpôs novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela sua condenação numa pena única inferior a 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução, e condicionada à obrigação de se submeter a uma intervenção psicoterapêutica especializada, direcionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais na área da intimidade e sexualidade.

4.    Os recursos foram admitidos, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito suspensivo, tendo sido determinada a sua remessa ao Tribunal da Relação …. - cfr. despachos judiciais de 07/05/2020, e de 09/07/2020.

5.    O Ministério Público na 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido AA, defendendo que o mesmo deve ser julgado improcedente.

6.     O Tribunal da Relação … declarou-se incompetente para conhecer de ambos os recursos, e determinou a sua remessa para este Supremo Tribunal de Justiça - cfr. decisão de 03/09/2020.

III - Parecer

A - Do recurso interposto pelo Ministério Público

O recorrente Ministério Público alega que a atenuação especial da pena aplicada ao arguido à luz do art. 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, e do art. 73º, nº 1, e nº 2, do Cod. Penal, não poderia ter ocorrido face à gravidade dos crimes por si cometidos e pelos quais veio a ser condenado.

O recorrente Ministério Público alega não ser de estranhar a ausência de antecedentes criminais ao arguido tendo em conta a sua idade à data da prática dos factos, sendo que o mesmo nunca assumiu a sua prática, nunca mostrou qualquer tipo de arrependimento, nem demonstrou qualquer respeito para com a vitima sua irmã, não existindo circunstâncias relevantes que militem a seu favor.

O recorrente Ministério Público alega que a atenuação da pena em nada irá contribuir para a reintegração do arguido, não sendo este merecedor da aplicação do regime penal para jovens, face a todas as circunstâncias em que os actos delituosos foram praticados na pessoa da vítima sua irmã, face ao seu grau da ilicitude e de culpa, e face à personalidade por si revelada.

O recorrente Ministério Público alega não se estar “(…) na presença de um conduta isolada ou ocasional próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil, mas sim, perante um comportamento próprio de alguém que praticou aquele conjunto de factos, não se abstendo de os realizar contra a sua própria irmã a despeito da resistência/negação oferecida e que impõe o combate, firme e sem condescendência, por meio da utilização de instrumentos de recomposição, pelo que não se mostra justificada a formulação de um juízo de prognose favorável à atenuação especial (…)”.

O recorrente Ministério Público alega que importa salvaguardar as exigências de prevenção geral ligadas à protecção de bens jurídicos, sendo fundamental a reinserção do arguido, o que não se compadece com a aplicação do regime penal especial para jovens.

O recorrente Ministério Público alega que a medida das penas parcelares e a medida da pena única a aplicar deverão atender às elevadíssimas razões de prevenção geral e de prevenção especial que se fazem sentir, face ao elevado grau da ilicitude dos factos e à gravidade das suas consequências, ao modo como o arguido se comportou, aos motivos que estiveram do subjacentes à sua actuação, à intensidade do dolo, e à personalidade manifestada, que justificam serem “(…) acrescidas as necessidades de ressocialização e sensibilidade à pena criminal que lhe venha a ser aplicada, traduzidas do meio de onde provém, as condições pré-existenciais e existentes a data do cometimento dos factos e a postura que teve em julgamento (…)”.

O recorrente Ministério Público alega que o acórdão recorrido ao ter aplicado o regime penal especial para jovens, e ao ter fixado a pena de 3 (três) anos de prisão, por cada um dos crimes praticados e a pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão, violou o disposto nos arts. 40º, nº 1, e nº 2, 71º, e 77º todos do Cod. Penal, e no art. 4.º do Dec. Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, pugnando pela não aplicação daquele regime especial e pela condenação do arguido pela prática, em autoria material, de três crimes de violação agravada, p. p. pelos arts. 164º, nº 1, al. a), 177º, nº 1, al. a) e nº 7, do Cod. Penal, numa pena entre 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses e 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um destes crimes, e em cúmulo jurídico numa pena única situada entre os 7 (sete) anos e 6 (seis) meses e os 8 (oito) anos e seis (seis) meses de prisão.

Consideramos que assiste razão ao recorrente Ministério Público subscrevendo na íntegra a respectiva motivação de recurso.

Começaremos por analisar o texto do acórdão recorrido no que toca à determinação da medida das penas parcelares, e da pena única aplicadas ao arguido.

Assim, consta do acórdão recorrido que o arguido e a ofendida são irmãos, estando preenchida a agravante do nº 1, al. a), do art.º 177º, do Cod. Penal, e a agravante do nº 7 deste preceito legal, uma vez que a ofendida nasceu em 12/12/2003, tendo 13 anos à data dos factos, e apesar de ter sido dado como provado que o arguido não tinha conhecimento que era portador de doença sexualmente transmissível, que transmitiu à ofendida, esta circunstância foi valorada na medida da pena.

Consta também do acórdão recorrido que a moldura penal aplicável aos crimes pelos quais o arguido foi condenado p. p. pelos arts. 164º, nº 1, al. a), 177º, nº 1, al. a) e 7, do Cod. Penal, é de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses a 15 (quinze) anos de prisão, contudo beneficiou da atenuação especial da pena, nos termos do artº 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro e dos arts. 73º e 74º do Cod. Penal, por ter sido considerado que existiam razões sérias para crer que desta atenuação resultariam vantagens para a sua reinserção social, não obstante também constar que o mesmo não demonstrou arrependimento, não prestou declarações em sede de audiência, e não evidenciou a prática de actos demonstrativos de contrição.

Consta também do acórdão recorrido a ausência de antecedentes criminais do arguido, manter uma personalidade conforme ao dever ser jurídico-penal, não lhe serem conhecidos problemas aditivos ou outros comportamentos sociais desajustados, para justificar a aplicação do artº 4º do Dec. Lei nº 401/82, e concluir que “(…) resultarão manifestas vantagens para a reinserção social do arguido, que dele deverá beneficiar (…)”, tendo sido reduzido de 1/3 o limite máximo da pena aplicável para 10 (dez) anos, e sido reduzido o limite mínimo de 1/5, para 10 (dez) meses e 24 (vinte e quatro) dias, face ao disposto nas als. a) e b), do nº 1, do art. 73º do Cod. Penal.

Consta também do acórdão recorrido, após ponderação do estatuído no art. 71º do Cod. Penal, que “(…) quanto ao processo de socialização do arguido a inserção em grupo familiar social e economicamente vulnerável, a exposição a situações de violência familiar e a baixa valorização de um ambiente adequado à construção da intimidade e de relações positivas e seguras, enquanto fatores que concorrem com desinibidores situacionais e circunstanciais (…)”.

Consta também do acórdão recorrido que o arguido é jovem, não tem antecedentes criminais, está social, profissional, e familiarmente inserido, que actuou “(…) com dolo direto; o seu concreto comportamento (o tipo de atos por si praticados, o grau de força física e ameaça utilizadas); a natureza e proximidade da relação familiar existente entre arguido e ofendida, a circunstância de, por efeito da prática dos factos, o arguido ter transmitido à ofendida uma doença sexualmente transmissível, a aumentar o desvalor do resultado; a idade da menor (13 anos, à data dos factos) e o período durante o qual o arguido prolongou a sua conduta (cerca de 2 meses) (…)” e apesar de não ter demonstrado de arrependimento, afastou-se da ofendida, concluindo que o mesmo não irá repetir comportamentos similares com a ofendida.

Consta também do acórdão recorrido o lapso de tempo decorrido desde a data da prática dos factos (aproximadamente 2 anos), as exigências de prevenção geral que são elevadas, atenta a natureza dos crimes cometidos, “(…) vindo a comunidade a reclamar um endurecimento do discurso punitivo (…)”, tendo o arguido sido condenado na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um dos crimes de violação praticados.


Consta também do acórdão recorrido que “(...) a personalidade demonstrada pelo arguido, revelada, entre outras coisas, no seu registo criminal, mas também no facto de não ter conseguido travar os seus impulsos em três ocasiões distintas, o contexto e o período de tempo em que os factos ocorreram, a circunstância de que, de acordo com o relatório social, colocado perante factos similares, se mostrar pouco capaz de efetuar uma análise crítica acerca deste tipo de comportamentos, denotando uma análise pouco reflexiva/crítica sobre a realidade envolvente, caracterizada por uma certa subvalorização de aspetos éticos/sociais fundamentais (...)”, justificam como adequada a aplicação da pena única em 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão, face ao disposto no art.° 77°, n° 1, e n° 2, do Cod. Penal

O recorrente Ministério Público põe em causa a aplicação ao arguido do regime penal especial previsto no art. 4o do Dec. Lei n° 401/82, de 23 de Setembro, que refere que, em caso de aplicação de pena de prisão, o Juiz deve atenuar especialmente a pena, nos termos dos arts. 72° e 73° do Cod. Penal, se tiver sérias razões para crer” que dela resultarão “vantagens para a reinserção social do jovem condenado”.

Ora, para a aplicação deste art. 4o do Dec. Lei n° 401/82, há que atender à natureza dos factos dados como provados, a todo o circunstancialismo em que os mesmos foram praticados, à personalidade revelada pelo autor dos mesmos, sendo que o Juiz só poderá atenuar especialmente se tiver sérias razões que esta atenuação irá de facto contribuir para a reinserção social do jovem condenado”.

Estamos perante a prática de três crimes de violação agravada, na pessoa de uma menor, irmã do arguido, que à data tinha 13 anos de idade, em que a questão da atenuação especial se coloca em relação às penas singularmente aplicadas a cada um dos crimes nos termos dos arts. 70° a 74° do Cod. Pena), e a determinação da pena conjunta obedece às regras previstas nos arts. 77° a 79°, todos do Cod. Penal.

No caso, entende-se que a conduta do arguido revela qualidades de personalidade profundamente rejeitáveis, sendo que a idade da vitima e o facto de ser sua irmã, deveriam desde logo constituir factores inibitórios dos actos de violação por si praticados, contudo para além de tudo isto ainda praticou tais actos utilizando ameaças dizendo-lhe que se resistisse lhe partiria as costelas.

Esta conduta reveladora de uma grande insensibilidade pelo bem jurídico protegido com a incriminação do crime de violação agravada pelo qual o arguido foi condenado foi repetida mais duas vezes, tendo usado novamente as mesmas ameaças com o único objectivo de satisfazer os seus desejos sexuais.

Entende-se que a conduta adoptada na prática dos factos e após a prática dos factos, revela que o arguido é portador de traços de personalidade desvaliosos, e demonstra que a adopção de um tratamento mais favorável, materializado na atenuação especial da pena, ao invés de servir de estímulo à sua reintegração social, poderá levar a que a pena assim decidida não tenha a virtualidade de lhe fazer interiorizar a gravidade das suas condutas.

Para além do mais, o arguido não manifestou nenhum propósito de emenda, nem tal facto se pode depreender de toda a sua postura, uma vez que nunca confessou os factos.

Perante tudo isto entende-se não ser possível concluir que a atenuação especial favoreça a reinserção do arguido, sendo que a atenuação especial da pena, para além do pressuposto formal decorrente da circunstância de o agente não haver ainda completado 21 anos de idade à data dos crimes, exige também um outro pressuposto de natureza material e que é o de o Juiz ter “sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado”.

Ora, entende-se não haver razões sérias para crer que a atenuação especial da pena favoreça a reinserção social do arguido, de forma a beneficiar do regime penal especial previsto no Dec. Lei nº 401/82, devendo o mesmo ser condenado numa pena não inferior a 5 (cinco) anos de prisão por cada crime de violação agravado por si praticado, e numa pena única não inferior a 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.

B - Do recurso interposto pelo arguido AA

O recorrente AA alega que a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão que lhe foi aplicada é manifestamente excessiva, por desadequada e desproporcional, devendo ser reduzida.

O recorrente AA, alega ser primário, terem já decorridos cerca de dois anos desde a data da prática dos factos, estar perfeitamente integrado pessoal, social, e profissionalmente, não fazendo sentido enviá-lo para a prisão, pelo período de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses.

O recorrente AA, alega ser possível proceder-se a um juízo de prognose favorável, face à sua personalidade, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior aos factos, no sentido de permitir a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena.

O recorrente AA, alega que o acórdão recorrido violou os arts. 40º, 50º, e 71º, todos do Cod. Penal.

Consideramos que não assiste razão ao recorrente AA, subscrevendo na íntegra a resposta apresentada pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público em 1ª Instância.

Começaremos por referir que o crime de violação em apreciação é considerado como “criminalidade especialmente violenta”, nos termos do art. 1º, al. l), do Cod. Proc. Penal, sendo que a moldura abstracta da pena aplicada ao crime de violação agravada é de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses a 15 (quinze) anos de prisão, nos termos conjugados dos arts. 164º, nº 1, al. a), e 177º, nº 1, al. a) e nº 7, do Cod. Penal.

Ora, consta do art. 40° do Cod. Penal que a finalidade a prosseguir com as penas e com as medidas de segurança é “(…) a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

Em consonância com estes princípios, dispõe o art. 71°, nº 1, do Cod. Penal, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, o nº 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias agravantes e atenuantes a atender na determinação concreta da pena, e o nº 3 dispõe que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, com concretização adjectiva no art. 375°, nº 1, do Cod. Proc. Penal, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Posto isto, e tendo em conta o bem jurídico tutelado no tipo legal do crime de violação agravada pelo qual o recorrente AA foi condenado, as elevadas necessidades de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de crime gerador de grande e forte sentimento de repúdio pela comunidade que justificam uma resposta punitiva firme de forma a assegurar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas, e as necessidades de prevenção especial que igualmente se fazem sentir tendo em vista uma contribuição para a reinserção social do arguido, face à personalidade por si revelada, e tendo também em conta o contexto dos efeitos previsíveis da pena sobre o seu comportamento futuro, de forma a que molde com a pena a sua vida futura, entende-se não haver dúvidas que o mesmo carece de socialização.

Ora, entende-se que o acórdão recorrido apreciou devidamente toda a conduta levada a cabo pelo recorrente AA, contudo, na escolha da medida da pena não atendeu devidamente à elevada intensidade do dolo, à elevada ilicitude da sua conduta, ao facto de a ofendida ser sua irmã e à data dos factos ter apenas 13 anos de idade, à natureza dos actos praticados sem qualquer proteção, às consequências psicológicas provocadas na pessoa da ofendida, bem como à sua desconsideração pelos bens jurídicos em causa.

E, também não atendeu devidamente à personalidade revelada pelo recorrente AA, que não interiorizou o elevado desvalor da sua conduta, nem os malefícios a que deu causa, sendo que manteve com a ofendida sua irmã relações sexuais, sem o uso de preservativo, tendo-a colocado previamente num estado de total impossibilidade de se defender, dizendo-lhe que se resistisse lhe partiria as costelas, somente com um único objectivo, o de satisfazer os seus desejos sexuais, sem que aquela pudesse oferecer qualquer tipo de resistência, ou pudesse por qualquer forma manifestar a sua vontade.

Assim, entende-se que a medida da pena aplicada ao recorrente AA, não se revela nem justa nem adequada, tendo em conta a sua personalidade, a natureza dos crimes por si praticados (de elevada gravidade e alarme social), as circunstâncias que rodearam a sua prática, e as consequências que daí advieram, não tendo atendido devidamente aos já citados arts. 40° e 71º do Cod. Penal.

Por outro lado, apesar de não serem conhecidos antecedentes criminais ao recorrente AA, os actos por si praticados revestem-se de elevada gravidade, não sendo possível formular um juízo de prognose favorável no sentido de poder ser aplicado o instituto da suspensão da execução da pena, a que alude o art. 50º do Cod. Penal, tal como por si pugnado.

Com efeito, tendo em conta as finalidades de prevenção geral positiva de integração (protecção de bens jurídicos), e as finalidades de prevenção especial (integração do agente), entende-se que a aplicação de uma pena não privativa da liberdade não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Na verdade, as exigências de prevenção geral relativamente a este tipo de crimes revelam-se prementes, face ao aumento deste tipo de criminalidade, ao alarme social, e ao forte sentimento de repulsa que provocam na comunidade, impondo-se uma intervenção firme por parte da Justiça.

Assim, há que atender ao elevado grau da ilicitude dos factos, ao elevado grau de lesividade de bens jurídicos em causa, ao elevado desvalor do seu resultado, o que determina a aplicação de uma pena detentiva da liberdade.

E, atendendo ao contexto em que os factos foram praticados, encarados na sua globalidade, entende-se que a aplicação de uma pena não privativa de liberdade, através da utilização do instituto da suspensão da execução da pena, não realizaria de uma forma adequada e suficiente as finalidades preventivas da punição, uma vez que só a execução da pena de prisão permitirá dar resposta às exigências de prevenção.

Desta forma, entende-se não ser possível a aplicação de uma pena não privativa de liberdade, atendendo ao comportamento assumido pelo recorrente AA, designadamente à forma egoísta como logrou satisfazer os seus intentos sexuais, ao colocar a ofendida sua irmã numa situação de total impossibilidade de poder oferecer qualquer tipo de resistência, chegando a usar de força fisica e de ameaças para concretizar os seus intentos.

Estamos perante a prática de um crime de violação que causa alarme social, com reflexo nas vítimas, pelos traumas que gera, e pelos valores culturais que ofende gravemente, o que torna especialmente elevadas as necessidades de prevenção geral, exigindo uma resposta punitiva firme.

Assim, não existe qualquer viabilidade na aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, face ao grau de ilicitude dos factos, ao seu modo de execução, às circunstâncias em que os mesmos foram praticados, às consequências provocadas na vítima, não existindo quaisquer circunstâncias anteriores, ou posteriores aos factos, que diminuam de forma acentuada a culpa do recorrente AA - cfr. o art. 50º do Cod. Penal.

E, apesar do recorrente AA se encontrar familiar e socialmente inserido, tal circunstância não obstou a que praticasse os factos na pessoa da ofendida sua irmã, menor de 13 anos de idade, aproveitando-se da sua vulnerabilidade, e utilizando força física e ameaças e a proximidade da relação familiar existente entre ambos, tendo transmitido à ofendida uma doença sexualmente transmissível na sequência dos factos por si praticados que se prolongaram durante cerca de dois meses.

Concluindo, entende-se que o acórdão recorrido apesar de ter ponderado a gravidade dos factos praticados pelo recorrente AA, não atendeu às finalidades da punição, face aos imperativos da prevenção geral e especial que se fazem sentir, pelo que se afigura que, no caso em apreço, não será de aplicar o regime penal especial previsto no Dec. Lei nº 401/82, sendo que todo o circunstancialismo em que os factos ocorreram não permite formular um juízo positivo quanto ao seu comportamento futuro, de forma a serem criadas condições para que o seu processo de ressocialização possa decorrer em liberdade.

Daí, entender-se que a pena de prisão aplicada ao recorrente AA deverá ajustar-se à moldura penal aplicável aos crimes de violação agravado, pelos quais o mesmo foi condenado, ao bem jurídico protegido, que é o da liberdade de determinação sexual, não sendo possível concluir-se pela existência de razões sérias para crer que a atenuação especial favorece a sua reinserção, nem a diminuição da pena que lhe foi aplicada, nem a suspensão da sua execução.

Face ao exposto, somos de parecer que o recurso interposto pelo recorrente Ministério Público deve proceder, e o recurso interposto pelo recorrente AA deve improceder, devendo o mesmo ser condenado numa pena não inferior a 5 (cinco) anos de prisão, por cada crime de violação agravado, e numa pena única não inferior a 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.»


5. Foi dado cumprimento ao artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, nada mais tendo sido dito.

6. Com dispensa de vistos, realizada a conferência já que não foi requerido o julgamento em audiência, cumpre decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. Os factos

Com interesse para a decisão da causa, resultaram apurados os seguintes factos:

1 - O arguido AA, nascido em …… de 1998, e a ofendida FF, nascida em …… de 2003, são irmãos entre si;

2 - No dia … de Dezembro de 2016, o arguido, a ofendida e a mãe de ambos, CC, passaram a residir na Avenida …., em …., residência pertença de GG, irmã da ofendida;

3 - Mercê de constrangimento de espaço, na referida habitação, o arguido, a ofendida, CC e uma sobrinha desta, partilhavam um quarto, o qual dispunha de duas camas, sendo que numa destas dormia o arguido e a sua mãe e na outra a ofendida e a sobrinha desta;

4 - Em data não concretamente apurada, o arguido AA formulou o propósito de iniciar e manter com a ofendida FF relações sexuais de cópula, sabendo que a mesma tinha, à data, 13 anos de idade;

5 - Na execução desse propósito, em data não concretamente apurada, mas volvidas algumas semanas sobre a data referida no ponto 2), pela manhã, o arguido AA, constatando que ele e a ofendida se encontravam sozinhos na referida habitação e que esta se encontrava a dormir, entrou no aludido quarto e deitou-se na cama daquela ao seu lado;

6 - De imediato, a ofendida acordou e o arguido colocou-se por cima desta, dizendo-lhe que se resistisse lhe partiria as costelas;

7 - Na sequência, a ofendida começou a chorar, sendo que o arguido, indiferente a esta circunstância, despiu-a, tirando-lhe as calças de pijama e as cuecas e, bem assim, as suas calças de pijama e cuecas, após o que, assim despidos e contra a vontade da ofendida, roçou e introduziu o pénis erecto no interior da vagina daquela, friccionando-o, após o que ejaculou;

8 - Em data não concretamente apurada, mas algumas semanas após a data em que ocorreram os acontecimentos descritos nos pontos 5) a 7), o arguido AA, tendo formulado novamente o propósito aludido em 4), e na execução do mesmo, pela manhã, constatando que ele e a ofendida se encontravam sozinhos na referida habitação, abeirou-se da cama daquela, e, no momento em que ela acordou, colocou-se por cima desta, dizendo-lhe que se não o fizesse lhe partiria as costelas;

9 - Na sequência, a ofendida começou a chorar, sendo que o arguido, indiferente a esta circunstância, despiu-a, tirando-lhe as calças de pijama e as cuecas e, bem assim, as suas calças de pijama e cuecas, após o que, assim despidos e contra a vontade da ofendida, roçou e introduziu o pénis erecto no interior da vagina daquela, friccionando-o, após o que ejaculou.

10 - No dia … de Março de 2017, pelas 10h30m, o arguido AA, tendo formulado novamente o propósito aludido em 4), e na execução do mesmo, constatando que ele e a ofendida se encontravam sozinhos na referida habitação, abeirou-se da cama daquela, e, no momento em que ela acordou, colocou-se por cima desta, dizendo-lhe que se resistisse lhe partiria as costelas;

11 - Na sequência, a ofendida começou a chorar, sendo que o arguido, indiferente a esta circunstância, despiu-a, tirando-lhe as calças de pijama e as cuecas e, bem assim, as suas calças de pijama e cuecas, após o que, assim despidos e contra a vontade da ofendida, roçou e introduziu o pénis erecto no interior da vagina daquela, friccionando-o, após o que ejaculou;

12 - Em consequência dos factos ora descritos, nas três ocasiões mencionadas, a ofendida sentiu dores, aquando da manutenção da relação de cópula, e o arguido nunca fez uso de preservativo;

13 - A ofendida, até então, nunca havia mantido relações de cópula ou de idêntica natureza com ninguém.

14 - O arguido, que era então portador de doença sexualmente transmissível (chlamydia trachomatis), transmitiu, mercê das condutas descritas por si levadas a cabo, essa enfermidade à ofendida.

15 - Mercê da actuação do arguido, para além das dores que sentiu na região anatómica atingida, a ofendida sofreu pequena inflamação da mucosa e lesões himeniais.

16 - O arguido agiu sempre do modo descrito com o propósito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, contra a vontade da ofendida FF, e colocando-a na impossibilidade de resistir, mediante o uso da força e da ameaça, aproveitando-se da relação de parentesco e de confiança que mantinha com a menor, sabendo que a mesma era sua irmã, tinha treze anos de idade e que os actos que praticavam sobre a mesma eram ofensivos da sua liberdade e autodeterminação sexual e gravemente perturbadores do seu sentimento de vergonha.

17 - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

18 - O arguido foi submetido, a seu pedido, a perícia médico-legal de psiquiatria, de onde resultou que:

o arguido “(...) é um jovem fisicamente saudável, sem evidência de psicopatológica ou de disfuncionalidade sexual de nível patológico.

Foi criado no seio de uma família onde todos os adultos têm tido mais do que um parceiro sexual e filhos desses vários relacionamentos, pouco rígido, em termos de moral sexual.

O examinando é capaz de entender e avaliar a ilicitude dos actos praticados e de se determinar de acordo com essa avaliação, pelo que deve ser considerado imputável.

Tendo em conta:

-    o exame do estado mental actual, sem psicopatologia psíquica ou de cariz sexual;

-   a inexistência de ilícitos semelhantes anteriores;

-    a capacidade conservada de temer e ser influenciado pela pena que lhe venha a ser imposta;

-    a capacidade de reflexão sobre a ilicitude e desadequação dos actos praticados; entende-se não existirem critérios para admitir perigosidade de que venha a praticar actos da mesma natureza, nem haver necessidade de tratamento clínico psiquiátrico.”.

19 - Foi igualmente submetido a perícia médico-legal de psicologia, de onde resultou que: O arguido “(...) não apresenta indicadores de perturbação mental ou de perturbação da personalidade nem indícios de violação/transgressão relevantes das regras sociais (à exceção do presente processo). Ainda assim, AA fez referência a dificuldades em gerir e lidar com a frustração e verificaram-se elevações ao nível da agressividade física e da raiva.

Da avaliação do risco de violência sexual, conclui-se que AA apresenta um nível global de risco baixo. Para tal colige o facto do avaliado evidenciar uma escassez de critérios relevantes nos níveis de risco avaliados (ajustamento psicossocial, ofensas sexuais e planos futuros). Ademais, o avaliado, desde a denúncia, não voltou a manter contactos com a irmã (ofendida) e beneficia do suporte da progenitora. Ainda assim, da análise da sua história de vida, destacam-se as suas dificuldades em manter um adequado padrão a nível profissional, a exposição a situações de violência familiar e a desestruturação da família de origem (i.e., a precariedade económica, consumos de álcool do progenitor, reduzida valorização e reduzida capacidade para promover um ambiente adequado ao desenvolvimento da intimidade e de relações íntimas salutares). Em relação aos factos pelos quais se encontra acusado, pese embora AA assuma a prática dos mesmos, se mostre consciente da sua inadequação e verbalize arrependimento, tende a atribuir os seus atos abusivos a causas externas a si (locus de causalidade externa) e a responsabilizar a irmã (ofendida) pela prática destes. Não obstante, é de referir que a sua capacidade para avaliar a licitude ou ilicitude dos atos por si praticados não se encontra comprometida. Da mesma forma, legitima algumas crenças acerca do abuso sexual e são identificadas algumas fragilidades ao nível do estabelecimento de relacionamentos íntimos e da sexualidade.

Face ao anteriormente exposto, e atendendo à existência de algumas fragilidades, em especial no que respeita à intimidade e sexualidade e à forma como este se posiciona face aos atos por si praticados (i.e. locus de causalidade externa, responsabilização da irmã), entendemos como fundamental o encaminhamento de AA para acompanhamento psicológico especializado, que vise a promoção de competências sociais e relacionais (em específico no que respeita à intimidade e sexualidade).”.

20 - O arguido não tem antecedentes criminais;

21 - Do relatório social junto aos autos consta (transcrição): “I - Dados relevantes do processo de socialização

AA e a ofendida são os dois descendentes de um casal de baixos recursos socioeconómicos, naturais e residentes na área do … . Ambos os elementos do casal tinham já outros descendentes, fruto de anteriores relações, pelo que o arguido tem mais dois irmãos uterinos (♂31 anos, ♀30 anos) e uma irmã consanguínea (com 35 anos). O pai é ……. e a mãe……, tendo assegurado as necessidades materiais básicas dos descendentes com dificuldade. O pai apresentava um consumo problemático de álcool, com implicações na dinâmica familiar, adotando um comportamento agressivo/violento para com a companheira, mas também com os descendentes.

O seu percurso escolar/académico caracterizou-se pela baixa vinculação ao sistema de ensino. Em particular após a entrada no segundo ciclo do ensino básico, começou a evidenciar um absentismo elevado, alguns problemas de comportamento e baixo rendimento académico, tendo sido retido várias vezes. Este contexto conduziu à sua inserção em percurso escolar alternativo para conclusão do 6º ano, sem sucesso. Abandonou a escola com 17 anos, apenas com o 4º ano de escolaridade como habilitações literárias, apresentando baixas competências a este nível.

Segundo a mãe, o arguido foi alvo de intervenção por parte da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens …, na sequência das vulnerabilidades apresentadas tanto ao nível escolar, como familiar.

O arguido situa o primeiro relacionamento sexual com 17 anos, no contexto de um relacionamento que durou cerca de quatro meses. Esta namorada integrou o agregado do arguido durante esse período, pernoitando ambos na sala de estar da habitação. Não obstante, AA descreve um envolvimento superficial relativamente a esta relação.

Relata a existência de um relacionamento posterior, com duração aproximada de um ano, segundo refere, sem envolvimento ao nível sexual. Considerou esta relação mais gratificante.

II - Condições sociais e pessoais

Em dezembro de 2016 a progenitora saiu da casa de família, em …, com os dois filhos mais novos (arguido e ofendida), na sequência do clima de conflitualidade familiar e conjugal. Os três elementos integraram então o agregado da irmã GG, residente em … com o companheiro, o pai deste e a filha de oito anos de idade. Nesta habitação, o arguido partilhava o quarto com a mãe, com a irmã (ofendida) e com a sobrinha, sendo estas as condições habitacionais à data dos factos.

De notar que o espaço habitacional exíguo não permitia salvaguardar as condições de privacidade/intimidade, aspetos simultaneamente pouco valorizados na dinâmica desta família.

O arguido não tinha ainda iniciado a trajetória laboral e encontrava-se sem qualquer ocupação. Na sequência dos factos, AA e a progenitora deslocaram-se para ..., passando a residir com o atual companheiro da mãe, relação entretanto estabelecida no contexto das redes sociais. Residem os três em habitação arrendada, inserida em freguesia de características rurais, afastada do centro urbano e sem indicadores de problemas sociais relevantes.

O percurso laboral do arguido é ainda inconsistente e iniciou-se já em …. . Teve a primeira experiência profissional como …, entre junho e dezembro de 2017 e, após um período de desemprego, iniciou funções numa empresa…., em maio do ano corrente. Expressa satisfação com esta atividade, referindo uma boa relação com colegas e entidade patronal. Contudo, a entidade patronal refere com preocupação o elevado absentismo que apresenta.

Em …. o arguido não mantém convívios sociais significativos, referindo que os seus amigos se encontram em … . Menciona o uso das redes sociais, designadamente para o estabelecimento de relações sociais e também recurso esporádico a sites de conteúdo sexual/pornográfico. No decurso do último ano estabeleceu uma relação, através da rede social …, tendo esta namorada vivido no seu agregado cerca de três meses, findo os quais a relação terminou.

AA apresenta pouca visibilidade social, sendo de salientar que apenas reside na localidade há cerca de um ano. Não foi identificada problemática aditiva, ou de consumo excessivo de álcool e não foram reportados comportamentos sociais desajustados, passíveis de constituir fator de risco ou de reatividade social.

III - Impacto da situação jurídico-penal

AA não apresenta antecedentes criminais. Relativamente ao presente processo são relatadas alterações na relação com a irmã (ofendida) após a queixa, não tendo tido mais qualquer contacto com esta. A menor mantém contactos pontuais com a progenitora, tendo permanecido ao cuidado da irmã mais velha. Foram, assim, referidos constrangimentos relacionados com a desagregação familiar.

O arguido continua, no entanto, a dispor do suporte da progenitora, que se mostrou surpreendida com a acusação e mantém expectativas na presunção de inocência relativamente ao crime de que o filho se encontra acusado.

Na sequência das diligências levadas a cabo no contexto do atual processo, o arguido passou a conhecer ser portador de doença sexualmente transmissível. Porém, mantém-se sem médico de família há cerca de um ano e meio, não tendo efetuado posteriores consultas, ou exames clínicos no sentido de averiguar a sua situação de saúde, a eventual necessidade de tratamento e adoção de estratégias de prevenção do contágio.

Em termos sociais, no atual contexto residencial, a situação jurídica do arguido não é do conhecimento da comunidade, pelo que não se regista reatividade social face à acusação.

A situação constante nos autos é desconhecida na comunidade de inserção atual.

Colocado perante factos cometidos por alguém em abstrato, em situação similar à descrita nos autos, mostrou-se pouco capaz de efetuar uma análise crítica acerca deste tipo de comportamentos, tendendo a efetuar atribuições externas dos mesmos. Denota, na generalidade, uma análise pouco reflexiva/crítica sobre a realidade envolvente, caracterizada por uma certa subvalorização de aspetos éticos/sociais fundamentais.

IV - Conclusão

No processo de socialização do arguido releva-se a inserção em grupo familiar social e economicamente vulnerável. De relevar a exposição a situações de violência familiar e a baixa valorização de um ambiente adequado à construção da intimidade e de relações positivas e seguras, enquanto fatores que concorrem com desinibidores situacionais e circunstanciais.

Após os factos foram interrompidos os contactos, por qualquer meio entre a menor e o arguido, tendo-se assistido a uma desagregação familiar, com mudanças decorrentes na sua dinâmica.

Apresenta baixas competências académicas e uma trajetória laboral inconsistente, ainda que atualmente se encontre profissionalmente integrado.

Não regista envolvimento particular na atual comunidade de inserção, onde apresenta pouca visibilidade social. Dispõe, contudo, de uma integração sem indicadores de rejeição, ou de reatividade social.

Mostrou-se pouco capaz de efetuar uma análise crítica acerca do tipo de comportamentos pelos quais se encontra acusado, tendendo a efetuar atribuições externas dos mesmos e a subvalorizar aspectos éticos/sociais.

Em caso de condenação e se a pena concretamente aplicada o permitir, parece-nos que AA reúne condições para uma medida de execução na comunidade que contemple a obrigação de se submeter a uma intervenção psicoterapêutica especializada, direccionada ao desenvolvimento de competências no âmbito dos relacionamentos interpessoais, designadamente na área da intimidade e sexualidade.”;

22 - O arguido, a ofendida, e os respetivos progenitores, até dezembro de 2016, viviam em …;

23 - Em resultado de um clima de conflitualidade conjugal e familiar, em Dezembro de 2016, o arguido, a ofendida e mãe de ambos saíram da casa onde residiam, em …….

24 - A mãe, porque tinha trabalho em …, seu único meio de sustento, e dos seus filhos, ainda lá permaneceu até ao dia 15 de Janeiro de 2017, altura em que veio também para …., também para casa da sua filha GG.

25 - Esta casa tinha apenas 2 quartos, sendo que lá vivia a GG, o companheiro desta, uma filha de 12 anos, o pai do companheiro da GG, o arguido, a assistente e a sua mãe, em condições precárias.

26 - À data da suposta prática dos factos, o arguido e a assistente, para além de não frequentarem a escola, viviam em condições muito precárias;

27 - Desde Março de 2017, o arguido vive com a sua mãe e o companheiro desta, DD, em …;

28 - Desde essa altura, não mantém contacto com a ofendida;

29 - O arguido está a trabalhar, tendo celebrado contrato de trabalho em … .02.2019.


*



Com interesse para a decisão da causa, não se provaram outros factos, em contradição com estes ou para além deles, designadamente, que:

-   no mês de Fevereiro de 2017, o arguido AA formulou o propósito de iniciar e manter com a ofendida FF relações sexuais de cópula;

-    os factos referidos nos pontos 5) a 7) ocorreram em meados do mês de Fevereiro de 2017

-     os factos referidos no ponto 8) e 9) ocorreram entre finais de Fevereiro de 2017 e início do mês de Março de 2017;

-    os factos referidos nos pontos 10) e 11) ocorreram em data anterior a … .03.2017

-    atualmente o arguido, está desempregado, mas está á procura de trabalho, encontrando-se inscrito no centro de emprego;

-     é o companheiro da mãe, quem financeiramente ajuda o arguido e lhe dá todo o apoio que este necessita;»


2. Delimitação do objecto dos recursos

Constitui jurisprudência assente que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, relativas aos vícios da decisão quanto à matéria de facto, a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP, e às nulidades, a que alude o n.º 3 do mesmo preceito, é pelo teor das conclusões apresentadas pelo recorrente, onde resume as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se define e delimita o objecto do recurso.

Está em causa neste recurso, interposto per saltum, um acórdão do Tribunal Colectivo que, suprindo devidamente os vícios oportunamente verificados por este Supremo Tribunal, por acórdão de … de Dezembro de 2019, condenou o arguido pela prática de três crimes de violação agravada, nas penas de 3 anos de prisão por cada um deles e na pena única de 5 anos e 3 meses de prisão.


Não estando questionada a qualificação jurídico-penal dos factos, que, aliás, temos como correcta: 

O Ministério Público discorda da aplicação que foi realizada do regime para jovens adultos, previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23/9 e consequente da medida das penas parcelares e única.


O arguido não se conforma com a medida da pena única aplicada, pugnando por uma pena única inferior a 5 anos de prisão suspensa na sua execução, condicionada ao cumprimento de injunções.


O exame subsequente iniciar-se-á pela apreciação do recurso do Ministério Público, sendo que, da respectiva procedência total ou parcial, poderá resultar prejudicado o conhecimento do recurso do arguido.


3. Apreciação

 

3.1. Da aplicação do regime penal especial para jovens

Como já foi dito, o Ministério Público discorda da concessão da atenuação especial da pena decorrente do regime penal especial para jovens adultos, previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.

O Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, estabelece o regime penal dos jovens delinquentes.

Tal diploma dispõe no seu artigo 1.º que:

«1. O presente diploma aplica-se a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime.

2. É considerado jovem para efeitos deste diploma o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter atingido 21 anos.

3. O disposto no presente diploma não é aplicável a jovens penalmente inimputáveis em virtude de anomalia psíquica.»

Por sua vez, dispõe o artigo 4º que:

«Se for aplicável pena de prisão, deve o Juiz atenuar especialmente a pena, nos termos dos artigos 73º e 74º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.»

Revisitando considerações expendidas no acórdão deste Supremo Tribunal de 09-09-2020, proferido no processo n.º 66/18.7PECBR.C1.S1 – 3.ª Secção[1], onde se convocam também os acórdãos de 09-03-2017 (Proc. n.º 14392/15.3T8LRS.L1.S1 – 3.ª Secção), de 22-03-2017 (Proc. n.º 243/15.2JAFAR.S1 – 3.ª Secção), e de 13-07-2017 (Proc. n.º 54/15.5JBLSB.E1.S1 – 3.ª Secção), todos relatados pelo ora relator, nos termos do disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, se for aplicável pena de prisão deve o Tribunal atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 72.º e 73.º do Código Penal quando tiver razões para crer que dessa atenuação resultem vantagens para a reinserção do jovem condenado.        

A aplicação deste regime não é, assim, obrigatória nem automática, sendo necessário que se tenha estabelecido positivamente que há razões para crer que dessa atenuação especial resultem vantagens para a reinserção social do jovem sem ser afectada a exigência de prevenção geral, isto é, de protecção dos bens jurídicos e da validade das normas (cfr. Ac. do S.T.J. de 08/04/1987, in BMJ 366º-450, e Ac. do S.T.J. de 15/01/1997, in Col. Jur.-STJ, ano V, tomo I, p.182).        

Como justamente se sublinha no acórdão deste Supremo Tribunal de 18-06-2014, proferido no processo n.º 578/12.6JABRG.G1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. Santos Cabral), «o Dec.º-Lei n.º 401/82, de 23/9, imbuído de atenuação de rigor punitivo, mais ressocializador e reeducador do que sancionatório, não vai ao ponto de firmar essa visão maximalista, como que passando ao limbo do esquecimento os comportamentos desviantes dos jovens, deixando à margem de protecção importantes interesses jurídicos e, sobremodo, se persistentemente afectados».

O núcleo fundamental do direito de menores será, assim, lê-se no mesmo acórdão:

«a avaliação da vantagem da atenuação especial da pena para a reinserção social do arguido jovem. Mas a avaliação de tal possibilidade de reinserção social tem de ser equacionada perante as circunstâncias concretas do caso e do percurso de vida do arguido e não perante considerações vagas e abstractas desligadas da realidade.

Tal juízo arranca de um pressuposto incontornável, do qual também arranca o legislador do Decreto-Lei n.º 401/82, ou seja, o de que a possibilidade de reinserção do delinquente é um elemento incontornável da sua personalidade, sobretudo quando este se encontra ainda no limiar da sua maturidade. Subjacente o entendimento de que o percurso de ressocialização do menor agente criminal poderá ser impulsionado por uma atenuação especial da pena que constitui, também, uma afirmação de confiança na sua capacidade para escolher uma opção correcta de vida.

O diploma legal em causa, mais do que conferir uma benesse ao jovem delinquente por se entender ser merecedor de um tratamento penal especializado, procura promover a sua ressocialização – razão por que instituiu um direito mais reeducador do que sancionador, a revelar que a reinserção social surge aqui, no direito penal dos jovens delinquentes, como primordial finalidade da pena.

Se é certo que a mesma Lei institui a pena de prisão, fá-lo apenas em última instância, como ultima ratio, quando e apenas isso for exigido pela firme defesa dos interesses fundamentais da sociedade e pela prevenção da criminalidade, o que sucederá no caso de a pena aplicável ser a de prisão superior a 2 anos. Porém, nesse caso, a pena deverá ser especialmente atenuada se concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção. Tais directivas, diz o preâmbulo, «...entroncam num pensamento vasto e profundo, no qual a capacidade de ressocialização do homem é pressuposto necessário, sobretudo quando este se encontra no limiar da sua maturidade.

Deste modo, teremos de concluir que a aplicação da atenuação especial, só deverá ser afastada quando os factos demonstrarem estarmos perante aquela especial exigência de defesa da sociedade e seja certo que o jovem delinquente não possui aquela natural capacidade de regeneração».

Como se lê no mesmo acórdão deste Supremo Tribunal, que temos como paradigmático na análise ao regime penal especial para jovens:

«(…) a equação proposta legalmente pela situação do jovem delinquente não pode deixar de ter em atenção que as razões inerentes à prevenção especial, ou seja, das razões que resultam da prevenção geral do crime. Quando a culpa e a ilicitude são densas e graves, trazendo à colação a inevitável necessidade dum efeito intimidatório, dificilmente se pode compaginar tal circunstância com uma crença na natural vantagem para a ressocialização.

Como vem sendo, também, repetidamente, decidido por este Supremo Tribunal, a aplicação do regime legal não pode manter-se à margem da consideração das exigências de prevenção geral, assentando em preocupações exclusivas ou sequer predominantes, de ressocialização do agente jovem, de prevenção especial, sobrepondo-se-lhe, já que não se pode abdicar de considerações de prevenção geral, sob a forma de “exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico “ (nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Ed. Notícias, § 519, embora a propósito de temática diferente) e de garantia mínima de protecção dos bens jurídicos de mínima observância comunitária – Cfr . Acs de 8. 4. 87, 13.7.94, 12.4.97, 26.5.94, 19.10.94, 30.1.96, 15.10.97 e 17.9.97, in BMJ 366, 450, P.ºs n.ºs 46.169, 46.245, 46. 601, 47.027, 48. 274, 48.661 e CJ, STJ, Ano V, TIII, 175, respectivamente, e, da doutrina, Leal Henriques e Simas Santos, CP, anotado, 151].

Existe aqui uma dupla perspectiva balanceando entre o sopesar das necessidades de prevenção geral, que conjugam a gravidade do ilícito e a densidade da culpa na perspectiva de satisfação das expectativas da comunidade no cumprimento da lei e tutela dos bens jurídicos e, por outro, o próprio percurso de vida do jovem e a crença de que o mesmo pode inflectir no seu rumo de vida pois que é ajustado um juízo positivo na sua regeneração. Neste juízo de prognose conta essencialmente a personalidade do jovem, e a sua circunstância, pois que o mesmo é produto de um determinado contexto social».

O juízo a formular sobre as vantagens da atenuação especial para a reinserção social tem de assentar em condicionalismo que, não se reduzindo à idade do agente, atenda a todo o condicionalismo do cometimento do crime.

Assim, não será de aplicar o regime dos jovens delinquentes quando do conjunto dos factos praticados e a sua gravidade o desaconselham em absoluto, por não se mostrar passível de prognose favorável à reinserção social do arguido (v. acórdão do STJ de 24-10-2012, Proc. n.º 298/11.9JELSB.L1.S1 – 3.ª Secção)».

A decisão recorrida fundamentou a aplicação ao arguido do regime penal especial para jovens, consagrado pelo Decreto-Lei nº 401/82, tendo considerado que:

«Da aplicação do regime especial aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos

Nos termos do disposto no art.º 4º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23.09, se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos art.os 73º e 74º do C.P., quando tiver razões sérias para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.

A norma citada é aplicável a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime, sendo considerado jovem, para efeitos do referido diploma, o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido 21 anos, como sucede com o arguido, nascido em …...1998.

A aplicação deste passa pela consideração do cunho especialmente direccionado pela prevenção especial que tal regime convoca.

“(…) assim, fazendo apelo a quadros operativos mais concretos, segundo o acórdão do STJ de 07/11/2007, no processo 07P3214, “a aplicação do regime que consiste na atenuação especial da pena quando seja aplicável pena de prisão (…) depende, pois, do juízo que possa (deva) ser formulado relativamente às condições do jovem arguido, e deve ser positivo quando as diversas variáveis a considerar (idade, situação familiar, educacional, vivências pregressas, antecedentes de formação) permitam uma prognose favorável (ou, com maior rigor, não impeçam uma prognose favorável) sobre o futuro desempenho da personalidade (…).

Ou se se quiser, numa outra perspectiva que não deixará de ser igualmente relevante, «importará perceber se o desenvolvimento sócio-psicológico do jovem ainda consente uma qualquer intervenção de ajustamento e de consolidação da personalidade que funcione como uma “vantagem para a sua reinserção social”. Ou se pelo contrário, qualquer intervenção já é tardia, perante uma personalidade que apresenta o seu quadro de desenvolvimento concluído, revelando um discernimento claro nas opções de vida que tomou» (cfr. o acórdão desta Relação de 12/09/2007, proferido no processo 0742175, já acima citado).” - Ac. da Rel. do Porto de 04.09.2008, em www. dgsi. pt.

No caso concreto, é verdade que o arguido não demonstrou arrependimento: não prestou declarações em sede de audiência e não evidenciou a prática de atos demonstrativos de contrição.

Não obstante, é também verdade que o arguido não tem antecedentes criminais, demonstrando ter mantido, até à presente data - completou 21 anos no passado mês de outubro - uma personalidade conforme ao dever ser jurídico-penal.

Trata-se por outro lado, como resulta do relatório social, de um indivíduo relativamente ao qual não foram identificadas problemáticas aditivas ou outros comportamentos sociais desajustados e que mantém suporte da progenitora.

Deste modo, considerando a moldura penal aplicável e os termos da atenuação especial previstos no art.º 73º do CP, cremos ser evidente que da aplicação do regime penal previsto no art.º 4º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23.09 resultarão manifestas vantagens para a reinserção social do arguido, que dele deverá beneficiar.»

Discordando, entende o Ministério Público (das conclusões):

«6 - Os aspectos da sua [do arguido] personalidade, melhor explanados nos factos provados e no relatório pericial junto aos autos, a sua postura em julgamento nos presentes autos, a ausência de qualquer confissão ou arrependimento e a absoluta ausência de respeito pelo próximo revelado nos actos por si praticados, bem como a ausência de quaisquer outras circunstâncias relevantes que militem a seu favor, é de molde a afirmar, diversamente do decidido pelo tribunal a quo, que a atenuação da pena em nada contribuiria para a reintegração do arguido, não sendo este merecedor da aplicação de um tal instituto;

7 - Sopesadas as aludidas circunstâncias, o grau da ilicitude e da culpa referidas ao acto delituoso, a sua personalidade que, em momento algum, revelou ter assumido a prática dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, e não manifestou, consequentemente, qualquer tipo de arrependimento e bem assim as enunciadas actuais condições de vida do arguido, tudo é de molde a justificar plenamente uma decisão de não aplicação in casu do regime penal para jovens e por conseguinte que o mesmo não beneficie da atenuação especial da pena, nos termos do artigo 4º, previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23.09;

8 - É que qualquer atenuação especial da pena, para além de manifestamente imerecida no caso em apreço, poderia, outrossim, comprometer a necessária e urgente necessidade do arguido interiorizar o respeito por valores fundamentais e elementares da vida em sociedade.

9 - Numa avaliação global dos factos dados como provados, a natureza e modo de execução, a personalidade do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao crime, bem como condições de vida, tudo ponderado resulta líquida a afirmação que a moldura penal do crime em questão não é excessiva tendo em vista os fins de socialização do jovem condenado;

10 - Na ponderação das mencionadas circunstâncias concretas do caso é possível afirmar que não se está na presença de um conduta isolada ou ocasional próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil, mas sim, perante um comportamento próprio de alguém que praticou aquele conjunto de factos, não se abstendo de os realizar contra a sua própria irmã a despeito da resistência/ negação oferecida e que impõe o combate, firme e sem condescendência, por meio da utilização de instrumentos de recomposição, pelo que não se mostra justificada a formulação de um juízo de prognose favorável à atenuação especial.

11 - Por outro lado, importa também salvaguardar naturalmente as exigências de prevenção geral ligadas à protecção de bens jurídicos, ponderando-se a importância fundamental que para essa protecção assume a reinserção do agente, das exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e de garantia de protecção dos bens jurídicos, assumidas, em sede de prevenção geral;

12 - Como vem sendo repetidamente decidido pelo STJ, a aplicação do regime penal especial para jovens não pode manter-se à margem da consideração das exigências de prevenção geral, assentando em preocupações exclusivas, ou sequer predominantes, de ressocialização do agente jovem, de prevenção especial, sobrepondo-se-lhes, já que não se pode abdicar de considerações de prevenção geral, sob a forma de "exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico" e garantia de protecção dos bens jurídicos de básica, o que conduz a que no caso dos autos não se aplique o regime previsto no referido artigo 4.º.»

Os fundamentos de discordância apresentados pelo Digno Magistrado do Ministério Público na sua bem elaborada motivação merecem, no essencial, a nossa concordância.

Como resulta das considerações já expendidas, entendemos que não será de aplicar o regime penal dos jovens consagrado no Decreto-Lei n.º 401/82 quando do conjunto dos factos praticados e a sua gravidade o desaconselham em absoluto, por não se mostrar passível de prognose favorável à reinserção social do arguido.

Ora, o arguido-recorrente, que tinha menos de 21 anos de idade à data da prática dos factos, encontra-se exactamente nesta situação.

Há que analisar se no caso presente existem razões sérias para crer que da atenuação resultam vantagens para a reinserção social dos arguidos.

A adequada reinserção social do arguido, ou seja, a sua correcta reintegração na sociedade, depende necessariamente de considerações de natureza preventiva, particularmente especial, cuja avaliação deve ter presente, designadamente, a gravidade do facto ou factos perpetrados e as suas consequências, o tipo e a intensidade do dolo, os fins que subjazem ao ilícito, o comportamento anterior e posterior e a personalidade do arguido à luz dos factos, isto é, neles manifestada e reflectida.

Assim, se a partir da avaliação feita for possível a formulação de um prognóstico favorável à ressocialização do arguido será, em princípio, de considerar a aplicação do regime previsto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, sendo, pois, de atenuar especialmente a pena.

Se o juízo de prognose for desfavorável, será de excluir a aplicação daquele regime.

Porém, importa frisar que as medidas propostas neste regime, como resulta do próprio preâmbulo daquele diploma legal (ponto 7), não deverão ser aplicadas quando, em concreto, se mostre necessário defender a comunidade e prevenir a criminalidade, que será à partida, embora carecendo de apreciação, o caso de a pena aplicável ser de prisão superior a dois anos.

Assim, razões atinentes às necessidades de reprovação e de prevenção do crime poderão levar à não aplicação daquele regime, designadamente quando a ele se opuserem considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínima e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico.

Um juízo de prognose, como o que está ínsito no mencionado regime penal dos jovens, pressupõe uma valoração do conjunto dos factos e da personalidade do arguido, quanto a saber se, em termos prospectivos, a imagem global indicia positivamente uma esperança fundada de que da atenuação especial da pena resultem vantagem para a reinserção do arguido.

Como se lê no acórdão deste Supremo Tribunal de 24-10-2012, proferido no processo n.º 298/11.9JELSB.L1.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. Pires da Graça):

«O artº 4º do Decreto-Lei nº 401/82 de 23 de Setembro - regime penal especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos - determina que, se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73º e 74º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.

Essas «sérias razões» não ocorrem de forma automática; outrossim, devem resultar de factos que tornem viável tal conclusão, que fundamentem a existência de um juízo de prognose favorável à reinserção social do condenado.

A idade integrante da aplicação da atenuação especial constante do regime especial para jovens, é juridicamente relevante apenas como pressuposto formal de aplicação desse regime, uma vez que, o mesmo regime, tem como pressuposto material, a existência de «sérias razões» que levem o julgador a concluir que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do condenado, não constituindo aquela idade por si só, uma séria razão nos termos da referida dogmática legal.

Há pois, um poder-dever, uma obrigação legal do julgador de, oficiosamente, proceder à averiguação dos pressupostos da aplicação da atenuação especial da pena, devendo apreciar, em cada caso concreto, a natureza e, modo de execução do crime, seus motivos determinantes, a personalidade do jovem, a sua conduta anterior e posterior ao crime.

O Decreto-Lei nº 401/82 de 23 de Setembro, ao instituir um direito mais reeducador do que sancionador, não esqueceu, porém, que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e, por isso, não excluiu a aplicação de pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade. (v. nºs 4 e 7º do preâmbulo do diploma.)

Não é caso de aplicação do regime especial constante do Dec-Lei 401/82 referido, quando a personalidade manifestada, o modo de execução e motivos determinantes do crime, a natureza deste e, a conduta posterior ao crime, demonstram inexistirem razões sérias para crer que da atenuação especial da pena resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado. (v.v.g., entre outros, acórdão de 31 de Outubro de 2007, deste Supremo Tribunal e desta 3ª Secção, in proc nº 3484/07)».

Reconhecendo a existência de alguma flutuação na jurisprudência sobre a temática da aplicação do regime penal especial para jovens, em que, para alguns, a norma do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82 configura um fundamento autónomo de atenuação especial fundado directamente na idade, e que tem como pressuposto o juízo que deve ser formulado sobre a existência de «sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado», juízo esse que reverte essencialmente às condições pessoais e de carácter do jovem condenado – condições de vida, familiares, educação, inserção, de prognose sobre o desempenho da personalidade, mais do que à gravidade das consequências do facto, certo é que é conhecido outro posicionamento, em que nos revemos, no sentido de que à gravidade do ilícito e às necessidades da prevenção geral é atribuído um papel mais preponderante.

De todo o modo, e mesmo não se partindo da gravidade dos factos, o juízo sobre as «sérias vantagens» não pode, de todo, prescindir, como momento relevante de julgamento, da refracção de duplo sentido da personalidade para os factos (momento fortemente desvalioso da conduta e pelo modo de execução do crime) e dos factos para a personalidade (a não evidência de qualquer tipo de sentimento e/ou de arrependimento).         

Não se vislumbrando a existência das sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado, não há que convocar a atenuação especial decorrente do regime em exame.

Tal acontece, reafirma-se, designadamente, quando as situações analisadas são daquelas em que se impõe a aplicação de uma pena de prisão necessária «para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade» como expressamente se refere no preâmbulo do citado Decreto-Lei n.º 401/82.

As aludidas situações são aquelas que se prendem com a frequência e gratuitidade de certo tipo de condutas, pelo grau de violência que comportam, pela instabilidade e insegurança que geram, onde são particularmente actuantes as necessidades de reprovação e de prevenção da criminalidade sendo, por isso, de ponderar cuidadosamente, consoante cada caso, se realmente as ditas razões sérias existem e têm o peso suficiente para justificar a atenuação especial.

A avaliação das vantagens da atenuação especial para a reinserção do jovem tem de ser equacionada perante as circunstâncias concretas do caso e do percurso de vida do arguido, e não por considerações abstractas desligadas da realidade; do julgamento do caso concreto tem de resultar claramente a convicção do juiz sobre a natureza expressiva das [sérias] vantagens da atenuação para a reinserção do jovem condenado.

Neste sentido, para além dos arestos já indicados, convoque-se pode convocar-se, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-05-2006, proferido no processo nº 06P1771 (Relator: Cons. Simas Santos):

«Com a atenuação especial da pena na delinquência jovem, atendendo às vantagens para a reinserção social do jovem condenado daí advindas, pretende-se evitar que uma reacção penal severa, na fase latente da formação da personalidade, possa comprometer definitivamente a socialização do jovem. Mas deve ter-se igualmente presente a gravidade do crime cometido, patente na medida da pena aplicável, indicada, aliás, pelo legislador como critério a atender também, sem se comprometer acriticamente aquele desiderato. Haverá que apreciar, em cada caso concreto, a personalidade do jovem, a sua conduta anterior e posterior ao crime, a natureza e modo de execução do crime e os seus motivos determinantes».

Bem como o acórdão deste Supremo Tribunal de 04-06-2014, proferido no processo n.º 62/13.3PVLSB.L1.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. Oliveira Mendes), onde se pode ler: 

«É evidente que a adequada reinserção social do condenado [artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82], ou seja, a sua correcta reintegração na sociedade, depende de considerações de natureza preventiva, particularmente especial, cuja avaliação deve ter presente, designadamente, a gravidade do facto ou factos perpetrados e as suas consequências, o tipo e a intensidade do dolo, os fins que subjazem ao ilícito, o comportamento anterior e posterior e a personalidade do condenado à luz dos factos, isto é, neles manifestada e reflectida. Se a partir da avaliação feita for de formular um prognóstico favorável à ressocialização do condenado será, em princípio, de considerar positiva a aplicação do regime previsto no artigo 4º, do DL n.º 401/82, sendo pois de atenuar especialmente a pena; caso contrário, isto é, caso o juízo de prognose for desfavorável, obviamente que se terá de excluir a aplicação daquele regime [[2]]».

Cite-se também o acórdão deste Supremo Tribunal de 07-03-2018, proferido no processo n.º 1576/16.6PAPTM.S1 - 3.ª Secção (Relator: Cons. Pires da Graça)[3], em que se considera (do sumário):

«I - Nos termos do art. 4.º do DL 401/82, de 23-09 o juiz pode atenuar especialmente a pena a jovem com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado. Essas «sérias razões» não ocorrem de forma automática, devem resultar de factos que tornem viável tal conclusão que fundamentem a existência de um juízo de prognose favorável à reinserção social do condenado.

II - A atenuação especial da pena prevista no art. 72.º do CP só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, isto é, quando é de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura geral abstracta escolhida pelo legislador para o tipo respectivo. Fora desses casos, é dentro da moldura normal que aquela adequação pode e deve ser procurada.

III - Perante a personalidade manifestada no modo de execução e motivos determinantes do crime e a conduta posterior ao crime, inexistem razões sérias para crer que da atenuação especial da pena resultem vantagens para a reinserção social do arguido - não é caso de aplicação do regime referido em I. nem da atenuação especial prevista no art. 72.º, n.º 1, do CP. A idade do arguido entrará em linha de conta na determinação concreta da pena como atenuante geral, face à imaturidade e inexperiência da vida que essa idade representa, e que contribui para atenuar a intensidade do juízo de censura.

IV - As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente».

No caso que nos ocupa, as condições do arguido, reveladas nos factos provados, não permitem concluir, como impõe o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro, que haja «sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado»; bem em diverso, apontam mais para sérias dúvidas sobre a verificação do pressuposto de aplicação de regime específico para jovens adultos.

Com efeito, como se reconhece na própria decisão recorrida, o arguido não demonstrou arrependimento nem evidenciou actos demonstrativos de contrição, sendo que, como se recolhe do relatório da perícia médico-legal de psicologia, o mesmo «tende a atribuir os seus actos abusivos a causas externas a si (locus de causalidade externa) e a responsabilizar a irmã (ofendida) pela prática destes».        

Segundo o mesmo relatório, o arguido, «[c]olocado perante factos cometidos por alguém em abstrato, em situação similar à descrita nos autos, mostrou-se pouco capaz de efetuar uma análise crítica acerca deste tipo de comportamentos, tendendo a efetuar atribuições externas dos mesmos. Denota, na generalidade, uma análise pouco reflexiva/crítica sobre a realidade envolvente, caracterizada por uma certa subvalorização de aspetos éticos/sociais fundamentais».

A matéria de facto provada evidencia ainda uma incipiente preparação escolar. Do relatório social retira-se que «o seu percurso escolar/académico caracterizou-se pela baixa vinculação ao sistema de ensino. Em particular após a entrada no segundo ciclo do ensino básico, começou a evidenciar um absentismo elevado, alguns problemas de comportamento e baixo rendimento académico, tendo sido retido várias vezes. Este contexto conduziu à sua inserção em percurso escolar alternativo para conclusão do 6º ano, sem sucesso. Abandonou a escola com 17 anos, apenas com o 4º ano de escolaridade como habilitações literárias, apresentando baixas competências a este nível».

Consta do mesmo relatório que «o percurso laboral do arguido é ainda inconsistente e iniciou-se já em …. Teve a primeira experiência profissional como calceteiro, entre junho e dezembro de 2017 e, após um período de desemprego, iniciou funções numa empresa de iluminação urbana, em maio do ano corrente. Expressa satisfação com esta atividade, referindo uma boa relação com colegas e entidade patronal. Contudo, a entidade patronal refere com preocupação o elevado absentismo que apresenta».

Da factualidade provada emerge que o arguido mesmo apresenta uma personalidade algo imatura evidenciando uma fraca responsabilidade pessoal e social.

Um juízo de prognose pressupõe uma valoração do conjunto dos factos e da personalidade do arguido, quanto a saber se, em termos prospectivos, a imagem global indicia positivamente uma esperança fundada de que da atenuação especial da pena resultem vantagem para a reinserção do arguido.

Naquela que, a nosso ver, é a tese mais coerente quanto aos seus requisitos de aplicabilidade, o regime contido no Decreto-Lei n.º 401/82 contende, no caso concreto, com as necessidades de prevenção a nível geral. Na verdade, o peso das exigências de prevenção geral vai aumentar em paralelo com a gravidade dos factos imputados. As considerações sobre a função da pena na prevenção da prática do crime, inibindo futuros infractores, a manutenção da fidelidade ao direito por parte da população assumem uma importância acrescida

Estamos, no caso sub judice, perante o cometimento de três crimes de violação agravada cujas necessidades de prevenção são prementes. Efectivamente, como sublinham JOSÉ MOURAZ LOPES e TIAGO CAIADO MILHEIRO, «a violação é porventura o crime sociologicamente mais impressivo do conjunto dos crimes sexuais, não só porser um dos mais comuns, como também por ser aquele que, ainda hoje, assume maior repercussão social»[4]. Ainda segundo os mesmos autores, «a carga negativa associada à terminologia “violação”, perfeitamente interiorizada na sociedade, traduz a forma mais gravosa e desrespeitosa de atentado à liberdade sexual e da utilização do corpo como manifestação da sexualidade.

A penetração no corpo de uma pessoa de forma não consentida é um atentado grave à sua dignidade, à sua autonomia, liberdade e vontade pessoal e sexual, cuja melhor forma de tradução é justamente palavra “violação”, quer em termos físicos, quer psíquicos, pelas potenciais consequências emocionais negativas que acarreta»[5].

O arguido, «com o propósito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos», molestou sexualmente a sua própria irmã, então com 13 anos de idade, em três ocasiões, indiferente à relação de parentesco existente entre eles, às dores que lhe causou, ao seu choro.

Acresce que, muito embora tal circunstância não tenha sido considerada como agravante dos crimes, por desconhecimento da sua existência, o arguido que era portador de doença sexualmente transmissível, transmitiu, com os os actos praticados, essa enfermidade à ofendida.

A gravidade das infracções praticadas e a dimensão da culpa e da ilicitude, evidenciadas no caso vertente, justificam a conclusão de que uma atenuação especial induzida pela idade não se compagina com as exigências da sociedade perante infracções que contendem com valores nucleares.

Assim, entende-se por correcta a não aplicação ao arguido da medida de atenuação especial contida no Decreto-Lei n.º 401/82, procedendo, nesta parte, o recurso interposto pelo Ministério Publico.

As constatações registadas nos relatórios de perícia-legal de psiquiatria e de psicologia, segundo as quais se entende «não existirem critérios para admitir a perigosidade de que venha a praticar atos da mesma natureza, nem haver necessidade de tratamento clínico psiquiátrico» ou de «da avaliação de risco de violência sexual, concluiu-se que AA apresenta um nível global de risco baixo», tal como a inexistência de antecedentes criminais, constituem um conjunto de circunstâncias positivas para o arguido e poderiam contribuir para um juízo de prognose favorável.

 Contudo, sopesando prudentemente todos estes elementos, a personalidade revelada pelo arguido, a censurável e perversa falta de crítica em relação aos actos praticados, as circunstâncias em que os actos foram praticados, a gravidade dos mesmos e suas consequências para a ofendida, concluímos que não se verifica qualquer fundamento para supor que uma atenuação especial da pena seria propulsora ou beneficiaria a reinserção social do mesmo, pelo que inexiste ostensivamente qualquer justificação para que o mesmo beneficie do dito regime.

Aqueles dados periciais, tal como a inexistência de antecedentes criminais (circunstância esta de escasso relevo atenta a idade do arguido), serão consideradas no âmbito da definição da medida da pena.


3.2. Quanto à medida concreta das penas


3.2.1. Penas parcelares

O crime de violação agravada é punido com apena de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, a medida da pena é determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o artigo 40.º, n.º 2, do mesmo Código.

Na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal).

Revisitando considerações tecidas a propósito da determinação da pena, em razão da culpa do agente e das exigências de prevenção no já citado acórdão de 13-07-2017, em que se convocaram os acórdãos deste Supremo Tribunal de 15-12-2011, proferido no processo n.º 706/10.6PHLSB.S1 – 5.ª Secção (Relator: Cons. Rodrigues da Costa) e de 27-05-2015 (proc. n.º 445/12.3PBEVR.E1.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. João Silva Miguel):

«Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP).

Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.

Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, pp. 227 e ss.).

Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 231).

Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.»

Como também se lê no acórdão deste Supremo Tribunal, de 03-07-2014, proferido no processo n.º 1081/11.7PAMGR.C1.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. Oliveira Mendes), «a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização».

Como justamente refere MARIA JOÃO ANTUNES, «se a medida da pena é a protecção de bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na sociedade, e se a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (artigo 40.º, n.os 1 e 2, do CP), então a medida da pena há de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, sem ultrapassar a medida da culpa, actuando os pontos de vista de prevenção especial de socialização entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de tutela de tais bens»[6].

A medida da pena, considera a mesma autora, «há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, face ao caso concreto, num sentido prospectivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida»[7].

São evidentes e prementes as exigências de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de crimes (de violação) que põem em causa valores nucleares da sociedade.

Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos – artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal – definindo a necessidade desta protecção os limites daquelas, há que ter em atenção o bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras do crime cometido.

Na realização dos fins das penas, as exigências de prevenção geral constituem nos casos de crimes de violação uma finalidade de axial importância.

Relembrando asserções já tecidas, e convocando o ensinamento de FIGUEIREDO DIAS, «A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida»[8].

Como já se consignou, citando-se MARIA JOÃO ANTUNES, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, face ao caso concreto, num sentido prospectivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida.

Significando a prevenção geral positiva ou de integração, sublinha-o AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, que a pena é um meio de interpelar a sociedade e cada um dos seus membros para a relevância social e individual do respectivo bem jurídico tutelado penalmente.

A prevenção geral positiva tem ainda, considera o mesmo autor, a dimensão ou objectivo da pacificação social ou, por outras palavras, do restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal estatal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva ou individual. Esta mensagem de confiança e de pacificação social é dada, especialmente, através da condenação penal, enquanto reafirmação efectiva da importância do bem jurídico lesado[9].

Mas a pena tem também uma função de prevenção geral negativa ou de dissuasão da prática de futuros crimes.

Nesta perspectiva, como justamente é lembrado no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15-05-2013, proferido no processo n.º 154/12.3JDLSB.L1.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. Santos Cabral):

«O ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação. Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, compreendendo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial.

Por consequência a pena deve ponderar, também, a forma de contribuir para a reinserção social do arguido e de não prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável. Esta exigência está plasmada na fórmula de Kohlrausch sobre a prevenção especial “Na individualização da pena o tribunal deve considerar os meios necessários para reconduzir o arguido a uma vida ordenada e ajustada á lei”.

Salienta Jeschek que, na prevenção especial, se contem a protecção da comunidade face ao delinquente perigoso o que é, frequentemente, esquecido. 

Por fim a prevenção geral é um fim indispensável da pena pois que esta deve ser ponderada por forma a neutralizar os efeitos do delito como exemplo negativo para a comunidade e deve contribuir, simultaneamente, para fortalecer a sua consciência jurídica assim como a satisfazer o pedido de justiça por parte do círculo de pessoas afectadas pelo delito e pelas suas consequências (confirmação da ordem jurídica).

Estamos em crer que é nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena. Na verdade, as normas deveriam “ser reafirmadas na sua própria existência como um fim em si mesmas” enquanto o agente, pelo contrário, tem direito a esperar, e espera, sobretudo uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua ação. 

Sem embargo, a culpa e a prevenção residem em planos distintos. A culpa responde à pergunta de saber de se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção. Aqui há que decidir qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico. 

A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente a finalidade da mesma.

Em termos dogmáticos é fundamento da individualização da pena a importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo.»

Nos crimes de violação, acentua-se, são muito intensas as exigências de defesa do ordenamento jurídico e da paz social, dada a extrema sensibilidade da comunidade em relação aos mesmos e a premente necessidade de os prevenir.

A decisão recorrida justifica a pena aplicada a cada um dos crimes de violação com as seguintes considerações:

«O art.º 71º, n.º 2 manda atender àquelas circunstâncias que não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra o agente, indicando, a título exemplificativo, algumas delas nas várias alíneas.

A medida concreta da pena tem de ser determinada sempre conjugando os factores culpa e prevenção, estando o primeiro ligado a uma vertente pessoal do crime e o segundo à necessidade sentida pela sociedade na punição do caso concreto.

Quanto à culpa, ela irá não só fundamentar como também limitar a pena.

Esta será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpa e a sua medida não poderá ultrapassá-la. Estará sempre limitada, no seu máximo, por ela.

Segundo Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Pág. 286, na fixação da pena terá que estar sempre presente a ideia de prevenção, não de prevenção em sentido amplo, como finalidade global de toda a politica criminal, ou seja, como conjunto dos meios e estratégias preventivos da luta contra o crime” mas prevenção significando, por um lado, prevenção geral, e, por outro lado, prevenção especial, com a conotação específica que estes termos assumem na discussão sobre as finalidades da punição”.

Assim, a pena deve ser fixada de forma a que contribua para a reinserção social do agente e não prejudique a sua posição social mais do que o absolutamente inevitável e, por outro lado, neutralize os efeitos do crime como exemplo negativo para a sociedade e simultaneamente contribua para fortalecer a consciência jurídica da comunidade sem deixar de ter em consideração o que foi afectado com o delito e suas consequências.

No caso concreto, importa considerar, quanto ao processo de socialização do arguido, a inserção em grupo familiar social e economicamente vulnerável, a exposição a situações de violência familiar e a baixa valorização de um ambiente adequado à construção da intimidade e de relações positivas e seguras, enquanto fatores que concorrem com desinibidores situacionais e circunstanciais.

Em idêntico sentido, o relatório de perícia médico-legal de psicologia de 12.02.2019, de onde decorre que o arguido evidencia dificuldades em manter um adequado padrão a nível profissional, a exposição a situações de violência familiar e a desestruturação da família de origem (i.e., a precariedade económica, consumos de álcool do progenitor, reduzida valorização e reduzida capacidade para promover um ambiente adequado ao desenvolvimento da intimidade e de relações íntimas salutares).

O arguido é jovem, não tem antecedentes criminais e está social, profissional e familiarmente inserido.

No que especificamente se refere à sua atuação, a circunstância de ter agido com dolo direto; o seu concreto comportamento (o tipo de atos por si praticados, o grau de força física e ameaça utilizadas); a natureza e proximidade da relação familiar existente entre arguido e ofendida, a circunstância de, por efeito da prática dos factos, o arguido ter transmitido à ofendida uma doença sexualmente transmissível, a aumentar o desvalor do resultado; a idade da menor (13 anos, à data dos factos) e o período durante o qual o arguido prolongou a sua conduta (cerca de 2 meses).

Não tendo embora demonstrado arrependimento em Tribunal, afastou-se da ofendida, a fazer crer que comportamentos similares, com a ofendida, não irão repetir-se.

No mesmo sentido, o relatório de perícia médico-legal de psicologia conclui que o arguido apresenta um nível global de risco de violência sexual baixo, não tendo voltado a contactar a irmã (ofendida) e beneficiando do suporte da progenitora.

Sem embargo, pese embora o arguido - em sede de perícia médico-legal de psicologia - tenha assumido os factos pelos quais se encontra acusado, se mostre consciente da sua inadequação e verbalize arrependimento, o certo é que tende a atribuir os seus atos abusivos a causas externas a si (locus de causalidade externa) e a responsabilizar a ofendida - sua irmã, com 13 anos, à data dos factos - pela sua prática, o que nos deixa algo hesitantes quanto à genuinidade do arrependimento verbalizado em sede de perícia e à interiorização da gravidade da sua atuação, em consonância, de resto, com o teor do relatório social, de onde decorre que o arguido se mostra pouco capaz de efetuar uma análise crítica acerca deste tipo de comportamentos, denotando uma análise pouco reflexiva/crítica sobre a realidade envolvente, caracterizada por uma certa subvalorização de aspetos éticos/sociais fundamentais.

Por outro lado, apesar de não apresentar indicadores de perturbação mental ou de perturbação da personalidade nem indícios de violação/transgressão relevantes das regras sociais (à exceção do presente processo), o arguido refere dificuldades em gerir e lidar com a frustração, tendo a perícia concluído pela verificação de elevações ao nível da agressividade física e da raiva.

Finalmente, importa considerar o lapso de tempo decorrido desde a data da prática dos factos (aproximadamente 3 anos) e as exigências de prevenção geral, elevadas, atenta a natureza dos crimes cometidos, vindo a comunidade a reclamar um endurecimento do discurso punitivo.

Assim, temos por justa a aplicação de uma pena de 3 anos de prisão por cada um dos crimes praticados».

Esta pena foi fixada tendo em conta moldura penal aplicável em função da atenuação especial aplicada ao arguido.

Perante o afastamento do regime penal especial para jovens e da consequente atenuação especial da pena do arguido, e expressando a nossa concordância com a argumentação do Digno Magistrado do Ministério Público recorrente, merece a nossa adesão a fundamentação constante da decisão recorrida, naquilo que envolve os concretos factores a atender para a medida da pena e a ponderação que foi feita relativamente a cada um deles para a sua fixação.

Como é reconhecido no acórdão recorrido, tendo presente as considerações já feitas supra sobre a conduta do arguido, «considerando a alarmante natureza dos crimes sexuais e no eco com que se apresentam na sociedade e naquilo que constitui o recorrente flagelo que invariavelmente se repete com eco na comunicação social naquilo que constituem agressões físicas e sexuais, e aquilo que são as concretas acções do arguido para com a ofendida contemporâneas aos actos de violação, impõe que, na moldura abstracta “normal” […] e seguindo o raciocínio realizado pelo tribunal a quo», à luz dos critérios que se enunciaram, acentuando-se as exigências de prevenção geral que assumem aqui uma especial intensidade, devendo ter-se em devida atenção a intensidade da culpa do arguido manifestada na execução dos crimes, revelando uma personalidade particularmente desvaliosa em todo o processo de execução dos mesmos, entendemos justa e adequada a pena de 5 anos e 6 meses para cada um dos crimes de violação agravada, pena que satisfaz as exigências de prevenção geral, sem afectar as finalidades de prevenção especial, respeitando ainda a medida da culpa do arguido.


3.2.2. Pena única

O artigo 77.º do Código Penal estabelece as regras da punição do concurso de crimes, dispondo no n.º 1 que «quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena», em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

O n.º 2 do mesmo preceito prescreve que «a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão (…), e como limite mínimo, a mais elevada daquelas penas concretamente aplicadas aos vários crimes».

No caso sub judice, tendo em conta as duas penas parcelares aplicadas, a moldura do cúmulo jurídico situa-se entre os 5 anos e 6 meses de prisão e os 16 anos e 6 meses de prisão.

Na determinação da medida concreta da pena conjunta são levados em conta os factos em conjunto e a personalidade do agente, revelando-se uma dimensão penal nova fornecendo o conjunto dos factos a gravidade do ilícito global praticado.

A pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artigo 71º, n.º 1, do Código Penal, um critério especial: «na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Na determinação da pena concreta conjunta, importa, pois, averiguar sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente, reflectida nos factos, visto que estes, como resultado da vontade e actuação do delinquente, espelham a sua forma de pensar e o seu modo de ser, o seu temperamento, carácter e singularidade, tendo em vista uma visão unitária conjunta dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de uma tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura global penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele.

Na leitura compreensiva dos factos provados, o circunstancialismo que rodeou a execução, de forma reiterada, dos crimes de violação, revela um ilícito global muito grave e uma personalidade do arguido muito desvaliosa que não respeitou valores essenciais ao viver em sociedade e desde há muito sedimentados na comunidade.

À luz das considerações que se vêm de tecer e ponderando os factos, a natureza do bem jurídico violado, perante a gravidade do ilícito global e a personalidade muito desvaliosa do arguido, consideramos justa e adequada a pena única de 7 anos e 6 meses de prisão, assim procedendo o recurso do Ministério Público.


4. Recurso do arguido

O arguido, como já se referiu, não se conforma com a medida da pena única aplicada no acórdão recorrido, pugnando por uma pena única inferior a 5 anos de prisão suspensa na sua execução, condicionada ao cumprimento de injunções.

A pena única aplicada no acórdão recorrido engloba as penas fixadas pela prática de três crimes de violação agravada, especialmente atenuadas em função da aplicação do regime penal especial para jovens aprovado pelo Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.

No presente acórdão, entende-se afastar tal regime, fixando-se penas de prisão para cada um dos crimes e, bem assim, uma pena conjunta, cuja medida obsta à suspensão da respectiva execução porquanto superiora 5 anos de prisão (cfr. 50.º, n.º 1, do Código Penal).

Sendo assim, a apreciação das questões suscitadas no recurso interposto pelo arguido e respectiva decisão, resulta prejudicada pelas razões que conduziram à procedência do recurso interposto pelo Ministério Público (artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).e, por conseguinte, é de negar provimento ao recurso interposto pelo arguido.


III – DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, alterando o acórdão recorrido:

1 – Revogam as penas aplicadas ao arguido;

2 – Afastam a aplicação do regime penal especial para jovens consagrado no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, e correspondente atenuação especial da pena;

3 – Condenam o arguido AA pela prática em autoria, de três crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a), 177.º, n.os 1, alínea a) e 7, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um deles;

4 – Condenam o mesmo arguido na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.

5 – Negam provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.

Tributam o arguido em custas com 3 UC de taxa de justiça


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Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP

Assinado digitalmente pelo relator.

Tem voto de conformidade da Ex.ma Conselheira Adjunta Dra Conceição Gomes


Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Janeiro de 2011


Manuel Augusto de Matos (Relator)

_________

[1] Disponível nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt, como os demais que se citarem sem outra menção.
[2] Regime que, de acordo com o próprio preâmbulo do DL 401/82, não deverá ser aplicado quando, em concreto, se mostre necessário defender a comunidade e prevenir a criminalidade, sendo esse o caso de a pena aplicável ser de prisão superior a dois anos (no sentido de a lei aqui se referir a pena aplicável e não a pena aplicada, veja-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 04.02.12, publicado na CJ (STJ), XII, I, 202). Assim, razões atinentes às necessidades de reprovação e de prevenção do crime poderão precludir a aplicação daquele regime, designadamente quando a ele se opuserem considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínima e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico.
[3] Sumários de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais, Boletim anual – 2018 Assessoria Criminal.
[4] Crimes Sexuais – Análise Substantiva e Processual, Coimbra Editora, p. 59.
[5] Ob. cit., p. 60.
[6] Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 44.
[7] Idem, ibidem.
[8] “O sistema sancionatório do Direito Penal Português”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, p. 815.
[9] Direito Penal – Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pp. 65-66.