Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1383/19.4T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONHECIMENTO PREJUDICADO
CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
EXCEÇÃO DO CASO JULGADO
EXCEÇÃO DILATÓRIA
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
PARTES CIVIS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
Data do Acordão: 03/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Não padece do vício de nulidade, por omissão de pronúncia, o acórdão que não conheceu das demais questões suscitadas no recurso por considerar o seu conhecimento prejudicado pela solução dada a outra das questões objeto também desse recurso.

II - O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A primeira manifesta-se através de autoridade do caso julgado, visando impor os efeitos de uma primeira decisão, já transitada (fazendo valer a sua força e autoridade), enquanto a segunda manifesta-se através de exceção de caso julgado, visando impedir que uma causa já julgada, e transitada, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou a repetição de decisões, assumindo-se, assim, ambos como efeitos diversos da mesma realidade jurídica.

III - Enquanto na exceção de caso julgado se exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as ações em confronto, já na autoridade do caso julgado a coexistência dessa tríade de identidades não constitui pressuposto necessário da sua atuação.

IV - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

V - A identidade dos sujeitos deve ser aferida não em função da sua identidade física, mas do ponto de vista da sua qualidade jurídica e do interesse substantivo que representam ou são portadores, independentemente da posição ou qualidade processual que assumam ou tenham assumido nas ações em confronto.

VI - A identidade de pedidos pressupõe que em ambas as ações se pretende obter o reconhecimento do mesmo direito subjetivo, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, não sendo de exigir, porém, uma rigorosa identidade formal entre os pedidos.

VII - Sendo a causa de pedir um facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, haverá procurá-la na questão fundamental levantada nas duas ações.

VIII - No nosso ordenamento jurídico-processual, o caso julgado implícito só pode ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório

1. No Tribunal Judicial da Comarca ... (Juízo Central Cível ...), os autores, Garagem Cavalo Branco, Limitada, AA, e BB (estes dois últimos por si e em representação da primeira enquanto seus sócios, e doravante também identificados, respetivamente, como 1ª, 2º. e 3ª. autores), instauraram (em 30/04/2019) contra os réus, Mediconta – Gestão e Promoção Imobiliária, Lda., CC e DD (e doravante também identificados, respetivamente, como 1ª, 2º. e 3º. réus), todos com os demais sinais nos autos, a presente ação declarativa, sob forma de processo comum.

Para o efeito, e em síntese, alegaram:

Que o 2º. A. e a 3ª. A. são sócios da 1ª. autora que, entretanto, em 22/10/2012, foi dissolvida encerrada, mas deixando ativo.

Por escritura pública lavrada no dia 18/11/2005, a 1ª. A. declarou vender à 1ª. R., e esta comprar-lhe, pelo preço de € 350.000,00, a parcela de terreno com a área de 1800 metros quadrados, descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº. ...57 da freguesia ... e inscrita na respetiva matriz predial sob o artigo ...13.

Porém, a vontade dos outorgantes de tal escritura não foi celebrar aquele negócio nela declarado/exarado, mas tão só obstar a que a 1ª. A. figurasse no registo como proprietária do referido imóvel de modo a evitar que o contrato celebrado entre a 1ª. A. e a Mobil (posteriormente BP), em 12/04/1989, fosse acionado por esta último, e impedir, assim, que a primeira ficasse sem aquele seu o seu único ativo, prestando-se, para o efeito, os RR. a auxiliar os AA. a atingir esse desiderato, dada a relação da amizade então existente entre o 2º. e a 3º. RR. (únicos sócios e gerentes da 1ª. R.) e o 2º. A. e a 3ª. A. (legais representantes da 1ª. A).

Desse modo, nenhum dos outorgantes quis, na realidade, vender e comprar o dito imóvel, sendo que nenhum preço foi pago por ele, o qual continuou na posse dos AA. (embora os RR. tivessem praticado atos de mera detenção sobre ele e em nome daqueles), que sempre comportaram como seus reais proprietários,

Tratou-se, pois, de um negócio totalmente simulado.

Acontece, porém, que os RR. (e particularmente os 2º. e o 3º.) vêm-se ultimamente recusando a proceder a entrega do aludido imóvel aos AA., arrogando-se mesmo seus proprietários.

Situação essa que vem causando danos não patrimoniais aos AA. (e particularmente ao 2º. A. e à 3ª. A.).

Pelo que terminaram pedindo que:

a) Seja declarado nulo, “por simulação relativa,” o contrato de compra e venda exarado na referida escritura publica, tendo por objeto o sobredito imóvel;

b) Seja reconhecido o direito de propriedade da A. (sociedade) sobre o referido imóvel (parcela de terreno);

c) Sejam os RR. condenados a pagar aos AA., a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 50.000,00.


2. Contestaram os réus, defendendo-se por exceção e por impugnação.

No que concerne àquela 1ª. defesa, excecionaram ilegitimidade dos 2º. e 3º. RR. (por não terem interesse direto em contradizer, pois que apenas intervieram na referida escritura pública que formalizou o sobredito contrato de compra e venda na qualidade de sócios e legais representantes da 1ª. R.); a falta de personalidade judiciária e jurídica da 1ª. A./sociedade (por já se encontrar extinta quando foi intentada a presente ação) e ainda a exceção dilatória de caso julgado formado sobre a decisão/sentença proferida na ação declarativa, com forma de processo ordinário, que correu termos no então ... Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o nº. 4591/06….

No quer concerne a esta última exceção, aduziram que a referida ação foi então instaurada a BP Portugal – Comércio de Combustíveis e Lubrificantes, S.A., na qualidade de A., contra (na qualidade de RR.) a ora 1ª. A., a ora 1ª. R. e ainda contra os ora 2º. A. e 3ª. A., pedindo, com base nos mesmos factos/causa de pedir, que o sobredito contrato de compra e venda fosse declarado nulo por simulação, vindo, contudo, a ação a ser julgada improcedente, por sentença transitada em julgado. Verificando-se, assim, uma identidade dos sujeitos (do ponto de vista da sua qualidade jurídica), do pedido e da causa de pedir.


3. No despacho saneador decidiu-se (após fixar o valor da causa em € 57.374,72):

a) Julgar procedente a exceção de falta de personalidade jurídica e judiciária da 1ª. A., determinando-se, todavia, o prosseguimento da ação, do lado ativo, com o 2º. A. e a 3ª. A., na qualidade de sócios liquidatários da 1ª. A.

b) Julgar procedente a exceção de ilegitimidade do 2º. e do 3º. RR., absolvendo-os, em consequência, da instância.

c) Declarar a existência de exceção de autoridade de caso julgado, decorrente da sentença proferida na sobredita ação nº. 4591/06…, absolvendo, por via de tal, a 1ª. R. da instância, considerando, em consequência, prejudicado o conhecimento das demais questões e pedidos formulados na ação por dependeram da procedência do 1º. pedido que determinou a procedência daquela exceção.


4. Inconformados com tal decisão, na parte dos seus segmentos referidos nas alas. b) e c) do ponto 3., o 2º. A. e 3ª. A. dela apelaram.


5. Por acórdão de 09/09/2021, o Tribunal da Relação ... (TR…) decidiu julgar verificada a exceção dilatória do caso julgado formado sobre a decisão/sentença proferida na ação acima identificada, assim negando provimento ao recurso e manter, embora com fundamentação diversa, a sentença recorrida que absolveu a 1ª. R. da instância, considerando, em consequência, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.


6. Novamente irresignados com tal acórdão do TR…, aqueles mesmos autores dele interpuseram recurso de revista, tendo concluído as respetivas alegações de recurso nos seguintes termos (cuja ortografia se respeita):

« 1. Vem o presente Recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ... que julgou improcedente o recurso de apelação apresentado pelo ora Recorrente, com fundamentos diversos dos sufragados pela douta Sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância, e, em consequência, absolveu a ora Recorrida do pedido contra ela deduzido.

2. O presente recurso é admissível uma vez que a fundamentação utilizada pelo Tribunal da Relação é essencialmente diferente da adotada pelo Tribunal da 1ª Instância – cfr. artigo 671.º, nº 3 a contrario do CPC.

3.  A douta Sentença recorrida, o Tribunal de 1ª Instância absolveu os 2º e 3º Réus da instância por considerar que são partes ilegítimas, por ter concluído que “nenhuns interesses têm, a título pessoal, em contradizer a presente acção, porquanto o desfecho da mesma nenhum reflexo pode ter na sua esfera jurídica, mas sim na da 1ª R”.

4. Os Recorrentes também não se conformaram, e não se conformam, com tal decisão.

5. Pelo que nas suas alegações de recurso de apelação, invocaram que com a procedência dos pedidos formulados, os 2º e 3º Réus seriam também condenados no pagamento aos Recorrentes de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de €50.000,00, tendo alegado ainda que a formulação deste pedido de condenação dos Recorridos no pagamento de uma indemnização aos Recorrentes, só por si, assegura, sem mais, a total legitimidade dos Recorridos para figurarem nos presentes autos como Réus.

6. No entanto, mesmo que assim não se entendesse, sempre a factualidade supra referida seria de índole a responsabilizar pessoalmente os 2º e 3º Recorridos, já os mesmos praticaram, a título pessoal, factos que lesaram muito gravemente interesses pessoais e patrimoniais dos Recorrentes.

7.  O facto de todos os Réus poderem ser condenados no pagamento de uma indemnização aos Recorrentes no valor de €50.000,00 implica que estes tenham interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência adviria para cada um deles. – cfr. artigo 30.º do CPC.

8.    O douto Tribunal da Relação ... não se pronunciou quanto a este ponto do recurso, o que acarreta a sua nulidade por omissão de pronúncia, a qual se requer seja decretada.

9. Contrariamente ao decidido pelo Tribunal de 1ª Instância, entendeu Tribunal da Relação ... que nos presentes autos se verifica a exceção de caso julgado, entendimento com o qual os Recorrentes não se podem conformar.

10. Como se referiu na douta Sentença recorrida, inexiste identidade de sujeitos entre a presente a ação e o processo nº 4591/06…, desde logo porque naquele processo invocado pelos Réus não figuraram como partes os Autores AA e BB (foram julgados partes ilegítimas) nem os Réus DD e CC.

11. Para decidir em sentido diverso, o douto Acórdão recorrido, com todo o respeito que é devido aos seus autores, confunde conceitos, uma vez que pretende fazer crer que os aqui Recorrentes intervieram naquele processo nº 4591/06.... e intervêm nestes autos apenas como representantes da sociedade Garagem Cavalo Branco, o que não corresponde à verdade.

12. Desde logo, no processo nº 4591/06…, os aqui Recorrentes foram considerados partes ilegítimas, pelo que a decisão ali proferida não os abrange.

13. Por outro lado, os aqui Recorrentes AA e BB intervêm nos presentes autos também em nome próprio, e não apenas em representação da sociedade Garagem Cavalo Branco, o que resulta bem claro do articulado inicial.

14. Aliás, saliente-se que a entidade que foi autora no processo invocado pelos Réus não é sequer parte na presente ação, pelo que, faltando aquela parte, não pode proceder a invocada exceção de caso julgado.

15. Por tais motivos, não se verifica a identidade de sujeitos, que o douto Acórdão recorrido afirma existir.

16. Não se verifica também identidade de causa de pedir, já que os factos alegados na presente ação são substancialmente distintos dos invocados naquele outro processo.

17. Saliente-se que grande parte dos factos alegados em sede de petição inicial sã0 posteriores à prolação da sentença invocada pelos Recorridos (cfr. artigos 57º, 58º e 59º da PI), pelo que nunca poderia ocorrer uma identidade de causa de pedir.

18. Sendo certo que a importância e relevância daqueles factos faz com que os mesmos não possam ser considerados meramente acessórios ou instrumentais.

19. A causa de pedir formulada nos presentes autos é inegavelmente distinta – muito mais densa – que a causa de pedir do processo nº 4591/06.

20. Estamos perante factos novos, principais e absolutamente essenciais para a boa decisão da presente causa.

21.    Pelo que não se verifica uma identidade da causa de pedir.

22. Ademais, também não se verifica a identidade de pedidos, os quais são totalmente distintos.

23. De facto, enquanto que no processo nº 4591/06…, foi peticionada pela ali Autora o reconhecimento do direito de propriedade a seu favor, nos presentes autos o que é peticionado é o reconhecimento da propriedade sobre o imóvel a favor da aqui Autora.

24. Pedidos que são, também eles, totalmente distintos entre si.

25. Acresce que, nos presentes autos, os Recorrentes AA e BB formulam um pedido em nome próprio, destituídos da veste de representantes da sociedade Autora.

26. Com a petição inicial, estes Recorrentes peticionaram que os Recorridos fossem condenados a pagar-lhes uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 50.000,00.

27. Este pedido não foi formulado naquele processo e é formulado em nome pessoal.

28. Assim, verifica-se uma total disparidade no que respeita aos pedidos, motivo pelo qual, também por este motivo, não se verifica a indispensável tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.

29. ACRESCE QUE, no processo nº 4591/06, a ação foi julgada improcedente, não por se ter demonstrado que foi intenção das sociedades Garagem Cavalo Branco e a aqui Recorrida Mediconta celebrar o referido negócio, mas por inexistência de prova atestadora de um intuito simulatório.

30. Os pressupostos que fundamentam a invocação do caso julgado e da autoridade de caso julgado - a certeza, a confiança, a contradição de julgados, o prestígio dos tribunais ou os valores da eficácia processual - se não contêm na circunstância de ter sido considerado naquela outra ação que não se provou a existência de um intuito simulatório subjacente ao negócio em crise.

31. A falta de prova naquela outra ação, de que não existiu intuito simulatório, não determina, de forma automática e absoluta, que o mesmo não existiu, mas tão só que não resultou provado através da prova produzida em juízo.

32. Como é consabido e é um princípio da boa prática judiciária a observar, a resposta negativa a um quesito não determina, só por isso, a prova do seu contrário, dessa vicissitude processual resultando apenas a inexistência da factualidade relativamente à parte a quem compete o ónus da prova; e a importância de se saber quem tem o ónus de provar determinada circunstância fáctica que surja no contexto da demanda constituiu elemento de primordial importância no desfecho do êxito da ação, ou seja, a chave da resolução do litígio - a quem invoca um direito em juízo incumbe fazer a prova dos factos, positivos ou negativos, constitutivos do direito alegado ("actore non probante reus absolvitur"); à parte contrária compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito ("reus excipiendo fit actor").

33. Queremos com isto dizer que os pressupostos que fundamentam a invocação do caso julgado - a certeza, a confiança, a contradição de julgados, o prestígio dos tribunais ou os valores da eficácia processual - se não contêm na circunstância de ter sido considerado naquela primeira ação que não se provou a existência de um intuito simulatório entre as sociedades Garagem Cavalo Branco e Mediconta.

34. Prevenindo esta eventualidade jurídico-processual é que o legislador solucionou esta contingência, que repetidas vezes acontece, na proposição inserta no artigo 242.º, nº 1 do Código Civil, que no seu n.º 1, estabelece que “a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta.”

35. Desta feita ficam incólumes, quer o prestígio dos tribunais quer o ideal da justiça, certeza e confiança que às partes, impreterivelmente, têm de ser garantidos – cfr. Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu douto Acórdão de 16/03/2017, proferido no âmbito do processo nº 525/14.0T8VCT.G1.S1.

36. Pelo que, também por este motivo, deve ser revogado o douto Acórdão recorrido.

37. Por fim, como decorre do disposto no artigo 5.º, nº 3 do CPC, “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.

38. A factualidade supra reproduzida é suscetível de ser reconduzida ao instituto jurídico do mandato sem representação.

39. O facto de a sociedade Recorrida (mandatária), no cumprimento das relações internas firmadas entre ela e os Recorrentes (mandantes), ter de transmitir para esta o prédio que, por efeito do contrato de compra e venda que celebraram entre si, ingressou no seu património, consagra o princípio da dupla transferência – da mandante para a mandatária e desta para a mandante – face aos efeitos meramente obrigacionais que emergem do mandato.

40. O mandato não representativo, mesmo que esteja em causa a aquisição de um imóvel, é consensual.

41. Para além, da aquisição de um imóvel, o mandato contemplou também a prática de atos que cujos direitos devem ser transferidos para os Recorrentes, enquanto mandantes, nos termos do disposto no artigo 1181.º, nº 1 do Código Civil.

42. Ao desconsiderar toda a supra transcrita factualidade, foi desconsiderada também esta solução que, uma vez produzida a prova e verificando-se a efetiva ocorrência daqueles factos, representaria indubitavelmente uma justa composição possível para o presente litígio.

43. Como tal, deve o douto Acórdão recorrido ser revogado também quando a esse ponto.

44. Pelo que, em face de todo o exposto, deve ser revogada o douto Acórdão recorrido.

45. O douto Acórdão recorrido violou assim, entre outros, o disposto nos artigos 5.º, nº 3, 30.º, 580.º, 581.º do Código de Processo Civil e nos artigos 240.º, 241.º, 242.º, 1180.º e 1181.º, do Código Civil


7. Contra-alegaram os RR., pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado.


8. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II - Fundamentação



A) De Facto.

Pela 1ª. instância (aceites pela 2ª. instância) foram dados como provados: os seguintes factos (mantendo-se os termos da sua descrição e a ortografia que ali constam):

1) A BP PORTUGAL – Comércio de Combustíveis e Lubrificantes, S.A., intentou acção de condenação com processo ordinário contra Garagem Cavalo Branco, Ldª., Mediconta – Gestão e Promoção Imobiliária, AA, BB e CCAM, acção que correu com o nº 4591/06.... no ... Juízo Cível ..., onde pede a título principal (havendo outros pedidos a título subsidiário) que se declare nulo o contrato de compra e venda celebrado em 18/11/05 entre a 1ª e a 2ª R., com referência ao prédio urbano sito no lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito sob o artigo matricial ...11 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...57.

2) Para tanto no processo nº 4591/06.... invocou a ali A. BP que a transmissão daquele imóvel foi simulada.

3) A ali R. Mediconta veio oferecer contestação, impugnando os fundamentos da acção concluindo pela improcedência da mesma.

4) Naquele processo os primitivos RR. AA e BB foram considerados partes ilegítimas.

5) Naquele processo foi proferida sentença em 10/01/12, transitada em julgado em 16/02/2012.

6) Naquela sentença consta dos factos provados sob o nº 22 que “ Por escritura denominada de compra e venda, outorgada em 18/11/2005 (…) AA e BB, na qualidade de únicos sócios e gerentes da sociedade “Garagem Cavalo Banco, Ldª” declaram vender, pelo preço de € 350.000,00, já recebido, a “Mediconta-Gestão e Promoção Imobiliária, Ldª,” que declarou aceitar, o prédio urbano composto de parcela de terreno, situado no lugar ..., ..., freguesia e concelho ..., com a área de mil e oitocentos metros quadrados, (…) ´com o artigo provisório ...11”.

7) Naquela acção foi decidido, em relação ao negócio referido em 22 dos factos ali provados que não se vislumbrou a existência efectiva de acordo simulatório, julgando naquela parte, a acção improcedente.

(seguiu-se a descrição dos factos que os AA. alegam na presente ação e o pedido de nulidade do contrato nela formulado com base na invocada simulação).


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B) De Direito

1. Do objeto do recurso.

Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, ex vi artº.  679º do CPC).

Por fim, vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” a que se reporta o citado artº. 608º, e de que o tribunal deve conhecer, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes.

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso interposto pelos sobreditos AA., as questões que se nos impõe aqui apreciar e decidir são as seguintes:

a) Da nulidade do acórdão (por omissão de pronúncia);

b) Do caso julgado;

c) Da procedência da ação com base no instituto jurídico do mandato sem representação.


***


2. Quanto à 1ª questão.

- Da nulidade do acórdão (por omissão de pronúncia).

Invocam os RR./recorrentes a nulidade do acórdão recorrido, por ter havido omissão de pronúncia no que concerne à apreciação da questão que suscitaram nas alegações do seu recurso de apelação relativamente ilegitimidade dos 2º. e 3º. RR. declarada no despacho saneador/sentença (defendendo a sua legitimidade para a demanda) em violação, assim, do disposto no artº. 615º, nº. 1 al. d), do CPC.

O ora tribunal a quo, pronunciou-se, em conferência, sobre a referida nulidade apontada pelos recorrentes ao acórdão ora recorrido, julgando a mesma inverificada, tendo os RR. nas suas contra-alegações de recurso pugnado também pela sua inexistência.

Apreciando.

Como é sabido, as nulidades da sentença (leia-se aqui acórdão, pois que tal dispositivo legal é também aplicável às decisões da 2ª. instância, ou seja, da Relação – cfr. artº. 666º, nº. 1, do CPC - e também deste mais alto tribunal – cfr. artº. 679º) encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença, também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.

Dispõe-se no invocado artº. 615º, nº. 1 al. d) do CPC, que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento. (sublinhado nosso).

Decorre de tal norma que o vício que afeta a decisão advém de uma omissão (1º. segmento da norma – aqui em causa, pois que a nulidade invocada pelos recorrentes é sustentada, como vimos, numa omissão de pronúncia) ou de um excesso de pronúncia (2º. segmento da norma).

Preceito legal esse que deve ser articulado com o nº. 2 no artº. 608º do CPC, onde se dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” (sublinhado nosso)

Impõe-se ali um duplo ónus ao julgador, o primeiro traduzido no dever de resolver todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação pelas partes (salvo aquelas cuja decisão vier a ficar prejudicada pela solução dada antes a outras), e o segundo (que, como vimos, aqui não é colocado em causa pelos recorrentes) traduzido no dever de não ir além do conhecimento dessas questões suscitadas pelas partes (a não ser que a lei lhe permita ou imponha o seu conhecimento oficioso).

Constitui communis opinio que o conceito de “questões”, a que ali se refere o legislador, deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos, como já deixamos acima expresso, os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º., 3ª. ed., Almedina, págs. 713/714 e 737.”)

Constitui igualmente entendimento prevalecente que não há omissão de pronúncia quando a matéria/questão tida por omissa ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria/questão com ela relacionada.

Tendo presentes tais conceitos/considerações, e reportando-nos ao caso em apreço, diremos:

Compulsando o acórdão recorrido verificamos que o tribunal a quo circunscreveu o objeto do recurso de apelação às seguintes questões:

“I – Inexistência de caso julgado.

II – Procedência da ação com fundamento no instituto jurídico do mandato sem representação.

III – Legitimidade dos Recorridos.

Depois disso, passou a conhecer daquela 1ª. questão elencada, acabando, na sequência da sua apreciação e análise, por julgar verificada a exceção dilatória do caso julgado formado sobre a decisão/sentença proferida na ação acima identificada, assim negando provimento ao recurso e manter, embora com fundamentação diversa, a sentença recorrida, que absolveu a 1ª. R. da instância.

Em consequência, dessa decisão, considerou prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso (entre as quais se incluía, como vimos, a exceção referente à legitimidade dos RR./Recorridos) devido à solução dada àquela questão.

Sendo assim, e independentemente do acerto ou não da referida decisão, o tribunal a quo agiu a coberto da exceção consagrada no acima transcrito nº. 2 do citado artº. 608º do CPC, pelo que não pode falar-se de omissão de pronúncia por parte do mesmo.

Termos em que, sem necessidade de outras considerações, se conclui, assim se decidindo, não padecer o acórdão do vício de nulidade que foi arguidos pelos recorrentes.


***


3. Quanto à 2ª. questão.

3.1 - Do caso julgado.

 Como ressalta do que se deixou exarado no Relatório que antecede, os RR., na sua contestação invocaram em sua defesa, além do mais, a exceção dilatória de caso julgado decorrente da decisão/sentença, transitada em julgado, proferida na ação que correu termos, sob o nº. 4591/06…, no ... Juízo Cível do então Tribunal Judicial da Comarca ....

Para o efeito, e em resumo, sustentaram que, com base nos mesmos factos aqui alegados, fora ali pedido também a nulidade do sobredito contrato de compra e venda, fundamentada igualmente na simulação desse negócio. Ação essa que, contudo, veio a ser julgada improcedente pela sentença ali proferida, e transitada em julgado, defendendo verificar-se, em ambas as ações, identidade quanto aos sujeitos (do ponto de vista da sua qualidade jurídica), pedido e causa de pedir.

No despacho saneador/sentença veio, como vimos, a declarar-se a existência da exceção, na sua função positiva, da autoridade de caso julgado - e não na sua função negativa de exceção dilatória de caso julgado, por se ter considerado não existir identidade de sujeitos em ambas as ações -, tendo-se, em consequência, absolvido a sociedade Ré (já que os demais RR. foram antes considerados partes ilegítimas) da instância.

Pelo acórdão recorrido, e considerando existir a referida tríplice identidade quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir, julgou-se verificada a exceção dilatória de caso julgado, na sua função negativa (e não positiva de autoridade de caso julgado), formado em relação à sentença proferida naquela sobredita ação, mantendo-se, em consequência, e por essa via, a absolvição da instância decretada na sentença recorrida.

Contra qualquer um daqueles entendimentos pugnam os AA./Recorrentes nesta sua revista, defendendo não ocorrer a referida exceção de caso julgado, por inexistência daquela tríplice identidade, quer quanto aos sujeitos, quer quanto ao pedido, quer quanto à causa de pedir.


3.1.1 Por se nos afigurar útil com vista a alcançar a solução para a questão aqui em discussão, começaremos, antes de mais, por fazer uma abordagem teórica dessa controversa figura processual do instituto do caso julgado, e sobre alguns dos seus aspetos/elementos porventura mais controversos (refira-se que alguma da jurisprudência e a doutrina que abaixo iremos citar embora proferidas à luz do derrogado CPC, mantêm-se, todavia, plenamente válidas dado que, como é sabido, essa figura manteve-se, na sua essência, inalterável à luz do atual CPC).

A expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja, caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega, tanto constitui caso julgado a sentença que condena como aquela que absolve.

Figura essa que, como se sabe, constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, cuja ocorrência impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr. artºs. 577º, nº. 1 al. i), 576º, nºs. 1 e 2, e 578º do CPC, diploma o qual nos referiremos sempre que doravante mencionemos somente o normativo sem a indicação da sua fonte).

Exceção essa que pressupõe, nos termos do artº. 580º, nºs. 1 e 2, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Isso mesmo acentua o prof. Anselmo de Castro, (in “Processo Civil Declaratório, Vol. II, pág. 242”), ao escrever “tal impedimento, destina-se a duplicações inúteis da actividade jurisdicional e eventuais decisões contraditórias.”

O caso julgado, como refere o prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 307”), consiste, assim, “na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário”, ou então, como ensina o prof. Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil, 1993, págs. 305/306”), o caso julgado consiste em “a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social.”

O instituto do caso julgado exerce, assim, duas funções: uma função positiva e uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal. (Nesse sentido, vide, por todos, o prof. Alberto dos Reis, in “CPC Anotado, vol. III, pág. 93”, e Acs. do STJ de 16/09/2015, proc. nº. 1918/11, in “Sumários, 2015, pág. 485”, de 22/06/2017, proc. nº. 2226/14.0TBSTB.E1.S1, de 13/12/2007, proc. nº. 07A3739, de 04/06/2015, proc. nº. 177/04.6TBRMZ.E1.S1, de 11/11/2020, proc. nº. 214/17.4T8MNC.G1.S1, de 06/06/2019, proc. 276/13.3T2VGS.P1.S2, e de 16/12/2021, proc. nº. 5837/19.4T8GMR.G1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt).

Compreende-se, desse modo, a razão de tal autoridade do caso julgado pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas.

Tanto mais que a decisão transitada pode até ter apreciado mal os factos e interpretado e aplicado erradamente a lei, mas no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça (cfr., a propósito, o prof. Alberto dos Reis, in “Ob. cit., pág. 94”).

Perante tais efeitos do caso julgado torna-se imperioso estabelecer, com nitidez, o conceito de repetição de uma causa.

Tal resposta é-nos dada pelo artº. 581º, nº. 1, ao estatuir que a causa se repete “quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

Por seu lado, os nºs. 2, 3 e 4, desse mesmo preceito, concretizando melhor, dispõem que “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico”. Acrescentando-se, no último normativo, que “nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real”.

Num esforço de ainda maior concretização daquela tríade de conceitos (e sem a existência cumulativa dos quais não se pode falar de exceção de caso julgado) podemos dizer, que as partes são as mesmas sob o aspeto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. Daí resulta que as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que as partes assumam em ambos os processos, podendo ser autores numa ação e réus na outra (cfr., por todos, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 319”).

Por sua vez, haverá identidade de pedidos “se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a ação, se pretende obter” e que a identidade da causa de pedir “pressupõe que o ato ou o facto jurídico de onde o autor pretende ter derivado o direito é idêntico”.

Há identidade de pedidos quando numa e noutra ação se pretende obter o mesmo efeito jurídico, ou seja, terá de ser o mesmo direito subjetivo cujo reconhecimento se pretende, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, o que significa não ser exigível uma rigorosa identidade formal entre os pedidos.

Como escreve Mariana Gouveia (in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, págs. 493 e 509”), a causa de pedir é o facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, mas segundo o critério misto não pode deixar de prescindir de uma perspetiva material dos limites das normas e dos seus nexos, por referência ao direito substantivo, nem dos limites dos factos, tal como são apresentados na sentença, sendo este critério o que melhor responde aos problemas de concurso aparente de normas.

A identidade da causa de pedir há, assim, que procurá-la na questão fundamental levantada nas duas ações (cfr., por todos, Ac. do STJ de 26/10/89, in “BMJ nº. 390 - 379”).

Assim, em resumo e noutra linguagem, podemos dizer que a causa de pedir consiste na alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, na alegação dos factos constitutivos do direito (facto jurídico de que procede a pretensão deduzida) - em consonância, assim, com o principio da substanciação consagrado pelo nosso ordenamento jurídico -, enquanto que o pedido se reconduz ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da ação interposta, traduzindo-se na providência que o autor solicita ao tribunal - trata-se de um elemento fundamental, considerando as imposições do princípio do dispositivo: são os interessados que acionam os mecanismos jurisdicionais como ainda quem realiza a escolha das providências que os direitos subjetivos invocados garantem -, e, por fim, que o conceito de sujeito a atender para o efeito coincide com a noção (adjetiva) de parte.

A exceção de caso julgado consiste, assim, e para concluir, na constatação de que a mesma questão já foi deduzida num outro processo e nele apreciada e julgada por decisão que não admite reclamação ou recurso ordinário (cfr. artº. 628º).

Porém, e tal como já resulta do que supra deixámos expresso, importa dizer que a exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado. Ambos são efeitos diversos da mesma realidade jurídica, havendo mesmo quem, a esse propósito, defenda (naquilo que hoje começa a constituir-se em entendimento dominante, e ao qual aderimos) que para que autoridade do caso julgado, ao contrário do que sucede em relação à exceção dilatória de caso julgado (na sua vertente negativa), atue não se exige sequer a coexistência das três identidades referidas no artº. 581º. (Cfr., quanto a este último entendimento, entre outros, o prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Objecto da Sentença e Caso Julgado Material”, BMJ nº. 325, pág. 49 e sgs.” e Acs. do STJ de 22/06/2017, proc. nº. 2226/14.0TBSTB.E1.S1, de 13/12/2007, proc. nº. 07A3739, de 04/06/2015, proc. nº. 177/04.6TBRMZ.E1.S1, de 11/11/2020, proc. nº. 214/17.4T8MNC.G1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.).

No desenvolvimento daquela afirmação, escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 325”), que “pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão” (...). “Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.

No mesmo sentido vai o prof. Miguel Teixeira de Sousa (in Ob. Cit., págs. 49 e sgs.”) quando escreve: “a excepção de caso julgado visa evitar que o orgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição da decisão antecedente.”

E tal questão (da autoridade do caso julgado) conduz-nos à polémica e muito discutida questão da extensão ou alcance do caso julgado.

Nos termos do disposto no artº. 619º, nº. 1, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581º.”

Por sua vez, sobre a epígrafe de “alcance do caso julgado” preceitua o artº. 621º que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga...”.

Resulta do exposto, que os limites do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objeto e a fonte ou título constitutivo. Por outro lado, é preciso atender-se aos termos dessa definição (estatuída na sentença). Ela tem autoridade - valendo como lei – para qualquer processo futuro, mas só em exata correspondência com o seu conteúdo. Daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu. (Vide, a propósito, e para maior desenvolvimento, os profs. Manuel de Andrade, in “Ob. cit., pág. 285”; Castro Mendes, in “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo em Processo Civil, 1968” e Miguel Teixeira de Sousa, in “Sobre o Problema dos Limites Objectivos do Caso Julgado, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIV, 1997, págs. 309 a 316”).

Na referida vexata quaestio vem hoje ganhando predominância a corrente que perfilha o entendimento mitigado no sentido de que muito embora a autoridade ou eficácia do caso julgado não devendo, como princípio ou regra, abranger ou cobrir os motivos ou fundamentos da sentença, cingindo-se, apenas, à decisão na sua parte final, ou seja, à sua conclusão ou parte dispositiva final, mas sendo, todavia, já de estender-se também às questões preliminares que constituírem um antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão daquela parte dispositiva do julgado. (Cfr., entre muitos, e para maior desenvolvimento, Acs. do STJ de 22/02/2018, proc. 3747/13.8T2SNT.L1.S1, de 02/12/2020, proc. 3077/15.T8PBL.C1-A.S1, de 26/04/2012, proc. 289/10.7TBPTB.G1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt, de 28/5/2002, in “Agravo nº 1043/02, 6ª. sec., Sumários, 5/2002 e de 26/9/002, in “Agravo nº 213/02, 2ª sec., Sumários 9/2002”).

Daí que, e como se escreveu no Ac. do STJ de 3/4/1991 (in “AJ, 18º - 9), no nosso ordenamento jurídico-processual, o caso julgado implícito só possa ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga, tal como estipula o citado artº. 673º (atual artº. 621º do CPC).

Porém, muitas vezes, e como escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 683”), “a determinação do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo (dos seus “precisos limites e termos”), de que fala o citado artº. 621º). Relevando, nomeadamente, para o efeito “a leitura que a sentença faça sobre o objecto do processo, isto é, sobre os pedidos formulados pelo autor e pelo réu reconvinte: o caso julgado tem a extensão objectiva definida pelo pedido e pela causa de pedir”.

Daí que igualmente vem sendo defendido que não seja de excluir recorrer à parte motivatória da sentença (ou seja, aos seus fundamentos) sempre que tal se mostre necessário para reconstruir e fixar o real conteúdo da decisão, isto é, para interpretar e determinar o verdadeiro sentido e o exato conteúdo da sentença em causa (vide, a propósito, Acs. do STJ de 26/04/2012, proc. 289/10.7TBPTB.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, e de 09/5/1996, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IV, T2 – 55”; e os profs. Manuel de Andrade e A. Varela, in “Ob. cits., respetivamente, págs. 318 e 696/697”).


3.2 Tendo presentes tais considerações de cariz teórico-técnico, reportemo-nos agora ao caso em apreço, visando dar resposta à questão acima colocada e aqui em controvérsia.

Face à matéria factual que acima se deixou descrita, é inolvidável que com presente ação se pretende, em primeira linha, obter, em termos de tutela judicial requerida ao tribunal, a declaração (judicial) da nulidade do contrato de compra e venda celebrado, por escritura pública lavrada em 18/11/2005, entre a sociedade 1ª. R. (que outorgou na qualidade compradora) e a sociedade 1ª. A.  (que outorgou na qualidade vendedora) e que teve por objeto o imóvel (parcela de terreno) acima identificado (e melhor descrito na aludida escritura).

E como fundamento dessa pretensão alegam-se factos tendentes a demonstrar que o referido negócio foi simulado, ou seja, é na simulação do negócio entre os seus outorgantes que reside a causa de tal pedido.

Por outro lado, da mesma matéria factual apurada resulta que com vista a atingir precisamente esse mesmo desiderato, e com o mesmo fundamento, correu já antes uma ação judicial (no Tribunal Judicial da então Comarca ...), sob o nº. 4591/06…. (que doravante designaremos também por 1ª. ação), ou seja, nessa instaurada ação pedia-se a declaração de nulidade do aludido contrato com o fundamento de o negócio nele consubstanciado ter sido simulado entre os outorgantes, aduzindo-se os mesmos factos para extrair essa conclusão.

Ação essa que veio a terminar antes desta (que doravante poderemos também designar por 2ª. ação) ter sido instaurada, na sequência de sentença nela proferida (em 10/01/2012, tendo o seu trânsito ocorrido em 16/02/2012) e que julgou a ação improcedente, com o fundamento na falta de prova do alegado simulatório do negócio, o que conduziu à absolvição do pedido.

Ora, do confronto de tal, é, desde logo, patente que nesta 2ª. ação e naquela aquela 1ª. ação, os pedidos (no que concerne à pretensão de declaração de nulidade do aludido contrato) e bem assim a respetiva causa de pedir são idênticos: declaração de nulidade do sobredito contrato por simulação do mesmo, entre os seus outorgantes.

E quanto aos sujeitos, será que essa identidade também existe?

Vejamos.

A 1ª. ação foi instaurada pela BP Portugal – Comércio de Combustíveis e Lubrificantes, S.A., na qualidade de A., contra (na qualidade de RR.) os ora aqui (nesta ação) 1ª. A., 1ª. R., 2º. A. e 3ª. A. e bem contra CCAM.

No decurso dessa ação os ora aqui 2º. A. e 3ª. A, foram declaradas partes ilegítimas.

A presente ação foi instaurada, na qualidade de autores, pela 1ª. A./sociedade e pelo 2º. A. e a 3ª. A. (estes por si e na qualidade de legais representantes da 1ª. A) contra, na qualidade de réus, a 1ª. R./sociedade, e os 2º. e o 3º. RR. (legais representantes dessa 1ª. R.).

Como vimos, no despacho saneador decidiu-se que a 1ª. A. - dado ter sido extinta (mas ainda não liquidada) antes da data da instauração da presente ação - não tinha personalidade jurídica e judiciária, determinando-se, em consequência, que, do lado ativo, a ação prosseguisse com o 2º. A. e a 3ª. A., na qualidade de sócios liquidatários daquela (segmento decisório esse que transitou em julgado, por não ter sido, em tempo oportuno, dele interposto recurso).

Por sua vez, noutro segmento desse mesmo despacho saneador (ainda não transitado) declarou-se os 2º. e 3º. RR. partes ilegítimas.

Como acima deixamos exposto, a identidade dos sujeitos deve ser aferida não em função da sua identidade física, mas do ponto de vista da sua qualidade jurídica e do interesse substantivo que representam ou são portadores, independentemente da posição ou qualidade processual que assumam ou tenham assumido nas ações em confronto.

Tendo presente tal, do confronto daquilo que atrás se deixou exarado é se levado a concluir que muito embora não haja uma rigorosa identidade física e de posição processual entre as partes envolvidas nas duas ações, todavia, essa identidade existe, a nosso ver, do ponto de vista da sua qualidade jurídica e do interesse substantivo que prosseguem, e que visa discutir, em primeira linha, se o sobredito negócio/contrato de compra e venda celebrado entre as aqui 1ª. A. e 1ª. R. é ou não nulo por simulação. Questão essa que, como vimos, já ficou definitivamente resolvida/decidida na 1ª. ação, com o grau e a medida de intervenção das partes que atrás de se deixou referida, e que agora não se pode correr o risco - em nome da segurança e certeza das relações jurídicas, e bem como ainda do prestígio dos tribunais e da própria celeridade processual que deve envolver a composição judicial dos litígios – de contradizer ou duplicar por via de uma nova decisão judicial.

Diga-se que o facto de a decisão obtida na sentença proferida naquela 1ª. ação (julgada imtrocedente) o ter sido por via de falta de prova do acórdão simulatório, que fundamentava a pedida declaração de nulidade do contrato em causa, é irrelevante para o efeito, à luz do nosso sistema jurídico, sendo que entendimento contrário, como parecem defender os recorrentes, significaria o reconhecimento da consagração de um sistema de non liquit, o qual, como é sabido, não fui adotado entre nós (e de que são exemplo os artºs. 8º do C. Civil e 414º do CPC). Como acima deixámos referenciado, uma decisão transitada pode até ter apreciado mal os factos e interpretado e aplicado erradamente a lei, mas no mundo do Direito, e em homenagem aos princípios e interesses a que supra aludimos, tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça.

Concluímos, assim, tal como o fez o tribunal a quo, pela tríplice identidade, no caso em apreço, quanto aos sujeitos (do ponto de vista da sua qualidade jurídica e do interesse substantivo que representam ou prosseguem), ao pedido e à causa de pedir nas sobreditas ações, e daí não nos merecer censura o acórdão recorrido quando concluiu pela verificação da exceção dilatória do caso julgado (na sua vertente ou função negativa), e confirmou a absolvição da instância decretada na 1ª. instância.

Porém, diga-se, que a idêntica solução final chegaríamos se porventura se concluísse pela não identidade dos sujeitos, pois que nesse caso é, a nosso ver, patente, que funcionaria o instituto de caso julgado na sua função positiva, ou seja, de autoridade de caso julgado, impondo-se a referida sentença decisória proferida na 1ª. ação não só dentro daquela ação, e a todos os que nela intervieram, como como também fora dela, e mais concretamente neste processo e todos os que nele intervêm.

Com a referida solução, que conduziu à absolvição da instância dos RR., ficou, assim, prejudicado o conhecimento os restantes pedidos formulados na presente ação, como concluíram as instâncias, pois que é patente, perante aquilo que se deixou exarado no Relatório, que a sua procedência, face ao ali alegado pelos AA. e ao modo como estruturaram a ação (vg. em termos de causa de pedir), dependia, desde logo, do êxito daquele primeiro pedido formulado no sentido da declaração de nulidade do contrato.


***


4. Quanto à 3ª questão.

- Da procedência da ação com fundamento no instituto jurídico do mandato sem representação.

Os recorrentes defendem ainda a revogação do acórdão de que recorrem, invocando que sempre à luz dos factos alegados a sua pretensão poderia vir obter guarida (caso prosseguisse os seus ulteriores trâmites) à luz do instituto jurídico do mandato sem representação (cfr. artºs. 1180º e 1181º do C. Civil).

Com todo o devido respeito, temos alguma dificuldade em perceber esta defesa dos recorrentes.

Sem entrarmos sequer na análise substantiva ou de mérito/fundo da questão, a pretensão recursiva dos AA./recorrentes está condenada a naufragar e pelo seguinte:

Desse logo, porque trata-se de uma questão nova que não foi submetida à apreciação do tribunal da 1ª. instância, e como tal este tribunal, e por maioria de razão o tribunal da 2ª. instância, não poderá conhecer.

Depois, porque é evidente (pela simples leitura do articulado da petição inicial, e de que no Relatório demos eco, embora em síntese, na sua essencialidade) que pelos AA. não só não foi invocado o aludido instituto como fonte ou causa do seu pedido, como muito menos foram alegados - como lhes competia (cfr. artºs. 5º, nº. 1, e 552º, nº. 1 al. d), do CPC) – os correspondentes factos essenciais (ou sequer quaisquer outros) que permitissem integrar, em termos de causa de pedir, a pretensão dos AA. naquele invocado instituto.

Improcede, assim, in totum, o recurso de revista.


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III - Decisão



Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).


***


I - Não padece do vício de nulidade, por omissão de pronúncia, o acórdão que não conheceu das demais questões suscitadas no recurso por considerar o seu conhecimento prejudicado pela solução dada a outra das questões objeto também desse recurso.

II - O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A primeira manifesta-se através de autoridade do caso julgado, visando impor os efeitos de uma primeira decisão, já transitada (fazendo valer a sua força e autoridade), enquanto a segunda manifesta-se através de exceção de caso julgado, visando impedir que uma causa já julgada, e transitada, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou a repetição de decisões, assumindo-se, assim, ambos como efeitos diversos da mesma realidade jurídica.

III - Enquanto na exceção de caso julgado se exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as ações em confronto, já na autoridade do caso julgado a coexistência dessa tríade de identidades não constitui pressuposto necessário da sua atuação.

IV - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

V - A identidade dos sujeitos deve ser aferida não em função da sua identidade física, mas do ponto de vista da sua qualidade jurídica e do interesse substantivo que representam ou são portadores, independentemente da posição ou qualidade processual que assumam ou tenham assumido nas ações em confronto.

VI - A identidade de pedidos pressupõe que em ambas as ações se pretende obter o reconhecimento do mesmo direito subjetivo, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, não sendo de exigir, porém, uma rigorosa identidade formal entre os pedidos.

VII - Sendo a causa de pedir um facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, haverá procurá-la na questão fundamental levantada nas duas ações.

VIII - No nosso ordenamento jurídico-processual, o caso julgado implícito só pode ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga.


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Lisboa, 2022/03/09


Cons. Isaías Pádua (relator)

Cons. Nuno Ataíde das Neves

Cons. Maria Clara Sottomayor