Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ORLANDO GONÇALVES | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM FALSIFICAÇÃO OU CONTRAFAÇÃO DE DOCUMENTO FURTO QUALIFICADO MODO DE VIDA FURTO TENTATIVA ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DEVER DE COMUNICAÇÃO CONCURSO DE INFRAÇÕES MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA ÚNICA PENA DE PRISÃO SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA IMPROCEDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 05/18/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
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Sumário : | I - A não comunicação ao arguido da convolação do crime de furto qualificado, sob a forma tentada, para um crime de furto simples, sob a forma tentada, por o Tribunal a quo considerar que este constitui um “minus” relativamente à acusação, e assim, não ser exigível a comunicação da alteração da qualificação jurídica, não viola as garantias de defesa do recorrente consagradas nos arts. 358.º, n.º 3, do CPP e 32.º, n.º 1, da CRP. II - Os “pedaços de vida” espácio-temporais descritos na factualidade dada como provada e a subsequente pluralidade de vítimas, exigiram ao arguido, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, uma pluralidade de resoluções autónomas e correspondente pluralidade de juízos de censura pela violação ou tentativa de violação do património de cada uma das concretas vítimas, com o correspondente preenchimento, em concurso efetivo, do crime de furto, sob a forma consumada ou tentada. III - A agravante do “modo de vida”, que integra a al. h) do n.º 1 do art. 204.º do CP - como as outras agravantes das als. a) e b) imputadas ao arguido -, preenche-se relativamente a cada um dos 6 crimes de furto praticados em concurso efetivo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 23/20.3GABNV.L1.S1 Recurso Penal
* Acordam, em Audiência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
1. Nos autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, n.º 23/20.3GABNV, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., sob acusação do Ministério Público, foram submetidos a julgamento, os arguidos AA e BB, devidamente identificados nos autos, imputando-se ao arguido AA a prática como autor e em concurso efetivo, de: - 3 crimes de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigo 204.º, n.º 1, alíneas a) b), h) e do Código Penal, por referência aos arts. 203.º, n.º1, 202.º, d), b); - 1 crime de roubo agravado, na forma consumada, p. e p. pelo art.210.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), com referência ao art.204.º, n.º 1, alíneas b), d), e h), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 67.ºA, n.º1, alínea b) do Código de Processo Penal; - 2 crimes de furto qualificado, sob a forma tentada, p. e p. pelo art.204.º, n.º 1, alíneas b), h), por referência ao artigo 203.º, n. 1, 202.º, 22.º, 23.º, 73.º do Código Penal; - 5 crimes de falsificação de documento agravado, na forma consumada, p. e p. pelo art.256.º, n.º 1, alínea a) e e) e n.º 3 do Código Penal, por referência ao art.255.º, alínea a) do mesmo diploma legal; e, Como coautor com pessoa de identidade não apurada, um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.204.º, n.º 1, alíneas b), h) e do Código Penal, por referência ao artigo 203.º, n.º1, 202.º do Código Penal ; e A ambos os arguidos, AA e BB, a prática, em coautoria e concurso real, de: - 1 crime de furto qualificado, sob a forma tentada, p. e p. pelo art.204.º, n.º 1, alíneas b), e h), por referência aos artigos 203.º, n.º1, 22.º, 23.º, 73.º do Código Penal; e - 1 crime de falsificação de documento agravado, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a) e e) e n.º 3, por referência ao artigo 255.º, alínea a) do Código Penal.
2. Realizada a audiência de julgamento - durante a qual foi comunicada uma alteração da qualificação jurídica, nos termos do art.358.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P., porquanto os factos referentes ao crime de roubo agravado, em que é ofendido CC, poderão integrar um furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alíneas b), d) e h), do C.P. e, ainda, foi declarado pelo ofendido DD pretender desistir da queixa por si apresentada contra o arguido -, o Tribunal Coletivo, por acórdão proferido a 15 de dezembro de 2022, decidiu julgar parcialmente procedente, por provada, a acusação deduzida pelo Ministério Público, e em consequência, além do mais: - Absolver o arguido AA de um crime de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo art.204.º, n.º 1, alínea a) b), h) e do Código Penal (factos 36.º a 40.º - EE); - Absolver arguido AA e a arguida BB de um crime de falsificação de documento agravado, na forma consumada, p.e p. pelo art.256.º, n.º 1, alínea a) e e) e n.º 3, do Código Penal, por referência o art.255.º, a) do mesmo diploma legal; - Operar a alteração da qualificação jurídica constante da acusação pública, imputando-se a AA um crime de furto simples, na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, alíneas b) e h), 22.º, n.º 1, 23.º, n.º 1 e n.º 2, 204.º, n.º 4, e 202.º, alínea c), do Código Penal, ao invés de um crime de furto qualificado tentado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 1, alínea b), h), por referência ao artigo 203.º, n. 1, 202.º, 22.º, 23.º, 73.º do Código Penal (factos 51.º a 63.º) e homologar a desistência de queixa realizada por DD relativamente ao mesmo e, consequentemente, declarar extinto o respetivo procedimento criminal nesta parte; e - Condenar o arguido AA: i. Pela prática, como coautor, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alíneas b) e h), do Código Penal (factos provados 17.º a 23.º - FF), na pena de 18 meses de prisão; ii. Pela prática, como autor, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alíneas a), b), e h), do Código Penal (factos 24.º a 35.º -GG), na pena de 2 anos de prisão; iii. Pela prática, como autor, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alíneas a), b), e h), do Código Penal (factos 41.º a 50.º -HH) na pena de 2 anos de prisão; iv. Pela prática, operada a alteração da qualificação jurídica, como autor, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alíneas b), d) e h), do Código Penal (factos 64.º a 74.º - CC), na pena de 1 ano e 2 meses de prisão; v. Pela prática, como coautor, de um crime de furto qualificado tentado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e n.º 2, 204.º, n.º 1, alíneas b) e h), por referência aos artigos 22.º e 23.º do Código Penal, (factos 51.º a 63.º - II), na pena de 1 ano de prisão; vi. Pela prática, operada a alteração da qualificação jurídica, como autor, de um crime de furto simples, na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, alíneas b) e h), 22.º, n.º 1, 23.º, n.º 1 e n.º 2, 204.º, n.º 4, e 202.º, alínea c), do Código Penal (factos 86.º a 96.º - JJ), na pena de 6 meses de prisão; vii. Pela prática, como autor, de cinco crimes de falsificação de documento agravado, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a) e e) e n.º 3, do Código Penal, por referência o artigo 255.º, a) do mesmo diploma legal, nas penas parcelares de 1 ano e 2 meses de prisão por cada um deles. viii. E, em cúmulo jurídico das precedentes penas, condenar o arguido na pena única de 7 anos de prisão.
3. Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o arguido AA, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição): I. Ora nos termos do disposto no artigo 204º nº 3 do CP e face a adoção do MP em incluir, na acusação, várias alíneas do artigo 204º a defesa no âmbito deste artigo orientou a sua defesa no sentido de ter por base a possibilidade de «desqualificar» a qualificativa operante mais gravosa «modo de vida», por forma a se fosse esse o entendimento do tribunal, eventualmente proceder à aplicabilidade do disposto no artigo 206º do CP. II. Por outras palavras: enquanto o crime cometido fazendo dos «furtos modo de vida» o legislador não possibilita a «transação» com os ofendidos, já quanto ao furto cometido exclusivamente em veículo é permitido a dita «negociação», bem como passando de furto qualificado (quaisquer que sejam as alíneas), para furto simples existe a possibilidade de desistência do procedimento criminal. III. No primeiro caso: é um crime público, mas com a possibilidade de se fazer operar a «extinção da responsabilidade criminal» mediante o preenchimento de determinados requisitos, como sejam a reparação integral dos prejuízos causados com a concordância dos ofendidos em por «fim ao processo». IV. No segundo caso: o crime é semipúblico e já permite a «desistência de queixa» pelo ofendido independentemente de existir reparação ou não dos prejuízos causados. V. Ora o tribunal a quo antevendo que iria desqualificar o crime de furto tanto pela al. b) do nº 1 do artigo 204º e bem assim da alínea h) do mesmo artigo, ( 204º nº 4 do CP), deveria ter prevenido os arguidos para querendo, (neste caso), até à publicação do acórdão (116º nº 2 do CP), diligenciar, pelo preenchimento do disposto no artigo 203º nº 3 do CP., com a necessária relevância penal., situação que tal como constava da acusação era completamente inoperante, posto que, impossível de ter aplicação, ao caso em concreto… mas não o fez. VI. E na verdade, a relevância é de tal maneira forte que estamos, face à aplicabilidade de uma pena de prisão efetiva e/ou o consequente arquivamento dos autos!... VII. Donde deveria o tribunal ter comunicado a eventual «eliminação» da qualificação jurídica mais grave constante da acusação, e mesmo que para figura menos grave, em virtude da possibilidade legal de se poder extinguir a responsabilidade criminal. VIII. Não se trata no caso concreto de a moldura da medida da pena ser mais leve mas sim da eventualidade face à inaplicabilidade da figura criminal mais grave de não ter de ser condenado por qualquer crime. IX. Situação diferente será aquela em que o tipo legal base jamais permite a extinção da responsabilidade criminal ou a desistência de queixa, como é o caso, entre outros, do crime de homicídio ou o crime de roubo, tantas vezes referido na doutrina e jurisprudência para afastar (e bem nesses casos) a aplicabilidade do artigo 358º nº 1 e 3 do CPP. X. No caso em apreço, em que a acusação elenca, dentro do crime de base do crime de furto (artigo 203º do CP), vários nºs e alíneas agravativas do mesmo (artigo 204º nºs 1 do CP), em que algumas delas permitem a extinção da responsabilidade criminal e outras não (cf. Artigo 203º nº 3 e 206º do CP), devia o tribunal ter dado conhecimento ao arguido dessa intenção, que eliminando o tipo agravativo que não permite essa extinção, existia agora a possibilidade séria de o processo poder vir a ser arquivado, aliás, como o foi relativamente ao ofendido ( DD), que antes de qualquer pergunta referiu logo pretender desistir da queixa, apesar da homologação da mesma só ter existido com a prolação do acórdão recorrido, tanto mais que se tratava de um crime público, portanto inoperante, mas que em julgamento, nada fazia antever esse desfecho para o arguido, tanto mais que era uma «pergunta inócua», constatada pela defesa face à posição assumida pelo tribunal. XI. Decidiu o tribunal Não se procede à comunicação prevista no artigo 358.º, n.º 1 e n.º 3, nesta parte, uma vez que os ilícitos ora imputados ao arguido se traduzem num minus relativamente àqueloutros pelos quais se encontrava acusado.” XII. Na verdade, deveria o tribunal ter interpretado o artigo 358º nº 3 do CP, no sentido de ser dada a oportunidade ao arguido ora recorrente para «preparar a defesa» por forma a poder diligenciar, a extinção da responsabilidade criminal nos termos do disposto do artigo 203º nº 3 do CP, face à eliminação das agravativas (204º nº 4 do CP), que obstaculizavam a aplicação do mesmo, sob pena de interpretação normativa inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32º nº 1 da CRP. XIII. Assim interpretou tal norma no sentido de não ser necessária a comunicação a que alude o artigo 358º nº 1 e 3 do CPP quando os ilícitos imputados (crimes semipúblicos) se traduzem num minus relativamente aos ilícitos pelos quais se encontrava acusado (crimes públicos). XIV. Ora, se a aplicação de uma determinada norma favorável ao recorrente, não constava da acusação e, se através da desqualificação jurídica do crime, já permite a sua aplicabilidade, então através dessa «alteração» da qualificação jurídica, deveria ter sido dado conhecimento ao arguido desse facto jurídico, para, querendo, diligenciar com os ofendidos a extinção da responsabilidade criminal. XV. E nem se ouse dizer que podia tê-lo feito antes da sentença, independentemente de tudo o que acima se alegou, posto que é bem diferente o arguido fazer um «esforço», para ressarcir integralmente os prejuízos causados aos ofendidos, sabendo que com esse «esforço», é imediatamente compensado com o arquivamento dos autos, e, consequentemente, nem sentença condenatória existe, daquela em que só poderá ser relevante para a medida da pena, mas em que o julgamento e a condenação são uma realidade?!... XVI. Por isso apesar da desistência da queixa no decorrer do julgamento (KK) ainda assim deu como provados todos os factos relativamente ao mesmo apesar da extinção, á posteriori, da responsabilidade criminal… mesmo sem legitimidade do MP para perseguir criminalmente o arguido os factos criminais ficaram a constar do acórdão condenatório!... XVII. Entendemos assim que tem toda a aplicabilidade os ensinamentos do douto acórdão no ponto II cujo link abaixo se identifica XVIII. “II - A defesa do arguido deve contemplar todas as expectativas admissíveis tanto relativamente aos factos a apreciar, como à qualificação jurídica dos factos, cujo direito de a discutir e dela discordar, tem-lhe de ser assegurado, através do exercício pleno do contraditório”. XIX. Donde não o tendo feito, está o douto acórdão recorrido, ferido da nulidade da sentença, prevista na alínea b) do nº 1 do artº379º CPP, com as legais consequências. XX. Foi em execução de uma resolução inicial criminosa que praticou os crimes de que foi acusado como «modo de vida» e que sucedeu de forma constante e ininterrupta, conforme confessadamente se espelha no douto acórdão recorrido. XXI. Tratou-se de uma decisão assumida, deliberada, pensada uma única vez, não existindo mais necessidade de renovar o processo de motivação, pelo que a actuação do recorrente realiza um único tipo legal de crime, previsto no art.º 204º nº 1 al. h), e 256º nº 1 als. a) e) e 3 do C. P. XXII. Verdadeiramente estamos perante aquilo que Jeschek (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª edição espanhola, pág. 650) designa por “unidade típica de acção em sentido amplo”, a qual exige que a “lesão do bem jurídico sofra apenas uma agravação puramente quantitativa mediante a repetição plural do tipo ilícito unitário e que, além disso, o facto responda a uma situação motivacional unitária (culpabilidade unitária); ou seja uma acção que pressupõe que as condutas parcelares respondam a um só desígnio criminoso (unidade subjectiva) e realizem um único tipo legal de crime (unidade objectiva)- cfr. Santiago Mir-puig, “ Derecho Penal, Parte General” 657. XXIII. E é isso que, como se disse, salvo devido respeito por melhor e superior opinião, se verifica no caso dos autos. XXIV. Estamos, pois, em presença de um único crime de furto e de um único crime de falsificação (porque neste caso entendemos que os bens jurídicos protegidos por estes crimes são diferentes), e por isso a punir em conformidade com o acima exposto. XXV. Alias, a este propósito (embora por crime diverso), já assim decidiu o Douto acórdão da Veneranda Relação de Coimbra de 02-03-2005 que decidiu: “A condenação pela agravante “modo de vida” do crime de burla impede, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, a condenação cumulativa por cada um dos atos isolados integrados naquela agravante.”, XXVI. Pelo que se conclui que a conduta destes arguidos apenas podem ser agravadas uma vez por esta circunstância, ainda que relevando a soma das atuações para efeito do grau de ilicitude a ponderar em sede de medida da pena concreta”. XXVII. Assim como se espelha no Douto aresto acima referido a interpretação normativa que o tribunal recorrido fez das condutas do ora recorrente na vertente da dupla punição pela prática dos mesmos factos, é violadora do disposto no artigo 29 n.º 5 da nossa Lei Fundamental. XXVIII. Devia assim o arguido, ora recorrente ter sido condenado por um único crime de furto qualificado pelo «modo de vida» enão pelos 6 crimes como efetivamente o foi, e por um único crime de falsificação de documento. XXIX. Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, em bom rigor nem se pode falar em falsificação de chapa de matrícula, porquanto o conceito legal previsto no citado Decreto-lei refere expressamente que os automóveis devem possuir duas chapas de matrículas, uma à frente e outra à retaguarda (artigo 7º nº 1), de forma inamovível (nº5), ou seja, que não possa ser retirada sem o auxílio de uma ferramenta (nº 6). XXX. E, no caso em concreto, ambas as chapas de matrícula eram verdadeiras, posto que apostas no veículo de forma inamovível, sendo essas, e só essas, o documento de identificação do veículo. XXXI. Seja como for, através de um mero exame perfunctório, das imagens, visualizadas, sem qualquer esforço, apreensível por qualquer observador, parece existir dificuldade do documento com a realidade ou da sua leitura com a realidade. XXXII. Por isso muito nos surpreendeu quando o tribunal deu como adquirido a aptidão do meio empregue «já que o meio utilizado, particularmente se avistado à distância ou através de câmaras de vigilância era idóneo a enganar – como enganou – quem olhasse para as matrículas,». XXXIII. Apesar disso, em caso em que as matrículas tinham apostos material sintético autocolante por cima dos números e letras, essa alteração, para um qualquer observador medianamente conhecedor e informado, tornava-se imediatamente percetível que a letra e dígito alterados não correspondiam aos originais que quando “apresentados” às autoridades facilmente se detetaria a “irregularidade”. XXXIV. Aliás, qual diferença entre ter material sintético para dificultar a identificação da matrícula com a aposição de autocolantes com dois dígitos ou ter a matrícula dobrada, ou, estar a mesma coberta com lama, tinta ou sujidade? XXXV. O fim era exatamente o mesmo, mas não era crime mas sim contraordenação. XXXVI. Pelo que, pelos motivos expostos o arguido deve ser absolvido dos crimes de falsificação. XXXVII. Quanto à medida da pena única de 7 anos de prisão, em concurso, devia o tribunal recorrido ter aflorado uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduziria, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menos das outras. XXXVIII. Donde sendo a pena parcelar mais elevada de 2 anos, e as restantes entre 6 meses e 2 anos, propugnamos para o arguido ora recorrente uma pena única, que não ultrapasse os 5 e 6 meses de prisão. XXXIX. E, no caso de não superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova e deveres, conforme se motivou e para aí integralmente se remete. XL. O aliás, douto acórdão recorrido, por erro e má interpretação e aplicação do direito violou as disposições legais supra referidas. Nestes termos e nos melhores de direito deverão V. Exas conceder provimento ao recurso, e, em consequência: a) Declarar nulo o acórdão, ordenando, que o mesmo cumpra, no caso concreto, o disposto no artigo 358º nº 1 e 3 do CPP; b) Condenar o arguido num único crime de furto, agravado pela qualificativa «modo de vida» e num crime único de falsificação de documento. c) Ou no seu insucesso, reduzir a pena única a que o ora recorrente foi condenado, e em qualquer dos casos, sempre com a devida vénia e, misericordiosamente, que a pena única aplicada não ultrapasse os 5 anos de prisão e seja suspensa na sua execução por igual período acompanhada com regime de prova e deveres de conduta, considerando a sua idade e doença grave e irreversível.
4. O Ministério Público, no Juízo Central Criminal ..., respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): a) O Colectivo para condenar o arguido/recorrente baseou-se nos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como os documentos e relatórios, tudo conforme consta do acórdão em crise. b) Na aplicação da medida da pena o Colectivo atendeu, de forma rigorosa, aos preceitos legais em vigor. c) A comunicação prevista no artº 358 nº 3 do CPP, não é necessária quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de uma infracção criminal que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia. d) Assim sendo e não ocorrendo violação ao disposto no citado dispositivo legal inexiste válida razão para se propugnar a nulidade do acórdão da 1ª instância por violação do aludido preceito legal. e) A circunstância “modo de vida”, como agravante qualificativa do crime estabelece-se em função do número de crimes do mesmo tipo que foram cometidos pelo arguido, em que relevam vários outros elementos que se se impõe ponderar – tais como o período de tempo em que se desenrolou a actividade criminosa, o valor do enriquecimento ilegítimo obtido com cada uma das ações criminosas, a ausência ou não de rendimentos (lícitos) do arguido e o seu montante, em conjugação com as suas condições económico-sociais. f) No caso em apreço não há dúvida que cada crime de furto que foi cometido pelo arguido foi antecedido da correspondente resolução no sentido de o cometer. g) Porém, tal “resolução “não se confunde com a eventual decisão tomada pelo arguido, a dado momento da sua vida, no sentido de que, a partir de então, passaria a dedicar-se à prática de furtos. h) Em suma, o que conta para a unificação da conduta criminosa do arguido, quando a mesma se desdobra em várias ações subsumíveis, cada uma delas, ao respectivo tipo legal, não é a primeira decisão tomada em abstracto, de que vai passar a viver da prática de furtos, mas sim a decisão de cometer determinado crime em concreto, em determinadas circunstâncias que pelo arguido foram concretamente analisadas e ponderadas e lhe permitiam passar à respectiva execução. i) O arguido não aduz elementos factuais (ponderosos) donde resulta que o Tribunal na aplicação da medida pena violou alguns dos princípios fundamentais, mormente foi desproporcional ou violou os parâmetros da culpa e as circunstâncias concretas do caso. j) A pena aplicada ao arguido mostra-se justa e adequada. l) Não nos merece, assim, o douto Acórdão recorrido, qualquer censura ou reparo. m) Pelo que não deve ser dado provimento ao recurso. n) E mantida a decisão da 1ª instância.
5. Por despacho de 16.03.2023, a Ex.ma Relatora do Tribunal da Relação de Lisboa, para onde os presentes autos foram remetidos pela 1.ª instância, julgou verificada a exceção de incompetência material, face ao disposto no art.432.º, n.º1, alínea c), do Código de Processo Penal e, declarando o Tribunal da Relação de Lisboa materialmente incompetente para conhecer do recurso, ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça.
6. Colhidos os vistos, e realizada a audiência requerida pelo arguido, cumpre decidir.
II Fundamentação 7. Em sede de decisão recorrida apurou-se a seguinte factualidade com pertinência para a decisão: a) Factos provados “(Da acusação) 1.º Os arguidos AA e BB são casados entre si (1.º da acusação). 2.º O arguido residia com a sua mulher na Rua ..., ... ..., desde data não concretamente apurada, mas pelo menos anterior a 15-07-2019 e até à data em que foi sujeito à medida de coacção prisão preventiva (2.º da acusação). 3.º AA coxeia ligeiramente (3.º da acusação). 4.º Em data não concretamente apurada, mas certamente anterior a 15-07-2019, AA formulou o propósito de se apropriar de quantias significativas em numerário que terceiros tivessem acabado de levantar em instituições bancárias ou que trouxessem consigo, de forma a fazer face às suas despesas habituais e viver de uma forma mais desafogada (4.º da acusação). 5.º Para o efeito, decidiu deslocar-se a instituições bancárias em diferentes zonas do país, nomeadamente, ..., ..., ..., ..., ... para evitar ser identificado e referenciado pelos órgãos de polícia criminal (5.º da acusação). 6.º AA decidiu que sempre que possível, actuaria em comunhão de esforços e vontades com a sua mulher BB ou, com um indivíduo cuja identidade não foi apurada, porém quando tal não se mostrasse possível, actuaria mesmo sozinho (6.º da acusação). 7.º Por sua vez, BB decidiu unir-se a AA na prossecução do referido plano, igualmente com o propósito de obter para si algumas somas em dinheiro que a ajudariam a pagar as suas despesas habituais (7.º da acusação). 8.º O plano delineado por todos passaria por caminharem na zona exterior das instituições bancárias espreitar para o interior das mesmas, através dos vidros, como se aguardassem a sua vez que ser atendido ou, de poder utilizar as máquinas de pagamento/levantamento para identificarem a sua vítima (8.º da acusação). 9.º Logo que percebessem que alguém tinha efectuado um levantamento de numerário preferencialmente numa quantidade que aparentasse ser significativa, seguiriam essas pessoas apeados e/ou de carro, de forma a que (9.º da acusação). 10.º Quando as vítimas parqueassem o veículo que conduzissem, os arguidos dirigir-se-iam ao mesmo e introduzir-se-iam no seu interior, forçando as portas ou partindo os vidros se necessário e levariam consigo todas as somas em dinheiro que encontrassem (10.º da acusação). 11.º Ainda por forma a iludir as autoridades e a dificultar a sua identificação AA decidiu que, para quebrar os vidros e se introduzir nos veículos utilizaria luvas e utilizaria um boné preto de pala (11.º da acusação). 12.º Na persecução do seu plano os arguidos decidiram usar o veículo da marca Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-ST (12.º da acusação). 13.º Quando o referido veículo estivesse indisponível, utilizariam o BMW, modelo 418, grand coupé, com a matrícula ..-..-AD (13.º da acusação). 14.º Não obstante ser o arguido AA quem o utiliza, por forma a evitar a sua identificação e referenciação, nunca registou, junto da Conservatória de Registo Automóvel, o veículo da marca Renault, Clio ..-..-ST, em seu nome, mantendo-o registado em nome de LL (14.º da acusação). 15.º Pese embora tenha decidido celebrar seguro de responsabilidade civil obrigatório sobre o referido veículo em seu nome a partir de 20-03-2019 (15.º da acusação). 16.º De igual forma, e para execução do plano previamente delineado e por forma a iludir as autoridades acaso fosse presenciado por alguma testemunha a executar o furto, AA decidiu colocar um autocolante numérico na sua matrícula por forma a que aí passasse a constar “..-..-ST” ao invés de “..-..-ST” ou “..-..-AD”, ao invés de “..-..-AD” (17.º da acusação). (NUIPC 573/19.... – Apenso B) 17.º No dia 15-07-2019, antes das 15h30, AA acompanhado por um indivíduo não concretamente identificado dirigiram-se à localidade de ..., concelho ..., concretamente, ao Banco Eurobic, situado no Centro Comercial ..., na Avenida ..., ... (18.º da acusação). 18.º Aí chegados posicionaram-se de forma a identificar algum indivíduo que procedesse ao levantamento de uma quantia avultada de numerário ao balcão (19.º da acusação). 19.º Cerca das 15h30 AA e o seu companheiro aperceberam-se que FF procedeu ao levantamento de uma quantia, a qual lhe foi entregue num envelope (20.º da acusação). 20.º De imediato, encetaram perseguição apeada a FF, alternando entre si quem efectuava o seguimento, tendo constatado que aquele guardou o numerário acabado de levantar no interior de uma mochila que, por seu turno, guardou no porta-bagagens do veículo da marca Audi, modelo A6, com a matrícula ..-BH-.., por si utilizado e parqueado junto ao Centro Comercial, na Rua ..., na ..., que trancou (21.º da acusação). 21.º Aproveitando-se do facto de FF ter regressado ao interior do Centro Comercial, deixando no interior do veículo o dinheiro acabado de levantar, AA e o seu companheiro, dirigiram-se ao veículo referido e, de forma não concretamente apurada, lograram abrir o porta bagagens (22.º da acusação). 22.º E do seu interior retiraram e fizeram seus, sem a autorização e contra a vontade de FF: 1 (uma) mochila, contendo no seu interior: a quantia de € 3.000,00 (três mil euros) em numerário BCE; e 1 (um) computador portátil da marca ..., com valor não concretamente apurado (23.º da acusação). 23.º Após, AA e o seu companheiro colocaram-se em fuga, para local não concretamente apurado (24.º da acusação). (NUIPC 23/20.3GABNV) 24.º No dia 23-01-2020, antes das 13h30, AA dirigiu-se a ... e, seguidamente, dirigiu-se à Caixa Geral de Depósitos, sita na Av. ..., gaveto com a Rua ... (25.º da acusação). 25.º Aí chegado posicionou-se de forma a identificar algum indivíduo que procedesse ao levantamento de uma quantia avultada de numerário ao balcão (26.º da acusação). 26.º Cerca das 13h30, apercebeu-se que GG procedeu ao levantamento de uma quantia avultada (27.º da acusação). 27.º Seguiu-o para o exterior do banco e apercebeu-se que aquele se introduziu num veículo da marca Renault, modelo Mégane, com a matrícula ..-UM-.. (28.º da acusação). 28.º Então AA introduziu-se no veículo da marca Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-ST e encetou perseguição ao veículo conduzido por GG (29.º da acusação). 29.º Cerca das 14h10 do mesmo dia, MM o veículo que conduzia na Avenida ..., no largo da ..., em frente à D..., em ... (30.º da acusação). 30.º AA apercebeu-se que GG, desconhecendo que estaria a ser seguido, deixou no interior do veículo em cima do banco dianteiro do lado direito a sua carteira e o envelope contendo o dinheiro acabado de levantar (31.º da acusação). 31.º De imediato, dirigiu-se ao veículo de GG e, de forma não concretamente apurada, partiu o vidro dianteiro do lado direito (32.º da acusação). 32.º Acto contínuo acedeu ao puxador da porta e abriu a porta e introduziu-se no interior do veículo, local de onde retirou e fez seu, sem autorização e contra a vontade de GG, um envelope contendo no seu interior € 5.475,00 (cinco mil, quatrocentos e setenta e cinco euros) em numerário (33.º da acusação). 33.º E provocou em consequência um prejuízo no valor de € 228,87 (34.º da acusação). 34.º Após, AA introduziu-se no seu veículo da marca Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-ST e abandonou o local, colocando-se em fuga, para parte incerta (35.º da acusação). 35.º Ainda em consequência da actuação do arguido resultaram estragos para o vidro dianteiro do veículo ..-UM-.., que ficou partido e cuja reparação ascendeu a € 228,87 (duzentos e vinte e oito euros e oitenta e sete cêntimos) (36.º da acusação). (NUIPC 79/20.... – Apenso A) 36.º No dia 20-02-2020, cerca das 11h00, EE procedeu ao levantamento de da quantia de € 4.000 (quatro mil euros), em numerário do BCE, a qual lhe foi entregue no interior de um envelope, após o que entrou num veículo da marca Kia, modelo Karens, com a matrícula ..-SG-.. (39.º e 40.º da acusação). 37.º Em hora não concretamente apurada, mas um pouco depois das 11h00, EE parqueou o veículo que conduzia no parque de estacionamento do estabelecimento A..., sito na Estrada Nacional N.º ...18, ao km 38,4, em ..., onde se deslocou momentaneamente e deixou no interior do veículo o envelope contendo o dinheiro acabado de levantar (42.º da acusação). 38.º Pessoa cuja identidade não se apurou dirigiu-se ao veículo e de forma não concretamente apurada partiu o vidro dianteiro do lado esquerdo (43.º da acusação). 39.º Acedeu ao puxador da porta, abriu-a e introduziu-se no interior do veículo, local de onde retirou e fez seu contra a vontade e sem a autorização de EE um envelope contendo no seu interior € 4.000,00 (quatro mil euros) (44.º da acusação). 40.º E, em consequência directa, causou estragos no vidro do veículo que importaram um custo com a sua reparação de valor não concretamente apurado (45.º da acusação). (NUIPC 363/20.... C) 41.º Em hora não concretamente apurada, mas seguramente anterior às 11h00, do dia 03-06-2020 AA dirigiu-se à localidade de ..., concelho ... e, seguidamente, dirigiu-se à Caixa Geral de Depósitos, situada na Rua ..., na ... (47.º da acusação). 42.º Aí chegado posicionou-se de forma a identificar algum indivíduo que procedesse ao levantamento de uma quantia avultada de numerário ao balcão (48.º da acusação). 43.º Cerca das 11h00, AA apercebeu-se que HH procedeu ao levantamento da quantia de € 9.500 (nove mil e quinhentos euros), a qual lhe foi entregue em 2 (dois) envelopes (49.º da acusação). 44.º De imediato, AA encetou perseguição apeada a HH, tendo constatado que aquele guardou os 2 (dois) envelopes contendo o numerário acabado de levantar na prateleira por baixo do porta-luvas da sua viatura, a qual se encontrava parqueado na Rua ..., na ... (50.º da acusação). 45.º HH dirigiu-se por momentos ao P... existente nas imediações, deixando no interior do veículo o dinheiro acabado de levantar (51.º da acusação). 46.º Em momento não apurado, o arguido colocou um autocolante numérico na sua matrícula por forma a que aí passasse a constar “..-..-ST” ao invés de “..-..-ST” (52.º da acusação). 47.º Calçou umas luvas de cor preta e dirigiu-se ao veículo da marca Renault Kangoo, com a matrícula ..-..-OS, pertencente a HH e desferiu um soco no vidro dianteiro do lado direito, quebrando-o (53.º da acusação). 48.º Acto contínuo debruçou-se no seu interior e revolveu o porta-luvas, de onde retirou e fez seus, sem a autorização e contra a vontade de HH, 2 (dois) envelopes, contendo no seu interior, € 9.500,00 (nove mil e quinhentos euros) em numerário (54.º da acusação). 49.º Em consequência directa da sua actuação, o vidro ficou partido, careceu de reparação a qual importou um custo de valor não concretamente apurado (55.º da acusação). 50.º Após, AA introduziu-se no veículo acima referido e colocou-se em fuga (56.º da acusação). (Aditamento ao Proc. N.º 23/20.3GABNV – ...) 51.º Cerca das 13h00, do 26-03-2021, AA e BB deslocaram-se ao Banco Millennium BCP de Sesimbra (57.º da acusação). 52.º Aí chegados, BB colocou-se no exterior do banco de forma a identificar algum indivíduo que procedesse ao levantamento de uma quantia avultada de numerário ao balcão (58.º da acusação). 53.º Cerca das 13h30 apercebeu-se que II procedeu ao levantamento de uma quantia em numerário em notas do BCE, o qual colocou no interior de uma bolsa plástica transparente (59.º da acusação). 54.º Seguidamente, BB seguiu-o e apercebeu-se que aquele se introduziu num veículo da marca Fiat, modelo Panda, com a matrícula ..-..-VV e colocou a bolsa transparente no compartimento existente na porta do condutor (60.º da acusação). 55.º Então, BB entrou no veículo da marca Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-ST, conduzido por AA e, de imediato, encetaram perseguição ao veículo conduzido por II (61.º da acusação). 56.º Cerca das 14h50, II o veículo que conduzia no parque de estacionamento do estabelecimento H..., sito na Rua ..., junto às traseiras do L..., em ..., onde se deslocou momentaneamente, a fim de adquirir alguns produtos (62.º da acusação). 57.º Ficando a sua mulher, NN, no interior do carro (63.º da acusação). 58.º A quem entregou € 950,00 (novecentos e cinquenta euros) da quantia que tinha acabado de levantar, que esta guardou na sua mala, ficando com parte para se deslocar ao interior do estabelecimento (64.º da acusação). 59.º Apercebendo-se que II tinha abandonado o veículo, AA dirigiu-se ao veículo de II, abriu a porta do condutor, colocou a mão no compartimento lateral e pegou na bolsa transparente, tendo dito a NN que a mesma estava no chão no lado exterior do carro e a pretendia arrumar, começando a vasculhar no compartimento da porta do condutor (66.º da acusação). 60.º Tendo NN saído do interior do veículo e ordenado a AA que parasse de vasculhar o referido compartimento e começado a gritar (67.º e 68.º da acusação). 61.º De imediato, o arguido introduziu-se no veículo que conduzia, e iniciou a marcha, abandonando o local sem se apoderar de qualquer valor, por motivos alheios à sua vontade e porquanto NN a tanto se opôs, (69.º da acusação). 62.º Na fuga, o arguido recolheu a arguida que se encontrava junto da entrada/saída do H... (70.º da acusação). 63.º Juntos, encetaram fuga, para parte incerta (71.º da acusação). (NUIPC 536/21.... – Apenso D) 64.º No dia 14-06-2021, cerca das 09h00, o arguido dirigiu-se à localidade do ... e, seguidamente, dirigiu-se à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, sita na Rua ..., ... da acusação). 65.º Aí chegado, colocou-se no exterior do banco de forma a identificar algum indivíduo que procedesse ao levantamento de uma quantia avultada de numerário ao balcão (73.º da acusação). 66.º Cerca das 09h30, apercebeu-se que CC, com 88 anos de idade, procedeu ao levantamento de quantia monetária em notas do BCE, o qual guardou num envelope (74.º da acusação). 67.º Seguidamente, o arguido seguiu-o e apercebeu-se que aquele se introduziu num veículo da marca Toyota, modelo Corolla, sentando-se no banco dianteiro do lado direito (75.º da acusação). 68.º Após, em momento não concretamente apurado, AA dirigiu-se ao veículo da marca Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-ST, e colocou um autocolante com os números 88 na matrícula, passando o mesmo a ostentar a matrícula ..-..-ST (76.º da acusação). 69.º E perseguiu o veículo da marca Toyota, modelo Corolla, onde circulava CC (77.º da acusação). 70.º Cerca das 10h20, o condutor do Toyota Corola, matrícula ..-..-HU, parqueou o veículo que conduzia no parque de estacionamento do Hipermercado ..., sito na Quinta ... -..., na localidade de ... (78.º da acusação). 71.º OO sozinho no interior do carro, com o envelope nas suas pernas e tendo o vidro aberto por causa do calor (79.º da acusação). 72.º Nesse momento, AA parou o veículo da marca Renault, modelo Clio, ostentando a matrícula ..-..-ST, junto do Toyota Corolla (80.º da acusação). 73.º Dirigiu-se ao veículo onde se encontrava CC sentado no banco dianteiro, com o envelope contendo a quantia de € 700,00 sobre os joelhos e, introduzindo a mão pelo vidro aberto, dali retirou o envelope e ficou com o mesmo em seu poder (81.º da acusação). 74.º Ato contínuo AA afastou-se, introduziu-se no veículo Clio, que conduziu, encetando fuga, para parte incerta (82.º da acusação). (27-07-2021– ...) 75.º No dia 27-07-2021, o arguido dirigiu-se à localidade de ... e parqueou o seu veículo marca BMW, matrícula ....AD, na Rua ..., ..., perto do Novo Banco, sito na Rua ... (83.º da acusação). 76.º Aí chegado posicionou-se de forma a identificar algum indivíduo que procedesse ao levantamento de uma quantia avultada de numerário ao balcão (84.º da acusação). 77.º Cerca das 14h20, do mesmo dia, apercebeu-se que DD circulava com uma mala a tiracolo junto à porta da instituição bancária, e seguidamente dirigiu-se ao veículo da marca Fiat, modelo Punto, com a matrícula ..-BC-.., que se encontrava parqueado nas imediações, tendo constatado que aquele remexeu no porta-luvas do seu veículo e abandonou o local (85.º e 87.º da acusação). 78.º AA colocou duas chapas autocolantes com os dígitos 88 na matrícula do seu veículo o qual passou a ostentar a matrícula ..-..-AD, sabendo que a mesma não correspondia à matrícula do veículo que conduzia e que com a sua actuação iludia as autoridades (86.º da acusação). 79.º Então, o arguido, calçando uma luva, dirigiu-se ao veículo com a matrícula ..-BC-.. e, de forma não concretamente apurada quebrou o vidro dianteiro do lado direito do mesmo, abriu a porta e remexeu no seu interior em busca de objectos de valor, não logrando apoderar-se de quaisquer bens de valor, porquanto aí não existia qualquer valor em numerário (88.º da acusação). 80.º Alguns instantes depois, o arguido AA voltou a introduzir no veículo da marca BMW, modelo 418, ostentando a matrícula ..-..-AD e encetou fuga, abandonando o local para parte incerta (89.º da acusação). 81.º No dia 17-08-2021, em hora não apurada, mas um pouco depois das 7h.50m, AA saiu da sua casa, situada na ..., com o fito de tentar controlar quem se dirigisse às caixas multibanco ou a instituições bancárias para levantar somas em dinheiro, segui-las e aproveitar o melhor momento para fazer seu, o dinheiro que aqueles tivessem levantado ou recebido (90.º da acusação). 82.º Assim, o arguido conduziu o veículo e sua pertença, marca BMW, modelo 418, preto, matrícula ....AD, deslocando-se até à Caixa Geral de Depósitos e ao Banco EuroBIC, ambos situados na ..., deslocou-se até à Caixa Geral de Depósitos de ... e ao Novo Banco da mesma cidade, onde já apeado, verificou o interior do veículo Renault, Megane, matrícula ..-PT-.. e efectua o seguimento do mesmo até à localidade de ... (91.º da acusação). 83.º Chegado a ..., o arguido fez uma aproximação apeada à viatura e Megane afastando-se, uma vez que o seu condutor não abandonou o veículo (93.º da acusação). 84.º O arguido deslocou-se até ao estabelecimento comercial I... em ..., em seguimento da vítima previamente marcada, e antecipando que iria conseguir subtrair-lhe o montante em dinheiro levantado, antes de chegar ao parque do aludido estabelecimento, alterou a chapa de matrícula do veículo que conduzia, colocando no lugar nas letras 52, os números “88”, entrando na mesma, e passando, desta forma, a circular com a matrícula ....AD (94.º da acusação). 85.º Porquanto o condutor do veículo Renault Mégane ..PT.. não saiu do seu interior, o arguido retirou os “88” da chapa de matrícula e abandonou o local. (94.º da acusação). (18.08.2021 – ...) 86.º No dia 18.08.2021, antes das 09h45, o arguido dirigiu-se à localidade de ... fazendo-se transportar no veículo automóvel marca BMW, modelo 418, matrícula ....AD (95.º da acusação). 87.º Seguidamente, dirigiu-se ao Novo Banco, sito na Rua ..., ..., ... ... (96.º da acusação). 88.º Aí chegado, o arguido colocou-se no exterior do banco de forma a identificar algum indivíduo que procedesse ao levantamento de uma quantia avultada de numerário ao balcão, ou, que tivesse em seu poder um envelope que tivesse no seu interior dinheiro (97.º da acusação). 89.º Cerca das 09h45, o arguido apercebeu-se que JJ saiu do Novo Banco em poder de um envelope e dirigiu-se ao veículo da marca Seat, modelo Ibiza, matrícula ..-BV-.., parqueado na Rua ..., em frente ao n.º ..., em ... e colocou o referido envelope dentro de um saco no porta bagagens, fechou o carro e dirigiu-se a um café (98.º da acusação). 90.º Então, AA dirigiu-se ao veículo da marca BMW, modelo 418 Grand coupé, com a matrícula ..-..-AD, e colocou um autocolante com os números 88 na matrícula, passando o mesmo a ostentar a matrícula ..-..-AD, matrícula que sabia não corresponder à verdadeira matrícula do veículo que conduzia (99.º da acusação). 91.º Ato contínuo, AA iniciou a marcha do seu veículo e parou-o junto ao Seat Ibiza de JJ (100.º da acusação). 92.º Saiu do veículo, olhou em seu redor, calçou umas luvas e com recurso a uma punção em ferro, quebrou o vidro traseiro do porta-bagagens da referida viatura e retirou o saco de papel visível do seu interior, o qual não tinha no seu interior qualquer valor em numerário (101.º da acusação). 93.º Não se tendo apoderado de quaisquer objectos de valor por motivos alheios à sua vontade (102.º da acusação). 94.º Tendo, porém, em consequência directa da sua actuação, causado um estrago no vidro, que careceu de reparação, a qual teve um custo de valor não concretamente apurado (103.º da acusação). 95.º Nessa ocasião o arguido tinha consigo e em seu poder: 1 (um) punção em ferro, com 7,5cm (sete vírgula cinco centímetros) de comprimento; € 25,00 (vinte e cinco euros) em numerário BCE; 1 (um) par de luvas pretas, tipo latex, com borracha branca na parte palmar, calçadas (104.º da acusação). 96.º Nessa ocasião, o arguido tinha ainda aposta no veículo da marca BMW, modelo 418 grand coupé, com a matrícula ..-..-AD, 2 (duas) películas em plástico com dígitos “88” e aí guardava: 1 (um) boné de cor preta, sem marca; 1 (uma) película em plástico verde com cola (105.º da acusação). 97.º No dia 18.08.2021, pelas 13:05, BB encontrava-se em casa, situada na Rua ..., ... e tinha consigo (106.º da acusação): - No quarto que divide com o arguido: a quantia de 260 € (duzentos e sessenta euros) em notas do BCE no interior de uma gaveta da cómoda dissimulada em roupa existente; três calças de ganga, 4 polos de meia manga, 1 par de ténis preto. - No quarto do filho do casal, documentação financeira relativa a um crédito pessoal contraído pelo arguido AA do BBVA Consumer Finance. - Na carteira da arguida, a quantia de € 240 (duzentos e quarenta euros). - Na sala diversas notas manuscritas, relativas a pagamentos, valores em dívida, almoços, com referência a “Milenio”. 98.º Em todas as situações acima descritas, AA e BB actuaram com o propósito de fazerem seus o numerário acabado de levantar pelos ofendidos e, bem assim, outros bens ou valores que encontrasse, para proveito próprio, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e de que agiam sem autorização e contra a vontade dos seus titulares, o que quiseram e conseguiram (107.º da acusação). 99.º Sabiam também que não podia agir do modo descrito, quebrando vidros, forçando fechaduras e abrindo portas e porta-bagagens, dos veículos, introduzindo-se nos mesmos, o que conseguiram (108.º da acusação). 100.ºAo actuarem da forma descrita, no dia 26-03-2021, em ..., AA e BB agiram em comunhão de esforços e vontades, com o propósito de se apoderar do numerário acabado de levantar por II, que se encontrava no interior do veículo, bem sabendo que o mesmo não lhes pertencia, e que agiam sem o consentimento e contra a sua vontade, causando-lhe prejuízos e obtendo benefícios a que sabiam não ter direito, o que apenas não conseguiram por motivos alheios à sua vontade, porquanto II entregou o referido numerário a NN antes de sair do carro (109.º da acusação). 101.ºAo actuar da forma descrita no dia 14-06-2021 o arguido AA fê-lo com o propósito alcançado de fazer seu o dinheiro, no montante de 700 euros, que CC tivesse em seu poder, para seu proveito e que lhe retirou apesar de saber que o mesmo não lhes pertencia e que actuava contra a vontade e sem o seu consentimento (112.º da acusação). 102.ºAo actuar da forma descrita no dia 15-07-2019 conjuntamente com um individuo de identidade não concretamente apurada, o arguido agiu em comunhão de esforços e vontades, com o propósito de se apoderar do numerário acabado de levantar por FF, no valor de € 3.000, que se encontrava no interior do veículo, bem sabendo que o mesmo não lhes pertencia, e que agiam sem o consentimento e contra a vontade do seu legítimo proprietário, causando-lhe prejuízos e obtendo benefícios a que sabiam não ter direito, o quiseram e conseguiram (114.º da acusação). 103.ºO arguido AA actuar da forma descrita nos dias 23-01-2020, 03-06-2020, fê-lo com o propósito de fazer seu o dinheiro que as vítimas tinham levantado e que se encontrava guardado no veículo, quantias cujos valores ascendiam a 5.475€, e 9.5000€ e que se encontravam no interior dos veículos, aos quase acedeu, partindo os vidros, o que conseguiu, sabendo que actuava contra a vontade dos seus donos e que lhes causava prejuízos (115.º da acusação). 104.º Da mesma forma, o arguido sabia que nos dias 03-06-2020, 14-06-2021, 27-07-2021, 17-08-2021, 18-08-2021 em que colou sobre a matrícula dos veículos automóveis que utilizava, marca Renault e marca BMW, os números 88 e os números 23, passando desta forma a circular ostentando uma matrícula diferente - matrícula ......ST, ......ST, ......AD ou ......ST - aos invés das matrículas ..-..-ST e ..-..-AD, punha em causa a fé pública que a matrícula goza perante a generalidade das pessoas, pretendendo com a referida conduta enganar terceiros e as autoridades e dessa forma, obter para si um ganho económico consubstanciado no fato de conseguir praticar os fatos descritos sem que com isso fosse identificado, o que quis e conseguiu (116.º da acusação). 105.º O arguido ao actuar da forma descrita nos dias 27-07-2021 e 18-08-2021, encetando vigilância a DD e a JJ, partindo de seguida os vidros dos veículos, remexendo no seu interior em busca dos montantes em dinheiro que pensou que ali estivessem, fê-lo com intenção de apropriar das somas em dinheiro que sabia não serem suas, e que com isso causava prejuízo aos ofendidos, o que só não conseguiu por motivos alheios à sua vontade (117.º da acusação). 106.º Os arguidos AA e BB fazem da aludida prática modo de vida, conforme se pode concluir pelo período de tempo quem mantiveram a sua actividade e, frequência e número de vezes que actuaram ao longo do tempo (118.º da acusação). 107.º Os arguidos mantiveram e reiteraram as condutas descritas com o propósito de prover pelas suas necessidades e sustento e da sua família, pelo menos desde 15-07-2019 a 18-08-2021 (119.º da acusação). 108.º AA e BB agiram sempre e em tudo de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal e tinham capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento (121.º da acusação). (Do pedido de indemnização cível): 109.º Em consequência da subtracção da quantia que lhe pertencia, o ofendido/demandante sofreu momentos de ansiedade, tristeza e preocupação. 110.º Havia levantado o montante em causa para proceder ao pagamento de obras que estava a realizar na casa que tem na sua terra natal. 111.º Foi com sacrifício e privações que economizou o montante que lhe foi furtado. 112.º Quando verificou que o valor levantado havia sido furtado o ofendido ficou abatido e triste. 113.º Foram muitos os dias em que, após os acontecimentos, o ofendido não conseguiu dormir e alimentar-se, face ao desalento e preocupação sentidos por não poder liquidar atempadamente ao empreiteiro que executou os trabalhos, para já não falar na vergonha e embaraço que tal circunstância lhe provocou, atendendo aos compromissos que havia assumido, com aquele. (Das condições pessoais e socioeconómicas dos arguidos e antecedentes criminais): 114.º Do certificado de registo criminal relativo a arguido AA, emitido a .../.../2022, constam as seguintes condenações: a. Por decisão de 09-10-2009, transitada em julgado a 29-10-2009, pela prática, em 13-05-2009, de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º do Código Penal, na pena de 270 dias de multa, declarada extinta por ... n.º 70/09...., ... juízo de ...). b. Por decisão de 27-02-2012, transitada em julgado a 19-03-2012, pela prática, em 04-03-2010, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 200 dias de multa declarada extinta por despacho de 30-09-2013 (Proc. n.º 182/10...., JLC ...). c. Por decisão de 02-07-2013, transitada em julgado a 21-05-2014, pela prática, em 29-07-2011, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e subordinada a condição de pagar, no prazo referido, a indemnização fixada (Proc. n.º 913/11...., ... JC de ...). d. Por decisão de 27-04-2010, transitada em julgado a 27-05-2010, pela prática, em 26-04-2007, de um crime de dano simples, previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal, e um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º do Código Penal, na pena única de 70 dias de multa, declarada extinta por despacho de 12-07-2010 (Proc. n.º 286/07...., ... JC de ..., ... Secção). e. Por decisão de 18-10-2017, transitada em julgado a 03-06-2019, pela prática, em 02-12-2016, de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas b) e e) e n.º 3, do Código Penal, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, tendo sido, por despacho de 07-10-2020, perdoado o remanescente na pena sob condição de não praticar infracção dolosa no ano seguinte, declarada extinta por despacho de 11-11-2020 (Proc. n.º 386/16...., JCC de ..., Juiz ...). f. Por decisão de 06-11-2019, transitada em julgado a 12-10-2020, pela prática, em 08-01-2015, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas b), e) e f) e n.º3, do Código Penal, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período (Proc. n.º 11/15...., JCC de ..., Juiz ...). 115.º AA é o terceiro de uma fratria de 4 irmãos germanos. 116.º O seu processo de crescimento decorreu num ambiente familiar marcado por algumas dificuldades económicas, mas onde existiam vínculos afectivos entre todos os elementos o agregado familiar. 117.º Os pais, já falecidos, trabalhavam ele como estivador e a mãe como peixeira. 118.º Concluiu o 4.º ano de escolaridade de forma normativa, não tendo prosseguido os estudos para ingressar no mercado de trabalho e ajudar a família. 119.º Aos 10 anos iniciou funções laborais no ... de ..., como estafeta e aos 14 anos de idade passou a trabalhar como estivador suplente, ao que se seguiu a categoria de estivador, obtida aos 16 anos de idade. 120.º Manteve este trabalho cerca de 30 anos e, em 1995, no seguimento de uma reestruturação dos recursos humanos foi-lhe proposto a rescisão do contrato de trabalho mediante compensação financeira, tendo passado a situação de pré-reforma e, em 2021, passou a beneficiar da reforma definitiva. 121.º Após ter contraído casamento com BB, o casal fixou residência no ..., ..., tendo tido um único filho do casal. 122.º O casal acolheu duas crianças, PP, agora com 36 anos de idade, e QQ, agora com 25 anos de idades, que viria posteriormente a adoptar. 123.º Em 2002 verificou-se a deslocação do agregado para a ..., devido à demolição da casa de morada de família, no seguimento da construção do empreendimento “...”. 124.º Nesta altura, o casal decidiu fixar residência junto do filho biológico, que morava na .... 125.º À data dos factos, o arguido vivia na morada indicada nos autos, com o cônjuge, e com o filho biológico RR, agora com 45 anos de idade. 126.º Os filhos adoptivos, com os quais mantem uma relação de proximidade e de convívios regulares, já se encontram a viver autonomamente. 127.º Os elementos da família mantêm um relacionamento de proximidade e de entreajuda, e a existência de uma dinâmica adequada ao nível das relações interpessoais. 128.º A família reside num apartamento que é propriedade do filho do arguido. Trata-se de uma habitação de tipologia T2, que beneficiou de obras de remodelação há cerca de dois anos e reúne adequadas condições de habitabilidade. O apartamento está inserido numa zona urbana, onde não se identificam problemáticas de referência. 129.º O arguido recebe uma pensão de reforma no valor aproximado de € 900,00 mensais, a arguida beneficiava do subsídio de desemprego, num valor mensal de cerca de € 438,00, e o filho de ambos trabalha na área da restauração. 130.º O arguido apresenta problemas de saúde, designadamente, de gota úrica; de ortopedia, tendo sido internado em 2017 e submetido a uma artroplastia do joelho, mantendo acompanhamento em consultas externas de ortopedia, alegando doença oncológica, não comprovada até à data. 131.º No Estabelecimento Prisional tem mantido um comportamento consentâneo com a normas institucionais. 132.º Devido a situação em que se encontra, preso preventivamente, e aos problemas de saúde que apresenta, encontra-se inactivo. 133.º No EP teve visitas da mulher e dos filhos, que se mostram disponíveis para o apoiar no que se mostrar necessário. (…) 148.º A dinâmica familiar é caracterizada como próxima, apresentando laços de entreajuda entre os vários elementos do agregado familiar, e a relação conjugal é tida como sólida e gratificante. * 8. Objeto do recurso O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.[1] Face às conclusões da motivação do recorrente AA as questões objeto do recurso, por ordem do seu conhecimento, são as seguintes: 2.ª - Se a falsificação das chapas de matrículas das viaturas autoºmóveis é grosseira, pelo que deve o arguido ser absolvido; 4.ª - Se a pena única aplicada ao arguido deve ser reduzida para uma pena de prisão não superior a 5 anos, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova.
1.ª Questão: Da nulidade de sentença, nos termos do art.379.º, n.º1, alínea b), do C.P.P. 9. O recorrente AA sustenta que o acórdão recorrido padece da nulidade prevista na alínea b), n.º1 do art.379.º, do C.P.P., porquanto o Tribunal a quo , em violação do disposto no art.358.º, n.ºs 1 e 3 do mesmo Código, não lhe comunicou uma alteração da qualificação jurídica, alegando para o efeito e em síntese: (i) o Tribunal a quo interpretou o art.358.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. no sentido de não ser necessária a comunicação da alteração quando os ilícitos imputados (crimes semipúblicos) se traduzem num minus relativamente aos ilícitos pelos quais se encontrava acusado (crimes públicos); (ii) mas deveria ter interpretado o art.358.º, n.º3 do C.P.P. no sentido de ser dada a oportunidade ao arguido para «preparar a defesa» por forma a poder diligenciar, a extinção da responsabilidade criminal, nos termos do disposto do art.203.º, n.º 3 do C.P., face à eliminação das agravativas das alíneas b) e h) do art.204.º do C.P. (art.204.º, n.º 4 do C.P.), que obstaculizavam a aplicação do mesmo, sob pena de interpretação normativa inconstitucional, por violação do disposto no art.32.º n.º 1 da C.R.P.; (iii) o arguido orientou a sua defesa tendo por base a possibilidade de «desqualificar» a agravante «modo de vida» por forma a se fosse esse o entendimento do tribunal proceder à aplicabilidade do disposto no art.206.º do C.P., pelo que o Tribunal a quo antevendo que iria desqualificar o crime de furto tanto pela al. b) do nº 1 do art.204.º e, bem assim, da alínea h) do mesmo artigo, deveria ter prevenido os arguidos, e não o fez, para, querendo, até à publicação do acórdão diligenciar pela desistência da queixa nos termos do disposto no art.203.º, n.º 3 do CP., pois tal situação tal como constava da acusação era completamente inoperante relativamente ao crime de furto em que é ofendido JJ, como o era quanto ao ofendido DD que declarou desistir da queixa, perante a uma “pergunta inócua”. 9.1. A 1.ª questão objeto de recurso, prende-se diretamente com um tema fundamental do processo penal, como é o das garantias de defesa do arguido, constitucionalmente consagradas no art.32.º da nossa Lei Fundamental. Nos termos do n.º1, do art.32.º da Constituição da República Portuguesa «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.». A fórmula do n.º 1 do art.32.º da C.R.P. é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes do art.32.º da lei fundamental, uma vez que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. No entanto serve ainda de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da proteção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal.[2] Consagra esta norma uma ideia geral de que o processo criminal há de configura-se como um processo equitativo e leal (“a due process o law”, “a fair process”, “a fair trial”), por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações do princípio da defesa, devendo considerar-se ilegítimas, em consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido. O n.º 5, da mesma norma constitucional, estabelece como princípios estruturantes da constituição processual penal, o princípio do acusatório e o princípio do contraditório, subordinando a audiência de julgamento, bem como os atos instrutórios que a lei determina, ao princípio do contraditório. Como expressão do Estado de Direito Democrático e nessa medida emanação das garantias de defesa, o princípio do contraditório tem o conteúdo essencial de que nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar.[3] Tendo o processo penal estrutura acusatória, é pela acusação que se define o objeto do processo (thema decidendum). Esta peça processual deve conter, designadamente, a narração dos factos imputados ao arguido e as disposições legais aplicáveis aos mesmos factos (artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) e 285.º, n.º3, do Código de Processo Penal). De acordo com o princípio da identidade do objeto do processo, este um corolário do princípio da acusação, o objeto da acusação deve manter-se idêntico, o mesmo, desde aquela até à sentença final. Sem prejuízo deste princípio, por razões de economia processual e no próprio interesse do arguido, a lei permite expressamente ao Juiz que este possa comunicar aos sujeitos processuais, mesmo no decurso da audiência de julgamento, quer uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (art.358.º do C.P.P.), quer uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (art.359.º do C.P.P.). A possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, em audiência de julgamento, e a sua repercussão nas garantias de defesa do arguido, é um tema recorrentemente debatido no âmbito da interpretação dos artigos 358.º e 359.º do atual Código de Processo Penal. O Código de Processo Penal, na sua redação primitiva, não incluía qualquer norma sobre a possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. O art.358.º do C.P.P., sob a epígrafe «Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia», dispunha, então: «1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.». Por sua vez, o art.359.º do C.P.P., na mesma redação, estabelecia, a respeito da alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o seguinte: « 1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos. 2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal. 3 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.». Nem o art.358.º do C.P.P., nem outra norma do mesmo Código, oferecia – nem oferece ainda hoje – uma definição explicita para o conceito normativo de «alteração não substancial dos factos», deixando ao critério do intérprete essa definição. Não obstante, o conteúdo deste conceito pode deduzir-se através de uma interpretação sistemática e teleológica do art.1.º, alínea f) do Código de Processo Penal, que oferece uma definição para a «alteração substancial dos factos», dispondo que é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;”. A “alteração substancial dos factos” é uma alteração dos “factos”, do “pedaço da vida” que consta da acusação ou da pronúncia; dessa alteração dos “factos” resulta a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Deste modo, deduz-se que será “alteração não substancial de factos” descritos na acusação ou na pronúncia, aquela que não tiver por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Na ausência de norma expressa, sobre a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o entendimento jurisprudencial dominante na vigência da primitiva redação do Código de Processo Penal, era o da liberdade de qualificação jurídica dos factos, mantidos na acusação ou na pronúncia, mesmo no caso de convolação para um crime mais grave do que o enunciado no objeto do processo. Partia esta jurisprudência da ideia fundamental de que a determinação do direito, ou enquadramento jurídico dos factos apurados, por constituir o cerne da função judicial, não está sujeita a limitações decorrentes de um errado enquadramento feito pelas partes ou pessoas interessadas no processo, sob pena de total desvirtuamento dessa função e de, inclusivamente, incumprimento do disposto nos artigos 205.º a 207.º da Constituição, tal como eles se mostram esclarecidos e interpretados pelos artigos 3.º e 4.º da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais). Dentro desta orientação, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Assento n.º 2/93, de 27 de janeiro de 1993, que: «Para os fins dos artigos 1º, alínea f) (alteração substancial dos factos), 120º (nulidade dependente de arguição), 284º, (acusação pelo assistente), 303º, nº 3 (alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução), 309º, nº 2 (nulidade da decisão instrutória), 359º, nºs 1 e 2 (alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronuncia), e 379º, al b), (nulidade da sentença), todos do Código de Processo Penal - aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro -, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronuncia a simples alteração da respetiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.». O Tribunal Constitucional não aceitou como válida parte desta jurisprudência e, por acórdão n.º 445/97, «declara inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do nº 1 do artigo 32º da Constituição -, a norma ínsita na alínea f) do nº 1 do artº1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, alínea b) do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a dedignação de «Assento nº 2/93», na 1ª Série-A do Diário da República de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo Acórdão nº 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa.». Na fundamentação desta sua decisão, consignou o acórdão do Tribunal Constitucional, que as “garantias de defesa não podem deixar de incluir a possibilidade de contrariar ou contestar todos os elementos carreados pela acusação" (palavras do Acórdão n.º 54/87 deste Tribunal publicado no Diário da República, 1ª Série, de 17 de Março de 1987), sendo um dos significados jurídico-constitucionais do princípio do contraditório "o direito do arguido ... de se pronunciar e contraditar ... argumentos jurídicos trazidos ao processo" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 206).”. Mais acrescentou: “Sendo facilmente admissível perante a realidade das coisas que diferente pode ser a estratégia da defesa consoante a qualificação jurídico-criminal dos factos cujo cometimento é imputado ao arguido, há-de reconhecer-se que - independentemente da liberdade que deve ser concedida ao tribunal do julgamento para proceder a uma correcta subsunção jurídica - uma alteração da qualificação que foi acolhida na acusação ou na pronúncia pode vir a ter, e até por vezes acentuadamente, repercussão nos objectivos pelos quais aquela estratégia foi delineada. Para obstar a um tal inconveniente não é forçoso que a porventura incorrecta qualificação jurídico-penal levada a efeito na acusação ou na pronúncia venha a subsistir na decisão do julgamento. Bastará que a perspectiva assumida pelo tribunal do julgamento seja transmitida ao arguido e lhe seja dada oportunidade de, quanto a ela e caso o deseje, se defender.”.[4] No seguimento desta jurisprudência constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça, pelo Assento n.º 3/2000, de 15 de dezembro de 1999, reformulou o Assento n.º 2/93 e fixou jurisprudência no sentido de que «Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo pudesse organizar a respetiva defesa.». Também o legislador não ficou indiferente à orientação jurisprudencial do Tribunal Constitucional e pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, aditou um n.º 3 ao art.358.º do Código de Processo Penal, com a seguinte redação: «O disposto no n.º1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.». Tornou-se claro, com esta alteração, por um lado, que uma alteração da qualificação jurídica dos factos, sem que haja qualquer modificação dos factos da acusação ou da pronúncia, não está submetida ao regime do art.359.º do Código de Processo Penal, mas sim ao do art.358.º, do mesmo Código e, por outro lado, que o arguido tem o “direito a ser ouvido”, no sentido de lhe dever ser dada oportunidade efetiva de discutir e tomar posição sobre decisões relativas à qualificação jurídica. A nova redação do art.358.º do Código de Processo Penal, através do aditamento do n.º3, não veio terminar com todas as divergências sobre a liberdade de alteração da qualificação jurídica dos factos, nem sobre o cumprimento do contraditório. Assim, Damião da Cunha entende que só respeita o crivo constitucional a alteração da qualificação jurídica da acusação que seja favorável ao arguido, sendo inconstitucional qualquer entendimento do art.358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que permita a imputação de um ou mais crimes novos ou o agravamento dos limites máximos do crime imputado ao arguido na acusação.[5] Já no que respeita ao cumprimento do contraditório, parte da jurisprudência, de que é exemplo o acórdão do S.T.J. de 12-5-2009 (proc. n.º 33/05.0JLSB.C1.S1), entende que o dever de comunicação da nova qualificação jurídica ao arguido deve efetivar-se, quer ela seja “in mellius”, quer seja “in pejus”, uma vez que o n.º 3 do art.358.º do C.P.P. não estabelece esta distinção.[6] A jurisprudência, claramente dominante, segue orientação diversa, defendendo que quando o crime pelo que o arguido é condenado constitui um “minus” relativamente ao crime que constava da acusação ou da pronúncia, a alteração da qualificação jurídica não carece de ser comunicada ao arguido, nos termos do art.358º Código de Processo Penal, precisamente por se imputar um crime menos grave. A alteração da qualificação jurídica dos factos apenas deve ser comunicada ao arguido quando esta alteração é tomada contra ele, implicando um encurtamento inadmissível das possibilidades da sua defesa. Neste sentido o acórdão do STJ de 12 de Setembro de 2007, proferido no proc. n.º 07P2596, refere que “ É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que a comunicação ao arguido a que alude o art.358.º, n.º3, do CPP não é necessária quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de um infração que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar ( v.g., convolação de furto ou de qualquer outro crime qualificado para o tipo simples.”[7]. Também esta orientação é defendida na doutrina.
Assim: Maia Gonçalves, entende que “…não é necessária a comunicação ao arguido quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infração que represente um “minus” relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar. Aqui podem apontar-se os casos de convolação de furto ou de qualquer outro crime qualificado para o crime simples; (…).[8] Também Oliveira Mendes, defende que, atenta a ratio do instituto, “… a alteração resultante da imputação de um crime simples ou “menos agravado”, quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou “menos agravado”, ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto normativos pelos quais vai ser julgado – a jurisprudência do Supremo Tribunal tem-se orientado, de forma pacífica, neste preciso sentido, como se vê, entre outros, dos acórdãos de 02.07.17, 03.11.12, 04.03.10, 06.04.06, 06.05.10, 06.06.14 e 07.10.13, proferidos nos Processos n.ºs 3158/02, 1216/03, 4024/03, 658/06, 1290/06, 1415/06 e 3271/07.”[9] O art.379.º, n.º1, alínea b), do Código de Processo Penal, comina com a nulidade a sentença que «Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º.». Analisemos, agora, algumas das normas do Código Penal que no entender do recorrente, conjugadas com o disposto no art.358.º do C.P.P., exigiam a obrigatoriedade de comunicação da alteração da qualificação jurídica. O art.203.º, n.º1 do Código Penal, consagra o tipo fundamental do furto, estabelecendo que «quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa». Ao estabelecer no seu n.º3 que «o procedimento criminal depende de queixa», o legislador atribuiu ao furto simples a natureza de crime semipúblico - sem prejuízo de nas situações enunciadas no art.207.º, do Código Penal, o crime de furto revestir natureza particular, por o procedimento criminal ficar dependente de acusação particular. O art.204.º do Código Penal, prevê o furto qualificado, estabelecendo dentro do tipo dois graus ou escalões de qualificação: um previsto no n.º1 e, outro, no n.º2, a que correspondem molduras penais diferentes. Nos termos do art.204.º, n.º1, do Código Penal, preenche este tipo qualificado, quem furtar coisa móvel ou animal alheios: « b) Colocada ou transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais; (…) h) Fazendo da prática de furtos modo de vida; ou (…)». O seu n.º4, acrescenta que « Não há lugar à qualificação se a coisa ou o animal furtados forem de diminuto valor.». O furto qualificado é um tipo penal de natureza pública; porém, face ao disposto no n.º4 deste tipo penal, sendo diminuto o valor do furto, pese embora o preenchimento de alguma agravante, este é “desqualificado” passando a crime de furto simples. Por fim, o art.206.º do Código Penal, estabelece: «1 - Nos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1, na alínea a) do n.º 2 do artigo 204.º e no n.º 4 do artigo 205.º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1.ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa ou do animal furtados ou ilegitimamente apropriados ou reparação integral dos prejuízos causados. 2 - Quando a coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem restituídos, ou tiver lugar a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada. 3 - Se a restituição ou a reparação forem parciais, a pena pode ser especialmente atenuada.». O preenchimento da alínea h), n.º1 do art.204.º do Código Penal, não permite a extinção da responsabilidade criminal do arguido, mesmo perante a concordância do ofendido. Retomando o caso concreto. 9.2. O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA pela prática de catorze crimes, uns em autoria material e outros em coautoria: em autoria material, teria praticado 5 crimes de furto qualificado (três na forma consumada e dois na forma tentada), 1 crime de roubo agravado, na forma consumada e 5 crimes de falsificação de documento agravado e, em coautoria, teria praticado 2 crimes de furto qualificado (um na forma consumada e outro na forma tentada) e 1 de falsificação de documento agravado, na forma consumada. Com interesse para a presente questão, anotamos que um dos crimes de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo art.204.º, n.º1, alíneas b) e h), por referência aos artigos 203.º, n.º1, 202.º, 22.º, 23.º e 73.º, todos do C.P., de que o arguido AA vinha acusado, tinha como ofendido DD e, outro dos crimes de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º1, 204.º, n.º1, alíneas b) e h), 202.º, 22.º, 23.º e 73.º, todos do C.P., tinha como ofendido JJ. O arguido AA apresentou contestação onde, além do mais, após defender que relativamente ao furto do computador do ofendido FF não há lugar à qualificação do furto, nos termos do art.204.º, n.º 4, do C.P., por este ter um valor inferior a uma UC, acrescentou: “10. Quanto aos danos de HH, DD e JJ, não constando da acusação do valor dos mesmos, a dúvida sobre a sua avaliação e o valor dos mesmos terá necessariamente de ser resolvida a favor do arguido e, consequentemente, o valor reduzido para uma UC, ou seja, de diminuto valor, nos termos do art.204.º, n.º4 do CP.” Realizada a audiência de julgamento, o arguido foi condenado pela prática de onze crimes: 6 crimes de furto (cinco qualificados, dos quais quatro na forma consumada e um na forma tentada, e um simples) e 5 crimes de falsificação agravados, na forma consumada. Do relatório, do acórdão recorrido, constam indicados não só os crimes imputados ao arguido na acusação, como os termos em que o mesmo se defende na contestação. Na motivação de direito, da mesma decisão, constam enunciadas as razões que levaram o Tribunal a quo a desqualificar, pelo valor, o crime de furto qualificado, na forma tentada, em que era ofendido DD (pontos n.ºs 75 a 80.º dos factos provados), para um crime de furto simples, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º1, 204.º, n.º1, alíneas b) e h), 202.º, alínea c), 22.º, 23.º e 204.º, n.º4, todos do C.P., e a homologar a desistência da queixa, a que o arguido não se opôs, e consequente declaração de extinção do respetivo procedimento criminal contra o arguido AA e, ainda, as razões pelas quais desqualificou, pelo valor, o crime de furto qualificado, na forma tentada, em é ofendido JJ (pontos n.ºs 86.º a 96.º dos factos provados), para crime de furto simples, sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 203.º, 204.º, n.º1, alíneas b) e h), 202.º, al. c) 22.º , 23.º, n.ºs 1 e 2 e 204.º, n.º4 , todos do C.P., e condenou o mesmo arguido na pena de 6 meses de prisão. A respeito dos dois crimes de furto, sob a forma tentada, em que são ofendidos DD e JJ, o acórdão recorrido consignou, designadamente, o seguinte: “Verifica-se, em ambos os casos, as circunstâncias qualificativas previstas no artigo 204.º, n.º 1, alíneas b) e h), pelos fundamentos já aduzidos a propósito dos crimes consumados e que se dão por reproduzidos. Sucede, porém, que inexistia qualquer valor a subtrair, pelo que entende o tribunal que se está, em ambos os casos, perante a prática de crime de furto desqualificado nos termos do artigo 204.º, n.° 4, conjugado com o artigo 202.º, alínea c), ambos do Código Penal. Proceder-se-á, portanto, à correspondente alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, imputando-se ao arguido, de dois crimes de furto simples, na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, alíneas b) e h), 22.º, n.º 1, 23.º, n.º 1 e n.º 2, 204.º, n.º 4, e 202.º, alínea c), do Código Penal (factos75.º a 80.º - DD e factos 86º a 96.º - JJ). Não se procede à comunicação prevista no artigo 358.º, n.º 1 e n.º 3, nesta parte, uma vez que os ilícitos ora imputados ao arguido se traduzem num minus relativamente àqueloutros pelos quais se encontrava acusado. O crime de furto simples, também na forma tentada, reveste natureza semi-pública, dependendo o procedimento criminal da queixa do ofendido e, no caso em apreço, DD declarou desistir da queixa, para o que está em tempo e tem legitimidade (artigos 113.º, 116.º e 203.º, n.º 3, do Código Penal). Uma vez que o arguido não se opôs à desistência, homologar-se-á a mesma e, consequentemente, declarar-se-á extinto, nesta parte, o procedimento criminal (artigo 116.º do Código Penal e 51.º, n.º 3, do Código de Processo Penal) (factos75.º a 80.º - DD).”. Do ora exposto, resulta medianamente claro que a nulidade de sentença arguida pelo recorrente por alegado não cumprimento do art.358.º, n.º 3 do C.P.P., por alteração da qualificação jurídica do crime de furto qualificado, sob a forma tentada, para crime de furto simples, sob a forma tentada, respeita ao crime em que é ofendido JJ. Com este pano de fundo, seria de exigir tal cumprimento ao Tribunal a quo? A resposta é negativa, por várias razões. A primeira delas, é que a defesa do arguido apresentada na contestação, não faz qualquer menção à possibilidade de se «desqualificar» a agravante «modo de vida», por forma a que se fosse esse o entendimento do tribunal, se viesse a proceder à aplicabilidade do disposto no art.206.º do Código Penal, no caso do ofendido dar a sua concordância. A segunda, é que a defesa do arguido, apresentada na contestação, assentou, expressamente, na desqualificação dos crimes de furto, nos termos do n.º4 do art.204.º do Código Penal, relativamente aos ofendidos FF, HH, DD e JJ, por o respetivo valor ser reduzido, ou seja, inferior a uma UC. A desqualificação do furto em que é ofendido JJ, pelo valor diminuto, levada a cabo no acórdão recorrido, está em consonância com os factos alegados pelo arguido na contestação, ou seja, com a sua estratégia de defesa. A partir do momento em que defende, perante o Tribunal a quo, que este crime de natureza pública deve ser desqualificado, nos termos do n.º4 do art.204.º do Código Penal, passando a integrar um crime de furto simples, de natureza semipública, não podia deixar de prever a possibilidade de extinção do procedimento criminal se conseguisse obter a desistência da queixa do ofendido JJ, mesmo que as qualificativas das alíneas b) e h) do n.º1 daquele preceito se mantivessem, por o crime passar a ter natureza semipública. Como também não podia deixar de prever a necessidade de obter a concordância do mesmo ofendido para pôr «fim ao processo» ao abrigo do art.206.º do Código Penal, para o caso de vir a conseguir a desqualificação do furto pela agravante da h), n.º1 do art.204.º do mesmo Código – o que não aconteceu relativamente ao furto sob a forma tentada de que foi vítima o JJ, pois tal qualificativa manteve-se na condenação. O art.358.º do Código de Processo Penal, sendo um imperativo do princípio do contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz por parte do arguido, impõe a comunicação de alteração da qualificação jurídica constante da acusação ou da pronúncia, quando se demonstre que o arguido tem necessidade de alegar algo que antes não tenha previsto e alegado, isto é, de preparar uma nova defesa. Existirá essa necessidade quando a diferente qualificação jurídica dos factos (a ocorrer), conduz a uma agravação da condição jurídico-penal do arguido, bem como quando, tendo sido este último desprevenidamente confrontado com essa alteração, não pudesse orientar quanto a ela a sua estratégia de defesa. No caso concreto, a exigência dessa comunicação não se verifica, desde logo, por força do disposto no n.º2 do art.358.º do C.P.P., na medida em que a desqualificação do furto, pelo valor, foi alegada e prevista pelo arguido e, também não se verifica, nos termos do n.º3 do mesmo preceito, porquanto mantendo-se a factualidade da acusação a alteração da qualificação jurídica não constituiu uma agravação da sua posição processual, mas antes um “minus” relativamente à mesma acusação, cujas consequências não podia deixar de prever a nível de extinção do procedimento criminal. O arguido, sabendo que a desistência da queixa por parte do ofendido DD, relativamente a um crime de furto qualificado, sob a forma tentada, não era relevante no caso de se manter esta qualificação, não deixou ainda, assim, de prever essa desqualificação, declarando que não se opunha à desistência da queixa. Sendo o crime de furto qualificado, sob a forma tentada, em que era ofendido JJ, idêntico àquele outro crime que tinha como ofendido DD, a estratégia de defesa do arguido não podia deixado de ponderar a possibilidade de aquele crime vir a extinguir-se por desistência da queixa se para tal obtivesse do ofendido JJ a sua anuência. Em conclusão, a não comunicação ao arguido da convolação do crime de furto qualificado, sob a forma tentada, em que é ofendido JJ, para um crime de furto simples, sob a forma tentada, por o Tribunal a quo considerar que este constitui um “minus” relativamente à acusação, e assim, não ser exigível a comunicação da alteração da qualificação jurídica, não violou as garantias de defesa do ora recorrente consagradas nos artigos 358º nº 3 do C.P.P. e 32º nº 1 da C.R.P., pelo que improcede esta primeira questão.
2.ª Questão: Da falsificação grosseira 10. O recorrente AA defende que deve ser absolvido dos crimes de falsificação pelos quais foi condenado, porquanto as colocações que fez de dois números, em material sintético, por cima de chapa de matrícula das viaturas automóveis, constituem falsificações grosseiras, que não preenchem o tipo objetivo e subjetivo do crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 256.º, n.ºs 1, alíneas a) e c) e 3 do Código Penal. Alega neste sentido e em síntese, que ambas as chapas de matrícula eram verdadeiras, tendo sido apostas no veículo de forma inamovível e um exame perfunctório das imagens permitia, sem qualquer esforço, a qualquer observador, verificar que o documento não correspondia à realidade. Vejamos. Na definição constante do art.255.º, al. a), do Código Penal, “documento”, para efeitos dos crimes de falsificação, « é a declaração (de vontade ou de ciência) corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas (função de perpetuação ou representação), que, permitindo reconhecer o emitente (função de garantia documental, excluindo os casos de anonimato), é idónea a provar facto juridicamente relevante ( com o que cumpre a função probatória), quer tal destino lhe seja dado no momento da emissão (documento intencional) quer posteriormente (documento ocasional). Como realçam Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos os documentos podem revestir as mais diversas formas, como marcas, desenhos, cores, números, letras, chapas, ou, como é o caso dos autos, carimbos, ou seja, todo e qualquer símbolo seja qual for a forma de materialização), o que interessa é que pressuponham o requisito essencial da idoneidade relativamente à prova do facto que levou à sua inserção no objeto.[10] A falsificação de documento é um crime de perigo abstrato, pois que não se exige, para a respetiva consumação, a efetiva lesão do bem jurídico tutelado. Como bem esclarece Helena Moniz, para que o tipo legal de falsificação de documento esteja preenchido “…basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico – verifica-se, pois, uma antecipação da tutela do bem jurídico, uma punição do âmbito pré-delitual.”. [11] Não existindo uma noção de falsificação grosseira de documento, existe um entendimento generalizado na jurisprudência de que a mesma ocorre quando for facilmente detetável por parte de um cidadão médio. Não representando o documento qualquer perigo, por inaptidão, para a lesão da confiança e segurança que a sociedade deposita nele, a falsificação grosseira não é punível. Posto isto, importa clarificar que o recorrente não impugna a matéria de facto dada como provada e o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º do C.P.P. (art.434.º do C.P.P.). O Tribunal a quo deu como provado, nomeadamente, a este respeito, no ponto n.º 104 do acórdão recorrido: “ O arguido sabia que nos dias 03-06-2020, 14-06-2021, 27-07-2021, 17-08-2021, 18-08-2021 em que colou sobre a matrícula dos veículos automóveis que utilizava, marca Renault e marca BMW, os números 88 e os números 23, passando desta forma a circular ostentando uma matrícula diferente - matrícula ......ST, ......ST, ......AD ou ......ST - aos invés das matrículas ..-..-ST e ..-..-AD, punha em causa a fé pública que a matrícula goza perante a generalidade das pessoas, pretendendo com a referida conduta enganar terceiros e as autoridades e dessa forma, obter para si um ganho económico consubstanciado no fato de conseguir praticar os fatos descritos sem que com isso fosse identificado, o que quis e conseguiu.”. Mais se acrescenta, na decisão recorrida: “Nas cinco situações acima descritas, o arguido alterou os elementos identificativos das chapas de matrícula dos dois veículos utilizados com a intenção de para si obter o benefício, traduzido em melhor iludir as autoridades, e bem assim causar prejuízo aos ofendidos, subtraindo as quantias monetárias da sua pertença. E a alteração foi relevante e não imediatamente perceptível já que o meio utilizado, particularmente se avistado à distância ou através de câmaras de vigilância era idóneo a enganar – como enganou – quem olhasse para as matrículas, permitindo ao arguido eximir-se à acção policial durante um período. Não estamos, portanto, perante falsificação grosseira, susceptível de enquadramento no artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal.” Nem da factualidade dada como provada, resultante da valoração do Tribunal a quo da prova produzida, nem da fundamentação do acórdão recorrido, se conclui que a alteração a que o arguido AA procedeu nas chapas de matrículas dos veículos automóveis que conduziu era facilmente detetável pela generalidade das pessoas, ou seja, que a falsificação dos documentos, que as chapas de matrícula constituem, era grosseira. Pelo contrário, o Tribunal a quo, no âmbito da imediação e da oralidade, conclui que as falsificações foram aptas a provocar perigo de lesão da confiança e segurança dos documentos em causa. Uma vez que a factualidade dada como provada contém todos os elementos típicos do ilícito em apreço, tanto a nível objetivo, como a nível subjetivo, deve ser mantida a condenação do recorrente pelo preenchimento deste tipo penal.
3.ª Questão: Da prática de um único crime de furto qualificado e de falsificação de documento Vejamos. Se o agente, com o seu comportamento, preenche apenas uma ilicitude típica, um tipo de crime, há apenas que escolher a pena e determinar a medida que lhe deve caber. Porém, se ele preenche mais do que um tipo de crime, ou o mesmo tipo de crime mais do que uma vez, entramos no complexo problema do concurso em direito penal, traduzido, antes do mais, em saber se o agente cometeu um crime ou uma pluralidade de crimes. O direito penal faz uma distinção entre o concurso de normas (também designado de concurso aparente, concurso legal ou concurso impuro), e o concurso de crimes (também chamado de concurso efetivo de crimes ou concurso puro). No concurso de normas o comportamento do agente preenche vários tipos de crime, mas o seu conteúdo ou a substância criminosa é tão esgotantemente abarcado pela aplicação ao caso de um só dos tipos violados que os restantes devem recuar, subordinando-se hierarquicamente perante tal aplicação. As categorias ou formas do concurso de normas enunciadas pela doutrina para o efeito fundam-se em relações de especialidade, consunção, subsidiariedade e na categoria do facto posterior não punível.[12] Se não existe uma relação de mútua exclusão entre os tipos violados pelo agente, ou seja, de concurso de normas, então ficamos perante o concurso de crimes, em que diversas normas abstratamente aplicáveis concorrem paralelamente na aplicação concreta. O problema do concurso aparente de crimes é tido, pela sua própria essência e natureza, insuscetível de regulamentação legal, justificando Eduardo Correia, autor do projeto do Código Penal, a sua ausência no direito positivo por se tratar “… por um lado, de regras doutrinais e não legislativas, e, por outro, de regras gerais de interpretação do tipo legal de crime e não regras privativas do problema da unidade e pluralidade de infrações.”.[13] O art.30.º, n.º1, do Código Penal, ao estabelecer que «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente», não regula o concurso aparente de crimes, mas apenas o concurso efetivo, como resulta da expressão “ de tipos de crime efetivamente cometidos”. Eduardo Correia, autor do projeto do Código Penal, justificou a ausência no direito positivo da regulação do concurso aparente de crimes, referindo não ser oportuna “ … uma vez que se trata, por um lado, de regras doutrinais e não legislativas , e, por outro, de regras gerais de interpretação do tipo legal de crime e não regras privativas do problema da unidade e pluralidade de infrações.”.[14] De acordo com art.30.º, n.º1, do Código Penal, o concurso efetivo tanto pode envolver a aplicação de diferentes normas incriminadoras (concurso heterogéneo), como a aplicação plúrima de uma única norma incriminadora (concurso homogéneo). Por outro lado, o preceito não distingue o concurso ideal (um único ato viola vários bens jurídicos protegidos por diversas incriminações) e o concurso real (uma pluralidade de atos violam vários bens jurídicos protegidos por diversas incriminações). Uma vez que o concurso efetivo, verdadeiro ou puro tanto depende da violação de uma pluralidade de tipos (abstratos), como da violação plúrima do mesmo tipo abstrato, impõe-se saber, para o presente caso, quando estamos perante a violação plúrima do mesmo tipo de crime. Eduardo Correia, na sua obra “Unidade e Pluralidade de Infracções - Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”, para distinguir entre unidade e pluralidade de infrações, apela ao critério da unidade ou pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma unidade ou pluralidade de resoluções autónomas do agente, no sentido de determinações de vontade.[15] O pensamento de Eduardo Correia encontra-se consagrado no art.30.º, n.º1 do Código Penal, com uma restrição, pois “a unidade de resolução não é incompatível com a pluralidade de «tipos de crimes» (…), tal como a pluralidade de resoluções não é incompatível com a unidade do «tipo de crime» para efeitos do concurso de crimes, pelo que a pluralidade de resoluções criminosas tem uma função meramente indicativa ou indiciária da pluralidade de crimes.”[16] Para Figueiredo Dias não é de aceitar a unidade de resolução como sinal seguro da unidade de sentido de ilícito revelada pelo comportamento, pois a unidade de resolução é compatível com a pluralidade de sentidos autónomos de ilícito dentro do comportamento global, mesmo que não exista descontinuidade temporal entre os diversos atos praticados. Por outro lado, a pluralidade de resoluções é ainda compatível com a unidade de ilícito do comportamento total, estejam em causa ou não bens eminentemente pessoais. Nesta orientação, relativamente a todos os tipos que protegem bens de caráter eminentemente pessoal, a pluralidade de vítimas e, consequentemente, a pluralidade de resultados típicos, deve considerar-se sinal seguro da pluralidade de sentidos do ilícito e conduzir à existência de um concurso efetivo. Seguindo Pedro Caeiro e a sugestão de Almeida Costa, defende Figueiredo Dias que deve ponderar-se o alargamento da pluralidade de eventos típicos ligados a uma pluralidade de vítimas, a “todos aqueles bens que não sejam supra-individuais”, como os bens de caráter pessoal, onde se incluem os bens de caráter patrimonial.[17] O bem jurídico é o cerne do tipo e da valoração que este exprime. A razão teleológica para determinar as normas efetivamente violadas ou os crimes efetivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efetivamente violados. Há concurso efetivo de crimes quando os factos se subsumem a tipos de crime que protegem bens jurídicos distintos ou, sendo subsumíveis a crimes que protejam o mesmo bem jurídico, as violações tenham tido lugar em situações históricas distintas, pois neste caso indicia-se que houve uma pluralidade de resoluções criminosas. Segundo o critério normativo consagrado no art.30.º, n.º1 do Código Penal, a violação concreta de uma norma jurídica repercute a falta da eficácia querida, faz nascer a formulação de um juízo de censura sempre que o agente desencadeie um específico processo volitivo pondo em prática um projeto criminoso, pelo que se, por vezes diversas, o agente se autodetermina em vista da sua concretização, então teremos que a uma pluralidade de resoluções criminosas corresponde igual número de perdas de eficácia da lei e assim a pluralidade de infrações afere-se, pelo número de tipos legais infringidos ou de vezes que a mesma norma é violada , assimilando-se o concurso ideal ao real . Como acentua o acórdão do S.T.J, de 08-01-2014 (proc. n.º 7/10.0TELSB.L1.S1), vários crimes em momentos históricos separados, define díspares resoluções criminosas e estas fundam um maior juízo de censura, porque o tempo não serviu para os demover do crime, para se contra-motivarem, para mais constando da motivação de facto que os arguidos viviam de atividades ilícitas e delas faziam modo habitual de vida. Se entre os factos mediar um espaço de tempo acentuado, os últimos já não são uma “explosão” da resolução inicial, mas importam, à luz das regras da psicologia e da experiência comum, um renovar cíclico do processo deliberativo. No caso concreto, em breve síntese, resulta da factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 4 a 16 do acórdão recorrido, que em data não concretamente apurada, mas anterior a 15-7-2019, o arguido AA formulou o propósito de se apropriar de quantias significativas em numerário que terceiros tivessem acabado de levantar em instituições bancárias ou que trouxessem consigo, para deste modo fazer face às suas despesas habituais e viver de uma forma mais desafogada, o que faria em comunhão de esforços e vontades com a sua mulher BB ou com um outro indivíduo e, quando tal não fosse possível, atuaria mesmo sozinho. Na persecução desse plano, para iludirem as autoridades e dificultar a sua identificação, decidiu ainda que circulariam num veículo automóvel com a matrícula ..-..-ST e quando este estivesse indisponível, utilizariam um outro com a matrícula ..-..-AD, a que colocariam um autocolante numérico por cima de dois números das suas chapas de matrícula, por forma a representarem dois outros números. Da restante factualidade dada como provada resulta, ainda, que o arguido AA, acompanhado por um individuo não identificado, pela arguida BB ou sozinho, deslocou-se em 15-7-2019, 23-1-2020, 3-6-2020, 20-3-2021, 14-6-2021 e 18-8-2021, a variadas localidades do país, onde umas vezes conseguiu, e outras não por razões alheias à sua vontade, apropriar-se de valores que os ofendidos (FF, GG, HH, CC, II e JJ), levantaram e de instituições bancárias, tendo nos dias 3-6-2020, 14-6-2021, 27-7-2021, 17-8-2021 e 18-8-2021, colocado nas matrículas dos veículos com que circularam dois números sobre os que números da matrícula, de modo a enganar terceiros e as autoridades acerca da identificação desses veículos. O plano do arguido AA de vir a praticar crimes de furto e de falsificação de chapas de matrícula, em momentos e locais indeterminados do futuro, indicia, claramente, a necessidade da tomada de uma pluralidade de resoluções autónomas, consoante as circunstâncias de oportunidades que viessem a ter lugar. A decisão a tomar pelo arguido sobre a concreta prática dos crimes que planeou praticar em termos futuros não dependia apenas da sua própria vontade, mas também da vontade do outro individuo (que não foi possível identificar) ou da vontade da sua mulher e, quando o acompanhamento por parte destes não fosse possível, então atuaria sozinho. O arguido AA, na prática de ilícitos-típicos contra o património de terceiras pessoas, atuou, efetivamente, ora acompanhado de outro individuo, da sua mulher BB, ora sozinho. Três dos crimes contra o património foram praticados com cerca de meio ano de diferença entre si (15-7-2019, 23-1-2020, 3-6-2020) e, os restantes três, com uma distância temporal de dois ou três meses de diferença (20-3-2021, 14-6-2021, 18-8-2021), em localidades diferentes e com atuações diversas na abordagem das vítimas, todas elas diferentes. Os “pedaços de vida” espácio-temporais descritos na factualidade dada como provada e a subsequente pluralidade de vítimas, exigiram ao arguido, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, uma pluralidade de resoluções autónomas e correspondente pluralidade de juízos de censura pela violação ou tentativa de violação do património de cada uma das concretas vítimas, com o correspondente preenchimento, em concurso efetivo, do crime de furto, sob a forma consumada ou tentada. Fazendo apelo, pois, à unidade ou pluralidade dos juízos de censura (culpa), ou seja, ao critério seguido por Eduardo Correia, invocado pelo ora recorrente, torna-se claro que o arguido AA não se deixou contra-motivar pela ordem jurídica de cada vez que, em diversas situações históricas, através da correspondente resolução autónoma, violou ou tentou violar o património de cada uma das diferentes vítimas, pelo que incorreu em tantos crimes de furto quantas as vezes que preencheu o respetivo ilícito-típico. À mesma conclusão, de existência de concurso efetivo de crimes, se chega se o critério definidor deste assentar na ideia da relevância do ilícito-típico e de proteção dos bens jurídico-penais, como entidade concreta, portadora de um juízo de valor sobre uma relação da vida real. O concurso efetivo de crimes de furto (simples e qualificados, consumados e tentados) é extensível aos vários factos descritos na factualidade dada como provada, que integram a prática dos crimes de falsificação de documento. Seja pela pluralidade juízos de culpa, ou pela pluralidade de sentidos do ilícito-típico, cada uma das vezes que o ora recorrente violou o bem jurídico protegido pela falsificação de documento, cometeu um destes crimes. Não procede, assim, o argumento do recorrente de que tendo renovado o processo de motivação quando praticou os diversos factos ilícitos-típicos dados como provados praticou um único crime de furto e um único crime de falsificação de documento. Também o entendimento do ora recorrente de que a agravante «modo de vida» é uma consequência comportamental padronizada para a prática de ilícitos ou uma atividade mais ou menos regular tendo em vista o sustento do agente, impõe que seja condenado por um único crime de furto qualificado e por um crime de falsificação de documento, não pode proceder, como brevemente se passa a expor. O recorrente não questiona que com as suas condutas descritas nos factos provados, preencheu a qualificativa «modo de vida», a que alude a alínea h), n.º1 do art.204.º do Código Penal, no entendimento sufragado na decisão recorrida de que “…modo de vida é a actividade com que o agente se sustenta. Não é necessário que se trate de uma ocupação exclusiva, nem contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do agente” (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2.ª Edição, p. 639). A qualificativa “modo de vida” abrange a totalidade e cada uma das condutas criminosas, como bem consigna o acórdão do S.T.J. de 29-10-2008 (publicado na CJ. ASTJ, ano XVI, tomo III, pág. 202 e seguintes). A aplicação daquela qualificativa do furto, a cada um dos crimes em concurso efetivo, feita pelo Tribunal a quo, quando não há identidade de bem jurídico tutelado em concreto, desde logo, porque os bens furtados ou tentados furtar pertencem a diferentes pessoas, não configura uma situação de dupla incriminação pela prática dos mesmos factos. Sendo diversos os vários factos julgados e diversos os crimes pelos quais o arguido foi condenado em concurso efetivo, o acórdão recorrido não violou igualmente o disposto no art.29.º, n.º5 da C.R.P., ou seja, o princípio “non bis in idem”, ao interpretar e aplicar a qualificativa «modo de vida» relativamente a cada um dos crimes de furto. No que respeita à alegada prática de um único crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.256.º do Código Penal, por referência à qualificativa do «modo de vida», da alínea h), n.º1 do art.204.º do Código Penal, ela nunca se verificaria, porquanto estão em em causa diferentes bens jurídicos, tutelados por diversos tipos de ilícito. Improcede, deste modo, também esta questão.
4.ª Questão: Da pena única 12. Como última questão, sustenta o recorrente AA, que a pena única que lhe foi aplicada deve ser reduzida de 7 anos de prisão para uma pena não superior a 5 anos[18], suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e deveres de conduta. Alega, para o efeito e no essencial, que o acórdão recorrido violou os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição de excesso e o disposto nos artigos 40.º, 71.º e 77.º, do Código Penal, pois deveria ter realizado uma diferente abordagem da pequena e média criminalidade para efeitos da determinação da pena conjunta, que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcela mais grave de uma fração menor das outras. Em concreto, refere a seu favor, a idade e uma doença grave e irreversível. Sendo-lhe aplicada uma pena de prisão não superior a 5 anos, deve ela ser suspensa na execução, nos termos do art.50.º, n.º1, do Código Penal, com regime de prova, tendo em vista o pagamento aos lesados dos valores indevidamente apropriados, elaborando-se para o efeito um plano individual de readaptação social, nos termos do art.53.º, n.ºs 2 e 3 do mesmo Código. Vejamos. O princípio da proporcionalidade é um dos parâmetros de constitucionalidade mais frequentemente mobilizados como fundamento de um juízo de desconformidade com a nossa Constituição. Nos termos do art.18.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.». Como um afloramento do Estado de Direito Democrático, consagrado no art.2.º da C.R.P., a última parte do n.º 2 do art.18.º, da nossa Lei Fundamental, estabelece através do chamado princípio da proporcionalidade, pressupostos materiais para a restrição, legítima, de direitos, liberdades e garantias. Doutrinariamente, este princípio vem sendo desdobrado em três subprincípios: - princípio da necessidade ou da exigibilidade ( as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); - princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); e - proporcionalidade em sentido estrito ou da racionalidade (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).[19]. Deste princípio resulta para Estado, em sentido amplo, uma imposição de verificar se o sacrifício dos direitos individuais sujeitos á sua aplicação consagra uma relação razoável ou proporcional com a importância do objetivo que se pretende atingir. Do princípio da proporcionalidade consagrado no art.18.º, n.º2 da C.R.P. decorre o princípio da necessidade da pena criminal, nos termos do qual a pena criminal será constitucionalmente admissível se for necessária, adequada e proporcional em sentido estrito. O princípio não tem apenas uma dimensão abstrata; juiz, perante uma concreta situação deve eleger, entre as penas que são igualmente aptas para o objetivo pretendido, aquela é mais menos prejudicial para os direitos fundamentais do cidadão. Densificando o princípio constitucional da proporcionalidade, em sentido estrito, na vertente da necessidade da pena criminal, o legislador ordinário estabeleceu no art.40.º, n.º1 do Código Penal, que a aplicação de penas (e de medidas de segurança) tem como finalidade a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais. Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito. É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial. A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida. O legislador não só densificou no Código Penal as finalidades das penas (e das medidas de segurança), como estabeleceu critérios objetivos para a determinação da medida da pena. Nos termos do art.71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele. Culpa e prevenção são os dois vetores através dos quais é determinada a medida da pena. A pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena (art.40.º, n.º2 do Código Penal). A culpabilidade aqui referida é um juízo de reprovação que se faz sobre uma pessoa, censurando-a em face do ordenamento jurídico-penal. Como observa Figueiredo Dias, o facto punível não se esgota com a ação ilícita-típica, necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, “…isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”[20] Para o concurso de crimes estabelece o art.77.º Código Penal, na redação do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de março, o seguinte regime: «1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.». Perfilha-se nesta norma penal o «sistema da pena conjunta», na medida em a punição do concurso de crimes supõe a discriminação das penas concretas que o integram. Na lição de Figueiredo Dias, “Pena conjunta existirá sempre que as molduras penais previstas, ou as penas concretamente determinadas, para cada um dos crimes em concurso sejam depois transformadas ou convertidas, segundo um «princípio de combinação» legal, na moldura penal ou na pena do concurso.”. A doutrina vem entendendo que o modelo de punição do concurso de crimes consagrado no art.77.º do Código Penal, sendo um sistema de pena conjunta, não é construído de acordo com o princípio de absorção puro, nem com o princípio da exasperação ou agravação, mas sim de acordo com um sistema misto, que vem sendo chamado de sistema do cúmulo jurídico.[21] Também a jurisprudência segue este caminho, consignando-se, entre outros, no acórdão do S.T.J. de 3 de outubro de 2012, que o modelo de punição do nosso Código Penal é um sistema misto de pena conjunta “erigido não de conformidade com o sistema de absorção pura por aplicação da pena concreta mais grave, nem de acordo com o princípio da exasperação ou agravação, que agrega a si a punição do concurso com a moldura do crime mais grave, agravada pelo concurso de crimes.”[22]. Doutrina e jurisprudência coincidem em especificar que no cúmulo jurídico, a pena conjunta é definida dentro de uma moldura cujo limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o limite máximo resulta da soma das penas efetivamente aplicadas, emergindo a medida concreta da pena da imagem global do facto imputado e da personalidade do agente. O agente é sancionado, não apenas pelos factos individualmente considerados, numa visão atomística, mas especialmente pelo conjunto dos factos, enquanto reveladores da gravidade da ilicitude global da conduta do agente e da sua personalidade. A pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art.71º.º, n.º1, um critério especial estabelecido no art.77.º, nº 1, 2ª parte, ambos do Código Penal.[23] Os parâmetros indicados no art.71.º do Código Penal, servem apenas, porém, de guia para a operação de fixação da pena conjunta, não podendo ser valorados novamente, sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes.[24] Na busca da pena do concurso, explicita Figueiredo Dias, na obra que vimos seguindo, que “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”[25] Como refere ainda, na doutrina, Cristina Líbano Monteiro, com o sistema da pena conjunta, perfilhado neste preceito penal, deve olhar-se para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.[26] As conexões ou ligações fundamentais na avaliação da gravidade da ilicitude global, são as que emergem do tipo e número de crimes, dos bens jurídicos individualmente afetados, da motivação, do modo de execução, das suas consequências e da distância temporal entre os factos. Ínsita nos factos ilícitos unificados no âmbito da pena de concurso, a personalidade do agente, é um fator essencial à formação da pena única. A revelação da personalidade global do agente, o seu modo de ser e atuar em sociedade, emerge essencialmente dos factos ilícitos praticados, da interiorização das condutas ilícitas e consequentes penas parcelares que lhe foram aplicadas, mas também das suas condições pessoais e económicas e da sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado. Sendo as necessidades de prevenção mais exigentes quando o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, do que quando esse ilícito se reconduz a uma situação de pluriocasionalidade, a pena conjunta deverá refletir esta singularidade da personalidade do agente. Posto isto, vejamos se deve ser reduzida a pena única aplicada ao recorrente, tendo em atenção os critérios acabados de definir para fixação da pena conjunta. Para o efeito, importa recordar que, no caso, se mantém o número de crimes de furto e de falsificação de documentos considerados no acórdão recorrido, bem como as respetivas penas parcelares, que não foram objeto de impugnação nos termos do art.412.º, n.º 2 do C.P.P.. Assim, a pena conjunta a aplicar tem como limite mínimo 2 anos de prisão (a pena parcelar mais elevada) e como limite máximo 14 anos de prisão (correspondente à soma das penas concretamente aplicadas). Observando o ilícito global, que emerge da análise unificada dos factos, não se pode deixar de qualificar o mesmo como de elevada gravidade. Assim: - Estão em causa no concurso, 5 crimes de furto qualificado, tipificados no n.º1 do art.204.º do Código Penal, dos quais quatro consumados e um na forma tentada, a que acresce 1 crime de furto simples, p. e p. pelo art.203.º do Código Penal e, ainda, 5 crimes de falsificação de documento agravado, na forma consumada. - Os crimes de falsificação de documentos praticados pelo arguido, colocando em causa a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental, mostram-se em conexão com os crimes de furto. O arguido falsificava as chapas de matrícula dos veículos em que circulava previamente à prática dos crimes contra o património das suas vítimas, como meio de enganar terceiros, nomeadamente as autoridades policiais, e obstar à sua identificação como autor dos furtos. - Os crimes em causa, praticados durante um período de tempo razoavelmente longo, de 2 anos, revelam uma intensa e prolongada vontade de praticar os factos em concurso, com o inerente alarme social, particularmente quando as vítimas de furto são pessoas idosas, o que faz salientar necessidade de acautelar as finalidades de prevenção geral. Quanto à personalidade unitária do recorrente, anota-se , por um lado, que não procedeu à reparação dos prejuízos causados às suas vítimas e, por outro, conclui-se do conjunto dos factos em concurso e do seu passado criminal descrito no ponto n.º 104 dos factos provados, com várias condenações anteriores por crimes de falsificação de documento, de furtos qualificados e simples e de dano, em penas de multa, mas também em penas de prisão, de 5 anos por furto qualificado, 1 ano e 3 meses por crime de falsificação e por um crime de roubo, em 3 anos e 4 meses, embora suspensas, que o mesmo tem um percurso de vida razoavelmente desviante no que concerne à prática de crimes idênticos àqueles pelos quais vem agora condenado. Acrescentando às condutas do arguido, que vem reiterando no tempo, a circunstância de parte dos factos ora em concurso (os de 26-03-2021, 14-06-2021, 27-07-2021, 17-08-2021 e 18-08-2021), terem sido praticados após o perdão e condenação referidos nas alíneas e) e f) do ponto n.º 114.º, dos factos dados como provados no acórdão recorrido, temos como evidenciada uma fraca sensibilidade e suscetibilidade do arguido em ser influenciado pelas penas criminais. O arguido mostra-se familiarmente inserido, mas esta circunstância não se mostra de particular relevância pois a mesma acontecia já antes dos factos em concurso e, como vemos, não o impediu de praticar os novos factos. Apresenta fraca condição social, tem alguns problemas de saúde e é mediana a sua situação económica. No que toca à prevenção especial, entende-se que o recorrente carece de forte socialização, pois o ilícito global agora julgado aproxima-se já de uma tendência criminosa. A personalidade do arguido manifestada nos factos, em conjunto com o ilícito global por ele perpetrado, levam a concluir que as exigências de prevenção especial são elevadas e que a correspondente pena única deve poder ser interiorizada pelo arguido, como dissuasora da prática de novos crimes, designadamente de crimes como os que vem praticando sucessivamente ao longo de muitos anos, para que lhe sirva de aviso e adapte o seu comportamento às normas socialmente vigentes. Neste contexto, entendemos que a pena conjunta de 7 anos de prisão aplicada ao arguido AA, abaixo, portanto, do limite médio da moldura abstrata do concurso, que é de14 anos prisão, não só não se mostra excessiva, como é adequada às finalidades de prevenção e proporcional á sua culpa. Mantida a pena de prisão aplicada, importa decidir se pode ser substituída pela suspensão da execução da pena, como requerido pelo arguido. Tendo em conta que foi confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça a pena de 7 anos de prisão em que foi condenado em 1.ª instância, não se mostra verificado o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão. Faltando, o preenchimento do primeiro pressuposto desta pena de substituição, falece imediadamente a pretenção do ora recorrente de lhe vir a ser suspensa a execução da pena de prisão, sem necesidade sequer de abordar o preenchimento pelo mesmo do respetivo pressuposto material. Com a improcedência, também, desta questão, resta negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.
III - Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acorda o Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, e confirmar o acórdão recorrido. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs (art.513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).
* (Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).
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Lisboa, 18 de maio de 2023
Orlando Gonçalves (Relator)
Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)
Agostinho Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)
Eduardo Loureiro (Presidente da Secção)
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[5] Cf. “O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória”, Publicações Unv. Católica, 2002, págs. 233, 234, 445, 446 e 450. [9] In “Código de Processo Penal Comentado”, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, Almedina, 2014, pág. 1128 [10] Cf. “Código Penal Anotado”, 2.º Vol., Rei dos Livros, pág. l087. [20] Cfr. Fig. Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230. [21] Cf. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, págs. 282 a 284, e Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, pág. 283 [23] Cf. “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág.290/2. [24] Cf. Figueiredo Dias, obra cit., pág. 292. [26] Cf. “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 16, n.º1, , pág. 155 a 166 e acórdão do STJ, de 09-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1.
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