Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
784/18.0JAPRT.G1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ACTO SEXUAL DE RELEVO
ATO SEXUAL DE RELEVO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
VIOLAÇÃO
COACÇÃO GRAVE
COAÇÃO GRAVE
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
DANO
PORNOGRAFIA DE MENORES
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
MEDIDA DA PENA
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 11/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES.
Doutrina:
- EDUARDO CORREIA, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, 1996, Almedina;
- FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral – Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, tomo I, 2.ª edição, 2007, Coimbra;
- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, Novembro de 2015, p. 680;
- TERESA PIZARRO BELEZA, O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, I Volume, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996, p. 169.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 77.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-02-2019, PROCESSO N.º 234/15.3JAAVR.S1;
- DE 27-02-2019. PROCESSO N.º 2165/15.8JAPRT.P1.S1;
- DE 13-03-2019, PROCESSO N.º 3910/16.0T9PRT.P1.S1;
- DE 11-09-2019, PROCESSO N.º 1032/18.8JAPRT.S1, IN SASTJ, SECÇÕES CRIMINAIS, SETEMBRO 2019, WWW.STJ.PT.
Sumário :
I -    A aplicação do trato sucessivo quando, como sucede nos crimes de abuso sexual de menores, estão em causa bens eminentemente pessoais é pelo STJ «pelas mesmas razões por que se não aceita a configuração do crime continuado» em tais situações, sendo que no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento já sedimentado é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo.

II -    Em relação a todos os menores ofendidos, o arguido, fazendo uso da amizade que foi travando com eles, residentes na mesma urbanização onde residia, menores que conhecia há pelo menos 10 anos, e da convivência mantida com os mesmos nas imediações das respectivas habitações, começou a convidá-los para frequentarem a sua habitação, sob pretexto de utilizarem jogos de consola ou praticar actividades de musculação/ginásio, mas sempre com o intuito de praticar com eles actos de natureza sexual.

III -   Em todas as concretas situações dadas como provadas, o arguido renovou o desígnio criminoso, surgindo cada um deles de modo autónomo em relação aos propósitos criminosos anteriores, pois que em cada momento procurava e fomentava as oportunidades de contacto com os menores, o que se encontra, bem reflectido na factualidade dada como provada.

IV - Tirando proveito da confiança que o conhecimento, a convivência e a amizade que cultivava com os menores ofendidos há mais de 10 anos lhe propiciavam, o arguido praticou nas pessoas deles os actos sexuais de relevo de que os autos dão conta nos 32 episódios, o que sempre fez renovando o seu propósito criminoso, estando, assim, fora de qualquer cogitação uma qualquer ideia unificação das condutas, por trato sucessivo e, ou, por unicidade de resolução.

V -    A factualidade fixada no acórdão recorrido não é enquadrável na figura do crime de trato sucessivo, pelo que se decide manter a qualificação jurídica ali efectuada, no sentido da existência de um concurso efectivo de crimes.

VI -    As exigências de prevenção geral são muito intensas e prementes, fazendo-se sentir especialmente nos crimes de abuso sexual de crianças tendo em conta o bem jurídico violado e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do alarme social e insegurança que estes crimes causam na comunidade, justificando-se uma resposta punitiva firme, sendo igualmente fortes as necessidades de prevenção especial. O arguido já cumpriu pena de prisão pela prática de 1 crime de furto qualificado na forma tentada. Acresce que, como é referido no relatório social, o arguido, embora reconhecendo a ilicitude penal dos factos praticados, mostra dificuldade em avaliar os danos decorrentes para as vítimas, tendo tendência para atenuar a sua gravidade, sobressaindo ainda do seu percurso vivencial a inserção em contexto familiar instável e disfuncional, factores que não conseguiram promover as condições necessárias para um desenvolvimento formativo e profissional consistente e investido.

VII -  Na determinação da pena conjunta, impõe-se atender aos princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso, imbuídos da sua dimensão constitucional, pois que «[a] decisão que efectua o cúmulo jurídico de penas, tem de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação – conjunta - dos factos e da personalidade, importando, para tanto, saber […] se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese, por exemplo se foram fruto de impulso momentâneo ou actuação irreflectida, ou se de um plano previamente elaborado pelo arguido […]»

VIII -  A pena única a aplicar em cúmulo jurídico deverá englobar 13 penas de 2 anos de prisão, 19 penas de 5 anos de prisão (crimes de abuso sexual de crianças), 2 penas de 7 anos e 6 meses de prisão (crimes de violação agravada), 2 penas de 1 ano e 6 meses de prisão (crimes de coacção agravada), uma pena de 6 meses de prisão (crime de violação de domicílio), uma pena de 2 meses de prisão (crime de dano) e, finalmente, uma pena de 6 meses de prisão (crime de pornografia de menores), estando a moldura penal do cúmulo, de acordo com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP, compreendida entre o limite mínimo de 7 anos e 6 meses de prisão (pena parcelar mais elevada) e 25 anos de prisão (limite máximo legal).

IX -   No caso sub judice, a moldura penal do concurso tem uma grande amplitude, nela estando compreendidas penas singulares, na sua maioria, de equivalente dimensão, só devendo contar para a pena conjunta uma fracção menor de cada uma dessas penas, como este STJ tem considerado em contextos semelhantes, pois que, se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta – compressão e proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar no conjunto de todas elas.

X -   Tudo ponderado, valorando globalmente os factos e a personalidade do arguido, tendo presente que a pena conjunta há-de ser fixada nos limites da moldura abstracta apontada e aplicando aquela ideia de proporcionalidade e de compressão das penas em concurso, se justifique que a pena única (19 anos de prisão) fixada na decisão recorrida sofra uma correcção no sentido da sua diminuição, pelo que consideramos que uma pena conjunta de 14 anos de prisão será mais adequada e ajustada à gravidade da conduta global do arguido e satisfaz os interesses da prevenção.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



   I - RELATÓRIO.


   1. Em processo comum e perante o tribunal colectivo, o arguido AA, solteiro, nascido a …/4/1990, filho de BB e de CC, natural de …, portador do CC n.º 1…5, residente na Urbanização …, Casa …, …, … …, actualmente detido no EP …, foi condenado:

1. a) pela prática de um (1) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal; na pessoa do menor DD, a pena de 2 anos de prisão;

1. b) pela prática de cinco (5) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, na pessoa do menor DD, a pena de 5 anos de prisão, por cada um dos crimes;

2. a) pela prática de nove (9) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, na pessoa do menor EE, a pena de 5 anos de prisão, por cada um dos crimes;

2. b) pela prática de um (1) crime de coacção agravada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pessoa do menor EE, a pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

3. a) pela prática de dez (10) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa do menor FF, as penas parcelares de 2 anos de prisão, por cada um dos crimes;

3. b) pela prática de três (3) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal CP., na pessoa do menor FF, as penas parcelares de 5 anos de prisão, por cada um dos crimes;

3. c) pela prática de um (1) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a), e 177.º, n.º 7, ambos do Código Penal, na pessoa do menor FF, a pena parcelar de 7 anos e 6 meses de prisão;

3. d) pela prática de um (1) crime de coacção agravada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pessoa do menor FF, a pena parcelar de 1 ano e 6 meses de prisão;

4. a) pela prática de dois (2) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, na pessoa do menor GG, as penas parcelares de 5 anos de prisão, por cada um dos crimes;

5. a) pela prática de dois (2) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal, na pessoa do menor HH, as penas parcelares de 2 anos de prisão, por cada um dos crimes;

5. b) pela prática de um (1) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a), e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal, aqui na versão anterior à introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, na pessoa do menor HH, a pena parcelar de 7 anos e 6 meses de prisão;

6. a) pela prática de um (1) crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.os 1 e 3, por referência ao artigo 202.º, al. d), ambos do Código Penal, na pessoa do ofendido II, na pena parcelar de 6 meses de prisão;

6. b) pela prática de um (1) crime de dano, p. e p. pelo artigoº 212.º, n.º 1 do Código Penal, na pessoa do ofendido II, a pena parcelar de 2 meses de prisão;

7. a) pela prática de um (1) crime de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 5, do Código Penal, a pena parcelar de 6 meses de prisão;


    Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de dezanove (19) anos de prisão;

     Foi ainda o arguido condenado:

  - na sanção acessória de proibição do exercício de funções públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, pelo período de 15 anos;

 - na sanção acessória de proibição de assumir a confiança de menor, prevista no artigo 69.º-C, n.os 2 e 4, do Código Penal, pelo período de 15 anos;


    Relativamente aos pedidos de indemnização civil, foi julgado:

 - parcialmente procedente o pedido cível formulado por JJ e KK, na qualidade de legais representantes e em representação do menor DD, condenando o arguido no pagamento da indemnização, a título de danos não patrimoniais, no montante de € 30.000,00, e ainda a quantia de 100, 00 euros, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros legais.

  - totalmente procedente o pedido cível formulado por LL e MM, na qualidade de legais representantes e em representação do menor EE, condenando o arguido, a título de danos morais, no pagamento de indemnização no montante de € 30.000,00, e 100, 00 euros, a título de danos patrimoniais, acrescido de juros legais.

  - totalmente procedente o pedido cível formulado por NN e OO, na qualidade de legais representantes do menor e em representação do menor FF, condenado o arguido, a título de danos morais, no pagamento de indemnização no montante de € 30.000,00, e 100, 00 euros, a título de danos patrimoniais, acrescido de juros legais.

- totalmente procedente o pedido cível formulado por NN e OO, na qualidade de legais representantes do menor e em representação do menor HH, condenando o arguido, a título de danos morais, no pagamento de indemnização no montante de € 30.000,00, e 100, 00 euros, a título de danos patrimoniais, acrescido de juros legais.

 - totalmente procedente o pedido cível formulado por PP, na qualidade de representante legal e em representação do menor GG, condenando o arguido, a título de danos morais, no pagamento de indemnização no montante de € 20.000,00, acrescido de juros legais.

 - totalmente procedente o pedido cível formulado por NN, condenando o arguido a pagar-lhe a quantia de 150,00 euros, a título de danos patrimoniais e ainda a quantia de 1 000,00 Euros, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros legais.


  2. Inconformado, interpõe o arguido recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

            «[…] Conclusões [[1]]

43.

O Recorrente não concorda com a determinação do número de crimes a que foi julgado.

44.

Foi o aqui Recorrente condenado a 19 anos de prisão, pela de 38 crimes de abuso sexual.

45.

Os crimes de abuso sexual de crianças consubstanciam in casu, vários actos concatenados no tempo.

46.

A Doutrina e a Jurisprudência têm considerado tratarem-se de um único crime de trato sucessivo.

47.

Para que assim seja, é necessária uma conexão temporal entre os actos, a mesma vítima, desferindo o mesmo bem jurídico que a norma incriminadora quis acautelar.

48.

Sendo que, in casu, em cada período temporal, o aqui Recorrente atua sempre sobre a mesma vítima, afectando o mesmo bem jurídico da liberdade e autodeterminação sexual.

49.

Devendo, por isso, ser julgado por 1 crime relativo a cada menor.

50.

Para aferirmos a pena parcelar de cada crime, devemos ter em conta a conduta mais gravosa, bem como as exigências de prevenção geral, tendo em consideração a expectativa da sociedade face à norma violada; a prevenção especial, isto é, a ressocialização do agente,

51.

Nunca devendo a medida da pena ser superior a medida da culpa, nos termos do art.º 72, nº 2 do Código Penal.

52.

Para aferirmos a pena única a aplicar, devemos ter como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão

53.

E como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

54.

Na medida da pena devem ainda considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

Nestes termos e nos melhores de Direito,

- Deve o Recorrente ser punido pela prática de cinco crimes de Abuso Sexual de Crianças

- Deve, por isso, a medida concreta da pena ser revista.


3. Respondeu o Ministério Público, dizendo:

            «[…]

  O arguido discorda do número de crimes pelos quais foi condenado na pessoa de cada um dos cinco menores, pugnando pela condenação pela prática de apenas um crime, de trato sucessivo, na pessoa de cada um dos cinco menores e, em consequência na redução das penas parcelares e da pena única.

 O Douto Acórdão recorrido faz correcta interpretação e aplicação do direito aos factos constantes dos autos.

 Salvo melhor opinião somos de parecer que o recurso apresentado pelo arguido não merece provimento.

            Vejamos:

  Nos presentes autos e tal como resulta da matéria de facto dada como provada no Acórdão em apreço, que o arguido não impugna, apurou-se o numero exacto de condutas praticadas pelo arguido, afastando-se a possibilidade de aplicação do crime em trato sucessivo.

  O tribunal apreciou, devidamente, o número de actos sexuais ilícitos praticados pelo arguido na pessoa de cada um dos cinco menores identificados nos autos.

  Importa, assim, descrever a análise efectuada pelo tribunal quanto ao concurso de crimes praticados pelo arguido:                                 

   “Verifica-se uma pluralidade de infracções entre os apontados crimes praticados pelo arguido, que protegem bens jurídicos distintos e, por isso, consubstanciam um concurso efectivo de crimes – cfr. art. 30.º, n.º 1, do Código Penal.

   Diga-se que, ao contrário do que sustentou a defesa do arguido, em sede de alegações orais, não há aqui lugar à figura dos crimes prolongados ou de trato sucessivo.

  Na verdade, os crimes sexuais são muitas vezes actos isolados, fruto de circunstâncias irrepetíveis. É assim no caso de violações durante um assalto a uma residência, ou na sequência de um rapto, ou num encontro em local ermo.

 Mas, outras vezes seguem um percurso que se prolonga no tempo, isto é, em vez de um ato ou de vários actos ilícitos, há uma actividade sexual ilícita.

  É próprio da natureza humana a junção dos mesmos parceiros sexuais por períodos prolongados no tempo. O mesmo se passa, muitas vezes, nos crimes sexuais, sempre que as circunstâncias o proporcionam e a diferença entre estes e as uniões sexuais mais correntes entre as pessoas, é a circunstância de nos casos criminosos existir uma vítima, alguém a quem o agente retira [ou condiciona] a liberdade ou a autodeterminação sexual.

  Na “actividade sexual criminosa” o agente aproveita-se sexualmente de outra pessoa que é acessível ao seu contacto, por ser da família, ou do seu círculo de amizades, ou do seu local de trabalho, ou por outra circunstância similar, fazendo-o pela força, ou pela intimidação, ou pela incapacidade da vítima em se defender, por exemplo, por ser menor. Nesses casos, os crimes sexuais tendem a ter uma frequência por um período prolongado no tempo e a juntar os mesmos «parceiros», um deles vitimizado sucessivamente.

   Ora, quando os crimes sexuais são actos isolados, não é difícil saber qual o seu número.

   Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, torna-se difícil a contagem do número de actos.

   Ora, quando não é possível proceder a essa contagem do numero de actos, a doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.

  Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por actos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os actos se repetem.

   O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).

   Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.

  A este propósito e em primeiro lugar, importa sublinhar que o agente comete tantos crimes de violação e abusos sexuais de crianças quantas as pessoas que constranger a sofrer ou a praticar o acto sexual, atenta a natureza pessoalíssima do bem jurídico protegido – Cfr., Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., pág. 513.

  Por outro lado, existe unidade típica de infracções sempre que o agente, num comportamento unitário, num mesmo contexto espácio-temporal e no quadro de uma mesma resolução, constrange a mesma vítima, à prática de vários actos sexuais de cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de objectos ou partes do corpo.

   Sendo os vários actos praticados, ainda que pela mesma vítima, em contextos espácio-temporais distintos, existirá pluralidade de crimes, na forma de concurso efectiva, desde logo por força do disposto no art.º 30.º, n.º 3, do Código Penal – Cfr., Figueiredo Dias, op. cit., págs. 731 e 753, Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., págs. 513 e 514.

   No caso dos autos, relativamente a cada um dos menores, foi possível contabilizar cada um dos actos praticados pelo arguido, relativamente a cada tipo legal de crime, pelo que não há lugar à aplicação desta figura, verifica-se uma pluralidade de infracções entre os apontados crimes praticados pelo arguido, que protegem bens jurídicos distintos, estão em causa diferentes vítimas e, por isso, consubstanciam um concurso efectivo de crimes.”

   Como bem refere o tribunal, nos termos da matéria de facto dada como provada, o arguido praticou em ocasiões distintas, em contextos espácio-temporais distintos, actos sexuais ilícitos na pessoa de cada um dos menores, existindo pluralidade de crimes, na forma de concurso efectivo, desde logo por força do disposto no art.º 30.º, n.º 3, do Código Penal.

      No entanto sempre se dirá que a Jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo em sentido negativo quanto à questão atinente à unificação num só crime de trato sucessivo de uma pluralidade de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, cometidos durante determinado lapso de tempo contra a mesma vítima.

      No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.2016 in www.dgsi.pt que cita outros arestos de 2014 e 2015 do mesmo Tribunal e ainda o voto de vencido do Acórdão de 29.11.2012, o “crime de trato sucessivo” corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” (Figueiredo Dias, ob. cit. supra, 11/ § 55).

     Um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal - art. 29.º, n.º 1, da CRP-, do tipo legal de crime previsto na legislação e nenhum crime sexual é previsto na legislação como crime habitual – sendo exemplo de um crime habitual expressamente previsto no Código Penal o crime de lenocínio.

     Salvo o devido respeito por opinião contrária, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos artºs 171º e 164º do Código Penal.

      Assim, caberá fazer a prova do maior número possível de actos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura (em sentido idêntico, Roxin, Derecho Penal. Parte General, t. II, Civitas, 2014, §33, nm. 269).

   Também como referido no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.05.2019, in www.dgsi.pt:

   “ … pressupondo o denominado crime de “trato sucessivo” [para além da reiteração de uma actividade ilícita, que poderá consumar-se em um ou mais actos, dos quais um só deles basta para preencher o respectivo tipo legal (como, no exemplo mais comum, acontece com o crime de tráfico de estupefacientes), desenvolvida de forma essencialmente homogénea e durante um certo lapso temporal] unidade de resolução (que não única resolução), vem entendendo a jurisprudência deste Supremo Tribunal que, tratando-se de crimes de abuso sexual de crianças, a aludida unidade resolutiva não se verifica.

    E não se verifica porque, para tanto, seria indispensável a ocorrência, entre o mais, de uma conexão temporal que permitisse admitir que o agente executou toda a actividade criminosa no quadro de um dolo inicial que, por não ter sido renovado, é comum a todos os actos ilícitos. Situação que, por regra e de acordo com os dados da experiência, maxime emocional, não acontece num caso com as especificidades do que se encontra em apreciação. 

   E depois porque a prática reiterada de actos ilícitos integradores dos mencionados crimes de abuso sexual de crianças, não derivando decididamente de uma situação exógena ao agente e facilitadora do seu sucumbir criminoso, mas antes só podendo ter sido provocada, buscada, e delineada pelo mesmo agente, nunca terá como efeito a diminuição da sua culpa, mas antes a sua agravação …(…)

   E ainda porque − se com a alteração introduzida ao artigo 30.º do Código Penal pela Lei n.º 40/2010, de 03.09 (que lhe aditou o referido número 3) teve o legislador em vista apartar a possibilidade de a pluralidade de crimes contra bens eminentemente pessoais ser punida como um só crime continuado – mal se compreenderia que, por via de uma ficção do julgador quanto à existência de um dolo inicial único não renovado abrangendo todas as actuações ilícitas sucessivamente tidas pelo agente, se viabilizasse a sua punição por apenas um crime de trato sucessivo, assim se defraudando o propósito do legislador.”

   Pelo que, decidiu bem o tribunal ao condenar o arguido pela prática do número de crimes correspondentes aos factos concretamente praticados pelo arguido nas ocasiões distintas assinaladas na matéria de facto dada como provada.

      Em face do exposto não merece censura o Acórdão em apreço.

     Nos termos do art.º 71º, nº 2, do Código Penal o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, militem a favor ou contra o agente.

   O Tribunal expôs de modo claro e explícito as circunstâncias agravantes, as exigências de prevenção geral e as exigências de prevenção especial que aqui se dão por reproduzidas.

     Conforme Doutrina e Jurisprudência dominante e recente importa realçar que estando em causa valores tão elementares como a liberdade e autodeterminação sexual, as consequências que a conduta do arguido teve quer a nível físico quer psicológico e terá na formação e desenvolvimento da sexualidade dos menores ofendidos e das características das suas personalidades - impõe-se a necessidade de dar um sinal claro à comunidade – que tem um sentimento de grande repulsa pelos crimes contra a autodeterminação sexual exigindo uma punição exemplar dos mesmos - de que tais valores devem ser superiormente protegidos e valorizados.

     Pelo que, em face do exposto e atento todo o circunstancialismo em que ocorreram os factos praticados pelo arguido e à moldura abstracta prevista para cada um dos crimes imputados ao arguido, as penas parcelares e a pena única fixadas não merecem censura, mostrando-se na sua dosimetria adequadas à personalidade do arguido, à gravidade da culpa e da ilicitude da sua conduta, bem como às circunstâncias e gravidade dos crimes, oferecendo garantias de promoção da necessária prevenção geral e especial.

    Não foram violadas quaisquer normas jurídicas nem violado qualquer princípio constitucional.

   O recurso apresentado pelo arguido recorrente deverá ser julgado improcedente.»


    Os menores DD, EE e HH, assistentes, responderam ao recurso pugnando, igualmente, pela sua improcedência.


   4. Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer que, omitindo-se o respectivo relatório, se transcreve:

            «[…]

  III. Do parecer do Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça.


6. Nos termos dos art.os 402º, 403º e 412º n.º 1 do CPP, são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo do conhecimento das questões oficiosas.


Revista a decisão de facto constante do douto Acórdão Recorrido, nela não se descortinam vícios dos previstos no art.º 410º n.º 2 do CPP, nem nulidade insanada de que cumpra conhecer – n.º 3 do preceito –, considerando-se a mesma definitivamente fixada.


As questões a dirimir no recurso são, assim, as extractadas em 3. supra, a saber, as do erro na subsunção normativa relativa ao crime de abuso sexual de crianças, e do excesso da medida concreta da pena.

Sendo que, quanto a tudo o mais, o Recorrente aceitou expressamente o julgado, deixando, mesmo, exarado em III. da motivação que «não rebate a qualificação típica dos factos, nem a opção pela prisão enquanto pena principal».


Não tendo sido requerida a realização de audiência, nem sendo caso de renovação de prova – art.º 419º n.º 3 al.ª c) do CPP –, haverá, assim, o recurso de ser julgado em conferência.


7. Cumprindo, então, tomar posição, diz-se já que, também, o Ministério Público neste STJ é pela total improcedência do recurso.

Pelas seguintes – tão breves quanto possível – razões.

a. Erro na subsunção normativa do crime abuso sexual de crianças – a figura do trato sucessivo.


8. Sustenta, então, o Recorrente que só deveria ter sido – só deverá ser – condenado por cinco crimes de abuso sexual de crianças, um por cada dos menores ofendidos, por os seis episódios que envolveram o DD, os nove que envolveram o EE, os 13 que envolveram o FF, os dois que envolveram o GG e os dois que envolveram o HH, haverem de ser unificados por via da figuração do crime de trato sucessivo.

Mas, salvo o devido respeito, sem razão.

Na verdade:


Não se desconhece que alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça – e alguma doutrina – teorizou sobre a figuração do denominado crime de trato sucessivo em matéria de crimes sexuais praticados por actos reiterados na pessoa da mesma vítima, disso constituindo exemplo, precisamente, o douto acórdão de 29.11.2012 - Proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1 com que o Recorrente ilustra a sua motivação, ou, v. g., o de 23.1.2008 - Proc. n.º 07P4830, também disponível em www.dgsi.pt.

Mas também não se desconhece que, como afirmado no recente acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 22.3.2018 - Proc. n.º 467/16.5PALSB.L1-S1 - 5ª Secção, in www.dgsi.pt, tal entendimento vem perdendo progressivamente seguidores, podendo-se dizer que «[a] jurisprudência do STJ […] é presentemente praticamente unânime, ao afastar a figura de «trato sucessivo» dos casos de crimes contra a autodeterminação sexual do art. 171.º e 172.º, ambos do CP».

E as razões para a rejeição são as enunciadas nos numerosos arestos que se pronunciaram sobre o ponto, entre os quais, e para além do de 23.5.2019 - Proc. n.º 134/17.2JAAVR.S1 citado na douta contramotivação do Ministério Público, se recenseiam, entre os mais recentes, os seguintes:

Acórdão de 22.3.2018, referido:

«II - O crime de «trato sucessivo» trata-se de uma criação da doutrina e também da jurisprudência, fundamentalmente para abarcar as situações de reiteração de crimes iguais ou próximos, em que se não pode falar de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art. 30.º, n.º 2, do CP). No art. 119.º, n.º 2, al. b), do CP alude-se aos "crimes habituais" e, ao nível processual, o art. 19.º, n.º 3, do CPP, ao falar de crime que se consuma por actos reiterados, pode estar a referir-se não só ao crime continuado como ao crime habitual. Assim a designação de «crime habitual» será preferível a «crime de unidade de valoração», «de trato sucessivo» ou de «actividade» ou «exaurido».

III - No crime habitual a consumação prolonga-se no tempo por força de uma multiplicidade de actos reiterados, sendo cada um estritamente unitário. Certo que a reiteração se analisa numa pluralidade de actos homogéneos intervalados temporalmente. Ao contrário do crime permanente a persistência no tempo da consumação não decorre de um só acto mas de uma pluralidade deles, e ao invés do crime contínuo os actos reiterados não são seguidos.

IV - A redacção dos arts. 171.º e 172.º, ambos do CP, não revela nada de que se possa retirar que se está perante um crime habitual. Caracterizar o comportamento delituoso como uma unidade criminosa, contraria a configuração que o tipo assumiu entre nós. Este não engloba, logo à partida, tanto a prática de um, como de mais actos criminosos. Mas além disso, essa seria uma postura que iria contra a vontade do legislador, claramente patente na nova redacção do art. 30.º, n.º 3, do CP» [2].

Acórdão de 12.4.2018 - Proc. n.º 104/17.0JACBR.S1 - 5.ª Secção:

«II - A figura do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência cometido em trato sucessivo, tem sido admitida por alguma jurisprudência, mormente deste STJ, mediante uma tese, de cunho pragmático, que visa dar resposta a situações de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual que assim caracteriza pela sua repetição, temporalmente indefinidas e unificadas por uma mesma resolução criminosa e proximidade temporal e cuja reiteração encerra uma culpa agravada.

III - A posição que a rejeita, hoje maioritária no STJ, considera que a estrutura típica desses tipos de ilícito não pressupõe tal reiteração, com eles se não pretendendo punir uma actividade, pelo que, no caso de violação plúrima do mesmo tipo legal de crime, a condenação reporta-se à pluralidade de crimes, a punir com referência às regras do concurso, em ordem ao disposto no n.º 1 do art. 30.º do CP.

IV - Considerando que, com alguma indefinição, ainda assim o tribunal recorrido apurou um total de 20 infracções cometidas, sendo que a resolução criminosa com que o arguido se determinou está longe de ser a "mesma", isto é, de estar unificada, cada um dos actos foi comandado por diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido, qual fosse, a liberdade sexual do ofendido incapaz de resistência, pelo que, embora haja uma homogeneidade de condutas, violadoras do mesmo bem jurídico, forçoso é concluir que, há uma pluralidade de resoluções criminosas, a corresponder a 20 crimes autónomos de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, cometidos em concurso real (art. 30.º, n.º 1, do CP), que não em "trato sucessivo"» [3].

Acórdão de 21.2.2018 - Proc. n.º 1548/16.0JAPRT.P1.S1 - 3.ª secção:

«I - Tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela multiplicidade de actos semelhantes que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.

II - Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível».

Acórdão de 3.11.2016 - Proc. n.º 353/15.6PAVPV.S1 - 5.ª Secção:

«II - No que diz respeito aos crimes sexuais, alguma jurisprudência convoca a figura do crime de trato sucessivo, estando porém tal longe de ser pacífico. A 1.ª tese, de cunho pragmático, visa dar resposta a situações de abuso sexual de crianças ou de menores dependentes caracterizadas pela sua repetição, muitas das vezes temporalmente indefinidas, e unificadas por uma mesma resolução criminosa e proximidade temporal e cuja reiteração encerra uma culpa agravada. A 2.ª tese considera que a estrutura típica desses tipos de ilícito não pressupõem tal reiteração, com eles se não pretendendo punir uma actividade, pelo que, no caso de violação plúrima do mesmo tipo legal de crime, a condenação reporta-se à pluralidade de crimes a punir com referência às regras do concurso, em ordem ao disposto no n.º 1 do art. 30.º do CP.

III - Independentemente da pureza do carácter extremado dessas posições, no caso o arguido não levou a cabo o seu propósito criminoso no quadro de uma mesma resolução criminosa ou dolo inicial, tendo renovado o processo de motivação, o seu propósito lascivo, de forma autónoma e pensada. Pelo que cometeu, a par de 2 crimes de devassa da vida privada do art. 192.º, n.º 1, al. b), do CP, na pessoa das menores X e Y, relativamente à 1.ª ofendida 2 outros crimes de abuso sexual de crianças agravado dos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP e quanto à 2.ª ofendida, 9 crimes de abuso sexual de menor dependente do art. 172.º, n.º 1, do CP, todos em relação de concurso real» [4]

Acórdão de 30.11.2016 - Proc. n.º 444/15.3JAPRT.G1.S1 - 3.ª secção:

«I - Os crimes de trato sucessivo correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediando intervalos entre eles.

II - Alguma jurisprudência do STJ tem vindo a enquadrar as condutas de abuso sexual de crianças na figura do crime único de trato sucessivo. Porém, a maioria da jurisprudência do STJ é no sentido de que, no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes.

III - Considera a referida jurisprudência maioritária, que a estrutura típica do crime de abuso sexual de crianças não pressupõe tal reiteração, isto é, não se pretende com o mesmo punir uma actividade, pelo que não lhe é aplicável a figura do crime de trato sucessivo.

IV - A eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, no âmbito do tipo penal de abuso sexual de crianças, poderia redundar num resultado que o legislador claramente quis afastar – ainda que por referência à figura do crime continuado – com a alteração ao n.º 3 do art. 30.º do CP realizada pela Lei 40/2010, de 03-09, que exclui expressamente a admissibilidade da possibilidade de unificação de uma pluralidade de condutas na figura do crime continuado, quando estejam em causa bens eminentemente pessoais» [5].


Ora, no caso, ficou assente que o Recorrente, tirando proveito da confiança que o conhecimento, a convivência e a amizade que cultivava com os menores ofendidos há mais de dez anos lhe propiciavam, praticou nas pessoas deles os actos sexuais de relevo de que os autos dão conta nos 32 episódios referidos em 9. supra, o que sempre fez renovando o seu propósito criminoso, como os factos provados dos n.º 5, 9, 14, 16, 20, 23 e 25 inequivocamente demonstram.

E assim tendo sido, como foi, está fora de qualquer cogitação uma qualquer ideia unificação das condutas, por trato sucessivo e, ou, por unicidade de resolução, a que, repete-se, os factos assentes não dão qualquer apoio.


Não podendo, por tudo, deixar de ter cometido os trinta e dois crimes de abuso sexual de crianças por que foi condenado em concurso real e efectivo, nenhuma censura merece, no ponto, o Acórdão Recorrido.

Motivos por que – e ainda pelo que, no mais, consta da douta contramotivação da Exma. Procuradora da República de Guimarães, que genericamente se acompanha, e da própria fundamentação do douto Acórdão Recorrido, a que se adere – deve o recurso improceder nesta parte.  

b. Medida concreta da(s) pena(s).

9. Já se viu que, tirando a questão da qualificação jurídica dos factos relativos ao crime de abuso sexual de crianças, o Recorrente nada objecta ao decidido – é dizer quanto a procedência da acusação/pronúncia no tocante aos dois crimes de coacção agravada (penas de 1 ano e 6 meses de prisão), dois de violação agravada (penas de 7 anos e 6 meses de prisão), um de violação de domicílio (6 meses de prisão), um de dano (pena de 2 meses de prisão), um de pornografia infantil (pena 6 meses de prisão) e à imposição das duas penas acessórias –, esclarecendo, mesmo, que «não rebate a qualificação típica dos factos, nem a opção pela prisão enquanto pena principal».

E viu-se também que faz repousar a pretensão de ver mitigadas as penas – as (parcelares) pelos crimes abuso sexual de crianças por via, pelo menos, da redução do seu número de cinco; a conjunta, por via, se não do abaixamento do limite superior da moldura do concurso (art.º 77º n.º 2 do CP) que mesmo na tese do recurso, não se concebe como pudesse aquém do (máximo) de 25 anos, pelo menos, da diminuição da ilicitude global do conjunto dos factos – nessa mesma (re)qualificação.

Mas, como acaba de se ver, as objecções quanto a tal questão não podem proceder, havendo o Acórdão Recorrido de ser mantido nos seus precisos termos.

E haverá de sê-lo nessa parte e em tudo o mais – inclusivamente, no respeitante às demais incriminações e penas parcelares, bem como à pena conjunta de 19 anos de prisão e sanções acessórias de proibição do exercício de funções publicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 15 anos e de proibição de assumir a confiança de menor pelo período de 15 anos –, que tudo se mostra conforme aos dados de facto adquiridos no procedimento e aos critérios de escolha e de medida da pena estabelecidos nos art.os 40º, 70º, 71º e 77º do CP, como tudo melhor resulta da fundamentação do douto Acórdão Recorrido.

Fundamentação a que apenas se acrescentará – porventura desnecessariamente – que a (significativa) frequência – nada mais, nada menos do que 34 crimes – a (grande) homogeneidade – todos contra menores e de cariz homossexual – e o seu (considerável) prolongamento no tempo – por cerca de seis anos, de 2012 a 2018 –, inculcam, em termos da pertinência da globalidade dos factos a personalidade unitária do arguido uma clara ideia de tendência, a reclamar decidida contramotivação e correcção por via da pena que bem justifica os 19 anos de prisão conjunta.


Tudo motivos por que, também aqui, o Ministério Público é pela improcedência do recurso.


IV. Conclusão-parecer.

10. Razões por que, todas elas, finalizando, se conclui com pronúncia pelo não provimento do recurso, com confirmação integral do Acórdão Recorrido.»



5. Na sequência do cumprimento do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, o arguido, reiterando que «o presente recurso tem como objecto a quantificação dos crimes de que o Recorrente vem condenado», insiste em que «a cada um dos crimes perpetrados pelo Recorrente, correspondem a uma conduta ilícita, isto é, prolongada no tempo e a que não corresponde um ato único» e, «por não haver sob cada menor, multiplicação do processo volitivo, consideramos estar perante a figura do Crime de trato Sucessivo».


6. Colhidos os vistos e realizada a conferência, já que não foi requerido o julgamento do recurso em audiência [cfr. artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP], cumpre apreciar e decidir.



II – FUNDAMENTAÇÃO


    1. O tribunal colectivo considerou os seguintes factos provados

      «Factos provados oriundos da acusação:


1.º


            O arguido AA habitava, até à sua detenção no dia 26/3/2018 à ordem destes autos, na Urbanização …, n.º …, …, …, desde há já pelo menos 10 anos a esta parte, tendo entretanto estado emigrado em …, em data e período não concretamente apurada do ano de 2016, bem como cumpriu pena de 6 meses de prisão, entre 27/2/2017 e 27/8/2017, no âmbito do proc. 397/12.0G…, que correu termos no JL Criminal de … – J…, sendo que, após o cumprimento de tal pena, o arguido regressou àquela habitação.

2.º


Desde que passou a ali residir, o arguido sempre foi travando amizade com crianças do sexo masculino, que conhecia desde sempre, desde há pelo menos 10 anos portanto, e residentes naquela mesma urbanização, nomeadamente:

a) DD, nascido a …/5/2003, residente na Urbanização …, Casa …, …, …;

b) EE, nascido a …/4/2005, residente na Urbanização …, Casa …, …, …

c) FF, nascido a …/11/2004, residente na Urbanização …, Casa …, …, …;

d) GG, nascido a …/9/2003, residente na Urbanização …, Casa …, …, …;

e) HH, nascido a …/8/2001, em tempos residente na Urbanização …, Casa …, …, ….



3.º


Assim, depois de travar conhecimento com aqueles menores, desde a infância destes, convivendo com os mesmos nas imediações das habitações, especialmente quando os mesmos atingiam cerca de 9 a 11 anos de idade, o arguido começou a convidá-los para frequentarem a sua habitação, sempre com o intuito de praticar com eles diversos actos de natureza sexual que infra melhor se descreverão, conseguindo convencê-los a deslocar-se à sua habitação a pretexto de utilizarem jogos de consola ou praticar actividades de musculação/ginásio.

Deste modo,


4.º


Em data não concretamente apurada do ano de 2012, mas sempre entre os meses de Junho e Setembro, quando DD tinha 9 anos de idade, o arguido, pelo menos em 5 diferentes ocasiões, deslocou-se à habitação daquele menor, perguntou-lhe se o mesmo queria experimentar jogos de computador, ao que o mesmo acedeu, e, já no interior da habitação do arguido,


a) Numa primeira vez, estando o menor no quarto do arguido a jogar computador, este colocou a sua mão primeiro por fora e depois no interior das calças e roupa interior do menor, e apalpou directamente com a sua mão e friccionou o pénis do menor, bem como acariciou o rabo do menor junto ao ânus, tirando-o da cadeira em que o mesmo estava sentado, e sentou-o depois no seu colo, sendo que depois o arguido despiu as suas próprias calças e cuecas e pediu ao menor para que o masturbasse, ao que o mesmo acedeu, friccionando este o seu pénis erecto, em movimentos contínuos, até que o arguido ejaculou;


b) Depois, ainda durante aquele período, e pelo menos em 5 ocasiões diferentes, o arguido, encontrando-se com o menor, quer no seu quarto quer na sala da sua habitação, sentou o menor no seu colo, colocou a sua mão no interior das calças e roupa interior que o mesmo usava, e apalpou directamente com a sua mão e friccionou o pénis do menor, bem como acariciou o rabo do menor junto ao ânus, depois tirou-lhe toda a sua roupa e despiu ele próprio as suas calças e cuecas, exibindo e ficando com o seu pénis erecto, e depois virou o menor de costas para si e introduziu o seu pénis por várias vezes e em movimentos contínuos no ânus do menor, e depois voltava o menor de frente para si ejaculando depois sobre a barriga deste,


Sendo que, em todas essas ocasiões, o arguido nunca usou preservativo e ejaculava sempre então sobre o corpo do menor, e além das dores que tal comportamento causava ao menor, este sofreu ainda incontinência fecal.


5.º


O arguido agiu da forma supra descrita com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais e libidinosos, o que representou e conseguiu, e com perfeito conhecimento da idade do menor acima indicado aquando da prática dos factos, o que não podia ignorar por já conviver com o mesmo há já vários anos, bem sabendo que o mesmo, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a tomar qualquer decisão, livre e pessoal, quanto à prática de qualquer acto de natureza sexual como aqueles que praticou sobre o mesmo e ainda de que com a sua conduta prejudicava o livre e são desenvolvimento da sua personalidade, aproveitando-se ainda da relação de confiança que mantinha com o menor e bem assim da sua tenra idade e consequente ingenuidade e fragilidade.

6.º


Em data não concretamente apurada dos anos de 2016 e 2017, quando EE tinha 10 a 11 anos de idade, o arguido, depois de aliciar o menor a deslocar-se até à sua habitação, pelo menos em cerca de 8 ocasiões diferentes, estando ambos no quarto do arguido, colocou a sua mão no interior das calças e roupa interior do menor, e apalpou e friccionou o pénis do menor, depois retirava toda a roupa do menor e colocava a sua boca no pénis do menor efectuando movimentos contínuos sobre o mesmo, e depois despia as suas próprias calças e cuecas, exibindo e ficando com o seu pénis erecto diante do menor, solicitando-lhe depois que o mesmo lhe efectuasse sexo oral ao que mesmo negava, e depois voltava o menor de costas para si e introduziu o seu pénis por várias vezes e em movimentos contínuos no ânus do menor, ejaculando ainda no interior do ânus do menor, sem nunca usar preservativo.

7.º


Em data não concretamente apurada do mês de Fevereiro de 2018, numa sexta-feira, encontrando-se o menor EE na habitação e na companhia do menor FF, surgiu ali o arguido, começando a bater à porta, sendo que, como aqueles se recusassem a abrir, logo o arguido disse “mando a porta abaixo”, e então aqueles, com receio, abriram a porta, sentando-se depois o arguido no sofá.

8.º


E, aproveitando a circunstância do menor FF se ter ausentado momentaneamente, o arguido, baixa as calças e cuecas do menor EE, colocou a sua boca no pénis do menor efectuando movimentos contínuos sobre o mesmo, despiu depois as suas calças e cuecas exibindo depois o seu pénis erecto ao menor e voltou-o de costas para e, com o seu pénis erecto, introduziu-o no ânus do menor, friccionando aí o seu pénis em movimentos contínuos, ao mesmo tempo que lhe dizia para que estivesse quieto, até que ali surge novamente FF, que fez com que o arguido parasse com tal comportamento, empurrando-o.

9.º


O arguido agiu da forma supra descrita com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais e libidinosos, o que representou e conseguiu, e com perfeito conhecimento da idade do menor acima indicado aquando da prática dos factos, o que não podia ignorar por já conviver com o mesmo há já vários anos, bem sabendo que o mesmo, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a tomar qualquer decisão, livre e pessoal, quanto à prática de qualquer acto de natureza sexual como aqueles que praticou sobre o mesmo e ainda de que com a sua conduta prejudicava o livre e são desenvolvimento da sua personalidade, aproveitando-se ainda da relação de confiança que mantinha com o menor e bem assim da sua tenra idade e consequente ingenuidade e fragilidade.

10.º


Ademais, no fim de cada um daqueles episódios, o arguido advertia depois o menor que não poderia contar a ninguém o que aquele lhe fazia, fazendo-o crer que caso o fizesse iria ter com o mesmo à escola que frequentava e que o agredia, dizendo em tom sério e ameaçador “eu vou ter contigo à escola e bato-te”, actuando assim o arguido deliberada, livre e conscientemente, no intuito concretizado de inquietar e amedrontar o menor EE, pessoa que sabia particularmente indefesa em razão da idade para lhe opor resistência, para assim poder continuar a praticar sobre o mesmo aqueles actos sexuais em ocasiões posteriores, fazendo-o crer caso contasse a alguém atentaria contra a sua integridade física, sabendo que tal expressão era adequada e idónea a obter tal resultado, como fez, sabendo ainda do carácter proibido e criminalmente punível da sua conduta e ainda assim não deixou de a realizar.

11.º


Em data não concretamente apurada, entre os anos de 2014 e 2016 mas sempre quando FF tinha 10 a 11 anos de idade, o arguido, pelo menos em 10 ocasiões diferentes, depois de convidar o menor a deslocar-se à sua habitação para experimentar jogos de computador, ao que o mesmo acedeu, e, já no interior do quarto da habitação do arguido, este colocou a sua mão primeiro por fora e depois no interior das calças e roupa interior do menor, e apalpou directamente com a sua mão e friccionou o pénis do menor.

12.º


E ainda durante aquele mesmo período temporal, mas sempre depois e além daquelas 10 ocasiões supra referidas, por 2 vezes o arguido convidou novamente o menor FF a deslocar-se à sua habitação sob aquele mesmo pretexto, ao que o mesmo acedeu, e, já no interior do quarto da habitação do arguido, este despiu as calças e cuecas do menor, até aos tornozelos, colocou a sua boca no pénis do menor efectuando movimentos contínuos sobre o mesmo, e depois atirou-o para cima da cama, ficando o menor de costas para si, e, com o seu pénis erecto, introduziu-o no ânus do menor, friccionando aí o seu pénis, até ejacular depois sobre as suas costas, não usando preservativo, bem como lhe mostrou diversas fotografias de menores totalmente despidos que tinha no seu telemóvel e ainda fotografias do pénis do próprio FF que havia tirado noutras ocasiões, sendo que, antes do menor ir embora, ainda lhe dizia: se disseres isto a alguém tu vais ver,

13.º


Acresce ainda que, numa tarde dum dia não concretamente apurado do ano de 2017, mas sempre posterior a 27/8/2017, quando o menor FF regressava à sua habitação, o arguido abordou-o e convenceu-o a ir até uma bouça adjacente àquela urbanização, sob o pretexto de fumar tabaco e, ali chegados, colocou a sua mão primeiro por fora e depois no interior das calças e roupa interior do menor, e apalpou directamente com a sua mão e friccionou o pénis do menor, depois despiu-lhe as calças e cuecas, até aos tornozelos, colocou a sua boca no pénis do menor efectuando movimentos contínuos sobre o mesmo, e depois voltou o menor de costas para si e, com o seu pénis erecto, introduziu-o no ânus do menor, friccionando aí o seu pénis, até ejacular depois sobre as suas costas, não usando preservativo.

14.º


O arguido agiu da forma supra descrita com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais e libidinosos, o que representou e conseguiu, e com perfeito conhecimento da idade do menor acima indicado aquando da prática dos factos, o que não podia ignorar por já conviver com o mesmo há já vários anos, bem sabendo que o mesmo, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a tomar qualquer decisão, livre e pessoal, quanto à prática de qualquer acto de natureza sexual como aqueles que praticou sobre o mesmo e ainda de que com a sua conduta prejudicava o livre e são desenvolvimento da sua personalidade, aproveitando-se ainda da relação de confiança que mantinha com o menor e bem assim da sua tenra idade e consequente ingenuidade e fragilidade.

15.º


Em data não concretamente apurada do mês de Fevereiro de 2018, como referido em 7.º e 8.º, quando FF surpreendeu o arguido a manter coito anal com EE, aquele menor ainda empurrou o arguido para que o mesmo cessasse com tal comportamento, sendo que, o arguido, usando a sua força física, logo agarrou FF pelo pescoço, impedindo-o que pudesse mexer-se, virou-o de costas para si, despiu-lhe as calças e as cuecas que o mesmo usava e introduziu o seu pénis erecto no ânus do menor, em movimentos contínuos, até ejacular depois sobre as suas costas, dizendo-lhe depois que caso viesse a contar o sucedido, que lhe batia.

16.º


O arguido agiu deliberada livre e conscientemente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais mediante o uso da força física, bem sabendo que o menor FF tinha menos de 14 anos de idade, que actuava sem o seu consentimento e contra a vontade deste e que a sua conduta era proibida e criminalmente punível.

17.º


E, ao dirigir ao menor FF as expressões referidas em 12.º e 15.º, actuou também o arguido deliberada, livre e conscientemente, no intuito concretizado de inquietar e amedrontar o menor FF, pessoa que sabia particularmente indefesa em razão da idade para lhe opor resistência, para assim poder continuar a praticar sobre o mesmo aqueles actos sexuais em ocasiões posteriores, fazendo-o crer caso contasse a alguém atentaria contra a sua integridade física, sabendo que tal expressão era adequada e idónea a obter tal resultado, como fez, sabendo ainda do carácter proibido e criminalmente punível da sua conduta e ainda assim não deixou de a realizar.

18.º


Em data não concretamente apurada do ano de 2016, quando GG tinha 12 anos de idade, o arguido, depois de lhe perguntar se o mesmo queria experimentar jogos de computador, ao que o mesmo acedeu, deslocando-se o menor depois à habitação do arguido, e estando ambos no quarto, tirou-lhe as suas calças e os boxers e começou a friccionar o seu pénis, e de seguida ainda se colocou agachado diante do menor e colocou a sua boca no pénis do menor efectuando movimentos contínuos.

19.º


E, numa outra ocasião, naquele mesmo período, encontrando-se ambos na sala da habitação do arguido, este despiu as calças e cuecas do menor e apalpou e friccionou o seu pénis, voltou o menor de costas para si, e, com o seu pénis erecto, introduziu-o no ânus do menor, friccionando aí o seu pénis em movimentos contínuos, retirando o seu pénis instantes depois, após o menor lhe fazer saber que estava a causar-lhe dores.

20.º


O arguido agiu da forma supra descrita com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais e libidinosos, o que representou e conseguiu, e com perfeito conhecimento da idade do menor acima indicado aquando da prática dos factos, o que não podia ignorar por já conviver com o mesmo há já vários anos, bem sabendo que o mesmo, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a tomar qualquer decisão, livre e pessoal, quanto à prática de qualquer acto de natureza sexual como aqueles que praticou sobre o mesmo e ainda de que com a sua conduta prejudicava o livre e são desenvolvimento da sua personalidade, aproveitando-se ainda da relação de confiança que mantinha com o menor e bem assim da sua tenra idade e consequente ingenuidade e fragilidade.

21.º


Em data não concretamente apurada dos anos de 2013 e 2014, quando HH tinha 12 a 13 anos de idade, o arguido, depois de convidar aquele menor para se deslocar à sua habitação a fim experimentar jogos de computador, já na sala da sua habitação, enquanto o menor estava a jogar computador sentado ao seu lado, o arguido colocou a sua mão sobre o pénis do menor, por cima da roupa que o mesmo usava, e acariciou-o, sendo que aquele de imediato se levantou e saiu dali,

22.º


E, numa outra ocasião, quando ambos se encontravam no quarto do arguido, este colocou a sua mão por dentro das calças e roupa interior que o menor usava e apalpou e friccionou o pénis do menor, sendo que aquele de imediato se levantou para sair dali.

23.º


O arguido agiu da forma supra descrita com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais e libidinosos, o que representou e conseguiu, e com perfeito conhecimento da idade do menor acima indicado aquando da prática dos factos, o que não podia ignorar por já conviver com o mesmo há já algum tempo, bem sabendo que o mesmo, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a tomar qualquer decisão, livre e pessoal, quanto à prática de qualquer acto de natureza sexual como aqueles que praticou sobre o mesmo e ainda de que com a sua conduta prejudicava o livre e são desenvolvimento da sua personalidade, aproveitando-se ainda da relação de confiança que mantinha com o menor e bem assim da sua tenra idade e consequente ingenuidade e fragilidade.

24.º


Posteriormente, numa outra ocasião, mas sempre durante aquele mesmo período, encontrando-se ambos na habitação do arguido, este, usando a sua força física, baixou as calças e as cuecas do menor HH, agarrou ambos os seus braços colocando-os atrás das costas, impedindo-o que pudesse mexer-se, e, depois de baixar as suas próprias calças e cuecas, introduziu o seu pénis erecto no ânus do menor, friccionando-o em movimentos contínuos, sendo que, como o menor lhe fizesse saber que estava a causar-lhe dores, o arguido acabou por retirar o seu pénis e depois solicitou ao menor que colocasse a sua boca no seu pénis, sendo que o menor não o fez porque entretanto bateram à porta da habitação e HH aproveitou assim para se ausentar dali.

25.º


O arguido agiu deliberada livre e conscientemente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais mediante o uso da força física, bem sabendo que o menor HH tinha menos de 14 anos de idade, que actuava sem o seu consentimento e contra a vontade deste e que a sua conduta era proibida e criminalmente punível.

26.º


No dia 16/3/2018, pelas 2h da madrugada, o arguido, sem autorização de II, pai do menor FF, ou de quem quer que ali residisse, abeirou-se da habitação daquele, sita na Urbanização …, n.º …, …, …, e aí chegado, abriu o portão que dá acesso ao logradouro da residência e depois, por meio não concretamente apurado, estroncou a fechadura da porta daquela habitação, ficando depois a mesma totalmente franqueada, e acedeu ao interior da habitação, questionando depois aquele II se o menor se encontrava ali e, como obtivesse resposta negativa, abandonou depois o local, ficando a porta aberta, por ter ficado com fechadura estroncada e inutilizada.

27.º


Ao actuar da forma supra descrita, o arguido fê-lo de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que entrou na habitação do ofendido II, de noite, sem a sua autorização, e quando o mesmo se encontrava já a dormir, mais actuando com intenção de provocar aqueles danos naquela porta, danificando-a, como danificou, provocando danos de valor não concretamente apurado, apesar de saber que a mesma não lhe pertencia e que estava a actuar contra a vontade do seu proprietário, que a sua conduta era proibida e criminalmente punida por lei e, mesmo assim, não se absteve de actuar daquela forma.

28.º


Ademais, no dia 26/3/2018, pelas 15h00, no seu quarto da sua habitação, em cima da cómoda, o arguido detinha o telemóvel da marca Samsung, sua propriedade e apenas por si utilizado, com o IMEI 3…3, sendo que, aí gravados,

1)NocaminhoE:\memorycardTanscendMicroSDHC32GB5222DRF5X14A\DISK\arquios-Imagens: desde data não concretamente apurada, detinha armazenados, entre outros, 11 ficheiros de imagem, representando menores de 13 anos de idade do sexo masculino, e 4 ficheiros de imagem, representando menores de 13 anos de idade do sexo feminino, eles trajando só cuecas ou calções e elas cuecas e soutien;

2)NocaminhoE:\SamsungGTi9060iGalaxyGrandNeoPlus\Image\arquivos-Imagens: 46 ficheiros de imagens, representando menores de idade, maioritariamente do sexo masculino, despidos, e com o pénis erecto, sendo que, numa dessas figuram dois menores de 13 anos de idade, ambos do sexo masculino, com o tronco despido e a beijarem-se,

Tudo com os nomes de ficheiros constantes do auto de fls. 252 e do CD junto na contracapa do primeiro volume, que aqui se dá por reproduzido.


29.º


O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como ilícito criminal, com o propósito de deter aqueles ficheiros naquele telemóvel, obtidos a partir de local não concretamente apurado e depois os deter como detinha naquela data, com fotografias de cariz pornográfico onde eram utilizadas pessoas que o mesmo bem sabia terem, pelo menos, idades inferiores a 18 anos, total ou parcialmente despidas, e em actos e poses de natureza sexual, ficheiros que o mesmo tinha à sua disposição para visualizar sempre que entendesse, como o tinha já feito, e, assim, satisfazer os seus desejos sexuais e libidinosos.

30.º


Em todos os momentos acima indicados, o arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, e com pleno conhecimento de que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei criminal, e, mesmo assim, não se absteve de assim actuar.


Factos provados, oriundos do pedido cível, relativo ao menor DD:



31º


Os factos praticados pelo arguido, causaram ao menor DD, além das dores físicas, vergonha, medo, mal-estar, humilhação, angustia, insegurança e tristeza, baixa auto-estima, sentimentos que ainda perduram;

32º


Os danos causados pela conduta do arguido, têm provocado perturbações consideráveis no nível de vida do menor DD, uma vez que o mesmo evita sair de casa, não faz amizades, não quer participar em nenhuma actividade extra-curricular, não quer jogar futebol, como jogava antes dos factos, danos que foram ainda mais exponenciados pela divulgação pública dos factos, acompanhada da revelação da identidade das vítimas, quer no bairro onde o menor habita, quer na escola que frequenta;

33º


Em consequência dos factos praticados pelo arguido, os pais do menor deslocaram-se, em viatura própria três vezes á GNR de …, para apresentar queixa, para o menor ser ouvido e para a inquirição do progenitor do menor; duas vezes ao IML de …, para a realização da perícia de natureza sexual e perícia médico-legal de psicologia e ao tribunal de …, para o menor prestar declarações para memória futura;


Factos provados, oriundos do pedido cível, relativo ao menor EE:


34º


Os factos praticados pelo arguido, causaram ao menor EE, além das dores físicas, vergonha, medo, mal-estar, humilhação, angustia, insegurança e tristeza, baixa auto-estima, sentimentos que ainda perduram;

35º


Os danos causados pela conduta do arguido, têm provocado perturbações consideráveis no nível de vida do menor DD, uma vez que o mesmo evita sair de casa, deixou de andar de bicicleta sozinho, não se consegue concentrar nas aulas, apresentando deficiente desempenho cognitivo, tendo reprovado no ano escolar 2016/2017, tornou-se uma pessoa carente, manifestando forte sentimento de vergonha, vexame, humilhação, medo e ansiedade, constrangimento, insegurança e tristeza, danos que foram ainda mais exponenciados pela divulgação pública dos factos, acompanhada da revelação da identidade das vítimas, quer no bairro onde o menor habita, quer na escola que frequenta, locais onde o menor já foi apelidado de “paneleiro” por alguns colegas, que afirmam que o menor já teria “levado no cu”;

36º


Em consequência dos factos praticados pelo arguido, os pais do menor deslocaram-se, em viatura própria uma vez à GNR de …, para apresentar queixa, três vezes ao IML de …, para a realização da perícia de natureza sexual e duas vezes, para a realização da perícia médico-legal de psicologia, uma vez à psicóloga em … e ao tribunal de …, para o menor prestar declarações para memória futura;


Factos provados, oriundos do pedido cível, relativo ao menor FF:


37º


Os factos praticados pelo arguido, causaram ao menor FF, além das dores físicas, vergonha, medo, mal-estar, humilhação, angustia, insegurança e tristeza, baixa auto-estima, sentimentos que ainda perduram;

38º


Os danos causados pela conduta do arguido, têm provocado perturbações consideráveis no nível de vida do menor DD, uma vez que o mesmo evita sair de casa, evita andar sozinho, tornou-se uma pessoa instável, introvertido, revoltado, ansioso não se consegue concentrar nas aulas, apresentando deficiente desempenho cognitivo, passou a ter insónias, manifestando forte sentimento de vergonha, medo e tristeza de ir à escola, vexame, humilhação, constrangimento, insegurança, danos que foram ainda mais exponenciados pela divulgação pública dos factos, acompanhada da revelação da identidade das vítimas, quer no bairro onde o menor habita, quer na escola que frequenta, locais onde o menor já foi apelidado de “paneleiro” por alguns colegas, que afirmam que o menor já teria “levado no cu”;

39º


Em consequência dos factos praticados pelo arguido, os pais do menor deslocaram-se, em viatura própria, duas vezes à GNR de …, para apresentar queixa e para o menor ser ouvido, duas vezes ao IML de …, para a realização da perícia de natureza sexual e para a realização da perícia médico-legal de psicologia, uma vez ao Centro de Saúde de …, para consulta médica e ao tribunal de …, para o menor prestar declarações para memória futura;


Factos provados, oriundos do pedido cível, relativo ao menor HH:


40º


Os factos praticados pelo arguido, causaram ao menor HH, além das dores físicas, vergonha, medo, mal-estar, humilhação, angustia, insegurança e tristeza, baixa auto-estima, sentimentos que ainda perduram;

41º


Os danos causados pela conduta do arguido, têm provocado perturbações consideráveis no nível de vida do menor DD, uma vez que o mesmo começou a faltar às aulas, com medo do arguido, tendo passado a residir em casa da madrinha, para estar longe do arguido, tornou-se uma pessoa frágil, carente, depressiva, com baixa auto-estima, não se consegue concentrar nas aulas, apresentando deficiente desempenho cognitivo, passou a ter insónias, pesadelos, manifestando forte sentimento de vergonha, medo e tristeza de ir à escola, vexame, humilhação, constrangimento, insegurança, danos que foram ainda mais exponenciados pela divulgação pública dos factos, acompanhada da revelação da identidade das vítimas, quer no bairro onde o menor habita, quer na escola que frequenta, locais onde o menor já foi apelidado de “paneleiro” por alguns colegas, que afirmam que o menor já teria “levado no cu”;

42º


Em consequência dos factos praticados pelo arguido, os pais do menor deslocaram-se, em viatura própria, duas vezes à GNR de …, para apresentar queixa e para o menor ser ouvido, duas vezes ao IML de …, para a realização da perícia de natureza sexual e para a realização da perícia médico-legal de psicologia e ao tribunal de …, para o menor prestar declarações para memória futura;


Factos relativos ao pedido cível do menor GG


43º


Em consequência dos factos perpetrados pelo arguido, o menor GG sofreu dores físicas e sequelas irreversíveis aa nível emocional e psicológico, designadamente vergonha, medo, mal-estar, humilhação, angustia, insegurança e tristeza, baixa auto-estima, sentimentos que ainda perduram;


Factos relativos ao pedido cível do ofendido NN:


44º


Os factos praticados pelo arguido, consubstanciados no facto deste ter arrombado a porta da sua habitação, durante a noite e entrado nela sem autorização do ofendido, causaram mal-estar, angustia, sofrimento, medo e insegurança ao ofendido e pessoas que naquela casa pernoitavam;

45º


Em consequência da conduta do arguido, o arguido inutilizou a fechadura da porta da casa do ofendido, causando-lhe um prejuízo não concretamente apurado;



46º


 Factos oriundos do relatório social do arguido:

AA é natural de … – …, país onde residiu com os progenitores até aos 2 meses de idade. Nessa altura o agregado transferiu residência para … – Portugal. Aos 6 meses do arguido o progenitor abandonou o agregado familiar, sendo reportado pela progenitora uma dinâmica familiar pautada pela disfuncionalidade, nomeadamente por comportamentos agressivos no seio conjugal. Aos 2 anos de idade do arguido, a progenitora iniciou novo relacionamento marital, o qual foi igualmente pautado pela conflitualidade e actos tipificados como violência doméstica, do qual nasceram duas irmãs uterinas, actualmente com 22 e 24 anos de idade. Este relacionamento terminou volvidos cerca de 9 anos, contava então o arguido 11 anos.

O núcleo familiar apresentou alguma mobilidade geográfica e sucessivas alterações de residência, nomeadamente …, … e, por último, … – … .

O percurso escolar foi iniciado aos 6 anos, registando trajectória irregular com registo de falta de assiduidade, desmotivação e problemas disciplinares, até ao abandono do sistema de ensino aos 18 anos, sem a conclusão do 9º ano de escolaridade. Aos 20 anos ingressou no ensino profissional, na Escola Profissional …, onde frequentou curso de formação profissional de …, durante 3 meses e do qual desistiu por “impaciência” (sic, arguido).

Aos 22 anos de idade iniciou vida laboral activa, registando experiências de curta duração e exercidas em regime informal, nomeadamente como …, … e na fundição …, tendo sido esta última a experiência mais prolongada (6 meses).

AA iniciou consumos de álcool aos 16 anos de idade, comportamento que começou a apresentar contornos problemáticos por volta dos 22 anos e que manteve até à presente reclusão, em contextos de associação a grupo de pares e em ambientes de diversão nocturna, sendo estes os únicos momentos em que referiu conseguir estabelecer relações sociais de amizade e demonstrar sentimentos de alegria. Por outro lado, caracteriza-se como indivíduo com dificuldades de expressão, tímido e com tendência para o isolamento/solidão.

Na esfera afectiva, AA refere o início de actividade sexual ainda durante a infância, aos 11 anos de idade, vindo a manter relacionamentos de namoro de curta duração com jovens da mesma idade e mais velhas e cujas rupturas foram, em alguns casos, factor de transtorno emocional e sofrimento. Com efeito, relata três situações de tentativa de suicídio, a primeira das quais aos 15 anos de idade, altura em que foi acompanhado na especialidade de Psiquiatria durante 3 meses e, a última, aos 22 anos.

No período a que reportam os factos constantes da acusação (2012-2018) AA mantinha residência na morada dos autos, com a progenitora, à data inactiva e beneficiária do rendimento social de inserção, sendo que ambas as irmãs estavam já autonomizadas. Actualmente esta familiar exerce actividade laboral como cuidadora de idosos e aufere um rendimento mensal na ordem dos 500€.

Este agregado habitava, tal como actualmente, uma casa térrea de tipologia 3, integrada em empreendimento social gerido pela Câmara Municipal de …, vivenciando uma condição económica avaliada como precária.

Aos 25 anos, AA optou por integrar a “Legião Estrangeira …”, actividade que considerava gratificante e onde permaneceu durante cerca de 13 meses. Contudo, veio a abandonar aquela unidade militar por opção própria, não conseguindo objectivar uma explicação para tal.

Regressado a Portugal volta a reintegrar o agregado materno, tendo nesta altura iniciado relacionamento afectivo sem coabitação com QQ, 33 anos, empregada de … e moradora no mesmo complexo habitacional, que manteve até à data da reclusão.

AA conservava um quotidiano de inactividade e ócio, centrado em actividades de lazer no seu espaço doméstico, nomeadamente com jogos de computador. No período nocturno, era frequente o consumo abusivo de bebidas alcoólicas em conjunto com pares e em espaços de diversão nocturna.

O primeiro contacto com o sistema de justiça penal surge em 2014, vindo a cumprir pena de prisão efectiva de 6 meses, entre …/02/2017 e …/08/2017, pela autoria de um crime de furto qualificado na forma tentada.

O relacionamento com a namorada é avaliado por ambos como positivo e gratificante. Contudo, nos meses que antecederam a reclusão é reportado por QQ o início de comportamentos desadequados por parte do arguido, nomeadamente auto mutilações, gritos e a encenação de episódios de guerra/militares, situação que veio a conduzir a algum afastamento por parte daquela.

Com efeito, em marco/2018 o mesmo foi avaliado em consulta aberta da Unidade de Saúde de … por apresentar episódios recorrentes de alterações de comportamento, geralmente associados a ingestão abusiva de álcool, com agitação, alucinações visuais e auditivas, relacionadas com o período em que esteve em …, bem como agressividade sobre si próprio. Em consequência, foi medicado com fármacos antidepressivos/ansiolíticos e foi orientado para consulta de psiquiatria hospitalar, o que foi recusado uma vez que o mesmo apresentava indícios de comportamentos aditivos de bebidas alcoólicas, pelo que foi encaminhado para consulta no Centro de Respostas Integradas de … . No entanto, AA faltou à consulta de seguimento, o que coincidiu com o momento da sua detenção.

AA é caracterizado pela progenitora como uma pessoa muito fechada em si e muito isolado. No meio social de residência, o arguido detinha uma imagem associada a algumas perturbações, embora não houvesse qualquer indicador de cariz sexual.

Uma vez em meio livre, tanto o arguido como a progenitora vêm como positivo o seu afastamento daquele contexto socio residencial, equacionando a possibilidade de vir a integrar o agregado familiar de uma tia paterna residente em … .

Actualmente, QQ coloca reservas relativamente à manutenção do relacionamento amoroso, aguardando pelo desfecho do actual processo.

AA deu entrada no Estabelecimento Prisional … em …/03/2018, à ordem dos presentes autos. Não lhe são conhecidos outros processos pendentes.

Relativamente à natureza dos factos pelos quais está acusado, AA verbaliza reconhecer a sua ilicitude penal e identificar potenciais vítimas, embora mostre dificuldade em avaliar os danos para as mesmas decorrentes de tais actos, tendo tendência para atenuar a sua gravidade.

O arguido ressalta o impacto negativo que a presente situação jurídico-penal trouxe para a sua vida familiar e social, afirmando sentimentos de tristeza e de humilhação para a sua família em função da natureza dos factos pelos quais está acusado. Tanto a progenitora como a namorada afirmam sentimentos de surpresa e consternação, acreditando num desfecho positivo para o arguido.

No meio sociocomunitário, local de residência das vítimas e não obstante o alarme social, assiste-se a um silêncio contido sobre os factos que deram origem ao presente processo, sendo visível a preocupação da comunidade em resguardar/proteger os menores da uma maior exposição pública.

No E.P. ... tem vindo a manter um comportamento consonante com o disciplinar vigente. Em face da tipologia criminal e consideradas necessidades de protecção e da segurança funcional, foi colocado em unidade diferenciada com restrição na movimentação e no acesso a ocupação estruturada, além da manutenção do espaço celular.

AA beneficia de visitas da sua progenitora, irmãs e pontualmente de QQ, na qualidade de amiga.

Do percurso vivencial de AA sobressai a inserção em contexto familiar instável e disfuncional, factores que não conseguiram promover as condições necessárias para um desenvolvimento formativo e profissional consistente e investido.

Munido de baixas competências pessoais e sociais, detém fraca experiência profissional e exercida em regime informal, até ao momento em que opta por uma experiência militar, que considerou gratificante não obstante tenha abandonado por opção própria.

O abuso no consumo de substâncias etílicas surge no início da idade adulta, comportamento que o mesmo assume como libertador e facilitador da integração no seu grupo de pares.

Assume-se e é referenciado como indivíduo com tendência para o isolamento/solidão, reportando experiências amorosas iniciadas em idade precoce e de curta duração, algumas das quais promotoras de sentimentos de tristeza, desgosto e ideação suicida.

Em período anterior à aplicação de medida de coacção de prisão preventiva, mantinha relacionamento de namoro, o qual era avaliado como gratificante por ambos, embora ultimamente abalado pelos comportamentos inadequados que o arguido vinha a protagonizar e que mereceram intervenção médica, sem continuidade.

AA regista anterior condenação por crime contra o património.

Em caso de condenação, avaliamos como necessária a intervenção especializada na área da sexologia, da saúde mental e comportamentos aditivos, considerando ainda que o processo de reinserção social de AA estará dependente da consolidação/interiorização de valores ético-jurídicos adequados à vida em sociedade, particularmente ao nível do respeito pela autodeterminação sexual, bem como do investimento na inversão de défices pessoais ao nível formativo/profissional, de modo a potenciar a organização do seu quotidiano em função de valores pró-sociais.



47º


Do CRC do arguido constam as seguintes condenações:

            No Processo Comum Singular nº 397/12.0G…, do Juízo Local Criminal de …, por decisão de 09/07/2014, transitada em julgado em 24/09/2014, foi o arguido condenado pela prática em 13/03/2012, de um crime de furto qualificado na forma tentada p. e p. pelo art. 204º, 22º e 23º do C.P., numa pena de 6 meses de prisão, substituída por 190 dias de multa, extinta em 27/08/2017.



48º


      2.2. Factos Não provados:

Não provado que, em consequência dos factos, o menor DD, tenha passado a sofrer de incontinência fecal».


2. Delimitação do objecto do recurso


Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do mesmo diploma – é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

    

Perante o teor das conclusões, onde o recorrente sintetiza as razões de discordância com o decidido, vêm suscitadas as seguintes questões:

 

- Erro na subsunção normativa quanto aos crimes de abuso sexual, sustentando que as condutas relativas a cada um dos menores devem ser compreendidas no âmbito da figura do crime de trato sucessivo, devendo ser condenado apenas por 5 desses crimes, um por cada um dos ofendidos;

- Excesso da medida da pena conjunta, a reduzir em conformidade com a redução do número de crimes de abuso sexual de crianças proposta.


3. Enquadramento da conduta do recorrente


3.1. Sem questionar a decisão de facto proferida, que por isso se encontra definitivamente fixada, pretende o recorrente que as suas condutas respeitantes a cada um dos menores molestados sexualmente devem ser enquadradas jurídico-penalmente na figura do designado «crime único de trato sucessivo».


Retomando considerações tecidas nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 13-01-2016, proferido no processo n.º 414/12.3TAMCN.S1 - 3.ª secção, e de 21-02-2018, proferido no processo n.º 1548/16.0JAPRT.P1.S1 – 3.ª Secção[6], relatados pelo agora relator, a pretensão do recorrente remete para a temática, central na dogmática penal, da unidade ou pluralidade de infracções.

Nos termos do art. 30.º, n.º 1, do Código Penal, «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

A nossa lei escolheu como factor decisivo a unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados. A simplicidade da enunciação legal é, porém, enganadora, tendo a lei deixado à doutrina e à jurisprudência a solução da questão primordial, da unidade e pluralidade de crimes, ponto de partida da teoria do concurso.

Vejamos, pois, em primeiro lugar, ainda que de forma sintética, os contributos da doutrina para tal questão[7].

Os ensinamentos de EDUARDO CORREIA[8] e de FIGUEIREDO DIAS[9] constituem os dois grandes marcos de referência no âmbito da concretização conceptual daquele preceito legal.

Para o primeiro autor, a antijuridicidade de uma relação social começa por se exprimir pela possibilidade da sua subsunção a um ou vários tipos de crime, pelo que é na concreta violação desta norma de determinação que assenta o juízo de censura em que se estrutura a culpa.

Assim, a uma reiterada ineficácia da mesma norma de determinação corresponderão plúrimos juízos concretos de reprovação. O critério para averiguar acerca da existência dessa reiteração é o da pluralidade de resoluções – isto é, de determinações da vontade – pelas quais o agente actuou: se foram tomadas duas ou mais resoluções no desenrolar da actividade criminosa, então duas ou mais vezes falhou a eficácia determinadora da norma. Sendo que, por cada vez que tal sucedeu, há um fundamento para o juízo de censura em que se estrutura a culpa.

A pedra de toque consiste, assim, segundo este autor, em determinar os critérios que permitem afirmar tal pluralidade de processos resolutivos. Ou seja, em determinar os critérios que permitem concluir se estamos na presença de uma ou de várias resoluções criminosas.

Tais critérios, defende EDUARDO CORREIA, terão de passar pela análise do concreto modo como se desenvolveu o acontecimento exterior e, em particular, da conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. Assim, há uma pluralidade de resoluções sempre que medeie entre as actividades do agente um intervalo de tempo tal que, de acordo com as regras de lógica e experiência comum, se possa afirmar que o agente as levou a cabo sem qualquer renovação do processo de motivação. O critério da conexão temporal não é, contudo, rígido, admitindo a prova de que o agente se determinou efectivamente de forma diversa da que resulta do critério da conexão temporal.

Em síntese, para EDUARDO CORREIA, o número de vezes de preenchimento do tipo pela conduta do agente conta-se pelo número de juízos de censura de que o agente se tenha tornado passível, o que, por sua vez, se deve reconduzir à pluralidade de processos resolutivos, resoluções ou decisões criminosas.

Por sua vez, FIGUEIREDO DIAS apresenta uma construção dogmática algo diferente do tema da unidade ou pluralidade de crimes. Assim, para este autor, o critério para determinar quantos os crimes cometidos pelo agente é o critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

Ou seja, constituindo o crime um facto punível, o mesmo traduz-se numa violação de bens jurídico-penais, que preenche um determinado tipo legal. O núcleo dessa violação não é o mero actuar do agente, nem o tipo legal que o integra, mas o ilícito-típico. Pelo que, o que está em causa é determinar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica em que o significado do comportamento global do agente se traduz: tal operação é que permite determinar quantos os crimes cometidos pelo agente.

A apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto deverá ser feita recorrendo a alguns (concretos) subcritérios fundamentais. Esses critérios são o da unidade de sentido do comportamento ilícito global, o da relação ilícito-meio/ilícito-fim, o da unidade do desígnio criminoso do agente, o da conexão situacional espácio-temporal e o dos diferentes estádios de realização da actuação global.

As particularidades do caso concreto decidirão da premência de uns em detrimento de outros, podendo acontecer que dois ou mais critérios convirjam em direcção ao mesmo resultado. Eles funcionam, assim, como indicadores da unidade ou da pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

Assim, fazendo uso da síntese realizada por LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, «[e]mbora a lei não o refira expressamente, para se concluir pela existência de concurso efectivo torna-se necessário, além da pluralidade de tipos violados, o recurso ao critério da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas (Eduardo Correia), ou pluralidade de resoluções no sentido de nexos finais e de uma pluralidade de violações do próprio dever de cuidado conexado com um resultado típico concreto (Figueiredo Dias)» [10].

3.2. Especificamente no que diz respeito à figura do crime de trato sucessivo invocada pelo recorrente, muito embora a mesma não se encontre expressamente prevista na lei, a doutrina tem-lhe vindo a fazer referência, cumprindo convocar, desde logo, o entendimento LOBO MOUTINHO que integra em tal categoria o crime cuja consumação «se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles – eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados – eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo»[11].

Assim, o ponto central da definição de tal categoria é a noção de actos reiterados, sendo que são actos reiterados «(…) a pluralidade de actos homogéneos. Actos diversos não se “reiteram”»[12].

Porém, e uma vez que a reiteração e a homogeneidade também são elementos essenciais na densificação de outras categorias de crimes (como, por exemplo, o crime continuado), ainda segundo LOBO MOUTINHO, «para alcançar o sentido e alcance do protraimento da consumação mediante actos reiterados, torna-se necessário ter presente a evidente necessidade da sua delimitação de forma a não esvaziar de conteúdo as referidas figuras. Assim, em face dos dados legislativos e, muito particularmente, da clara generalidade das figuras da continuação criminosa, do concurso homogéneo de crimes e da tendência criminosa, impõe-se a conclusão de que apenas se pode admitir uma “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime»[13].

Assim, e em suma, os crimes de trato sucessivo correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediando intervalos entre eles[14]. São, deste modo, apontados como exemplos de crimes habituais o crime de maus tratos, o crime de tráfico de estupefacientes e o crime de lenocínio.

Passemos agora em revista a jurisprudência sobre esta temática, especificamente quanto aos crimes sexuais.

Em alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal enquadraram-se condutas de abuso sexual de crianças na figura do crime único de trato sucessivo, considerando-se uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando exista uma mesma resolução criminosa, desde o início, assumida pelo agente[15].

Ilustrativo do raciocínio que está na base da configuração, é o que consta das seguintes passagens do acórdão deste Supremo Tribunal de 29-11-2012 (Proc. n.º 862/11.6TDLSB.P1.S1-5.ª Secção)[16], aborda a problemática dos crimes de abuso sexual de crianças que se prolongam no tempo, como crimes de trato sucessivo, afirmando:

«(…) quando os crimes sexuais são actos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como sexo, facilmente se transformam numa “actividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “actividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do “fornecedor” pequenas doses de cada vez, praticou, “pelo menos”, 200, 300 ou 365 crimes de tráfico (o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”) ou se praticou um único crime de tráfico, objectiva e subjectivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a actividade.

A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há um só crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, isoladas, constituiriam um crime – tanto mais grave (no quadro da sua moldura penal) quanto mais repetidos.

(…)

O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma “unidade resolutiva”, realidade que se não deve confundir com “uma única resolução”, pois que, “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação” (Eduardo Correia, 1968:201 e 202, citado no “Código de Penal Anotado” de P.P. Albuquerque).

Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso de crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma».

Cita-se aí o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-01-2008 (Proc. n.º 4830/07-3.ª Secção), que, repudiando a qualificação de três condutas criminosas como constituindo um crime continuado, entendeu deverem as mesmas ser unificadas como crime de trato sucessivo, caracterizado «pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime».

Todavia, já antes, no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-07-2012 (Proc. n.º 1718/02.9.JOLSB – 3.ª Secção), foi mantida a condenação do aí arguido pelo concurso de vários crimes de natureza sexual praticados contra o mesmo ofendido, referindo-se, então, após exaustivo levantamento doutrinal, que o comportamento do arguido evidenciava «uma persistente, e renovada, vontade de violar a lei e aviltar as vítimas e que, «em cada um dos actos sexuais praticados, e em relação a cada uma das vítimas, consumou-se uma decisão, uma opção de vontade, perfeitamente delimitada na sua autonomia em relação a todas as outras».

Na declaração de voto de vencido formulada no citado acórdão, de 29-11-2012, o Conselheiro Manuel Braz pronuncia-se no sentido da inaplicabilidade, in casu, da figura do crime de trato sucessivo, dizendo:

«A categoria de crime de trato sucessivo, a que a posição maioritária faz apelo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [artº 119º, nº 2, alínea a), do CP], o crime continuado [artºs 119º, nº 2, alínea b), 30º, nºs 2 e 3, e 79º] e o crime habitual [artº 119º, nº 2, alínea b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [artº 19º, nº 2, do CPP].

O crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual, como refere Lobo Moutinho (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, página 620, nota 1854).

Este autor, depois de definir o crime contínuo como o “crime cuja consumação se protrai mediante a prática de uma pluralidade de actos sucessivos (no sentido de praticados em imediata sequência temporal)”, correspondendo “basicamente àquilo que Eduardo Correia chamou o crime único com pluralidade de actos”, caracteriza assim o crime habitual:

“O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados”.

Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles – eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados – eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo.

O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “actos reiterados”.

É seguro que, por “actos reiterados”, se deve entender, pelo menos, a pluralidade de actos homogéneos. Actos diversos não são reiterados.

(…) apenas se pode admitir a “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime.

Na verdade, embora a caracterização legal não se esgote nisso, os “actos reiterados” são opostos, pela própria lei, aos “actos sucessivos” no sentido de praticados em acto seguido. Isso indica um certo distanciamento temporal – pelo menos suficiente para se não admitir a existência de um crime contínuo – o que faz o crime perder o cariz episódico, para passar a estruturar-se numa actividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo.

Mas se em relação a todos os crimes fosse de admitir esta forma habitual de perpetração, as restantes figuras a que nos referimos ficariam em crise, se é que lhes sobraria qualquer espaço de aplicação.

Assim se compreende que, como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. Exemplos apontados são o crime de maus-tratos e infracção às regras de segurança (art. 152º), o crime de lenocínio (art. 170º).

Admite LOBO MOUTINHO outros casos, como o crime de tráfico de estupefacientes, que considera desdobrar-se ou poder desdobrar-se numa multiplicidade de actos semelhantes, «como claramente resulta da previsão da agravação por diversas circunstâncias, a começar pela da destinação ou entrega a “menores” ou da distribuição “por um grande número de pessoas” (art. 24º, nº 1, als. a) e b), do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro)» (ob. cit., páginas 604-620).

Mais incisivo, Figueiredo Dias define crimes habituais como sendo «aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada», dando como exemplo os crimes de lenocínio e de aborto agravado do artº 141º, nº 2, do CP (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, página 314).

Não é, pois, a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de actos homogéneos o cariz de crime de trato sucessivo, que se identifica com a categoria legal do crime habitual, mas somente a estrutura do respectivo tipo incriminador, que há-de supor a reiteração.

Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.

Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989).»

No acórdão deste Supremo Tribunal, de 17-09-2014 (Proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1 – 3.ª Secção), num caso em que o aí arguido fora condenado, em concurso efectivo, pela prática de vários crimes de abuso sexual de criança (sua enteada) e reivindicava a sua condenação pela prática de um crime de trato sucessivo de abuso sexual, entendeu-se:

«O crime de trato sucessivo, embora englobe a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea, é unificado pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime.»

No caso aí tratado, «as acções adequadas à produção do resultado, ainda que de forma sucessiva, não se encontram interligadas de forma a que só possam produzir o resultado numa adequação conjunta de todas elas. Outrossim, cada acção produz o consequente resultado», inexistindo uma «unidade típica de acção». A renovação de acção criminosa reiteradamente desenvolvida produz, lê-se no mesmo aresto, o consequente e adequado resultado. Embora se verifique homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade de resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal, pelo que inexiste o crime de trato sucessivo.

Esta argumentação mereceu concordância no acórdão deste Supremo Tribunal, de 22-04-2015, proferido no Processo n.º 45/13.0JASTB.L1.S1 – 3.ª Secção, num caso em que o aí arguido fora condenado pela 1ª Instância, em cúmulo jurídico, na pena conjunta de 15 anos de prisão, respeitante à prática, «em autoria material e em concurso real» de 46 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171º, n.os 1 e 2, do Código Penal, e de um crime de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176º, n.º 4, do mesmo Código. O Tribunal da Relação, todavia, nos casos em que os ofendidos foram objecto de repetidos abusos, afastou o concurso de crimes por ter entendido que «a solução do trato sucessivo é a mais ajustada a situações como a presente». Só assim não procedeu relativamente a um ofendido, em que autonomizou dois conjuntos de factos por, entre a prática daqueles e destes, terem decorrido cerca de 5 anos. Por via dessa qualificação e correspondente punição de cada um dos crimes em trato sucessivo e da atenuação das penas parcelares aplicadas por cada um dos crimes singulares, a mais elevada das penas parcelares passou para os 8 anos de prisão, enquanto a sua soma desceu para os 54 anos e 2 meses. A pena conjunta foi então fixada em 13 anos e 6 meses de prisão.

Considerou-se neste acórdão não se afigurar «como correcta a qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo, pelo que se considera que o arguido cometeu, em concurso real, os crimes especificadas na decisão da 1.ª instância», consignando-se, no entanto, que «a alteração da qualificação no sentido que entendemos ser o correcto reclamaria penas parcelares, pelo menos em bem maior número do que as consideradas pelo Tribunal da Relação, como se viu, e, por via do agravamento do correspondente somatório, uma pena conjunta mais elevada do que a cominada no acórdão recorrido, o que, traduzindo-se em reformatio in pejus, nos estaria vedado pela proibição estabelecida no art. 409.º, n.º 1, do CPP».

Discordou-se, pois, «da qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo», convocando o entendimento perfilhado no voto de vencido aposto no citado acórdão deste Supremo Tribunal, de 29-11-2012, exprimindo, como se referiu, a sua concordância com a argumentação do acórdão de 17-09- 2014, também já mencionado.

Cita-se ali também, de entre outros, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-06-2013 (Proc. nº 1291/10.4JDLSB – 5.ª Secção), que, «embora tivesse mantido a subsunção das condutas a crimes de trato sucessivo, pois a questão não integrava o objecto do recurso, não deixou de anotar que a decisão era, nesse ponto, “passível de gerar controvérsia” (sublinhamos), porquanto, (citando Paulo Pinto de Albuquerque em “Comentário do Código Penal”, 2ª edição, anotação 32 ao artº 30º, pág. 162) “sustenta-se … que se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime de trato sucessivo, ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador». De facto, refere o acórdão, depois de uma inconsequente tentativa de alterar a figura do crime continuado, com a introdução de um nº 3 ao artigo 30º do CPenal pela Lei nº 52/2007, de 4 de Setembro que admitiu o crime continuado relativamente a crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, desde que que estivesse em causa a mesma vítima, com a Lei nº 20/2010, de 3 de Setembro, o legislador, ao suprimir o segmento então acrescentado, ditou a sentença de morte do crime continuado nos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais. O crime continuado foi, então, excluído desse tipo de crimes, sem qualquer excepção, ficando restringido à violação plúrima de bens jurídicos não eminentemente pessoais”».

A aplicação do trato sucessivo quando, como sucede nos crimes de abuso sexual de menores, estão em causa bens eminentemente pessoais é igualmente rejeitada no muito recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 25-11-2015, proferido no processo n.º 27/14.5.JAPTM.S1 – 3.ª Secção, «pelas mesmas razões por que se não aceita a configuração do crime continuado» em tais situações.

E outras decisões deste Supremo Tribunal se podem convocar no sentido de que, no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo.

Neste sentido, de entre outros, acórdãos de 13-07-2011 (Proc. n.º 451/05.4JABRG.G1.S1-3.ª Secção); de 2-09-2012 (Proc. n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1-3.ª Secção); de 22-01-2013 (Proc. n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1-3.ª Secção); de 17-09-2014 (Proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1-3.ª Secção); de 17-09-2014 (Proc. n.º 67/12.9JAPDL.L1.S1-3.ª Secção); e de 22-04-2015 (Proc. n.º 45/13.0JASTB.L1.S1-3.ª secção).

Considera tal posição que o crime de trato sucessivo, englobando a realização plúrima e essencialmente homogénea do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, se basta com a prática de qualquer das condutas reiteradas praticadas, para que fique preenchido o tipo legal de crime, já que as mesmas são unificadas pela mesma «unidade resolutiva». Sendo que o tipo penal do crime de abuso sexual de crianças não é compaginável com tal figura jurídica, uma vez que, a específica configuração do crime de abuso sexual de crianças exige, pressupõe, a afirmação de uma pluralidade de resoluções criminosas na produção do resultado que desencadeiam e que, portanto, se autonomizam como tal.

O traço caracterizador da figura do crime de trato sucessivo residirá no facto de o crime, na sua estrutura típica, pressupor a reiteração, punindo-se, desta forma, a prática, antes de mais, de uma actividade, que pode consumar-se em um ou mais actos.

Assim, caso a estrutura típica do crime em causa não pressuponha tal reiteração, no sentido de que com tal tipificação não se pretende punir a prática de uma actividade, não será aplicável a figura do crime de trato sucessivo. Sendo que, considera a referida jurisprudência maioritária, que a estrutura típica do crime de abuso sexual de crianças não pressupõe tal reiteração, isto é, não se pretende com o mesmo punir uma actividade, pelo que não lhe é aplicável a figura do crime de trato sucessivo.

Refira-se, ainda, que a eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, no âmbito do tipo penal de abuso sexual de crianças, poderia redundar num resultado que o legislador claramente quis afastar – ainda que por referência à figura jurídica do crime continuado – com a alteração ao n.º 3 do artigo 30.º do Código Penal realizada pela Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro, que excluiu expressamente a admissibilidade da possibilidade de unificação de uma pluralidade de condutas na figura do crime continuado, quando estejam em causa bens eminentemente pessoais.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é presentemente unânime ao afastar a figura do «trato sucessivo» dos casos de crimes contra a autodeterminação sexual, dando-se nota no acórdão de 11-09-2019, proferido no processo n.º 1032/18.8JAPRT.S1 – 3.ª Secção[17], de que «os casos em que o comportamento do agente preenche vários tipos de crime contra a autodeterminação sexual ou preenche várias vezes estes mesmos tipos de crime reconduzem-se à previsão do n.º 1 do art. 30.º do CP, pois pune-se a prática de “acto sexual”, de cada “acto sexual”, não se incluindo no tipo qualquer forma de reiteração».

A questão fora também apreciada no acórdão de 30-11-2016, proferido no processo n.º 444/15.3JAPRT.G1.S1 – 3.ª Secção, aí se concluindo que, «estando em causa crimes de abuso sexual de crianças, as acções adequadas à produção do resultado, ainda que de forma sucessiva, não se encontram interligadas de forma a que só possam produzir o resultado numa adequação conjunta de todas elas. Outrossim, cada acção produz o consequente resultado. Pelo que, in casu, a renovação da acção criminosa reiterada desenvolvida, produz o consequente e adequado resultado. Embora haja homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade da resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal. Inexiste, pois, o crime de trato sucessivo., inexistindo de igual forma, os pressupostos do crime continuado, uma vez que o ilícito de abuso sexual de crianças atenta contra bem jurídico eminentemente pessoal, qual seja a autodeterminação sexual da vítima, pelo que está legalmente afastada a possibilidade de o arguido ter praticado um só crime continuado, atento o disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP.».

No mesmo entendimento, podem convocar-se os mais recentes acórdãos deste Supremo Tribunal: de 20-04-2016 (Proc. n.º 657/13.2JAPRT.P1.S1 – 5.ª Secção), de 4-05-2017 (Proc. n.º 110/14.7JASTB.E1.S1 – 5.ª Secção), de 28-06-2017 (Proc. n.º 23/14.2GCCNT.S1 – 3.ª Secção), de 13-07-2017 (Proc. n.º 1205/15.5T9VIS.C1.S2 – 3.ª Secção), de 13-09-2017 (Proc. n.º 616/15.0PAVFX.L1.S1 – 3.ª Secção), de 22-03-2018 (Proc. n.º 467/16.5PALSB.L1.S1 – 5.ª Secção), de 20-02-2019 (Proc. n.º 234/15.3JAAVR.S1 – 5.ª Secção), de 27-02-2019 (Proc. n.º 2165/15.8JAPRT.P1.S1 – 3.ª Secção), de 13-03-2019 (Proc. n.º 3910/16.0T9PRT.P1.S1 – 3.ª Secção.

Por fim, a opinião de HELENA MONIZ igualmente no sentido da «inadmissibilidade de unificação subsuntiva da prática de vários actos sexuais de relevo a apenas um crime».

Depois de dar conta de que a reforma de 1995 veio alterar o que tinha sido consagrado em1982, em que aquela «veio consagrar tipos legais de crime como o previsto no art. 165.º, do CP, e equivalentes (167.º, 171.º, 172.º, 173.º…) em que a conduta punida é a do agente que “pratica ato sexual de relevo…” parecendo com isto querer punir cada ato individual praticado», considera a autora que:

«Na verdade, tal como os tipos legais de crime passaram a ser construídos, a acção típica e ilícita é uma só; a conduta ilícita não abrange unitariamente uma multiplicidade de actos, como não podemos considerar estarmos perante um caso de um crime cuja acção se prolonga no tempo, ou crime duradouro, uma vez que não temos uma situação inicial de preenchimento do tipo com propagação do resultado ao longo do tempo.

Ora, o entendimento dos crimes sexuais como crimes de trato sucessivo pretende abarcar uma multiplicidade de actos, a que corresponde uma multiplicidade de resoluções, num único ato globalmente unificado a partir de uma unidade resolutiva, todavia salientando que não estamos perante uma única resolução, mas perante uma “unidade resolutiva”, querendo com isto apenas evidenciar uma homogeneidade resolutiva. Mas, este entendimento que agrega múltiplos actos típicos e ilícitos numa globalidade de comportamento ilícito com uma unificação resolutiva aproxima-nos, contra a lei, da figura do crime continuado, pese embora a jurisprudência expressamente afirme não haver uma menor culpa do agente, ou uma situação de menor exigibilidade»[18].

3.3. No acórdão recorrido examina-se a questão do concurso de crimes referindo-se aí que «ao contrário do que sustentou a defesa do arguido […], não há aqui lugar à figura dos crimes prolongados ou de trato sucessivo», aí se concluindo:

«Sendo os vários actos praticados, ainda que pela mesma vítima, em contextos espácio-temporais distintos, existirá pluralidade de crimes, na forma de concurso efectiva, desde logo por força do disposto no art.º 30.º, n.º 3, do Código Penal – Cfr., Figueiredo Dias, op. cit., págs. 731 e 753, Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., págs. 513 e 514.

No caso dos autos, relativamente a cada um dos menores, foi possível contabilizar cada um dos actos praticados pelo arguido, relativamente a cada tipo legal de crime, pelo que não há lugar à aplicação desta figura, verifica-se uma pluralidade de infracções entre os apontados crimes praticados pelo arguido, que protegem bens jurídicos distintos, estão em causa diferentes vítimas e, por isso, consubstanciam um concurso efectivo de crimes».

3.4. Perante os factos provados e tendo presentes as contribuições recolhidas da jurisprudência deste Supremo Tribunal, consideramos que se verificam relativamente cada um dos menores ofendidos diferentes e autónomas resoluções criminosas por parte do arguido, relativamente a cada um dos actos sexuais de relevo que praticou, sendo estes actos ainda passíveis de diferentes juízos de censura jurídico-penal, por afectarem de forma autónoma diferentes vertentes do bem jurídico que a norma visa proteger.

Existem várias resoluções criminosas, que se traduzem no facto de o arguido em dias e horas diferentes, ter accionado e renovado os mecanismos da sua vontade para praticar os enunciados crimes sexuais e repeti-los, o que faz com que a cada uma dessas resoluções corresponda um crime.

Merece a nossa concordância o acórdão recorrido quanto ao enquadramento jurídico do acervo factual fixado em 13 crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, e 19 crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelos n.ºs 1 e 2 da mesma disposição, para além da prática de dois crimes de violação agravada e de um crime de pornografia de menores, enquadramento que temos por juridicamente correcto, não sendo aplicável, in casu, a figura do crime de trato sucessivo.

Com efeito, por um lado, estando em causa o tipo penal de abuso sexual de crianças, da análise da sua estrutura típica não se verifica que com o mesmo se pretenda punir uma actividade, ou seja estes crimes, transcrevendo opinião já citada, «não contemplam aquela “multiplicidade de actos semelhantes” que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado»[19].

Mais, ainda que assim não fosse – ou seja, mesmo que se admitisse a aplicabilidade da figura do crime de trato sucessivo, a reiteração da conduta do recorrente resultou de uma situação procurada, provocada e organizada pelo próprio recorrente. A reiteração criminosa não derivou de (nem se reconduz a) um único desígnio.

Na verdade, em relação a todos os menores, o recorrente fazendo uso da amizade que foi travando com os menores ofendidos, residentes na mesma urbanização onde ele residia, menores que conhecia há pelo menos dez anos, e da convivência mantida com os mesmos nas imediações das respectivas habitações, começou a convidá-los para frequentarem a sua habitação, sob pretexto de utilizarem jogos de consola ou praticar actividades de musculação/ginásio, mas sempre com o intuito de praticar com eles actos de natureza sexual (factos 1, 2 e 3).

Em todas as concretas situações dadas como provadas, o recorrente renovou o desígnio criminoso, surgindo cada um deles de modo autónomo em relação aos propósitos criminosos anteriores, pois que em cada momento procurava e fomentava as oportunidades de contacto com os menores, o que se encontra, bem reflectido na factualidade dada como provada.

Perante a matéria de facto assente, verifica-se que os actos cometidos praticados pelo recorrente na pessoa de todos os menores ofendidos se encontram delimitados no espaço e no tempo com suficiente nitidez e riqueza de pormenores, não se observando aqui aquela situação difusa, imprecisa, designadamente quanto ao número dos episódios criminosos, que, para alguns, poderia justificar o recurso à figura do trato sucessivo.

Como bem refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal

«[…] no caso, ficou assente que o Recorrente, tirando proveito da confiança que o conhecimento, a convivência e a amizade que cultivava com os menores ofendidos há mais de dez anos lhe propiciavam, praticou nas pessoas deles os actos sexuais de relevo de que os autos dão conta nos 32 episódios […], o que sempre fez renovando o seu propósito criminoso, como os factos provados dos n.º 5, 9, 14, 16, 20, 23 e 25 inequivocamente demonstram.

E assim tendo sido, como foi, está fora de qualquer cogitação uma qualquer ideia unificação das condutas, por trato sucessivo e, ou, por unicidade de resolução, a que, repete-se, os factos assentes não dão qualquer apoio».

Concluindo, o acervo factual dado como provado demonstra a existência de uma pluralidade de resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal.

Assim, a factualidade fixada no acórdão recorrido não é de caracterizar nos termos pretendidos pelo recorrente, ou seja não é enquadrável na figura do crime de trato sucessivo, pelo que se decide manter a qualificação jurídica ali efectuada, no sentido da existência de um concurso efectivo de crimes, improcedendo, nesta parte, o recurso.


4. Da medida das penas parcelares


4.1. O Recorrente não apresenta, com verdadeira autonomia, argumentação em oposição à medida concreta das penas parcelares. Insiste, isso sim, na pretensão de ser punido pela prática de 5 crimes de abuso sexual de crianças, em vez dos 32 crimes considerados no acórdão recorrido, devendo, «por isso, a medida concreta da pena ser revista».

De todo o modo, não questiona o recorrente as penas de prisão fixadas no acórdão recorrido pela prática dos dois crimes de violação agravada, do crime de pornografia de menores, dos dois crimes de coacção agravada, do crime de violação de domicílio e do crime de dano.


4.2. O tribunal colectivo fundamentou as penas parcelares relativas aos crimes de violação agravada e aos apontados crimes de abuso sexual de crianças nos seguintes termos:


   «Da conjugação do disposto nos artigos 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 7 ( nº 6, na versão anterior à introduzida pela Lei nº 83/2015, de 5/8), do Código Penal, resulta, para o crime de violação praticado com menor de 14 anos, a pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão a 15 (quinze) anos de prisão.

   Conforme resulta do acima exposto, o arguido praticou dois crimes de violação agravada, na pessoa dos menores FF e HH p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 7 (e nº 6, quanto ao menor HH, na versão anterior à introduzida pela Lei nº 83/2015, de 5/8) do Código Penal.

    Cumpre, então, fixar a medida concreta das penas parcelares de prisão, tendo em consideração a moldura acima indicada.        

Tal operação deve atender ao critério fixado pelo art.º 71.º, n.º 1, do Código Penal, o qual dispõe que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

    Por conjugação com o disposto no art.º 40.º do diploma acabado de citar, é possível retirar a conclusão de que à culpa caberá fornecer o limite máximo da pena que ao caso deve ser aplicada e para além do qual se estará perante uma instrumentalização da dignidade humana do delinquente, sendo em função de considerações de prevenção – geral de integração e especial de socialização – que deve ser determinada, abaixo daquele máximo, a medida final da pena.

       A articulação entre ambas as finalidades faz-se de molde a que seja a prevenção especial a determinar, em último termo, a pena a aplicar, sem prejuízo de não se poder descer abaixo do limiar mínimo de prevenção geral, sob pena de o ordenamento jurídico se pôr a si próprio em causa.

A este respeito e quanto à culpa, há que ponderar, em termos gerais, o prolongamento no tempo dos abusos - 2012 a 2018 -, praticados pelo arguido, a reiteração criminosa, o número de vítimas envolvidas (todas menores de 14 anos) e a persistência na resolução criminosa, que encerra culpa agravada.

  Daqui decorre que o arguido teve empo para amadurecer os seus propósitos, que apesar disso não abandonou – nem sequer quando os menores manifestaram resistência, já em plena fase de execução, como também resultou provado. Revelou, assim, uma particular resistência à força de apelo dos valores jurídico-penalmente tutelados.

    Por outro lado, a gravidade concreta da actuação do arguido resulta ainda de, no contexto de cada concreta actuação, este ter constrangido os menores à prática de mais do que um acto sexual – v. g., coito anal, coito oral, manipulação dos órgãos genitais e ânus etc., quando estes ainda tinham 9, 10 e 11 anos de idade.

Por fim, cabe ainda ressaltar que o arguido praticou alguns actos sexuais, na modalidade de sexo anal, sem uso de preservativo e indiferente à possibilidade de lhes transmitir possíveis doenças venéreas.

Cabe ainda ponderar o especial vínculo de amizade e confiança que ligava o arguido aos menores, o que imponha maiores contra-motivações éticas ao arguido.

   Ainda quanto à culpa, importa considerar a gravidade das consequências da conduta do arguido para as vítimas, já que, os ofendidos passaram a evidenciar alterações de humor (instabilidade), alterações de sono e pesadelos recorrentes com referência à experiência traumática, assim como défices no funcionamento social e afectivo. Manifestam ainda sintomas depressivos, desconfiança interpessoal, baixa auto-estima, baixo auto-conceito e medo da estigmatização social.

     São, por outro lado, muito elevadas as exigências de prevenção geral associadas ao comportamento do arguido, atenta a grande perturbação social suscitada pelo tipo de condutas aqui em causa, que envolvem a agressão a bens fundamentais da personalidade de menores e que, além do mais, abalam em grande medida os sentimentos de coesão social, já que estão em causa agressões que ocorrem no seio das relações de vizinhança, que é um dos esteios do desenvolvimento e socialização da pessoa e que se pretende que funcione como refúgio de carinho e protecção.

   Por outro lado, ao nível da prevenção especial, importa ressaltar que o arguido é primário, está familiarmente integrado, mas não evidenciou qualquer arrependimento.

     Há, ainda, que referir que, conforme consta do relatório social do arguido embora verbalize reconhecer a ilicitude penal dos actos aqui em causa, mostra dificuldade em avaliar os danos para as vitimas decorrentes de tais tos, tendo tendência para atenuar a sua gravidade.

     Quanto a este concreto ilícito, quanto à culpa, há que ponderar o desvalor da acção decorrente do dolo do arguido – que se tem que considerar directo – e da elevada energia criminosa por este manifestada, pois que se provou:

- quanto ao menor FF, que o arguido, usando da sua força física, amarrou o menor FF pelo pescoço, impedindo-o que pudesse mexer-se, virou-o de costas, despediu-lhe as calças e cuecas e introduziu o pénis erecto no ânus do menor – Cfr. ponto 15º da factualidade provada;

- quanto ao arguido HH, que o arguido, usando da sua força física, agarrou os braços do menor colocando-os atrás das costas, impedindo-o que pudesse mexer-se e depois de baixar as suas calças e cuecas, introduziu o seu pénis erecto no ânus do menor – Cfr. ponto 24º da factualidade provada;

Ou seja, o arguido usou a sua força física e deparou-se com a resistência dos menores e, não obstante, manteve-se indiferente aos seus apelos, revelando uma particular firmeza de propósito – firmeza que, para além de lhe permitir superar a muito importante contramotivação ética decorrente da especial relação de confiança e amizade existente, foi capaz de o imunizar relativamente aos apelos que lhe eram dirigidos por duas crianças com 13 anos, seres particularmente indefesos. 

     Em contrapartida, é reduzido o grau de violência empregue, que se traduziu, quanto ao menor FF em agarrá-lo pelo pescoço e quanto ao HH, em agarrar-lhe ambos os braços, colocando-os atrás das costas, fazendo-se valer da sua superioridade física. 

     Ainda quanto à culpa, importa considerar a gravidade das consequências da conduta do arguido para os menores.

     São, por outro lado, muito elevadas as exigências de prevenção geral e especial, remete-se para o acima referido, em termos genéricos, para todos os ilícitos praticados pelo arguido.

    Da conjugação de todos estes factores, resulta como justas e suficientes as penas parcelares de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão para cada um dos crimes de violação agravada, praticadas na pessoa dos menores FF e HH.

                                                                       *

    Do disposto nos artigos 171.º, n.º 1, do Código Penal, resulta, para o crime de abuso sexual de criança, a pena de 1 (um) ano a 8 (oito) anos de prisão.

    Conforme resulta do acima exposto, o arguido praticou treze crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, do Código Penal (um crime, na pessoa do menor DD, 10 crimes na pessoa do menor FF, 2 crimes na pessoa do menor HH)

      Cumpre, então, fixar a medida concreta das penas parcelares de prisão, tendo em consideração a moldura acima indicada.

Os factores a considerar quanto à culpa e às exigências de prevenção geral e especial são idênticos aos acima referidos, com excepção do que se refere em especial ao concreto desvalor da acção que, no caso, é de considerar elevado, dado que envolvem o contacto dos órgãos genitais, no que já constitui um claro acto de execução da cópula.

Por outro lado, importa considerar a pluralidade de actos envolvidos que vão desde o apalpar e friccionar o pénis dos menores em causa, acariciar o rabo dos menores, junto à zona do ânus, etc…

Atento o exposto, afigura-se adequado fixar a pena a aplicar a cada um dos 13 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, as penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão.

                                                           *

    Da conjugação do disposto nos artigos 171.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, resulta, para o crime de abuso sexual de criança agravado, a pena de prisão 3 (três) anos de prisão a 10 (dez) anos de prisão.

    Conforme resulta do acima exposto, o arguido praticou 19 crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 2 do Código Penal (5 crimes, na pessoa do menor DD, 9 crimes na pessoa do menor EE, 3 crimes, na pessoa do menor FF, 2 crimes, na pessoa do menor GG)

     Cumpre, então, fixar a medida concreta da pena de prisão, tendo em consideração a moldura acima indicada.

Os factores a considerar quanto à culpa e às exigências de prevenção geral e especial são idênticos aos acima referidos, com excepção do que se refere em especial ao concreto desvalor da acção que, no caso, é de considerar elevado, atentas as condutas em causa – obrigar os menores a praticar consigo coito oral, na modalidade passiva e sofrer a prática de coito anal actos que envolvem uma especial humilhação e invasão da intimidade dos menores.

Atento o exposto, afigura-se adequado fixar a pena a aplicar a cada um dos crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 2, 5 (cinco) anos de prisão.»


4.3. No essencial a justificação para a fixação destas penas singulares afigura-se-nos correcta, merecendo a nossa concordância. Elas são adequadas e ajustadas em face da gravidade das condutas, da sua ilicitude, e não ultrapassam a medida da culpa.

Como se sublinha no acórdão deste Supremo Tribunal, de 28-04-2016 (Proc. n.º 252/14.9JACBR – 3.ª Secção), convocado igualmente no citado acórdão de 21-02-2018, na secção do Código Penal dedicada aos crimes contra a autodeterminação sexual, visa-se «o direito à protecção da sexualidade numa fase inicial ou em desenvolvimento da personalidade, que, pelas suas características, é carecida de tutela jurídica».


Consagram-se aí tipos «tipos preordenados à protecção da juventude e infância», sendo que, conforme assinalam JOSÉ MOURAZ LOPES e TIAGO CAIADO MILHEIRO, «as perturbações fisiológicas e psicológicas que um precoce despertar sexual (seja ou não violento ou consentido) pode provocar, são factos e motivos suficientes para uma tutela jurídica efectuada naqueles termos»[20].


Segundo TERESA PIZARRO BELEZA, a ideia de atentado ao pudor foi substituída pela de desrespeito pela autodeterminação sexual, pois «já não é o pudor da criança ou do jovem (...) que está em causa – ele pode, até, ser inexistente e nem por isso o crime deixa de existir ou o Direito ficciona um pudor inexistente – mas a convicção legal (iuris et de iure, dir-se-ia) de que abaixo de uma certa idade ou privada de um certo grau de autodeterminação a pessoa não é livre de se decidir em termos de relacionamento sexual».


«O bem jurídico ofendido por um acto sexual de relevo, que seja praticado com, em ou perante uma criança, já não é o pudor, salienta esta autora, mas as potencialidades de desenvolvimento, não excessivamente condicionado ou traumatizado por experiências demasiado precoces»[21].


Também JORGE DE FIGUEIREDO DIAS considera que «[a] lei presume (…) que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor (…); e considera este interesse (no fundo, um interesse de protecção da juventude) tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob ameaça de pena criminal»[22].


Os crimes contra a autodeterminação sexual são crimes de perigo abstracto. Para PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «[o] perigo abstracto resulta da presunção legal do prejuízo dos actos descritos na lei para o livre desenvolvimento da personalidade da criança»[23].


M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO realçam a finalidade visada: a protecção do desenvolvimento sexual das crianças, preservando-as do envolvimento prematuro em actividades sexuais.

«O bem jurídico protegido – referem os autores – é a autodeterminação sexual, face a condutas sexuais que, mesmo sem constrangimento, (embora com possível importunação ou mero contacto) podem prejudicar o livre desenvolvimento da personalidade do menor, em particular na esfera sexual», sequência que aponta para um crime de perigo abstracto, acrescentando que «no caso de abuso sexual agravado, a vítima (mesmo quando tenha experiência sexual anterior ou tenha tomado a “iniciativa”) é uma criança, pelo que na cópula com ela o agente é quem tem o domínio efectivo da situação. Por isso, a criança, quer esteja na posição sexualmente activa quer na passiva, acaba sempre por sofrer, sem que propriamente se diga que está a praticar, enquanto que o adulto, homem ou mulher, colocado na posição sexualmente activa ou passiva, está a praticar e não a sofrer»[24].


Nos crimes sexuais tutela-se a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; liberdade de crescer na relativa inocência até à adolescência, até se atingir a idade da razão para aí se poder exercer plenamente aquela liberdade, considerou o Prof. Figueiredo Dias, in Actas de Revisão de 95, do CP, pág. 246, pois é benéfico que o processo de desenvolvimento da liberdade sexual das crianças se exercite de forma sadia, sem pressas ou sobressaltos, de risco incontrolável, se bem que dificilmente se conceba a sua evolução em ambiente asséptico, totalmente puro, à margem de influência, no dizer de Heloísa Pinto, in A Sexualidade na Escola, Ed. Summus, S. Paulo, 1997, 46.


No acto sexual de relevo praticado com, em ou perante uma criança já não é o pudor mas a potencialidade de desenvolvimento, não excessivamente condicionado ou traumatizado por experiências demasiadamente precoces, escreveu Teresa Beleza, in O Repensar dos Crimes Sexuais, Revisão do Código Penal, Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, pág., 169, sobretudo quando sustentados por uma vontade controlada, “ viciada “ (cf. A Tutela Penal da Liberdade Sexual, de Inês Ferreira Leite, pág. 9) por terceiro, por factores exteriores, terceiro esse que se acha numa posição de ascendência sobre a vítima, incapaz de se furtar, em razão de uma infra avaliação do seu alcance, do seu desígnio libidinoso, tendo a idade, à medida que a criança nela avança, consabida eficácia portadora de uma maior consciencialização do malefício e de gradual inflexão».


No caso presente, é muito acentuada a gravidade da ilicitude das condutas do arguido, sendo muito intensa a sua culpa. Actuou em todas as situações, radicando-a na sua vertente mais grave – o dolo directo.

Como circunstância agravante tem de se salientar, como o faz a decisão recorrida, relativamente aos crimes de violação, a indiferença que manteve relativamente aos apelos dos menores, «revelando uma particular firmeza de propósito – firmeza que, para além de lhe permitir superar a muito importante contramotivação ética decorrente da especial relação de confiança e amizade existente».


Tendo em atenção os bens e valores acautelados pelas respectivas normas incriminadoras, é indubitável serem graves as consequências dos actos praticados pelo arguido.


As exigências de prevenção geral são muito intensas e prementes, fazendo-se sentir especialmente nos crimes de abuso sexual de crianças tendo em conta o bem jurídico violado e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do alarme social e insegurança que estes crimes causam na comunidade, justificando-se uma resposta punitiva firme.


São igualmente fortes as necessidades de prevenção especial. O arguido já cumpriu pena de prisão pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada. Acresce que, como é referido no relatório social, o arguido, embora reconhecendo a ilicitude penal dos factos praticados, mostra dificuldade em avaliar os danos decorrentes para as vítimas, tendo tendência para atenuar a sua gravidade. «Do [seu] percurso vivencial sobressai a inserção em contexto familiar instável e disfuncional, factores que não conseguiram promover as condições necessárias para um desenvolvimento formativo e profissional consistente e investido».


À luz das considerações expostas e tendo em devida conta a moldura penal prevista para os crimes praticados pelo arguido assim como todas as circunstâncias em que eles ocorreram, consideramos adequadas as penas singulares aplicadas na decisão recorrida, pelo que se mantêm.


5. Medida da pena única


O arguido foi condenado na pena única de 19 anos de prisão assente na fundamentação que se transcreve:


«Verificando-se que os crimes pelos quais é condenado o arguido foram cometidos em concurso efectivo, importa fixar uma pena única, nos termos do art.º 77.º nºs 1 e 2, do Código Penal, o qual estabelece que:

  “1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

   2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”.

           

Resulta, deste modo, uma moldura penal, para o cúmulo, de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses – correspondente à pena parcelar mais elevada – a 25 (vinte e cinco) anos de prisão – correspondente ao máximo legal, já que a soma das penas concretas ascende a 135 (cento e trinta e cinco) anos e 2 meses de prisão.

Considerando os factos no seu conjunto, cumpre referir o número de crimes praticados e o lapso de tempo considerável durante o qual o arguido reiterou a sua conduta – dado que estão em causa crimes praticados entre 2012 e 2018 – e manteve inalterados os seus intentos, não obstante a resistência que lhe foi sendo oferecida pelos menores, o número de menores envolvidos (5 menores), sobressaindo, na imagem global do facto, o aproveitamento pelo arguido da especial vulnerabilidade dos menores, seja em razão da sua tenra idade, seja em razão da condição social e económica dos respectivos agregados familiares.

Tendo especialmente em consideração tais circunstâncias, o Tribunal fixa a pena única a aplicar ao arguido em 19 (dezanove) anos de prisão.»


A pena única a aplicar em cúmulo jurídico deverá englobar 13 penas de 2 anos de prisão, 19 penas de 5 anos de prisão, 2 penas de 7 anos e 6 meses de prisão, 2 penas de 1 ano e 6 meses de prisão, uma pena de 1 ano de prisão, uma pena de 2 meses de prisão e, finalmente, uma pena de 6 meses de prisão.

A moldura penal do cúmulo, de acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, estará compreendida entre o limite mínimo de 7 anos e 6 meses de prisão (pena parcelar mais elevada) e 25 anos de prisão (limite máximo legal).

Sobre a pena única e para os casos em que aos crimes correspondem penas parcelares da mesma espécie, considera MARIA JOÃO ANTUNES que «o direito português adopta um sistema de pena conjunta, obtida mediante um princípio de cúmulo jurídico»[25].


A pena única do concurso, formada nesse sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes, deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.

           

   Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-12-2006 (Proc. n.º 06P3379), «na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita a avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso».

     Por seu lado, lê-se no mesmo acórdão, «na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente».


Neste domínio, dá-se nota no acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-05-2015, proferido no processo n.º 220/13.8TAMGR.C1.S1-3ª Secção, «o Supremo Tribunal tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com “a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, e, assim, [i]mportante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos (-), tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele (-)»[26].


    Na determinação da pena conjunta, impõe-se atender aos princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso[27], imbuídos da sua dimensão constitucional, pois que «[a] decisão que efectua o cúmulo jurídico de penas, tem de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação – conjunta - dos factos e da personalidade, importando, para tanto, saber – como já se aludiu - se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese, por exemplo se foram fruto de impulso momentâneo ou actuação irreflectida, ou se de um plano previamente elaborado pelo arguido”, sem esquecer, que “[a] medida da pena única, respondendo num segundo momento também a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente: a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não eliminar, pela duração, as possibilidades de ressocialização (embora de difícil prognóstico pelos antecedentes)”»[28].


A decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado.

    A decisão que fixe a medida concreta da pena do cúmulo não pode, designadamente, deixar de se pronunciar sobre se a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo autor ou a influenciou, «para que se possa obter, como se considera no acórdão que vem de se citar, uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, ou revela pluriocasionalidade (…), bem como ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).


Tendo em conta o nexo espácio-temporal existente entre os crimes, abrangendo os meses de Junho a Setembro de 2012, os anos de 2013 e 2014, 2016 -2017 e Fevereiro de 2018, os motivos envolventes da sua prática, somos levados a concluir que a pluriocasionalidade observada radica na personalidade do arguido, impedindo que a pena se possa situar junto de qualquer limite mínimo.


A actividade delituosa no âmbito dos crimes praticados pelo arguido perdurou ao longo de vários anos, observando-se homogeneidade na execução dos crimes de abuso sexual de crianças, com repetição do mesmo modo de actuação.


Estão em causa crimes praticados contra cinco menores, sobressaindo, na imagem global do facto, uma atitude especialmente censurável do arguido. O abuso sexual de crianças representa uma catástrofe na vida da vítima, afectando o núcleo mais pessoal, mais íntimo, da sua identidade.


A ilicitude global do comportamento do arguido, revelada nos crimes cometidos, é muito elevada, observando-se aqui intensas exigências de prevenção geral.


    No caso sub judice, a moldura penal do concurso tem uma grande amplitude, nela estando compreendidas penas singulares, na sua maioria, de equivalente dimensão, só devendo contar para a pena conjunta uma fracção menor de cada uma dessas penas, como este Supremo Tribunal tem considerado em contextos semelhantes, pois que, se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta – compressão e proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar no conjunto de todas elas.

           

     Daí que, tudo ponderado, valorando globalmente os factos e a personalidade do arguido, tendo presente que a pena conjunta há-de ser fixada nos limites da moldura abstracta apontada e aplicando aquela ideia de proporcionalidade e de compressão das penas em concurso, se justifique que a pena única (19 anos de prisão) fixada na decisão recorrida sofra uma correcção no sentido da sua diminuição.


      Consideramos que uma pena conjunta de 14 anos de prisão será mais adequada e ajustada à gravidade da conduta global do arguido e satisfaz os interesses da prevenção, procedendo parcialmente o recurso.


 III – DECISÃO


   Nos termos expostos, acordam em conferência os juízes que compõem a 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:

  a) Manter o enquadramento jurídico operado na decisão recorrida e as penas parcelares aí aplicadas ao recorrente, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto por AA;

   b) Conceder parcial provimento ao recurso interposto, condenando o recorrente AA, em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena conjunta de 14 (catorze) anos de prisão, mantendo-se, quanto ao mais, a decisão recorrida.


 Sem custas (artigo 513.º, n.º 1, do CPP).

       

Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Novembro de 2019

(Texto elaborado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)


Manuel Augusto de Matos (Relator)

Lopes de Mota

_____________

[1]  Os números subsequentes são sequenciais aos números da motivação recursória.
[2] Do sumário respectivo, também acessível em www.stj.pt.
[3] Do sumário respectivo acessível em www.stj.pt.
[4] Do sumário respectivo, in www.dgsi.pt, também acessível em www.stj.pt.
[5] Do sumário respectivo, in www.dgsi.pt, também acessível em www.stj.pt.
[6]     Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais, 2016.
[7]    Apud ANA MARIA BARATA DE BRITO, “Notas da teoria geral da infracção na prática judiciária da perseguição dos crimes sexuais com vítimas menores de idade”, Revista do CEJ, n.º 15, págs. 293 a 316.
[8]    A Teoria do Concurso em Direito Criminal, 1996, Almedina.
[9]   Direito Penal – Parte Geral – Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, tomo I, 2.ª edição, 2007, Coimbra.
[10]    Código Penal Anotado, 3.ª edição, 1.º volume, 2002, Rei dos Livros, pp. 384 e 385.
[11]   Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, 2005, Universidade Católica Portuguesa, pp. 617 e segs..
[12]      Lobo Moutinho, ob. cit., p. 617.
[13]     Ob. cit., pp. 618-619.
[14]  Cf., entre outros, CAVALEIRO FERREIRA, Direito Penal Português, I, 4.ª ed., 1992, Verbo, p. 269, II, 1989, Verbo, p. 225; EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, I, 1949, Atlântida, p. 309, GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, II, 1998, Verbo, p. 32, Figueiredo Dias, ob. cit., p. 39 e LOBO MOUTINHO, ob. cit., p. 619.
[15]      Neste sentido, entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-03-2007 (Proc. n.º 1031/07-5.ª secção); de 17-05-2007 (Proc. n.º 1133/07-5.ª secção), cujo sumário está acessível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2007.pdf; de 23-01-2008 (Proc. n.º 4830/07-3.ª secção); de 29-11-2012 (Proc. n.º 862/11.6TDLSB.P1.S1-5.ª secção); de 12-06-2013 (Proc. n.º 1291/10.4JDLSB.S1-5.ª secção), e voto de vencido formulado pelo Conselheiro Maia Costa no acórdão de 14-05-2009 (Proc. n.º 36/07-5.ª secção), CJSTJ, 2009, tomo 2, p. 221.
[16]  Acessível nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt, como os demais acórdãos que se citarem sem outra menção.
[17]    Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais, Setembro de 2019.
[18]     “Crime de trato sucessivo (?)”, Julgar Online, Abril de 2018, p. 15.
[19]    No voto de vencido formulado no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-11-2012.
[20]     Crimes Sexuais – Análise Substantiva e Processual, Coimbra Editora, p. 140.
[21]    “O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, I Volume, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996, p. 169.
[22]    Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pp. 541-542.
[23]  Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, Novembro de 2015, p. 680.
[24]    Código Penal – Parte geral e especial, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, pp. 759-761.
[25]        Ob. cit., p. 56.

[26]   Acórdão de 12-09-2012 (Proc. n.º 605/09.4PBMTA.L1.S1 – 3.ª Secção).
[27]     Acórdão de 10-12-2014 (Proc. n.º 659/12.6JDLSB.L1.S1 – 3.ª Secção).
[28]     Acórdão de 27-06-2012 (Proc. n.º 70/07.0JBLSB-D.S1 – 3.ª Secção).