Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RAUL BORGES | ||
Descritores: | ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLECTIVO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLETIVO ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS ACTOS SEXUAIS COM ADOLESCENTES QUEIXA APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL PENAL NO TEMPO CRIME SEMI-PÚBLICO CRIME PÚBLICO LEGITIMIDADE MINISTÉRIO PÚBLICO CONCURSO DE INFRACÇÕES CONCURSO DE INFRAÇÕES CRIME DE TRATO SUCESSIVO CRIME ÚNICO FACTOS GENÉRICOS PENA ÚNICA PENA PARCELAR MEDIDA CONCRETA DA PENA IMAGEM GLOBAL DO FACTO PLURIOCASIONALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 09/30/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL – QUEIXA E ACUSAÇÃO PARTICULAR / TITULARES DO DIREITO DE QUEIXA – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL / ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS. | ||
Doutrina: | - Américo A. Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, Coimbra Editora, 1990, 2.ª parte, p. 207 e ss.; - Ana Rita Alfaiate, Crimes sexuais contra menores: questões de promoção processual, na colectânea Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Volume III, Coimbra Editora, 2010, p. 724; - Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 1955, p. 62; - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, p. 122/3 ; Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do crime, 1993, (§ 1057, p. 661; - Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, p. 181; - Maia Gonçalves, Código Penal Português, 4.ª edição, Almedina, 1979, p. 642 ; Código Penal Português, Anotado e Comentado, 16.ª edição, Almedina 2004, p. 608; - Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, p. 595; - Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 4.ª edição actualizada, Abril de 2011, p. 62/63; - Rui do Carmo, Isabel Alberto e Paulo Guerra, O Abuso Sexual de Menores, publicado pela Almedina, 2.ª edição, Março de 2006; - Teresa Beleza, O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, I volume, Lisboa, 1996, p. 159 e 182; - Victor Sá Pereira, Código Penal, Livros Horizonte, 1988, p. 158 e 257. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 113.º, N.º 6, 171.º, N.ºS 1 E 2, 172.º, N.ºS 1 E 2, 173.º, N.º 1, 177.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 178.º, N.º 4. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 10-10-2012, PROCESSO N.º 617/08.5PAALGS.E2.S1; - DE 12-06-2013, PROCESSO N.º 1291/10.4JDLSB.S1; - DE 03-07-2014, PROCESSO N.º 1431/11.6PEAVR.C1-A.S1; - DE 09-07-2014, PROCESSO N.º 95/10.9GGODM.S1; - DE 17-09-2014, PROCESSO N.º 67/12.9JAPDL.L1.S1; - DE 21-01-2015, PROCESSO N.º 12/09.9GDODM.S1; - DE 22-04-2015, PROCESSO N.º 45/13.0JASTB.L1.S1; - DE 17-06-2015, PROCESSO N.º 28/11.5TACVD.E1.S1. | ||
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Sumário : | I - O recorrente foi condenado, por acórdão proferido pelo tribunal colectivo, pela prática de 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172.º, n.º 1, do CP, na redacção anterior à Lei 59/07, de 04-09, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172.º, n.º 2, do CP, na redacção anterior à Lei 59/07, de 04-09, na pena de 4 anos de prisão; 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172.º, n.º 1, do CP, na redacção anterior à Lei 59/07, de 04-09, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; 1 crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP, na pena de 2 anos de prisão; 1 crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP, na pena de 5 anos e 2 meses de prisão; 1 crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP, na pena de 8 anos de prisão; 1 crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, p. e p. pelos arts. 173.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP, na pena de 2 anos de prisão e, em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 14 anos de prisão. II - Ao caso é aplicável o art. 113.º, do CP, na redacção de 1995, com o aditamento do n.º 6 em 1998 e o art. 178.º, do CP, na formulação introduzida pela Lei 99/2001, uma vez que o regime introduzido pela Lei 59/2007 é mais gravosos para o arguido, pelo que, estando em causa crime praticado contra menor de 16 anos, pode o MP dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser. III - A mãe da menor apresentou queixa 7 dias depois do auto de denúncia, sendo que o facto de posteriormente aquela ter sido constituída arguida não retira eficácia a tal queixa, porquanto a declaração de procedimento criminal é aferida no contexto do momento em que é feita e, nessa altura, pelos elementos disponíveis nos autos, não se divisava que o caso viesse a ter os contornos e os desenvolvimento que veio a ter. IV - Ainda que assim não se entendesse, o quadro factual em causa - abusos sexuais da menor desde os 6 anos de idade até aos 15 anos de idade, pelo arguido, seu tio, num quadro de total ausência de interesse da menor por parte do pai e de negligência por parte da mãe, que conduziram ao acolhimento da menor em instituição – sempre justificaria a intervenção do MP, nos termos dos referidos arts. 113.º, n.º 6 e 178.º, n.º 4, do CP, intervenção esta legitimada pela situação factual descrita, sem necessidade despacho prévio a fundamentar a tomada de posição. V - O STJ tem optado pela subsunção da pluralidade de condutas, no plano do abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes, afastando a configuração de tais situações nos restantes quadros reguladores possíveis, como seja o crime continuado, o crime único ou o crime de trato sucessivo. VI - Não obstante tal entendimento jurisprudencial maioritário, é de proceder à unificação num único crime, quando estejam em causa condutas sem a mínima determinação, ou seja, quando esteja em causa uma imputação genérica, sem a mínima concretização factual/temporal para além da única ocasião que é de ter por assente. Com efeito, tal imprecisão da matéria de facto provada impede que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente pronunciar-se sobre uma afirmação genérica, pelo que a situação tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo, isto é, optando pela condenação pela prática de um único crime (que não crime único). VII - Já nos outros casos em que não se verifica tal imputação genérica, tendo sido dada como por assente a ocorrência de abusos sexuais em pelo menos 4 vezes, não será de aceitar a unificação realizada pelo acórdão recorrido, estando em causa, em cada caso, a prática pelo recorrente de 4 crimes, em concurso efectivo. Sendo certo que, face ao princípio da reformatio in pejus, tal correcção não terá qualquer influência na medida das penas. VIII - Com efeito, os comportamentos do recorrente não integraram apenas uma resolução criminosa, antes existindo várias resoluções criminosas, que se traduzem no facto de o recorrente em dias e épocas diferentes ter accionado e renovado a sua vontade para praticar o crime sexual e repeti-lo. Ou seja, o arguido criava as condições, procurava e fomentava as oportunidades de contacto, renovando o desígnio criminoso, estando-se, pois, perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores. IX - O limite mínimo da pena a aplicar é determinado pelas razões de prevenção geral que no caso se façam sentir; o limite máximo pela culpa do agente revelada no facto, servindo as razões de prevenção especial para encontrar, dentro daqueles limites, o quantum da pena a aplicar. X - No caso, o grau de ilicitude é elevado e o dolo também intenso, porque na sua forma directa. As necessidades de prevenção geral são muito elevadas, atento o bem jurídico em causa (autodeterminação sexual de crianças), bem como a frequência de condutas deste tipo e do alarme social e insegurança que os crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes causam na comunidade. No que toca à prevenção especial, avulta a personalidade do arguido na forma como actuou ao longo do período em causa, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor em causa. Assim, considera-se ser de manter as 3 primeiras penas aplicadas, por adequadas, reduzindo-se as restantes do seguinte modo: pelo crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP, a pena de 2 anos de prisão é reduzida para 1 ano e 6 meses; pelo crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP, a pena de 5 anos e 2 meses de prisão é reduzida para 4 anos e 6 meses; pelo crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, al. b), do CP, a pena de 8 anos de prisão é reduzida para 6 anos de prisão e pelo crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, p. e p. pelos arts. 173.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP, a pena de 2 anos de prisão é reduzida para 1 ano e 6 meses. XI - No que diz respeito à pena única, atenta a redução de algumas das penas parcelares, a moldura a ter em conta é de 6 anos a 21 anos e 6 meses de prisão. Na confecção da pena única, há que ter em conta a consideração em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, sendo que, na consideração do conjunto dos factos está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global. No caso é evidente a conexão e estreita ligação entre os 6 crimes de abuso sexual de crianças e mais tarde de actos sexuais com adolescentes, cometidos pelo recorrente, revelando a assunção de condutas homótropas, com afinidades e pontos de contacto, sendo o grau de ilicitude global elevado, atento o número, natureza e gravidade dos crimes praticados, pelo que, tudo ponderado, afigura-se como adequada a aplicação da pena única de 12 anos de prisão. | ||
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Decisão Texto Integral: |
No âmbito do processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo n.º 2430/13.9JAPRT da Comarca do Porto - Vila Nova de Gaia - Instância Central - 3.ª Secção Criminal –J3, foram submetidos a julgamento os arguidos: AA, natural de ..., nascido a ..., ..., ..., residente na ..., actualmente preso preventivamente, à ordem destes autos, no Estabelecimento Prisional do Porto; e BB, natural de ..., nascida a ..., ..., ..., residente na .... Na acusação vinha-lhes imputada a prática dos seguintes crimes: Ao arguido AA, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo: - onze crimes de abuso sexual de criança, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 171.°, n.º 1 e 177.°, n.º 1, alínea b); - cinco crimes de abuso sexual de criança, na forma agravada, previsto e punido pelo artigo 171.°, n.º 2 e 177.°, n.º 1, alínea b); - quatro crimes de actos sexuais com adolescente, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 173.º, n.ºs 1 e 2, e 177.°, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal. À arguida BB, a prática, como cúmplice, na forma consumada, e em concurso efectivo: - cinco crimes de abuso sexual de crianças, na forma agravada, p. e p. pelo art.° 171.°, n.º 1, e 2 e 177.°, n.º 1, al. a), do Código Penal; - quatro crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, previsto e punido pelo art.º 172.°, n.º 1, e 177.°, n.º 1, al. a), do Código Penal. * O arguido AA apresentou a contestação constante de fls. 498 a 518, do 3.º volume, suscitando a questão prévia da ilegitimidade do Ministério Público para a acção penal quanto aos crimes de abuso sexual de crianças, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171°, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, e quanto aos crimes de acto sexual com adolescentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 173.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, a si imputados na acusação, requerendo, nesta parte, a extinção do procedimento criminal. Sustenta, ainda, quanto aos onze crimes de abuso sexual de crianças, ocorridos entre 2004 e 2007, a si imputados, que a circunstância agravante da relação familiar, p. e p. no n.º 1, alínea b), do artigo 177.º do Código Penal, invocada pelo Ministério Público, apenas foi introduzida com a Lei 59/07, de 4-09, pelo que só lhe poderia ser imputada a prática dos crimes simples, de acordo com o princípio da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável. Termina, negando em absoluto, os factos de que vinha acusado. * Como consta da acta de audiência de julgamento de fls. 734/5, foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação relativos à menor CC, constituindo concretização do já alegado na acusação e uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, susceptíveis de consubstanciarem a prática pelo arguido de um outro crime de abuso sexual de criança agravado na pessoa de uma outra menor. Feitas as comunicações previstas nos termos dos artigos 358.º e 359.º do CPP, o arguido requereu o prazo de dois dias para se pronunciar, o que foi concedido. O arguido, em requerimento de fls. 738/739 verso, opôs-se à continuação do julgamento pelos novos factos comunicados, que consubstanciavam uma alteração substancial dos descritos na acusação e quanto ao mais, pronunciou-se na mesma peça, terminando por requerer diligência de prova, que foi deferida, conforme despacho constante da acta de audiência de fls. 746 e verso. * Realizado o julgamento, pelo Tribunal Colectivo de Vila Nova de Gaia, em acórdão de 3 de Dezembro de 2014, constante de fls. 770 a 783 verso do 4.º volume, depositado em 9 de Dezembro de 2014, conforme declaração de depósito de fls. 785, foi deliberado: Julgar parcialmente procedente a acusação, e em consequência: A) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria, de: 1) Um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção anterior à Lei 59/07, de 4-09, na pena de um ano e seis meses de prisão [situação referida em a), a fls. 779 e verso – FP n.º 4]; 2) Um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei 59/07, de 4-09, na pena de quatro anos de prisão [situação referida em b), a fls. 779 verso – FP n.º 5]; 3) Um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção anterior à Lei 59/07, de 4-09, na pena de dois anos e seis meses de prisão [situação referida em c), a fls. 779 verso – FP n.º 6]; 4) Um crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de dois anos de prisão [situação referida em d), a fls. 780 – FP n.º 7]; 5) Um crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de cinco anos e dois meses de prisão [situação referida em e), a fls. 780 – FP n.º 8]; 6) Um crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de oito anos de prisão [situação referida em f), a fls. 780 e verso – FP n.º 9 e 10]; 7) Um crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 173.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de dois anos de prisão [situação referida em g), a fls. 780 verso – FP n.º 9 e 10]; 8) Em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas em 1) a 7), condenar o arguido AA na pena única de 14 (catorze) anos de prisão. 9) Absolver o mesmo arguido dos demais crimes que lhe eram imputados na acusação. [NOTA – Na enunciação das condenações impostas ao arguido, para melhor compreensão à frente de cada um dos segmentos de condenação foi colocada a referência feita no acórdão recorrido de fls. 779 a 780, em sede de enquadramento jurídico-criminal, sob as alíneas a) a g), correspondentes aos Factos Provados sob os números 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10, o que de resto, corresponde à enunciação de penas constante a fls. 781 verso].
B) Condenar a arguida BB pela prática, como cúmplice, de: 1) Um crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de três anos de prisão; 2) Um crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 173.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de dez meses de prisão; 3) Em cúmulo jurídico condenar a arguida BB na pena única de três anos e quatro meses de prisão, que, nos termos do artigo 50.° do Código Penal, se suspende na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova, a elaborar e executar sob vigilância dos serviços sociais; 4) Determinar, nos termos do disposto no artigo 179.º, alínea a), do Código Penal, que a arguida BB fica inibida do exercício do poder paternal relativamente à menor sua filha CC, por um período de dois anos. 5) Absolver a arguida BB dos demais crimes que lhe eram imputados na acusação. * Inconformado, o arguido interpôs recurso dirigido ao Tribunal da Relação do Porto, apresentando a motivação de fls. 812 a 832, e em original de fls. 833 a 873, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição integral, incluídos todos os realces tal como constam do texto): 1- O Tribunal “a quo”, decidindo como decidiu, não fez a melhor justiça na aplicação do Direito, quando não considerou ilegítima a actuação do Ministério Público para o exercício da acção penal, relativamente aos crimes abuso sexual de crianças ocorridos antes de Setembro de 2007; 2- Com efeito, refira-se, que do mesmo tudo arguiu por excepção na sua contestação, contudo, entendeu o Tribunal “a quo”, que o direito de queixa terá sido “… exercido por legal representante da menor…”, e “…ainda que o não tivesse sido, é manifesto o interesse da vítima no exercício da acção penal e a consequente legitimidade do Ministério Público por essa via.”; 3- Atente-se contudo, que o Tribunal “a quo”, nesta parte não deveria ter mantido a validade da instância, mas sim, efectivamente obstar-se ao conhecimento do seu mérito; 4- “In casu”, o aqui recorrente foi condenado em 3 crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelos artigos 172º., do Código Penal, na redacção anterior à Lei 59/07 de 4 de Setembro; 5- Entendendo o aqui recorrente, que não tendo sido devidamente exercido o direito de queixa por parte do(s) respectivo(s) titulares, nunca o aqui recorrente por tais crimes poderia ter sido condenado, tão pouco aliás, deveria o Tribunal “a quo”, ter “caminhado” no sentido de conhecer do “mérito” das mesmas; 6- Em concreto, tratam-se de 3 crimes ocorridos em dias indeterminados entre 2004 e 2007, tendo a suposta ofendida, à data dos indiciados factos, idade inferior a 12 anos; 7- A investigação que deu origem à Acusação, teve origem num auto de denúncia elaborado em 29/11/2013 (fls. 3 e 4 e fls. 365 a 369); 8- A fls. 72 e ss, por despacho datado de 07/12/2013, dá-se a intervenção do Ministério Público, sendo aí referido que o arguido é suspeito da prática, como autor material, de um crime de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. 171º, nº1 e 177º, nº1, al. b) do C.P.; 9- A fls. 88 e ss, por despacho datado de 13/12/2013, o Ministério Público ordena a remessa dos autos à Polícia Judiciária para prosseguir com a investigação, tudo, como se de crimes públicos se tratassem (!); 10- Analisando a legislação aplicável ao caso concreto, temos que a Lei nº. 99/2001, de 25 Agosto (que entrou em vigor em 30/08/2001), alterou o artº 178º, do C.P, passando a ter a seguinte redacção: “1. O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163º a 165º, 167º, 168º e 171º a 175º depende de queixa, salvo nos seguintes casos: a) Quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da vítima; b) Quando o crime for praticado contra menor de 14 anos e o agente tenha legitimidade para requerer o procedimento criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou a tiver a seu cargo; 2. Nos casos previstos na alínea b) do número anterior, pode o Ministério Público decidir-se pela suspensão provisória do processo, tendo em conta o interesse da vítima (…); 3. A duração da suspensão…(…); 4. Sem prejuízo do disposto nos números 2 e 3, e quando os crimes previstos no nº.1 forem praticados contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar inicio ao procedimento criminal se o interesse da vítima o impuser”; 11- Por sua vez a lei nº 59/2007, de 4 de Setembro (que entrou em vigor em 15/09/2007), começou por alterar o (anterior) Artº 172º, do C.P., intitulado abuso sexual de criança, alterando a sua numeração do “artigo 172º” para “artigo 171º”, passando o crime, em consequência, a ser p. e p. pelo artigo 171º, nº 1, do C.P (actualmente com a mesma redacção); 12- Mais alterou o artigo 17º. (SIC) do C.P., excluindo a necessidade de queixa para o procedimento criminal quanto ao crime de “abuso sexual de criança”, p. e p. (agora) no artº 171º, do C.P (anteriormente no artº 172º, do C.P.); 13- Acontece que, esta alteração, por sua vez, tem de ser referida e articulada com os artigos 113º. e 115º., do C.P. (nas redacções sucessivamente em vigor) – Titularidade do direito de queixa e Extinção do direito de queixa; 14- A alteração introduzida pela Lei nº 59/07, de 15 de Setembro, ao alterar a natureza do presente ilícito, passando-o de semipúblico a público, é objectivamente um regime desfavorável para o arguido; 15- Do que antecede, e estamos a considerar os regimes sucessivamente em vigor tendo em atenção quer a data da prática dos supostos crimes e a idade que a suposta ofendida tinha à sua data, quer a data em que se iniciou o presente processo, quer pela Lei 99/2001, de 25 de Agosto, quer pelos artigos 113º e 115º do C.P, nas redacções sucessivamente em vigor, em relação a situações que à partida estão dependentes de queixa, o Ministério Público só tem legitimidade para o exercício da acção penal, se o crime tiver sido praticado “… contra menor de 16 anos…” e o“… interesse da vítima o impuser.”; 16- “In casu”, atento o horizonte temporal da prática dos supostos factos (2004-2007, a idade da suposta ofendida em relação à qual estão imputados os crimes ao arguido e à data dessa prática, a suposta ofendida, nascida a 24-03-1998, era inferior a 16 anos; 17- Sucede que, ao contrário do que pretende fazer crer o Tribunal “a quo” na decisão ora recorrida, o Ministério Público não proferiu Despacho, de forma prévia à articulação dos factos que constituíram a Acusação, no qual ponderasse (fundada e fundamentalmente) o interesse da vítima e as razões objectivas que levariam à sua intervenção, ao abrigo do disposto no artigo 178º, nº4 do C.P. (cfr. fls. 409 a 415 dos autos); 18- Assim prosseguindo, resulta do regime da Lei 99/2001, de 25 de Agosto que estamos a considerar e, dos artigos 113º e 115º do C.P., nas redacções sucessivamente em vigor, quando tenham sido praticados contra menor de 16 anos, independentemente do exercício do direito de queixa por parte de quem, à partida, e titular desse direito, por razões de interesse público, relacionados com o que é a tutela do bem jurídico protegido, mas, inerentes e subjacentes ao interesse da vítima, o Ministério Público tem legitimidade para desencadear e exercer a acção penal, contudo, tem de justificar as razões de facto (objectivas) que levam à sua intervenção no interesse da vítima (cfr. neste sentido, Ac. do S.T.J, 09/04/2003, relatado pelo Sr. Conselheiro Borges de Pinho, Processo 02P4628, in dgsi.pt, Ac. S.T.J, 22/10/2003, relatado pelo Sr. Conselheiro Armindo Monteiro, Processo 03P2852, in dgsi.pt, Ac. do Tribunal Constitucional nº 403/2007, Processo 534/04, relatado pelo Sr. Conselheiro Mário Torres, in dgsi.pt, em que é referido a posição da Sra. Professora Maria João Antunes quanto a esta questão, e vista também não só sob a perspectiva da legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, independentemente de queixa nestas situações, mas também sob a perspectiva da não admissibilidade da desistência de queixa, em função do especial interesse da vítima, quando o crime tenha sido praticado contra menor de 16 anos); 19- “In casu”, nada em concreto e momento algum foi invocado, para fundamentar o interesse da menor na intervenção do Ministério Público, nenhuma razão foi invocada pelo Ministério Público para a sua intervenção, aliás, não foi formulado sequer qualquer juízo nesse sentido pelo Ministério Público e, esta omissão prosseguiu para o Douto Tribunal aquando do Despacho de Saneamento/Recebimento da Acusação do Artº 311º. do C.P.P., na medida em que não foi proferida nenhuma decisão (genérica) relativamente à legitimidade/intervenção do Ministério Público no interesse da vítima, tão pouco aliás, ora, o douto Acordão aqui recorrido tal minimamente fundamentou; 20- Por sua vez, e tal como consta nos autos, a suposta ofendida nunca foi uma “criança de rua”, familiarmente tinha estrutura familiar pois vivia com os pais e com os irmãos, não está demonstrado que tivesse “deficit” afectivo no seu quotidiano, frequentava a escola, estava integrada no meio escolar e social, teve relacionamentos amorosos com outros jovens da sua faixa etária e, não se constituiu assistente (por representação – artº 68º, nº1, al. d), do C.P.P.); 21- Estes e outros aspectos deveriam ser considerados porque o interesse da vítima não é um conceito indeterminado ou cláusula aberta cujo preenchimento seja automático ou discricionário, antes, ocorre a ideia que em certas infracções como os crimes sexuais a promoção processual contra ou sem a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou mesmo prejudicial para interesses seus dignos de toda a consideração, porque estreitamente relacionados com a sua esfera íntima ou familiar e com a consequente estigmatização processual; 22- A legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal também não foi integrada por uma queixa, e só através dela o Ministério Público tem legitimidade para intervir nos crimes semipúblicos; 23- A queixa não se confunde com a denúncia nem mesmo com a participação, a queixa é uma condição de procedibilidade, aposta no plano dos chamados pressupostos processuais, que Von Bulow considera pressupostos não da existência de um processo mas da possibilidade de um processo existente. Contende, por outro lado, com o próprio direito penal material (substantivo), e por isso o C.P. se lhe refere, assumindo-se ainda como condição de efectivação da punição, ainda que não integre a tipicidade, não interfira no ilícito, não importe para a culpa e nada tenha a ver com as chamadas condições objectivas de punibilidade; 24- E, não se digna que a intervenção do Ministério Público nos presentes autos ficou legitimada com a declaração (fls.49) da mãe da suposta ofendida (também arguida) a manifestar o desejo de procedimento criminal contra o autor dos factos denunciados; 25- O titular do direito de queixa é, em regra, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses protegidos pela incriminação, isto é, o portador do bem jurídico protegido (artº 113º, nº1, do C.P.), se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado da dedução da queixa, o direito transmite-se ao seu legal representante (artº 113º, nº4, do C.P.); 26- Nos presentes autos os titulares do exercício do direito de queixa seriam (e são), “prima facie”, os pais da suposta ofendida, estes, eram e são casados entre si, logo, os representantes legais serão os dois, tal como prescreve o artigo 1901º do C.C.; 27- Havendo dois ou mais representantes legais, qualquer um deles pode exercer o direito de queixa, acontece que, a mãe da suposta ofendida foi posteriormente constituída arguida, vindo também a ser acusada, como cúmplice, na forma consumada, repetida, e em concurso efectivo, da prática de cinco crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 171º, nº1 e 2 e 177º, al. a) e de quatro crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) todos do C.P.; 28- Esta representante legal teve, segundo a acusação do Ministério Público e, do que resulta do douto Acordão aqui recorrido, comparticipação nos crimes; 29- Quando assim é, logicamente não pode representar a suposta ofendida, trata-se de algo perfeitamente surreal e inaceitável, pois com tal comparticipação, esta, ficou e está impedida de exercer tal alcance; 30- Assim, onde o nº. 4 do artigo 113º. do C.P. se refere à “…falta do representante…”, deve entender-se que tal significa falta ou impedimento (no âmbito alargado duma falta de “lato sensu”), com aquela comparticipação de todo o ponto impedir e, a remeter para as “pessoas” indicadas sucessivamente nas alíneas do nº. 2, aplicando-se o disposto no nº. 3; 31- Sem prescindir, o direito de queixa podia ter sido exercido pelo outro representante (o pai da suposta ofendida), na medida em que ele não está de todo impedido de a representar; 32- Efectivamente este não o fez, nem tão pouco sanou a falta de representação decorrente do impedimento da mãe, também nestes autos arguida, por via de ratificação da declaração por aquela prestada a fls.49, como também não o fizeram os outros titulares que, à partida, podiam exercer legalmente o seu direito de queixa; 33- O Ministério Público também não poderia legitimar a sua intervenção ao abrigo do estipulado no artigo 133º., nº.5, do C.P., porque, à data dos factos vigorava o artº. 178º., do C.P., na redacção dada pela Lei 99/2001, de 25 de Agosto, que assegurava, na altura, os objectivos visados por aquele preceito quanto às condições do início do procedimento criminal, outrossim, também teria que justificar as razões de facto (objectivas) que levam à sua intervenção “…sempre que o interesse do ofendido o aconselhar e: a) (…) ou b) (…)”, visando, em primeira linha, suprir as situações em que o menor não tenha representante legal; 34- Estamos assim, perante um caso de omissão do exercício de direito de queixa por parte dos respectivos titulares, incluindo o Ministério público; 35- Em consequência e face ao exposto, ao abrigo do disposto no artº. 178º, nº 1 e 4, do C.P., na versão introduzida pela Lei 99/2001, de 25 de Agosto, deverão Vª. Excª.(s) julgar procedente a alegada excepção de ilegitimidade deduzida pelo arguido e, assim, declarar extinto todos os procedimentos que levaram á condenação do aqui recorrente, relativamente aos crimes de abuso sexual de crianças ocorridos antes de Setembro de 2007. 36- O Tribunal “a quo”, decidindo como decidiu, também não fez a melhor justiça na aplicação do Direito, quando não considerou ilegítima a actuação do Ministério Público para o exercício da acção penal relativamente ao crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada; 37- Refira-se pois também quanto a este ponto, que o aqui recorrente tudo arguiu por excepção aquando da sua contestação, contudo, mais uma vez quanto a tal, entendeu o Tribunal “a quo”, que o direito de queixa terá sido “… exercido por legal representante da menor…”, e “…ainda que o não tivesse sido, é manifesto o interesse da vítima no exercício da acção penal e a consequente legitimidade do Ministério Público por essa via.”; 38- Atente-se contudo, que o Tribunal “a quo”, nesta parte também não deveria ter mantido a validade da instância, mas sim, efectivamente obstar-se ao conhecimento do seu mérito; 39- Veja-se pois, que o aqui recorrente foi condenado pela prática de 1 crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, p. e p. pelos Artº.(s) 173º. nº. 1 e 177º. nº. 1, alínea b) do C.P., ocorrido em dia e/ou mês indeterminado de 2012, quando, a suposta ofendida tinha catorze anos de idade; 40- Ora, os presentes autos e a investigação que deu origem à Acusação, pelo qual o arguido está hoje condenado, tiveram origem num auto de denúncia elaborado em 29/11/2013 (fls. 3 e 4 e fls. 365 a 369). 41- A fls. 72 e ss, por despacho datado de 07/12/2013, dá-se a intervenção do Ministério Público, sendo aí referido que o arguido é suspeito de prática, como autor material, de um crime de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. 171º, nº 1, al. b), do C.P.; 42- A fls. 88 e ss, por despacho datado de 13/12/2013, o Ministério Público ordena a remessa dos autos à Polícia Judiciária para prosseguir com a investigação, tudo, como de crimes públicos se tratassem; 43- O crime de actos sexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 172º, nº 2, do C.P é semipúblico; 44- É, contudo, público quando dele resultar suicídio ou morte da vítima- artigo 173º, nº 2, do C.P.; 45- A semipublicidade do artigo 173º., do C.P., decorre da circunstância de os actos sexuais com adolescentes só serem típicos (em relação a tal comando) se houver abuso da sua inexperiência, ou seja, quando houver sedução da vítima (cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, I, 566), forma de abuso que de todo o ponto não se presume; 46- A legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal não foi integrada por uma queixa; 47- Só através dela o Ministério Público tem legitimidade para intervir nos crimes semipúblicos; 48- A queixa não se confunde com a denúncia nem mesmo com a participação; 49- E, como se demonstrou, não se atende ao entendimento seguido pelo Acordão ora recorrido, de que a intervenção do Ministério Público nos presentes autos ficou legitimada com a declaração a fls. 49 da mãe da suposta ofendida (também arguida) a manifestar o desejo de procedimento criminal contra o autor dos factos denunciados; 50- O titular do direito de queixa é, em regra, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses protegidos pela incriminação, isto é, o portador do bem jurídico protegido (Artº 113º, nº 1, do C.P.); 51- Se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado da dedução da queixa, o direito transmite-se ao seu legal representante (Artº 113º, nº 4, do C.P.); 52- Nos presentes autos os titulares do exercício do direito de queixa seriam (e são), “prima facie”, os pais da suposta ofendida, estes, eram e são casados entre si, logo, os representantes legais serão os dois, tal como prescreve o artigo 1901º do C.C.; 53- Não descura o aqui recorrente ser verdade que havendo dois ou mais representantes legais, qualquer um deles pode exercer o direito de queixa, acontece que, a mãe da suposta ofendida foi posteriormente constituída arguida, vindo também a ser acusada, como cúmplice, na forma consumada, repetida, e em concurso efectivo, da prática de cinco crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 171º, nº1 e 2 e 177º, al. a) e de quatro crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 172º, nº1e 177º, nº1, al. a) todos do C.P.; 54- Esta representante legal teve, segundo a acusação do Ministério Público e, do que resulta do douto Acordão aqui recorrido, comparticipação nos crimes; 55- Quando assim é, logicamente, mais uma vez se sublinhe, não pode representar a suposta ofendida, trata-se de algo perfeitamente surreal e inaceitável, pois com tal comparticipação, esta, ficou e está impedida de exercer tal alcance; 56- Assim, onde o nº. 4 do artigo 113º. do C.P. se refere à “…falta do representante…”, deve entender-se que tal significa falta ou impedimento (no âmbito alargado duma falta de “lato sensu”), com aquela comparticipação de todo o ponto impedir e, a remeter para as “pessoas” indicadas sucessivamente nas alíneas do nº. 2, aplicando-se o disposto no nº. 3; 57- Sem prescindir, o direito de queixa podia ter sido exercido pelo outro representante (o pai da suposta ofendida), na medida em que ele não está de todo impedido de a representar; 58- Efectivamente não o fez, nem tão pouco sanou a falta de representação decorrente do impedimento da mãe, também nestes autos arguida, por via de ratificação da declaração por aquela prestada a fls.49, como também não o fizeram os outros titulares que, à partida, podiam exercer legalmente o seu direito de queixa; 59- O Ministério Público tem agora legitimidade para o exercício do direito de queixa em geral, nos casos em que o procedimento criminal dela depender, “… quando o interesse do ofendido o aconselhar e este for menor ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa; ou o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas ao agente do crime” (artº. 113º, nº.5, do C.P.P.), tem, tal como referido supra, é que justificar as razões de facto (objectivas) que levam à sua intervenção “… quando o interesse do ofendido o aconselhar…”; 60- Sucede que, o Ministério Público não proferiu Despacho, de forma prévia à articulação dos factos que constituíram a Acusação, no qual ponderasse (fundada e fundamentalmente) “… quando o interesse do ofendido o aconselhar…” e, as razões objectivas que levariam à sua intervenção, ao abrigo do disposto no artº. 113º, nº 5 do C.P.; 61- “In casu”, mais uma vez aqui, nada foi invocado, em concreto, para fundamentar “…o interesse do ofendido…” na intervenção do Ministério Público, nenhuma razão foi pois invocada pelo Ministério Público para a sua intervenção, aliás, não foi sequer formulado qualquer juízo pelo Ministério Público; 62- Esta omissão prosseguiu para o Douto Tribunal aquando do Despacho de Saneamento/Recebimento da Acusação do Artº 311º do C.P.P., e no Acórdão ora recorrido, tudo, na medida em que não foi proferida nenhuma fundamentação genérica que fosse, relativamente à legitimidade/intervenção do Ministério Público no interesse da ofendida; 63- Por sua vez, e tal como consta nos autos, a suposta ofendida nunca foi uma “criança de rua”, familiarmente tinha estrutura familiar pois vivia com os pais e com os irmãos, não está demonstrado que tivesse “deficit” afectivo no seu quotidiano, frequentava a escola, estava integrada no meio escolar e social, teve relacionamentos amorosos com outros jovens da sua faixa etária e não se constituiu assistente; 64- Não bastasse, estamos na presença de crimes que contendem de uma forma muito particular com a esfera da intimidade, pelo que à vítima cabe “decidir se ao mal do rime lhe convém juntar o que pode ser o mal do desvelamento da sua intimidade e da consequente estigmatização processual; sob pena, de outra forma, de poderem frustrar-se as intenções político-criminais que, nesses casos, se pretenda alcançar com a criminalização” (Figueiredo Dias, DP, II § 1069); 65- Estamos assim, perante um caso de omissão do exercício de direito de queixa por parte dos respectivos titulares, incluindo o Ministério público; 66- E, em consequência, face ao exposto, ao abrigo do disposto no artº. 178º, nº 3 e 113º, do C.P, deverá o Tribunal julgar procedente a ora alegada excepção de ilegitimidade deduzida pelo arguido e, assim, declarar-se extinto o procedimento que levou à condenação do aqui recorrente, relativamente ao crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada. 67- O Tribunal “a quo”, decidindo como decidiu no Acórdão ora recorrido, também não fez a melhor justiça na aplicação do Direito, quanto à efectuada determinação do número de crimes praticados; 68- Antes de tudo o mais, realce-se que quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo (como sucede nestes autos), torna-se “mui“ difícil e quase arbitrária, toda e/ou qualquer contagem a efectuar. O mesmo aliás, sucede com outro tipo de crimes quem tal como o sexo, facilmente se transformam numa “actividade”, como por exemplo, o crime de tráfico de droga; 69- No caso em apreço, objectivamente em concreto não se apurou, o número de vezes que a conduta do arguido preencheu cada um dos ilícitos em causa; 70- A prova produzida em julgamento, foi nessa parte inconclusiva e insuficiente, não atingindo com a necessária exactidão, que tenham ocorrido pelo menos 3 vezes ou 4 vezes respectivamente, como entendeu o Tribunal “a quo“ na decisão proferida; 71- Entende o aqui recorrente, que perante os factos que ficaram apurados em sede de Julgamento, é possível sim distinguir na conduta do arguido dois momentos temporais distintos: de 2004 a 2007 e, entre Agosto de 2010 a Outubro de 2013; 72- Pois que, uma pluralidade de factos externamente separáveis deve conformar uma acção unitária quando os diversos actos parciais, que respondem a uma única resolução volitiva, se encontram tão ligados no tempo e espaço que, para um observador não interveniente são percepcionados como uma unidade natural; 73- Dentro desta consonância, apurados que foram ou não os factos em sede de Audiência de Julgamento, seguindo o Tribunal “a quo” naquilo que foi dado como provado, deveria o aqui recorrente, ter sido condenado em: - Um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo Artº. 172º. nº.1 do Código Penal, na redacção anterior à Lei 59/07, de 4 de Setembro, - Um crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, previsto e punido pelos Artº.(s) 171º. nº.1 e 177º. nº. 1 alínea b) do Código Penal e, - Um crime de actos sexuais com adolescentes, na formas agravada, previsto e punido pelos Artº.(s) 173º. Nº.1 e 177º. nº. 1 alínea b) do Código Penal, o que por este via se requer; 74- Veja-se pois, que em cada um daqueles períodos temporais distintos (de 2004 a 2007 e, entre Agosto de 2010 a Outubro de 2013) correspondeu uma homogeneidade de actos praticados num contexto situacional perfeitamente idêntico; 75- Conduta essa que se prolongou efectivamente no tempo e, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante; 76- Recorrendo aos ensinamentos de Eduardo Correia, in Teoria do Concurso em Direito Criminal I – Unidade e Pluralidade de Infracções, Colecção Teses, Almedina, pág. 45, “a resolução plúrima do tipo de crime pode constituir um só crime se, ao longo da sua realização, tiver persistido o mesmo dolo, a mesma resolução criminosa inicial”; 77- Como se assinala no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2012, relatado pelo conselheiro Santos Cabral (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 1718/02.9 JDLSB), citando o referido autor, “… o índice de unidade, ou pluralidade de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente á conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente (…). Deve considerar-se uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique entre as actividades efectuadas pelo agente uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou sem ter de renovar o respectivo processo de motivação“ e mais adiante no mesmo Acórdão: “Situação típica é a realização repetida do mesmo tipo legal de um crime num curto espaço de tempo. O requisito para apreciar a unidade de acção nestes casos é a circunstância de que, com a repetição plural o tipo a lesão do bem jurídico só experimenta uma progressão quantitativa e que o facto responda, além do mais, a uma situação motivacional unitária. Uma pluralidade de actos externamente separáveis deve conformar uma acção unitária quando os diversos actos parciais, que correspondem a uma única resolução volitiva, se encontram tão ligados no tempo e espaço que, para um observador não interveniente são percepcionados como uma unidade natural. No mínimo dir-se-ia que a autonomização tem como pressuposto um processo de renovação da vontade e não é incorrecto, à luz dos princípios, considerar uma renovação de propósito criminoso a sustentar uma renovação da formulação de um juízo de culpa”. 78- No caso em apreço, os períodos temporais distintos (de 2004 a 2007 e, entre Agosto de 2010 a Outubro de 2013) ora plasmados, além de corresponderem a uma homogeneidade de actos praticados num contexto situacional perfeitamente idêntico, resultam da própria observação/leitura que dos mesmos foi percepcionada pelo próprio Tribunal “a quo”, daí que, de todo se atinge como a decisão final veio a determinar o número de crimes praticados, da qual, não aceita o ora recorrente; 79- Aliás, própria doutrina e a Jurisprudência, têm resolvido este problema da contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando de crimes “prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo”, onde, se convenciona que há só um crime, apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas constituiriam um crime, tanto mais grave, no quadro da sua moldura penal, quanto mais repetido. 80- Também não fez o Acordão aqui recorrido a melhor justiça na aplicação da Lei Penal, quanto à escolha da medida concreta das penas parcelares e pena unitária aplicada(s). 81- Diga-se pois, que não obstante a factualidade provada e a natureza dos crimes em causa, quer as penas parcelares aplicadas ao aqui Recorrente, quer a pena unitária fixada, foram extremamente penalizantes; 82- Atente-se desde logo ao flagrante exemplo relativo á pena parcelar aplicada num dos crimes de abuso sexual de criança, na forma agravada (p. e p. pelo Artº. 171º. nº. 2 e 177º. nº. 1, alínea b) do Código Penal) em que o aqui recorrente foi condenado, no qual, se vê confrontado com uma pena de 8 anos de prisão! Ou seja, bem perto da fronteira do limite máximo da mesma; 83- O que, aparenta ser perfeitamente injustificável, tanto mais, que da leitura atenta do Acórdão aqui recorrido, como aliás em outras situações, tão pouco se consegue sequer aferir, a que situação factual em concreto tal condenação diz respeito?; 84- Tudo o que, claramente entronca na forma como o Tribunal “a quo”, determinou o número de crimes praticados (explanado no ponto anterior), e que, veio a resultar num claro prejuízo para o aqui recorrente, o qual, ora se vê pois confrontado com uma pena única exageradamente penalizante; 85- É que, não descurando que por certo será necessário ter em conta que do outro lado da balança estão os interesses fundamentais de uma comunidade, entende-se, que com facilidade essa mesma comunidade entenderia, que mesmo estando prevista a pena de prisão, esta na sua aplicação poderia ter sido bem menos penalizadora; 86- Entende o Arguido aqui Recorrente, que quer a medida concreta de cada uma das penas parcelares que lhe foram aplicadas (designadamente uma pena de 5 anos e 2 meses de prisão e, outra de 8 anos de prisão), quer, na efectuada operação de Cúmulo Jurídico, continua a existir uma sensível desproporcionalidade entre dois pontos essenciais que o regime penal Português pretende assegurar (protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade), sendo que mais uma vez o Acórdão recorrido foi “cego” perante a importância da reintegração do agente na sociedade; 87- Outrossim, na pena única a efectuar, tudo deve pois passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo que, ao mesmo tempo, na avaliação da personalidade unitária do agente, relevará sobretudo, a questão de se saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão só uma pluricasionalidade que não radica na sua personalidade; 88- Só na primeira hipótese (tendência criminosa), que não é propriamente a deste caso (tal não resultou minimamente dos autos e, também atendendo-se nomeadamente à idade e, ao passado do recorrente à data da pratica dos factos), seria de atribuir à pluralidade de crimes cometidos um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta, como, “in casu” ocorreu; 89- Ao fazê-lo, penalizou excessivamente o Recorrente, não colhendo minimamente os argumentos utilizados no Acórdão recorrido para optar pela pena aplicada de 14 anos de prisão; 90- Seria pois sempre desejável ao Recorrente, que a decisão tomada, não se tivesse apenas imposto em razão da autoridade do órgão que a tomou, mas acima de tudo pela sua racionalidade, não podendo a mesma fundamentação ser parca, ao ponto que não habilite um Tribunal Superior a uma avaliação cabal e segura do porquê da decisão e do seu suporte “lógico–mental”, pois só desta forma se asseguram as garantias constitucionais de defesa; 91- Parece-nos ainda evidente, que a utilização de expressões como “…intensidade do dolo… natureza dos actos praticados…”, continuam a não fornecer uma exposição completa, ainda que concisa, dos motivos que fundamentam a decisão, sendo isso sim e salvo melhor opinião expressões algo “vazias”, que não permitem uma correcta e segura avaliação global, quer da ilicitude da totalidade dos factos, quer, essencialmente, da personalidade do Arguido ora Recorrente, tudo o que, desde logo, constitui pressuposto imprescindível da decisão sobre a medida de pena conjunta; 92- O Acórdão recorrido, ficou “ab initio” deficitário, quando, não considerou com a devida relevância todo o passado vivencial do ora Recorrente; 93- A ausência de antecedentes criminais, os indiscutíveis hábitos de trabalho e a sua inserção familiar; 94- Ao que acresce, o facto de o Arguido, aqui Recorrente, ter-se desenvolvido: “… no agregado familiar de origem, composto por sete irmãos e os progenitores…”, “… não concluiu a escolaridade normal…”, razão porque “...não sabe ler nem escrever escorreitamente nem sabe efectuar comunicações nem enviar mensagens de texto a partir do seu telemóvel, pedindo ajuda quando pretende efectuar comunicações através dele…”, encontrando-se actualmente: “… reformado, por invalidez, tendo em tempos sido sujeito a cirurgia e período de internamento.”, e que, com ele ”… e seu agregado familiar conviveram e habitaram, antes de 2004, menores e adolescentes, familiares e não familiares, a quem apoiaram, sendo que alguns deles mantêm relação de proximidade com o arguido…”, sendo: “… casado há mais de vinte e cinco anos…“ e, contando com ”… apoio da mulher, filha e sobrinha e cunhado consigo residente…”; 95- Mais se sublinhando que: “…no estabelecimento prisional tem adoptado uma postura de respeito e adaptação às normas internas.”; 96- Atente-se pois, que após o cumprimento dos fixados 14 anos de prisão (ao que será descontado o período de prisão preventiva cumprida), o recorrente sairá da prisão no limiar dos 70 anos de idade; 97- Nesta consonância, e atentas todas as circunstâncias supra invocadas, que devem ser vistas como atenuantes, as penas parcelares aplicadas (designadamente a pena de 5 anos e 2 meses de prisão e, outra de 8 anos de prisão), bem como, a pena única de 14 anos de prisão aplicada ao recorrente, mostram-se injustas, desadequadas e desproporcionais, por excessivas; 98- Pelo que as mesmas deverão ser reduzidas, aplicando-se ao arguido uma pena única nunca superior a 8 anos de prisão; 99- E, numa verdadeira perspectiva da melhor ressocialização do aqui recorrente, a fim de garantir, de uma forma mais segura, que o recorrente não venha a repetir os abusos perpetrados, V. Excª.(s)., poderão ainda impor ao mesmo, coadjuvado com a pena mais reduzida a aplicar, o dever de frequentar acompanhamento psicológico e/ou tratamento médicos adequados, ou, até mesmo, a obrigação de ser internado em estabelecimento hospitalar adequado durante o período que for julgado necessário ao respectivo tratamento; 100- Entende o aqui recorrente, que apenas deste modo, a aplicação de uma pena ao recorrente terá o efeito desejado, assegurando não só as exigências de punição, mas também as necessidades de prevenção (cfr. artº. 71º, nº 1 do C.P.); 101- Não tendo assim entendido na sua decisão o Tribunal “a quo”, este, na perspectiva do aqui recorrente, claramente violou as seguintes disposições jurídicas: Artigos 40º. e, nº.1 dos Artº.(s) 71º. e 77º. do Código Penal Português. Pelo que, seguro de que V. Excª.(s), perdoarão a extensão das alegações, ante a delicadeza e complexidade das questões e a necessidade de as mesmas serem devidamente aprofundadas, fica a (SIC) recorrente absolutamente confiante em que Vª. Excelências lhe farão, como vos compete, JUSTIÇA!
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O recurso foi admitido por despacho de fls. 874, sem qualquer referência ao tribunal ad quem. O Ministério Público na primeira instância apresentou a resposta de fls. 883 a 899, e em original de fls. 900 a 916, dirigida ao Tribunal da Relação do Porto, defendendo a manutenção do acórdão recorrido nos seus exactos termos. Por despacho de fls. 918/9 foi ordenada a remessa do processo ao Tribunal da Relação do Porto. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a fls. 930, promoveu o envio de CD com gravação da prova produzida nas audiências de julgamento, considerando importar escutar as declarações da vítima na audiência de julgamento, por constar da fundamentação do acórdão recorrido ter a própria vítima declarado a sua vontade no prosseguimento do procedimento criminal, o que foi deferido a fls. 932.
Junto o CD solicitado, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto na Relação do Porto em douto parecer de fls. 937 a 950, defende de forma sustentada, a improcedência das duas primeiras questões suscitadas pelo arguido. Defende que o Mº Pº tinha perfeita legitimidade para exercer a acção penal, relativamente a factos integradores de crimes de abuso sexual de criança, ocorridos antes de 2007, no caso como o dos autos em que a menor vítima tinha 6/7/8 anos de idade e não obstante não ter sido apresentada queixa pelo respectivo representante legal. Relativamente aos factos ocorridos depois da entrada em vigor da Lei n.º 59/07, tendo em conta o artigo 113.º, n.º 6, do Código Penal e a declaração da menor ofendida em audiência no sentido de desejar procedimento criminal contra o tio arguido, esta declaração validou todo o processo, relativamente a factos ocorridos depois de 4-9-2007, conferindo legitimidade ao M.º P.º para o exercício da acção penal. Entende ser correcto o critério seguido pelo tribunal para definir o número de resoluções criminosas tomadas pelo arguido e, consequente, o número de crimes que terá praticado, improcedendo a terceira questão. No que toca à medida concreta das penas parcelares e unitária, afirma: “Segundo o douto acórdão sob recurso, o arguido foi condenado nos seguintes termos: 1 - Pelos atos sexuais de relevo - apalpões - ocorridos antes de 2007, crime previsto pelo artigo 172º, nº 1 do CP, antes da versão de 2007, punível com prisão de 1 a 8 anos, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; 2 - Pelos diversos atos de coito oral, ocorridos antes de 2007, crime previsto no artigo 172º, nº 2, do CP, antes da versão de 2007, punível com prisão de 3 a 10 anos de prisão, na pena de 4 anos de prisão. 3 - Pelas diversas tentativas de penetração vaginal, ocorridas antes de 2007, crime previsto no artigo 172º, nº1 do CP, antes da versão de 2007, punível com prisão de 1 a 8 anos, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão. 4 - Pela tentativa de penetração ocorrida já depois de 2007, crime previsto no nº 1, do artigo 171º, do CP, agravado nos termos da alínea b), do nº 1, do artigo 177º, do mesmo CP, punível com pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses, na pena de 2 anos de prisão. 5 - Pelo coito oral ocorrido já depois de 2007, crime previsto no artigo 171º, n.° 2, do CP, agravado nos termos da alínea b), do nº 1, do artigo 177.s, do mesmo CP, punível com pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão, na pena de 5 anos e 2 meses de prisão. 6 - Pelos diversos atos de coito vaginal ocorridos depois de 2007, crime previsto no artigo 171º, nº 2, do CP, agravado nos termos da alínea b), do nº 1, do artigo 177º, do mesmo CP, punível com pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão, na pena de 8 anos de prisão. 7 - Pelos diversos atos de coito vaginal ocorridos quando a menor tinha 14 e 15 anos de idade, crime previsto no artigo 173º, nº 2 (e não nº l, como consta do acórdão) do CP, agravado nos termos da alínea b), do nº 1, do artigo 177º, do mesmo código, punível com pena de prisão até 4 anos, na pena de 2 anos de prisão. Em cúmulo jurídico, foi condenado em 14 anos de prisão. Ora, em nosso entender, algumas destas penas parcelares de prisão pecam por serem excessivas, pelo que contrapomos as seguintes: 1- A pena parcelar referida em 1 parece-nos corretamente determinada. 2- A pena parcelar referida em 2 também nos parece corretamente determinada, atento o número de vezes que os atos aconteceram. 3- Também a pena parcelar referida em 3 nos parece corretamente determinada, atento o elevado número de vezes que os atos aconteceram. 4- A pena parcelar referida em 4 parece-nos exagerada, atendendo a que a tentativa de penetração vaginal ter ocorrido uma só vez, devendo ser fixada em 1 ano e 6 meses. 5- A pena parcelar referida em 5 também nos parece exagerada, atendendo a que o coito oral apenas ocorreu por uma só vez, devendo ser fixada em 4 anos e 6 meses. 6- A pena parcelar referida em 6 (e não 7) também nos parece exagerada, apesar das penetrações vaginais terem ocorrido pelo menos 4 vezes, devendo ser fixada em 6 anos de prisão 7- A pena parcelar referida em 7, apesar do erro de incriminação detetado no acórdão, parece-nos corretamente fixada em 2 anos de prisão. Claro que esta alteração das penas parcelares fixadas terá de ter consequências na pena fixada em cúmulo jurídico. Mesmo respeitando o critério do tribunal recorrido e tendo em consideração que a soma material das penas parcelares atingiu os 302 meses de prisão, tendo sido fixada a pena unitária de 14 anos de prisão, se a soma material das novas penas parcelares propostas atingirem, como atingem, os 264 meses de prisão, então, a pena unitária a aplicar ao arguido deverá ser fixada em 12 anos e 3 meses de prisão. Termos em que, somos de parecer que deve ser dado parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido”. * No exame preliminar, a fls. 955, o Exmo. Desembargador a quem foi distribuído o processo proferiu despacho em que constatando ter o recurso por objecto apenas questões jurídicas atinentes ao acórdão que condenou o recorrente na pena única de 14 anos de prisão, e ser inquestionável que o recurso visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, considerou caber a competência para a sua apreciação ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 do CPP. Excepcionando a competência do Tribunal da Relação, determinou a remessa dos autos a este Supremo Tribunal. * O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 967, emitiu douto parecer, afirmando a competência deste Supremo Tribunal por o recurso visar exclusivamente o reexame da matéria de direito e a pena aplicada ser superior a 5 anos de prisão, e termina dizendo: “Sem prejuízo da proposta correcção das penas parcelares e da única (porquanto entendemos que as fixadas se apresentam dentro dos parâmetros legais), nada se nos oferece acrescentar ao parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na Relação do Porto de fls. 937-950, que, com a devida vénia, subscrevemos”. ******* Cumprido o artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente silenciou. ******* Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal. ******* Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir. ******* Como é jurisprudência assente e pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (neste sentido, o acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19 de Outubro de 1995, proferido no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de Dezembro de 1995, e BMJ n.º 450, pág. 72, que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior. As conclusões deverão conter apenas a enunciação concisa e clara dos fundamentos de facto e de direito das teses perfilhadas na motivação (assim, acórdão de 25 de Março de 1998, proferido no processo n.º 53/98-3.ª Secção, in BMJ n.º 475, pág. 502).
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Da competência para cognição do recurso
Como vimos, o recurso foi dirigido pelo recorrente ao Tribunal da Relação do Porto, que excepcionou a sua competência, ordenando a remessa dos autos a este Supremo Tribunal.
Estamos face a uma deliberação final proferida por um tribunal colectivo – mais concretamente, um acórdão condenatório, que fixou pena única de 14 anos de prisão ao ora recorrente – visando o recurso exclusivamente o reexame da matéria de direito, estando em causa discordância do arguido quanto à legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal quanto a alguns crimes, relativamente ao número de crimes cometidos, bem como à medida das penas parcelares e única, sendo este Supremo Tribunal, competente para conhecer do recurso – artigos 427.º (este é caso de recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça) e 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do Código de Processo Penal.
No caso em apreciação a pena conjunta aplicada ao recorrente é de 14 anos de prisão e duas das parcelares são superiores a 5 anos: concretamente, uma de 8 anos e outra de 5 anos e 2 meses de prisão. As restantes cinco penas parcelares são inferiores a 5 anos, situando-se entre 1 ano e 6 meses e os 4 anos de prisão. Nestes casos o Supremo Tribunal de Justiça tem competência para conhecer das questões relativas aos crimes punidos com penas inferiores a cinco anos de prisão, sendo tal posição correspondente ao que é assumido em termos largamente maioritários em ambas as Secções Criminais. Neste sentido pode ver-se o acórdão de 21 de Janeiro de 2015, por nós relatado no processo n.º 12/09.9GDODM.S1, com admissibilidade de recurso directo para o STJ, onde referindo-se variadíssimos acórdãos assumindo a mesma posição, se concluiu no sentido de optar pela solução de ampla recorribilidade, cabendo ao STJ, reunidos os demais pressupostos [tratar-se de acórdão final de colectivo ou tribunal de júri e visar apenas o reexame da matéria de direito, vindo aplicada pena de prisão superior a 5 anos – pena única ou única e parcelar(es)], apreciar as questões relativas a crimes punidos com penas iguais ou inferiores a cinco anos de prisão. No mesmo sentido podem ver-se os acórdãos de 09-07-2014, proferido no processo n.º 95/10.9GGODM.S1-5.ª, com voto de vencida, de 10-09-2014, proferido no processo n.º 440/13.5POLSB.L1.S1-5.ª, in CJSTJ 2014, tomo 3, pág. 169 (O STJ tem competência para conhecer da condenação de todas as penas parcelares se a subsequente pena única for superior a cinco anos de prisão), com declaração de voto no sentido de a competência pertencer à Relação, e da mesma data, o acórdão proferido no processo n.º 714/12.2JABRG.S1-5.ª, in CJSTJ 2014, tomo 3, pág. 180, com voto de vencido, que teria decidido pela competência da Relação. Entende-se, assim, ser o Supremo Tribunal de Justiça competente para conhecer de todas as questões suscitadas, incluindo as referentes aos crimes a que couberam penas inferiores a cinco anos de prisão. *******
Questões propostas a reapreciação e decisão
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões onde o recorrente resume as razões de divergência com o deliberado no acórdão recorrido. As questões a apreciar são as seguintes:
Questão I – Ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, relativamente aos crimes de abuso sexual de crianças ocorridos antes de Setembro de 2007 – Conclusões 1.ª a 35.ª Questão II – Ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, relativamente aos crimes de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada – Conclusões 36.ª a 66.ª Questão III – Determinação do número de crimes praticados – Conclusões 67.ª a 79.ª Questão IV – Medida das penas parcelares e única – Conclusões 80.ª a 101.ª
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Apreciando. Fundamentação de facto.
Foi dada como provada a seguinte matéria de facto, que é de ter-se por imodificável e definitivamente assente, já que da leitura do texto da decisão, por si só considerado, ou em conjugação com as regras de experiência comum, não emerge a ocorrência de qualquer vício decisório ou nulidade de conhecimento oficioso, mostrando-se a peça expurgada de insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos, sendo o acervo fáctico adquirido suficiente para a decisão, coerente, sem contradição, harmonioso, e devidamente fundamentado.
Factos Provados
Da acusação pública e ainda os que resultaram da instrução da causa e constituem alteração não substancial dos factos daquela peça constantes, comunicados aos arguidos em audiência de julgamento: 1. O arguido AA é tio da menor CC, nascida em .... 2. A menor CC vivia numa casa sita na Rua ..., com a sua progenitora, a arguida BB, o seu progenitor, e inicialmente um irmão, tendo depois nascido as duas irmãs mais novas. 3. Por sua vez, o arguido AA residia nas proximidades daquela residência, numa habitação sita na referida Rua .... 4. Em datas indeterminadas, situadas entre os anos de 2004 e 2007, por mais de uma ocasião, a primeira das quais quando a menor tinha 6 anos de idade, o arguido, na sua residência, apalpou o corpo da menor, por fora e por dentro da roupa. 5. Em data indeterminada situada entre 24.03.2004 e 23.03.2005, quando a menor tinha 6 anos de idade, o arguido, na garagem da sua residência, introduziu o seu pénis na boca da menor, ao mesmo tempo que lhe dizia para “mamar”. 6. Em data indeterminada, situada entre 24.03.2005 e 23.04.2007, quando a menor tinha sete ou oito anos de idade, o arguido, no quarto de dormir da sua residência, despiu parcialmente a menor CC da cintura para baixo, deitou-a na cama e tentou introduzir o seu pénis na vagina daquela, não o tendo conseguido, após o que continuou a roçar o pénis na vagina da menor por vários minutos. 7. Em dia indeterminado do mês de Agosto de 2010, no Verão, quando a menor tinha 12 anos de idade, o arguido, no quarto da sua residência, depois de se despir e de dizer à menor para se despir e se deitar na cama, o que esta fez, roçou o seu pénis na vagina da menor, tentando introduzi-lo, sem o conseguir. 8. No mesmo dia, na parte da tarde, o arguido, no quarto da sua residência, depois de dizer à menor para se despir e se deitar na cama, o que esta fez, e de por sua vez se despir, deitou-a na cama e roçou o seu pénis na vagina da menor. Depois, o arguido introduziu o seu pénis na boca da menor e disse-lhe para “mamar”. Os referidos actos foram praticados na presença simultânea de uma outra menor, também sua sobrinha, com quem o arguido praticou actos idênticos na ocasião. 9. Em data não apurada, mas que se situa entre Setembro ou Outubro de 2010, quando a menor tinha 12 anos de idade, o arguido introduziu o seu pénis na vagina de menor, friccionando-o por vários minutos, e ejaculando no exterior da vagina sobre o corpo da menor. 10. Desde essa data até Outubro de 2013, o arguido manteve o mesmo comportamento, introduzindo o seu pénis na vagina da menor, friccionando-o por vários minutos, ejaculando no exterior da vagina sobre o corpo da menor, situação que ocorreu por diversas vezes, não concretamente apuradas, mas superior a quatro vezes quando a menor tinha entre 12 e 13 anos e outras vezes, também superior a quatro, quando a menor tinha entre 14 e 15 anos. 11. Os actos acima referidos, durante o mencionado período temporal de Setembro/Outubro de 2010 a Outubro de 2013 tiveram lugar, quer na residência do arguido, quer numa residência adquirida por uma filha do arguido, com este residente, que se encontrava vazia em fase de acabamento de interiores. 12. O arguido, a partir do ano de 2010, estreitou a relação de proximidade que tinha com a menor CC, indo levá-Ia e buscá-Ia à escola, comprando-lhe material escolar, levando-a a almoçar, conversando com a menor CC sobre os seus assuntos e problemas, por forma a obter a afectividade e confiança desta. 13. A arguida BB e o arguido AA, no período compreendido ente 2002 e 2013 mantiveram, por diversas vezes, relações sexuais, designadamente na residência do arguido. 14. Pelo menos em Setembro ou Outubro de 2010, a arguida soube que o arguido praticava com a menor actos sexuais, incluindo relações de cópula, e consentiu que o arguido e a menor mantivessem tais práticas. 15. Pelo menos desde Setembro ou Outubro de 2010, o arguido solicitou à arguida que a menor fosse à sua residência e a arguida assim fez, ordenando à menor para que se dirigisse ao encontro do arguido, sabendo que nesses encontros o arguido praticaria com a menor actos sexuais, incluindo actos de cópula, nada fazendo para o impedir. 16. No ano de 2012, quando a menor CC frequentava o 6° ano de escolaridade, o arguido, por diversas vezes, solicitou á arguida BB que a referida menor faltasse às aulas, da parte da tarde, no que a arguida BB consentiu e colaborou, justificando as faltas da menor, invocando na escola, como encarregada de educação, um motivo falso, sabendo que durante essas faltas o arguido se encontrava com a menor CC, sua filha, e com ela mantinha relações sexuais de cópula. 17. O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, no intuito concretizado de praticar sobre a menor actos sexuais de relevo e relações sexuais de coito oral e vaginal, bem sabendo a idade da menor, e aproveitando-se do ascendente que sobre ela detinha, fruto dos laços familiares que os uniam. 18. Em cada uma das actuações que acima se deixaram referidas em 4., 5., 6., 7., 8., 9. e 10., o arguido agiu com a vontade renovada de satisfazer os seus desejos sexuais e em contextos situacionais por ele procurados. 19. A arguida actuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de facilitar e auxiliar o arguido para que este praticasse actos sexuais de relevo e relações sexuais de coito vaginal com a menor, de forma repetida, com o fito de o arguido se satisfazer sexualmente, bem sabendo a arguida a idade da sua filha, e aproveitando-se do natural ascendente que sobre ela detinha fruto dessa relação familiar. 20. Os arguidos conheciam o carácter proibido das suas condutas. Da contestação: 21. O arguido não sabe ler e escrever escorreitamente nem sabe efectuar comunicações e enviar mensagens de texto a partir do seu telemóvel, pedindo ajuda quando pretende efectuar comunicações através dele. 22. O arguido está reformado por invalidez, tendo em tempos sido sujeito a cirurgia e período de internamento. 23. Com o arguido e seu agregado familiar conviveram a habitaram, antes de 2004, menores e adolescentes, familiares e não familiares, a quem apoiaram, sendo que alguns deles mantém relação de proximidade com o arguido. 24. Apesar de o arguido e a família terem baixos recursos económicos, prestavam apoio à menor CC e ao seu agregado familiar, designadamente apoio alimentar. 25. O arguido é casado há mais de vinte e cinco anos. 26. Conta com a apoio da mulher, filha e sobrinha e cunhado consigo residente. 27. O rendimento mensal do arguido é de cerca de € 300,00. 28. A mulher do arguido tem um rendimento mensal de cerca de € 400,00. Mais se provou 29. O arguido foi anteriormente condenado por decisão proferida em 10.01.2012 no processo 762/11.0GBVNG do 3° Juízo criminal de Vila Nova de Gaia, transitada em 9.02.2012, pela prática, em 31.07.2011, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa, á taxa diária de € 7,00. 30. O arguido desenvolveu-se no agregado familiar de origem, composto por sete irmãos e os progenitores. 31. Não concluiu a escolaridade normal, sabendo apenas assinar o seu nome. 32. Aos 14 anos iniciou inserção laboral na área da construção civil, que exerceu até aos 50 anos de idade, altura em que apresentou lesão incapacitante num joelho, foi sujeito a intervenção cirúrgica, e posteriormente foi-lhe determinada invalidez. 33.Desde essa altura, o arguido dedicava-se á exploração agrícola e à criação de animais, nomeadamente pombos-correio, sendo inscrito e praticante em associações columbófilas. 34. O arguido casou com 32 anos de idade, e desse casamento nasceu uma filha, ..., actualmente com 31 anos de idade. 35. Há 12 anos, o arguido fixou residência na morada acima referida em 3, arrendada, correspondente a casa térrea, com terreno agrícola na traseira, de dimensão considerável, e anexos para guarda de animais. 36. O agregado familiar era composto, para além da mulher e filha, desde há cerca de onze anos, também por uma sobrinha de sua mulher, ..., e pelo pai desta e cunhado do arguido, ..., devido a dificuldades económicas vivenciadas por estes familiares, tendo ainda vivido por algum tempo na residência do arguido, uma outra sua sobrinha, .... 37. Elementos da família alargada, nomeadamente os pais da menor CC colaboravam nas tarefas agrícolas e pecuárias e eram apoiados pelo arguido e mulher em bens alimentares, sendo que por vezes também estes e seus filhos faziam refeições na residência do arguido. 38. Os elementos do agregado familiar do arguido, designadamente o seu cônjuge, a filha e sua sobrinha ..., recusam considerar a hipótese de veracidade dos factos imputados, manifestando convicção na inocência do arguido, a quem têm vindo a visitar no estabelecimento prisional. 39. O arguido no estabelecimento prisional tem adoptado uma postura de respeito e adaptação às normas internas. 40. A arguida não tem antecedentes criminais. 41. Até aos 15 anos, e tendo-se os pais separados quando ainda era muito pequena, integrou o agregado familiar da mãe, padrasto e irmão uterinos, idade em que ficou a viver com a irmã mais nova, tendo a progenitora fixado residência em ..., 42. Após ter concluído o 4° ano de escolaridade, com dificuldades de aprendizagem e retenção no período escolar, a arguida começou, desde os 13 anos, a trabalhar numa fábrica de calçado. 43. Casou aos 17 anos, tendo tido o primeiro filho com 18 anos, altura em que deixou de exercer actividade laboral, passando a dedicar-se às tarefas domésticas. 44. O marido da arguida nunca teve estabilidade profissional, estando frequentemente desempregado ou realizando trabalhos pontuais, e era uma pessoa com comportamentos agressivos associados ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas. 45. A arguida tem 4 filhos, com idades compreendidas entres os 18 e os 9 anos de idade. 46. Em Junho de 2014, na sequência da alteração provocada pela denúncia dos factos objecto destes autos, a arguida, marido e as duas filhas mais novas, com 13 e 9 anos de idade, fixaram residência em ..., localidade onde reside a mãe da arguido e o seu padrasto. 47. O agregado familiar habita casa arrendada e depende do rendimento social de inserção e do abono de família devido às menores, sendo a situação económica muito precária. 48. Naquela localidade, os factos dos autos não são conhecidos, beneficiando a mãe da arguida de uma imagem social positiva, sendo considerada pessoa trabalhadora e que exerce influência benéfica neste agregado familiar. 49. As duas filhas mais novas da arguida encontram-se a estudar, e são acompanhadas pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de ..., sendo que, na sequência desse acompanhamento, o marido da arguida iniciou tratamento dirigido ao alcoolismo no Centro de Saúde local, o que teve impacto positivo na dinâmica familiar. 50. Na sequência do desencadeamento do presente processo e da intervenção da Comissão de Protecção de Menores de Vila Nova de Gaia, a menor CC foi colocada em acolhimento institucional, encontrando-se desde 17.12.2013 no Instituto ..., tendo sido anteriormente provisoriamente acolhida no Lar ....
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Apreciando. Fundamentação de direito.
Embora sejam suscitadas de forma autónoma duas questões a propósito da ilegitimidade do M.º P.º, as mesmas apresentam-se, na sua essência de modo similar, sendo que no segundo segmento são repetidas muitas das conclusões anteriores. Efectivamente, as conclusões apresentam repetições desnecessárias. Assim, as conclusões 49.ª a 59.ª, 61.ª, 63.ª, 65.ª e 66.ª limitam-se a repetir, por vezes, ipsis verbis, o que consta das conclusões 24.ª a 32.ª, 18.ª, 19.ª, 20.ª, 34.ª e 35.ª, estando em causa a mesma questão de ilegitimidade do Ministério Público, nas conclusões 1.ª a 35.ª no que toca aos crimes de abuso sexual de criança ocorridos antes de Setembro de 2007 e quanto ao exercício da acção penal relativamente ao crime de actos sexuais com adolescente nas conclusões 36.ª a 66.ª.
Questão I – Ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, relativamente aos crimes de abuso sexual de criança ocorridos antes de Setembro de 2007
Nas conclusões 1.ª a 35.ª o recorrente coloca a questão da ilegitimidade da actuação do Ministério Público, estando em causa os crimes de abuso sexual praticados entre 2004 e 2007, mais concretamente até 14 de Setembro de 2007, defendendo não ser aplicável o regime introduzido com o Decreto-Lei n.º 59/2007, de 04-09, entrado em vigor em 15 de Setembro de 2007. Em causa estão factos praticados num período temporal situado entre 24 de Março de 2004 – dia em que a menor CC perfez seis anos de idade, pois nasceu em ... – e 2007, em que a conduta consistiu em apalpar o corpo da menor, por fora e por dentro da roupa, o que aconteceu por mais de uma ocasião, a primeira das quais quando tinha 6 anos de idade (Facto Provado n.º 4), entre 24 de Março de 2004 e 23 de Março de 2005, consistindo a conduta na introdução do pénis na boca da menor então com 6 anos de idade, dizendo-lhe para “mamar” (Facto Provado n.º 5) e entre 24 de Março de 2005 e 23 de Abril de 2007, tendo a menor 7 ou 8 anos, tentando o arguido introduzir o pénis na vagina da menor, não o tendo conseguido, após o que continuou a roçar o pénis na vagina da menor por vários minutos (Facto Provado n.º 6). [Abrir-se-á aqui um parênteses para anotar que a data “23 de Abril de 2007” se deverá certamente a lapso de escrita, pois que a partir de 24 de Março de 2007 a menor nascida em 24 de Março de 1998 passou a ter 9 anos de idade, sendo que é referido que a menor à data da prática dos factos teria 7 ou 8 anos. Daqui decorre que o lapso consistiu em colocar Abril em vez de Março. Na verdade, até 23 de Março de 2007, a menor tinha oito anos de idade]. De anotar que em relação aos demais crimes de abuso sexual de criança, como os cometidos entre Agosto de 2010 e Outubro de 2013, descritos nos factos provados n.º 7, 8, 9 e 10, os mesmos passaram a assumir natureza pública, pois que face à redacção do artigo 178.º dada pela Lei n.º 59/2007, apenas o procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 170.º passaram a depender de queixa, salvo se forem praticados contra menor ou deles resultar suicídio.
Releva para a questão colocada o disposto no preceito que regula o instituto da queixa no domínio dos crimes sexuais. À data da prática destes factos, todos ocorridos antes de 15 de Setembro de 2007, data da entrada em vigor da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, estava em vigor o artigo 178.º do Código Penal, preceito com redacção introduzida em 2001 pela Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto e que veio a ser alterada por aquela Lei de 2007. No que toca à titularidade do direito de queixa regia o artigo 113.º do Código Penal então com a redacção resultante da revisão de 1995 (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março) com excepção do n.º 6, que foi aditado pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro. Estamos perante sucessão de leis no tempo, no concreto caso reguladoras do instituto da queixa, passando o crime de abuso sexual de crianças de semi-público a público, voltando a ser público o crime em que a vítima é menor de doze anos, conferindo legitimidade automática ao Ministério Público, ou seja, à solução do Código Penal de 1886 (artigo 399.º) e do Código Penal de 1982 (artigo 211.º), sendo que tendo em conta aquele período temporal, há que analisar as alterações provenientes da reforma de 1995 e as subsequentes introduzidas em 1998 e 2001.
Sucessão de leis
Estando em causa direito intertemporal é de chamar à colação o quadro normativo integrado pelo disposto no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da República (Aplicação da lei criminal), no artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal (Aplicação no tempo) e no artigo 5.º do Código de Processo Penal, preceito regulador da sucessão de leis no domínio do processo penal.
Estabelece o Artigo 29.º da Constituição da República “Aplicação da lei criminal”
4 – Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
Dispõe o Artigo 2.º do Código Penal “Aplicação no tempo”
4 – Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.
Estabelece o artigo 5.º do Código de Processo Penal “Aplicação da lei processual penal no tempo”
1. A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior. 2. A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar: a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo”.
(Note-se que a actual redacção do corpo do n.º 2 do preceito resulta de uma rectificação, operada alguns dias antes da entrada em vigor do CPP de 1987, a qual foi diferida de 1 de Junho de 1987, conforme previsto inicialmente no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, que aprovou o Código de Processo Penal de 1987, para 1 de Janeiro de 1988, por força do artigo único da Lei n.º 17/87, daquele dia 1 de Junho. A redacção originária do corpo do n.º 2 do artigo 5.º do CPP era do teor seguinte: «A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados após a sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata puder resultar:». A alteração/rectificação foi feita pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 387-E/87, de 29 de Dezembro (publicado no Diário da República, I.ª Série, n.º 298, 2.º Suplemento, da mesma data).
Este preceito estabelece a regra tempus regit actum: a lei processual penal é aplicada a todos os actos processuais praticados a partir da sua entrada em vigor, salvaguardando-se os actos até então realizados, os quais mantêm plena validade (só assim não acontecendo em relação às normas processuais penais de natureza substantiva). É princípio pacificamente admitido que as leis de processo são de aplicação imediata, no tocante aos actos e termos a realizar a partir da data em que a lei nova começou a vigorar.
O direito de queixa - Evolução legislativa Direito adjectivo Direito substantivo No caso especial dos crimes sexuais
No domínio do Código Penal de 1852/1886, para além da extensa maioria dos crimes públicos, estavam previstos crimes de natureza semi-pública e particulares, dependentes de “participação do ofendido”, ou de “acusação” ou “requerimento”, no domínio dos “crimes contra as pessoas”, como os casos previstos nos artigos 359.º (ofensas corporais voluntárias simples), 360.º, § único (ofensas corporais voluntárias de que resulta doença ou impossibilidade para o trabalho, introduzido pelo DL n.º 41.074, de 17-04-1957), 363.º, § único (uso e ameaças com arma de fogo ou de arremesso), 369.º, § 1.º (ofensas corporais involuntárias), 379.º, § 2.º (ameaças), todos dependentes de participação do ofendido e de “acusação do ofendido”, como no artigo 380.º, § 4.º (introdução em casa alheia, sendo o § acrescentado pelo já referido DL de 1957), de “denúncia” no artigo 399.º (denúncia prévia), no artigo 416.º (legitimidade para a acção penal nos crimes de difamação e de injúria “requerimento de parte”), e contra o património, como nos artigos 430.º (queixa do ofendido no crime particular de furto), 450.º § único (crime de burla), 451.º § 2.º (burla por defraudação), 453.º, § 2.º (abuso de confiança), 455.º, § único (simulação), 456.º § 5.º (fraude nas vendas), todos por remissão, para o disposto no artigo 430.º; artigo 472.º, § 1.º (crime de dano – “acusação particular” e “participação do ofendido”, conforme o valor do dano), 473.º, § único, sendo aplicável o disposto no § 1.º do artigo 472.º (dano em porta, janela, tecto, parede, fosso, vala ou cercado), 479.º, § 2.º (danos em animais, sendo o procedimento judicial dependente de “participação do ofendido”), 480.º, § único, igualmente introduzido em 1957 (morte ou ferimento de animais em terreno do dono, sendo aplicável o disposto no § 2.º do artigo 479.º), 481.º, § único (danos voluntários não previstos especialmente - “acusação do ofendido”) e 482.º, § 1.º (dano culposo - “participação do ofendido” e “acusação”).
Inserto no Capítulo (VI) que tratava “Da extinção da responsabilidade criminal”, sob a epígrafe “Extinção do procedimento criminal, das penas e das medidas de segurança”, estabelecia o Artigo 125.º:
“O procedimento criminal, as penas e as medidas de segurança acabam, não só nos casos previstos no artigo 6.º, mas tam 1.º…………………………………………… ………………………………………… 2.º………………………………………………………………………………………. 3.º…………………………………………………………….………………………… 4.º - Pelo perdão da parte, ou pela renúncia ao direito de queixa em juízo, quando tenham lugar; 5.º ……………………………………………………………...……………………… 6.º …………………………………………………………………...………………… 7.º …………………………………………………………………………………….. 8.º - Nos casos especiais previstos na lei.
O preceito continha ainda os §§ 1.º a 7.º, sendo que o § 3.º regulava o prazo para o exercício do direito de queixa e o § 6.º estabelecia sobre o perdão da parte nos casos de o procedimento criminal depender de denúncia ou acusação particular.
O artigo 6.º referido no corpo do preceito, que veio a ser uma das fontes do artigo 2.º do Código Penal de 1982, estabelecia sobre aplicação da lei penal no tempo, prevendo excepções ao princípio da irretroactividade da lei penal desde que favorável “ao infractor” [2.ª] e “aos criminosos” [3.ª].
No plano adjectivo, no Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto n.º 16 489, de 15 de Fevereiro de 1929, inserto no Livro I «Da acção e competência», Título I, «Das acções emergentes do crime», Capítulo I «Da acção penal», Secção II «Do Ministério Público e da parte acusadora», subordinado à epígrafe (Exercício da acção penal) estabelecia o Artigo 5.º
“Compete ao Ministério Público exercer a acção penal com as restrições constantes dos artigos seguintes”.
Sob a epígrafe (Queixa, denúncia ou participação do ofendido) estabelecia então o
Artigo 6.º
Nos casos em que a lei exige queixa, denúncia ou participação do ofendido, ou de outras pessoas, para haver procedimento penal, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto em juízo para que o Ministério Público promova. § único. Quando a participação tiver sido feita a qualquer outra autoridade e por esta enviada ao tribunal, será notificado o participante para declarar se a confirma ou não.
[O artigo 7.º regulava sobre crimes particulares e o artigo 8.º sobre a legitimidade do Ministério Público no caso de acumulação de infracções].
O artigo 5.º do Código de Processo Penal de 1929 foi substituído pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 35.007, de 13 de Outubro de 1945, diploma cuja orientação geral era no sentido de vincar o carácter público da acção penal, evidenciando-se a posição do Estado, do Ministério Público, em detrimento dos particulares. Estabelecia o Artigo 1.º: “A acção penal é pública; compete ao Ministério Público o seu exercício com as restrições constantes dos artigos seguintes”.
Estabelecia o Artigo 3.º: O exercício da acção penal depende: 1.º Da denúncia ao Ministério Público, nos casos em que a lei exige queixa, denúncia ou participação do ofendido ou de outras pessoas; 2.º De acusação particular, quando a lei exige querela, acusação ou requerimento do ofendido ou de outras pessoas; 3.º ………………………...…………………………………………………………… § único……………………………………………………………………………….
Manso Preto, em Pareceres do Ministério Público, pág. 313, sustentou que nos crimes semi-públicos (caso do crime de violação), a denúncia era condição de procedibilidade, de legitimidade para o Ministério Público exercer a acção penal.
Sobre “Ilegitimidade nos crimes particulares e quase públicos”, mas prevendo mecanismos de validação a posteriori, estabelecia o Código de Processo Penal de 1929 no Artigo 101.º “Quando a acção penal depender de acusação particular, se ao requerente não assistir o direito de acusar, será considerado parte ilegítima, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou dos interessados, em qualquer altura da causa, sendo o réu absolvido da instância, se o processo chegar a julgamento. § 1.º O processo poderá seguir os seus termos, desde que apareça em juízo a promove-los quem legalmente o possa fazer. Neste caso, apenas serão anulados os actos que o requerente não ratificar. § 2.º Se a acção depender de participação particular, o Ministério Público será julgado parte ilegítima, quando a não tenha havido, feita por quem de direito. O processo será, porém, validado, se as pessoas que podem participar declararem, em qualquer altura da causa, que desejam que se tome conhecimento do facto em juízo.
Implantado o princípio acusatório, não podia existir processo penal sem autor (nemo judex sine actore). Cavaleiro Ferreira, Curso de processo penal, III, expendia, a págs. 20, no desenvolvimento deste princípio, que a acção penal deve ser exercida pela entidade para tal legitimada e na forma prescrita na lei; de outro modo, faltará um pressuposto processual.
No Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro de 1987, entrado em vigor em 1 de Junho de 1988, conforme o artigo único da Lei n.º 17/87, de 1 de Junho, inserto no Livro I «Dos sujeitos do processo», Título II, «Do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal», subordinado à epígrafe (Legitimidade) estabelecia o
Artigo 48.º O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º.
Sob a epígrafe (Legitimidade em procedimento dependente de queixa) estabelecia o
Artigo 49.º 1 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo. 2 – Para efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele. 3 – A queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais. 4 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender da participação de qualquer autoridade.
[O artigo 50.º versa sobre legitimidade em procedimento dependente de acusação particular, o artigo 51.º sobre homologação da desistência da queixa ou da acusação particular e o artigo 52.º sobre a legitimidade no caso de concurso de crimes].
Os artigos 48.º e 50.º não sofreram alterações desde a versão inicial; os artigos 49.º, 51.º e 52.º foram alterados pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.
A alteração introduzida no artigo 49.º em substância apenas acrescentou a referência a «mandatário judicial» no n.º 3, passando a estabelecer:
Artigo 49.º 1 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo. 2 – Para efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele. 3 – A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais. 4 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender da participação de qualquer autoridade.
Código Penal de 1982 (Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, entrado em vigor em 1-01-1983)
Integrado no Livro I - Parte geral - Título VIII - “Da queixa e da acusação particular”- abrangendo os artigos 111.º a 116.º, estabelecia o
Artigo 111.º (Titulares do direito de queixa) 1 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, a pessoa ofendida, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. 2 – Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, e aos descendentes e, na falta deles, aos ascendentes, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime. 3 – Quando o ofendido for incapaz, o direito de queixa pertence ao seu representante legal, ao cônjuge, não separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes, e, na falta deles, aos ascendentes, irmãos e seus descendentes. Se, porém, tiver mais de 16 anos o ofendido tem também legitimidade para deduzir a queixa. 4 – Qualquer das pessoas pertencentes a uma das classes referidas nos n.ºs 2 e 3 pode apresentar queixa independentemente das restantes.
Victor Sá Pereira, Código Penal, Livros Horizonte, 1988, pág. 158, em comentário ao artigo 111.º, dizia: Tem-se entendido a queixa como condição de procedibilidade, pela sua integração no campo processual. Distingue-se, efectivamente, das condições objectivas de punibilidade, encontra-se no domínio da admissibilidade da prossecução penal e a sua natureza não se modifica só porque o Código Penal parcialmente a regula. O ofendido é o titular, por excelência, do direito de queixa. A sua incapacidade desencadeia actuação representativa. Mas a menoridade de mais de 16 anos permite-lhe concurso no exercício do direito de queixa (n.º 3 e artigo 19.º).
Código Penal de 1995 (Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1-10-1995)
Integrado no Livro I - Parte geral - Título IV - Queixa e acusação particular – abrangendo os artigos 113.º a 117.º, estabelece o
Artigo 113.º (Titulares do direito de queixa) 1 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. 2 – Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence sucessivamente às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime: 3 – Se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa, este pertence ao representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas nas alíneas do número anterior, segundo a ordem aí referida, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime. 4 – Qualquer das pessoas pertencentes a uma das classes referidas nos n.ºs 2 e 3 pode apresentar queixa independentemente das restantes. 5 – Quando o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas, no caso, ao agente do crime, pode o Ministério Público dar início ao procedimento se especiais razões de interesse público o impuserem.
Reforma de 1998
A Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro (Diário da República, I Série-A, n.º 202, de 2 de Setembro de 1998), aditou ao artigo 113.º o n.º 6 do seguinte teor:
6 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, o Ministério Público pode, nos casos previstos na lei, dar início ao procedimento quando o interesse da vítima o impuser.
(Esta alteração está em consonância com a modificação introduzida pela mesma lei no artigo 178.º do Código Penal, ao estabelecer no n.º 2 que “Nos casos previstos no número anterior, quando o crime for praticado contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao processo se o interesse da vítima o impuser”).
Comentando o preceito com esta redacção Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, 16.ª edição, Almedina 2004, pág. 608, afirmava relativamente ao n.º 6, que “Este dispositivo veio permitir que os crimes semi-públicos, em casos previstos na lei, como o do art. 178.º, n.º 4, passem a ter a natureza de públicos. Mas o único interesse a ponderar pelo Ministério Público é o interesse da vítima, não devendo ser consideradas razões de interesse público, pois o pensamento legislativo radica na protecção de vítimas particularmente indefesas, nomeadamente em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez. A propósito note-se que, certamente por mera inadvertência, o legislador não adaptou o texto do n.º 5 a este pensamento. Aí se continua a mandar atender a especiais razões de interesse público, para que o MP dê início ao procedimento. De qualquer modo, e dentro da hermenêutica do Código, entendemos que também aqui se deve atender ao interesse da vítima”.
Reforma de 2007
A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, in Diário da República, I Série, n.º 170, de 4 de Setembro (rectificada pela Declaração de Rectificação, n.º 102/2007, in Diário da República, I Série, n.º 210, de 31-10-2007), entrada em vigor em 15-09-2007, introduziu a vigésima terceira alteração ao Código Penal e alterou os números 2 a 6.
Artigo 113.º (Titulares do direito de queixa) 1 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. 2 – Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime: 3 – Qualquer das pessoas pertencentes a uma das classes referidas nas alíneas do número anterior pode apresentar queixa independentemente das restantes. 4 – Se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa, este pertence ao representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas sucessivamente nas alíneas do n.º 2, aplicando-se o disposto no número anterior. 5 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, o Ministério Público pode dar início ao procedimento no prazo de seis meses a contar da data em que tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse do ofendido o aconselhar e: a) Este for menor ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa; ou b) O direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas ao agente do crime. 6 – Se o direito de queixa não for exercido nos termos do n.º 4 nem for dado início ao procedimento criminal nos termos da alínea a) do número anterior, o ofendido pode exercer aquele direito a partir da data em que perfizer 16 anos.
Vejamos a regulamentação do direito de queixa no específico campo dos crimes sexuais
Código Penal de 1852/1886
Os ora denominados crimes sexuais estavam previstos no Livro II - Dos crimes em especial, Título IV - Dos crimes contra as pessoas, Capítulo IV - Dos crimes contra a honestidade, Secção II - Atentado ao pudor, estupro voluntário e violação, abrangendo os artigos 391.º a 400.º. A Secção I integrava um único crime, o do artigo 390.º, que previa o crime de ultraje público ao pudor. A Secção II, para além de abranger os crimes de atentado ao pudor (artigo 391.º), estupro (artigo 392.º) e violação (artigo 393.º) e ainda violação de menor de doze anos (artigo 394.º), enunciados na epígrafe da Secção II, abrangia conexas realidades outras, como o rapto violento ou fraudulento (artigo 395.º), rapto consentido (artigo 396.º), cárcere privado e ocultação de menores (artigo 397.º), prevendo a agravação especial no artigo 398.º, nos n.º 1, 2 e 3, maxime, no caso de o infractor ser familiar/parente, ou por alguma forma ter ascendência, autoridade (incluindo o tutor, curador ou mestre, encarregado de educação, direcção ou guarda; eclesiástico ou ministro de qualquer culto, empregado público de cujas funções dependa negócio ou pretensão da pessoa ofendida) ou influência (incluindo o criado ou doméstico, ou que em razão da profissão, que exija título, tiver influência) sobre a pessoa ofendida, em suma, uma “autoridade legal ou de facto”, como entendia Beleza dos Santos na RLJ, 57.º, 65, para além do diverso caso, previsto no n.º 4, de o agente ter comunicado à pessoa ofendida afecção sifilítica ou venérea.
Neste contexto, estabelecia o Artigo 399.º Denúncia prévia
Nos crimes previstos nos artigos antecedentes não tem lugar o procedimento criminal sem prévia denúncia do ofendido, ou de seus pais, avós, marido, irmãos, tutores ou curadores, salvo nos casos seguintes: 1.º - Se a pessoa ofendida for menor de doze anos; 2.º - Se foi cometida alguma violência qualificada pela lei como crime, cuja acusação não depende da denúncia ou da acusação da parte; 3.º - Sendo pessoa miserável ou achando-se a cargo de estabelecimento de beneficência. § único – Depois da dada a denúncia e instaurado o processo criminal, o perdão ou desistência da parte não susta o procedimento criminal.
Comentava Maia Gonçalves no Código Penal Português, 4.ª edição, Almedina, 1979, pág. 642, que o fundamento da natureza semi-pública da infracção está em que a lei quer dar à pessoa ofendida ou ao seu representante a possibilidade de escolha entre a perseguição do crime, com o consequente escândalo que, em regra, lhe está ligado, e o esquecimento e recato.
Código Penal de 1982 Aprovado pelo Decreto – Lei n.º 400/82, de 2 de Setembro, entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1983 (artigo 2.º)
Na redacção originária de 1982 os crimes sexuais integravam a Secção II - Dos crimes sexuais (Artigos 201.º a 218.º) do Capítulo I - Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social, do Título III - Dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade. No que ora interessa estabelecia o
Artigo 211.º (Necessidade de queixa)
1 – Nos crimes previstos nos artigos antecedentes, o procedimento criminal depende de queixa do ofendido, do cônjuge ou de quem sobre a vítima exerce o poder paternal tutela ou curatela. 2 – O disposto no número anterior não se aplica quando a vítima for menor de 12 anos, o facto for cometido por meio de outro crime que não dependa de acusação ou queixa, quando o agente seja qualquer das pessoas que nos termos do número anterior tenha legitimidade para requerer procedimento criminal ou ainda quando do crime resulte ofensa corporal grave, suicídio ou morte da vítima.
[Crimes previstos nos artigos antecedentes eram os de violação, violação de mulher inconsciente, cópula mediante fraude, estupro, atentado ao pudor com violência, atentado ao pudor em pessoa inconsciente, homossexualidade com menores e cópula ou atentado ao pudor relativamente a pessoas detidas ou equiparadas].
Victor Sá Pereira, Código Penal, Livros Horizonte, 1988, comentando o preceito, dizia na pág. 257 “A lei faculta a certas pessoas o poder de escolherem entre a prossecução criminal, de sequência por vezes escandalosa, e o recato do esquecimento, que se traduz na inércia do não participar. Este poder, ademais, tem hoje um alcance muito maior do que o que cabia no regime de 1886. Na verdade, actua a todo o tempo, porque é possível renúncia e não se exclui a desistência (artigo 114.º). Trata-se, em regra, de crime semi-público. O n.º 2, entretanto, configura quatro hipóteses nítidas de publicidade”.
Código Penal de 1995
Com a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, os crimes sexuais foram transferidos para o Título I da Parte Especial dedicado aos Crimes contra as pessoas, em capítulo criado de novo - Capítulo V – Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, integrado pelos artigos 163.º a 179.º.
O preâmbulo do diploma de revisão, no ponto 7, assinala a deslocação dos crimes sexuais do capítulo relativo aos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade para o título dos crimes contra as pessoas, onde constituem um capítulo autónomo, sob a epígrafe «Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual», abandonando-se a concepção moralista («sentimentos gerais de moralidade»), em favor da liberdade e autodeterminação sexuais, bens eminentemente pessoais.
Teresa Beleza, O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, I volume, Lisboa, 1996, referindo-se a esta mudança, depois de afirmar a págs. 159 que “O pecado - como sombra da censura social suportando padrões morais de comportamento - cedeu o passo à preservação da liberdade individual”; e a págs. 166 que “a liberdade sucede aos bons costumes”, diz a págs. 169 “(…) a ideia de atentado ao pudor é substituída pela de desrespeito pela autodeterminação sexual. Já não é o pudor da criança ou do jovem que está em causa – ele pode, até, ser inexistente e nem por isso o crime deixa de existir ou o Direito ficciona um pudor inexistente - mas a convicção legal (iuris et de jure, dir-se-ia) de que abaixo de uma certa idade ou privada de um certo grau de autodeterminação a pessoa não é livre de se decidir em termos de relacionamento sexual.
Correspondente ao primitivo artigo 211.º, passou a estabelecer o
Artigo 178.º (Queixa)
1 – O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 171.º a 175.º depende de queixa, salvo quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da vítima. 2 – Nos casos previstos no número anterior, quando a vítima for menor de 12 anos, pode o Ministério Público dar início ao processo se especiais razões de interesse público o impuserem.
[Os crimes referidos no n.º 1 eram coacção sexual, violação, abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, fraude sexual, actos exibicionistas, abuso sexual de crianças, abuso sexual de adolescentes e dependentes, estupro e actos homossexuais com menores].
Como dizia a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 92/VI (Diário da Assembleia da República, II Série-A, de 24 de Fevereiro de 1994) “Uma outra nota que acentua a protecção do menor é a possibilidade de o Ministério Público, sempre que especiais razões de interesse público o justifiquem, poder desencadear a acção penal quando a vítima for menor de 12 anos”. Diversamente do que ocorria com o Código Penal de 1982 que considerava os crimes sexuais com vítima de idade inferior a 12 anos, sempre, sem qualquer excepção, como crimes públicos (o que para Sénio Alves, Crimes Sexuais, Almedina, 1995, pág. 119, em rigor constituiu um passo atrás nas garantias de protecção dos menores), passaram a crimes semipúblicos com a possibilidade de intervenção do MP
A este propósito questionava Teresa Beleza, O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal, pág. 182, “que interesse público se poderá sobrepor ao da preservação da intimidade e sossego do menor?”
Ana Rita Alfaiate, Crimes sexuais contra menores: questões de promoção processual, na colectânea Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Volume III, Coimbra Editora, 2010, a págs. 724, expende que “com a alteração do bem jurídico protegido a especial relação que este assumiu face ao ofendido, desprendendo-se da conformação dos valores comunitários, pareceu inevitável a consagração da regra do carácter semi - público dos crimes sexuais praticados contra menor de doze anos”, sendo a mesma alteração que justifica a intervenção oficiosa do Ministério Público, o que é abordado pela Autora de seguida, a págs. 724/6, realçando que o que verdadeiramente estava em causa era o interesse da vítima.
Reforma de 1998
A Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, Diário da República, I-A Série, n.º 202/98, alterou o n.º 2 do artigo 178.º, que passou a estabelecer:
2 – Nos casos previstos no número anterior, quando o crime for praticado contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao processo se o interesse da vítima o impuser.
(Esta alteração está em consonância com a introduzida pela mesma lei no artigo 113.º do Código Penal, ao estabelecer no aditado n.º 6 que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, o Ministério Público pode, nos casos previstos na lei, dar início ao procedimento quando o interesse da vítima o impuser”. Ora, um dos casos previstos na lei era justamente o do artigo 178.º, n.º 2, do Código Penal. O outro era o do artigo 152.º, n.º 2, o que aconteceu apenas até o crime de maus tratos assumir a natureza de crime público, o que aconteceu com a alteração introduzida pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio).
Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra, 1999, pág. 595, defendia que já decorria do artigo 113.º, n.º 5, do Código Penal que o Ministério Público podia dar início ao procedimento criminal se a titularidade do direito de queixa couber apenas ao agente do crime e especiais razões de interesse público o impuserem, foi introduzido um tertium genus, através da possibilidade de, relativamente a situações à partida dependentes de queixa, o Ministério Público decidir dar início ao procedimento, se a vítima for menos de 12 anos (95), limite elevado para 16 (98), mantido em 2001, e se tal for imposto por “especiais razões de interesse público” (95) ou pelo interesse da vítima (98) A Autora (§ 4.º, pág. 594) aplaudiu as alterações introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro de 1998: ao admitir a promoção do processo por parte do Ministério Público quando a vítima é menor de 16 anos – e não menor de 12 como acontecia anteriormente – reduzem-se certamente os casos de impunidade, decorrentes da circunstância de a vítima não ter ainda capacidade parta apresentar queixa (artigo 113.º, n.º 3) e de o titular não a apresentar dadas especiais relações com o agente da prática do crime (v. g., o agente é cônjuge ou unido de facto da mãe da vítima); ao esclarecer que a promoção nestes casos depende do interesse da vítima fixa-se o entendimento correcto da expressão anterior «especiais razões de interesse público». Como já vimos, no sentido de que as especiais razões de interesse público são sempre razões no interesse do menor – da vítima, pronunciara-se Damião da Cunha, A participação dos particulares no exercício da acção penal - Alguns aspectos, RPCC, Ano 8, 4 Outubro –Dezembro 1998, pág. 606. Sempre se dirá que a invocação de especiais razões de interesse público faziam sentido quando os crimes sexuais estavam previstos em capítulo dedicado a crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social, integrante do Título III dedicado aos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade, o que deixou de ocorrer com a reforma de 1995, passando os Crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual a integrar a categoria dos Crimes contra as pessoas (Título I da Parte Especial), fazendo sentido a referência a interesse da vítima.
Com intervenção de Rui do Carmo, Isabel Alberto e Paulo Guerra, O Abuso Sexual de Menores, publicado pela Almedina, 2.ª edição, Março de 2006, aborda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 de Maio de 2000, proferido no processo n.º 272/2000 da 3.ª Secção, estando em causa, para além do mais, a relevância da desistência da queixa apresentada durante a audiência de discussão e julgamento pela mãe da menor ofendida.
Focando as alterações operadas pela Lei n.º 65/98, com o aditamento do n.º 6 ao artigo 113.º, alteração do n.º 2 do artigo 152.º e do n.º 2 do artigo 178.º do Código Penal, afirma-se, a págs. 52: “Com o n.º 2 do art. 178.º quis-se garantir uma efectiva protecção dos menores de 16 anos vítimas de crimes sexuais, na sua plenitude, contra os agressores com responsabilidade criminal, mas também contra a incúria, os constrangimentos ou os interesses não coincidentes com os seus do representante legal que não foi agente do crime. Neste caso foi colocada fora da disponibilidade do representante legal da vítima menor de 16 anos a possibilidade de impedir o início ou o prosseguimento do procedimento, sempre que o interesse desta impuser a perseguição criminal do agente”. “Assim sendo, é, a meu ver, irrelevante qualquer declaração do representante legal do menos a desistir da queixa (quando o processo teve nela o seu início) ou a opor-se a que o procedimento criminal prossiga (nos casos em que a iniciativa foi do M.P.) se, havendo indícios suficientes da prática de um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, o Ministério Público, obedecendo a um critério de estrita objectividade (a que está obrigado pelo art. 53.º, 1.º CPP), entender, que no caso, o interesse da vítima impõe a punição do infractor”.
Lei n.º 99/2001
A Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto, Diário da República, I Série, n.º 197, de 25 de Agosto, que introduziu a nona alteração ao Código Penal, alterou os artigos 169.º, 170.º, 172.º, 176.º e 178.º
No que ora importa passou a estabelecer o
Artigo 178.º (Queixa)
1 – O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 167.º, 168.º, e 171.º a 175.º depende de queixa, salvo nos seguintes casos: a) Quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da vítima; b) Quando o crime for praticado contra menor de 14 anos e o agente tenha legitimidade para requerer procedimento criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou a tiver a seu cargo. 2 – Nos casos previstos na alínea b) do número anterior, pode o Ministério Público decidir-se pela suspensão provisória do processo, tendo em conta o interesse da vítima, ponderado com o auxílio de relatório social. 3 – A duração da suspensão pode ir até ao limite máximo de 3 anos, após o que há lugar a arquivamento, em caso de não aplicação de medida similar por infracção da mesma natureza ou de não sobrevir naquele prazo queixa por parte da vítima, nos casos em que possa ser admitida. 4 – Sem prejuízo do disposto nos n.º 2 e 3, e quando os crimes previstos no n.º 1 forem praticados contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser.
Comentando o preceito com esta redacção Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, 16.ª edição, Almedina 2004, pág. 608, afirmava que “O fundamento da natureza geralmente semi-pública dos crimes referidos neste artigo continua a ser, como era no domínio do CP de 1886 e no da versão originária, o de o pensamento legislativo dar à pessoa ofendida, ou a quem por ela pode exercer o direito de queixa, a possibilidade de escolha entre a perseguição do crime, com a consequente publicidade ou mesmo escândalo que em regra lhe está ligado, e o esquecimento e recato perante a afronta recebida”. E a págs. 609: “Não são as especiais razões de interesse público que devem determinar o MP a dar início ao processo. O MP deve aqui atender ao interesse da própria vítima, quando ela é menor de 16 anos e pode estar carecida de uma especial protecção, designadamente porque o titular do direito de queixa a não apresenta porque tem relações especiais com o autor do crime, v. g., os casos em que é cônjuge ou vive em união de facto com a mãe da vítima. Neste caso, a intervenção do MP tem um carácter subsidiário, substituindo o titular do direito de queixa, que está impossibilitado de acautelar eficazmente o interesse da vítima”.
[Entretanto, na sequência da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, que aprovara a Lei- Quadro da Política Criminal, surge a Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, publicada no Diário da República, I Série, n.º 168, de 31-08-2007, a qual em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, definiu os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009. No artigo 1.º é enunciado desde logo como um dos objectivos da política criminal a promoção da protecção da vítima, constituindo de acordo com o artigo 2.º, alínea b), um dos objectivos específicos da política criminal “promover a protecção de vítimas especialmente indefesas, incluindo crianças e adolescentes, mulheres grávidas e pessoas idosas, doentes e deficientes”, constituindo crimes de prevenção prioritária [artigo 3.º, alínea a)] os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores e crimes de investigação prioritária [artigo 4.º, alínea a)], os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, sendo consideradas vítimas especialmente indefesas as crianças, mulheres grávidas, pessoas idosas, doentes, deficientes e imigrantes - artigo 5.º].
Reforma de 2007
A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que operou a vigésima terceira alteração ao Código Penal, publicada no Diário da República, I Série, n.º 170, de 4 de Setembro (Rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 102/2007, in Diário da República, 1.ª série, n.º 210 de 31-10-2007, contemplando apenas ligeiríssimas rectificações - alterações aos artigos 152.º-A, n.º 2 (no texto da lei e da republicação); no artigo 262.º, n.º 1, da republicação e artigo 373.º, n.º 3, igualmente da republicação), alterou, no que ora importa, os artigos 169.º a 179.º.
Mais concretamente, passou a estabelecer o
Artigo 178.º (Queixa)
1 – O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 170.º depende de queixa, salvo se forem praticados contra menor ou deles resultar suicídio ou morte da vítima. 2 – O procedimento criminal pelo crime previsto no artigo 173.º depende de queixa, salvo se dele resultar suicídio ou morte da vítima. 3 – Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravados pelo resultado, o Ministério Público, tendo em conta o interesse da vítima, pode determinar a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que não tenha sido aplicada anteriormente medida similar por crime da mesma natureza. 4 – No caso previsto no número anterior, a duração da suspensão pode ir até cinco anos.
2015
A Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 151, de 05-08, entrada em vigor em 4 de Setembro (artigo 3.º) operou a trigésima alteração ao Código Penal, autonomizando o crime de mutilação genital feminina, criando os crimes de perseguição e casamento forçado e alterando os crimes de violação, coação sexual e importunação sexual, em cumprimento do disposto na Convenção de Istambul.
Pelo artigo 1.º foram aditados os artigos 144.º - A, 154.º - A, 154.º - B e 154.º - C. Pelo artigo 2.º foram alterados os artigos 5.º, 118.º, 145.º, 149.º, 155.º, 163.º, 164.º, 170.º, 177.º e 178.º Neste último preceito, único a considerar aqui e agora (e apenas na perspectiva de apresentação de lei nova), foi introduzido matéria nova no n.º 2, sendo alterada a numeração dos seguintes. Passou a estabelecer o
Artigo 178.º (Queixa)
1 – ………………………………………………………………………………………... 2 – Quando o procedimento pelos crimes previstos nos artigos 163.º e 164.º depender de queixa, o Ministério Público pode dar início ao mesmo, no prazo de seis meses a contar da data em que tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse da vítima o aconselhe. 3 – (Anterior n.º 2) 4 – (Anterior n.º 2) 5 – (Anterior n.º 2)
Seguiu-se nova alteração no domínio dos crimes sexuais, introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 164, de 24-08 – trigésima nona alteração ao Código Penal.
Pelo artigo 2.º foram alterados os artigos 53.º, 54.º e 171.º a 177.º. Pelo artigo 3.º foram aditados os artigos 69.º-B, 69.º-C e 176.ª -A. Pelo artigo 9.º foi revogado o artigo 179.º.
As alterações introduzidas mantiveram inalterado o disposto no artigo 178.º.
Da natureza da queixa Instituto de direito substantivo ou de direito adjectivo Natureza processual penal material - Natureza processual penal formal
Sobre aplicação da lei processual no tempo, no domínio do Código de Processo Penal de 1929, expendia Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 1955, pág. 62: São diversos os princípios sobre aplicação da lei no tempo em direito penal e em processo penal. Estes antes se confundem com os de todo o direito processual. É por isso que, sob este aspecto, tem extrema importância a qualificação de alguns institutos como de direito substantivo ou de direito adjectivo. A questão tem sido discutida sobretudo a propósito da acusação particular ou autorização ministerial, que já em direito penal, qualificámos como condições de procedibilidade, e por conseguinte, de natureza processual. O princípio geral, em processo, quanto à aplicação da lei no tempo é o da aplicação da lei vigente no momento em que o acto processual foi ou é cometido.
Maia Gonçalves, em anotação ao artigo 49.º do CPP, no Código de Processo Penal Anotado, 5.ª edição, pág. 118, 9.ª edição (1998), págs. 169/170 e 16.ª edição (2007), pág. 152, afirmava que nos artigos em que a lei exige queixa ou denúncia do ofendido ou de outras pessoas, ou participação de qualquer autoridade, está-se perante condições de procedibilidade, pois que, sem que elas se verifiquem, o MP carece de legitimidade para promover o processo penal. O instituto do direito de queixa tem natureza processual, não obstante se encontrar regulado, em alguns aspectos, no Código Penal. Por isso, as suas alterações são de aplicação imediata, salvo se da sua aplicabilidade resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, ou quebra de harmonia e unidade dos vários actos de processo, isto nos termos do artigo 5.º do CPP. Trata-se de pressuposto processual de natureza processual. (Contra Taipa de Carvalho e Paulo Albuquerque para quem a sucessão de leis no que toca aos pressupostos materiais é regulada pelo artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal e artigo 29.º, n.º 4, da CRP e não pelo artigo 5.º do CPP, que se restringe a regular os pressupostos proprio sensu, ou meramente formais).
Américo A. Taipa de Carvalho, na monografia Sucessão de leis penais, Coimbra Editora, 1990, na 2.ª parte, a fls. 207 e seguintes, aborda “A sucessão de leis processuais penais materiais e o princípio da aplicação da lei penal favorável”. [Na 3.ª edição de 2008 o tema ocupa págs. 347 e seguintes]. O Autor refuta a regra da aplicação imediata da norma processual - tempus regit actum - começando por afirmar, a págs. 209/210, que o pensamento jurídico-penal tradicional esqueceu-se de que, tal como no chamado direito penal material, também no direito processual penal, no direito da organização judiciária e no direito de execução das penas (sobretudo da pena de prisão: direito penitenciário), há normas que podem afectar os direitos individuais fundamentais. As leis processuais penais não se reduzem a meras normas formularias. No direito processual penal, há normas que condicionam, positiva (pressupostos processuais que são verdadeiros pressupostos adicionais da punição: p. e., queixa e acusação particular) ou negativamente (impedimentos processuais que são verdadeiros impedimentos da punição: p. e., a prescrição do procedimento criminal) a responsabilidade penal. Refere o Autor, a págs. 211, que há que distinguir no âmbito do direito processual penal, entre normas de conteúdo material – as que condicionam a responsabilização penal ou contendem com os direitos fundamentais do arguido e do recluso – e as normas exclusivamente processuais ou formais – as que estabelecem as formalidades do «procedimento» criminal. São exemplos de normas processuais penais materiais a queixa, a prescrição, as espécies de prova, os graus de recurso, a prisão preventiva, a liberdade condicional – pág. 213. Após citar Alimena e Henriques da Silva («As leis formularias [processuais] podem envolver frequentemente offensa de direitos, e, sempre que possa haver offensa de direitos fixados à sombra da lei, é substantiva a lei formularia e não deve applicar-se retroactivamente, por implicar com os direitos dos cidadãos. É preciso não confundir as leis formularias propriamente ditas com as relativas aos direitos individuaes. Estas têm um carácter constitucional, sendo exemplos deste caso as disposições dos §§ 7.º, 8.º, 11.º e 16.º do art. 145.º da Carta»), defende Taipa de Carvalho que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável, citando nesta linha M. Leone “o regime do art. 2.º do Código Penal italiano (correspondente ao nosso art. 2.º) aplica-se não apenas à norma substantiva mas também «a toda a larga esfera de normas processuais que toca o interesse do arguido» – págs. 218/220 [págs. 357/8, em 2008] . A págs. 225 [pág. 364, em 2008] afirma ter de concluir-se que a sucessão de leis processuais penais materiais rege-se pelos princípios constitucionais da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável e da imposição da retroactividade da lei penal favorável, princípios que foram elevados pelo art. 29.º da CRP à dignidade constitucional, estando consagrados no art. 2.º, n.º 4, do Código Penal. E a págs. 226 [pág. 365, em 2008], afirma: Todo o artigo 5.º do CPP só é aplicável às leis (normas) processuais penais formais. Nestas, sim, o princípio geral é o da aplicação imediata – tempus regit actum – sendo a excepção a aplicação da L.N. só aos processos iniciados depois da sua entrada em vigor, o que significa a ultractividade da LA (CPP, 5.º, 2, b)). A págs. 242 [na edição de 2008 esta matéria está englobada em capítulo autónomo, o 3.º, dedicado à Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de leis sobre a queixa e a acusação particular, págs. 385 e ss.], refere o Autor que os dois institutos - queixa e acusação particular - tal como a prescrição do procedimento criminal, são de natureza processual penal material, isto é, têm dupla natureza. Sendo condições (positivas) do procedimento criminal (pressupostos processuais), do mesmo modo condicionam a responsabilidade penal. Não há qualquer fundamento para considerar estas figuras como exclusivamente processuais. Mais à frente – pág. 244 – conclui que “há que distinguir, nos institutos da queixa e da acusação particular, as normas exclusivamente processuais (princípio da aplicação imediata – CPP, art. 5.º) das normas processuais penais materiais (irretroactividade desfavorável, retroactividade favorável – CP, arts. 2.º- 4 e 3.º). Às primeiras pertencem as normas dos arts. 49.º a 52.º do CPP; às segundas pertencem, inequivocamente, as normas constantes dos arts. 111.º a 116.º do CP.” [De igual modo a págs. 389 da edição de 2008, sendo as últimas normas substituídas pelos artigos 113.º a 117.º do CP]. O mesmo Autor na referida obra Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2008, refere, a págs. 349 e 351, que os princípios constitucionais da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável e da imposição da retroactividade da lei penal favorável aplicam-se às normas processuais penais materiais, em que se incluem as normas que dizem directamente respeito aos direitos e garantias de defesa do arguido, como os graus de recurso. Após afirmar claramente que todo o artigo 5.º só é aplicável às leis (normas) processuais penais formais, defende – pág. 365 – que o momento decisivo para determinar, no caso de conflito temporal de leis processuais penais materiais (onde se incluem as normas sobre o direito de defesa do arguido, referidas, indevidamente, na al. a)), a lei aplicável é, não o momento em que se inicia o processo, mas o tempus delicti, recusando, in limine, a pretensão de situar e fazer coincidir o momento-critério da lei aplicável com o momento em que se inicia o processo penal. (Cfr. p. p. 362 a 372) [Neste sentido, o AFJ n.º 1/98, de 9-07-1998, in Diário da República, I-A, de 29-07-1998]. Em sua opinião, diz a págs. 365, o disposto na al. a) do n.º 2 não devia constar do artigo 5.º, por versar uma questão que, por exigência constitucional e do Estado de Direito, está submetida ao princípio da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável, e portanto, abrangida pelo artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal. Conclui: “Se a intenção foi boa, a disposição é inútil e oxalá que não venha a servir de pretexto para decisões injustas e inconstitucionais”, acrescentando a p. 367, que o teor literal do artigo 2.º, n.º 4, é suficientemente amplo para compreender a sucessão de leis processuais penais materiais.
Pedro Caeiro, Aplicação da lei penal no tempo e prazos de suspensão da prescrição do procedimento criminal: “Um caso prático”, em Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, vol. I, Novembro de 2001, versando no ponto 3 “O problema específico da aplicação no tempo da lei processual penal”, refere, a págs. 241/2, que “Não pode esquecer-se que todo o processo-crime , independentemente do momento em que é instaurado (na vigência da lei antiga ou já na vigência da lei nova), tem sempre por causa referente uma infracção penal cometida em certo momento. E daqui decorre uma importante consequência: se a lei processual em vigor no momento da prática do acto processual for diversa da que vigorava no momento do tempus delicti, a sua aplicação “imediata” (sc., a sua aplicação ao acto processual presente) coenvolve sempre, em qualquer caso, uma eficácia retroactiva imprópria, porquanto toma para a produção dos efeitos presentes a que tende um facto que ocorreu antes da sua entrada em vigor”. A págs. 243 considera correcta a proposta de Taipa de Carvalho ao distinguir entre “normas processuais penais materiais” e “normas processuais formais”. “As primeiras, incidindo sobre a responsabilidade penal do arguido, encontram-se sujeitas às mesmas garantias constitucionais que regem as normas substantivas e que podem excepcionar a regra lex posterior derogat priori. As segundas limitam-se a estabelecer formalidades técnicas do procedimento criminal e, por não contenderem directamente com a responsabilidade do agente nem com a sua posição processual, não se encontram subordinadas àqueles princípios”. Conclui, a págs. 244: “Em suma: a lei processual penal deve seguir o brocardo tempus regit actum (aplicação da lei vigente no momento da prática do acto processual em causa), salvo se tal aplicação “imediata” agravar a responsabilidade do arguido ou a sua posição processual (v. g., uma norma que alargue um prazo prescricional, ou crie factos interruptivos ou suspensivos da prescrição não previstos na lei antiga, ou admita meios de prova proibidos pela lei antiga)”.
J. J. Gomes Canotilho, Anotação ao Acórdão n.º 70/90 do Tribunal Constitucional, proferido no processo n.º 229/89, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 123.º, 1990-1991, n.º 3792, estando em causa apreciação de normas processuais referentes a prisão preventiva, a págs. 95, refere que o princípio do tratamento mais favorável ao arguido abrange não apenas o direito material sancionatório, mas também as normas processuais de natureza substantiva; não sendo de estender o princípio em referência a todo o direito processual penal, mas tão somente às normas ou fragmentos de normas processuais penais de natureza substantiva. Não sendo fácil recortar, dentre as normas processuais penais, aquelas que têm um «cunho» substantivo, adianta: “Embora a doutrina não avance com critérios seguros, propende-se a considerar que são de natureza substantiva as normas processuais penais que condicionem a responsabilidade penal ou contendam com os direitos fundamentais do arguido ou do recluso”. Entende que as normas do «direito legal processual» referentes à prisão preventiva não podem deixar de participar da função materialmente garantística das garantias processuais penais reconhecidas na Constituição, dizendo mais: “se algumas normas processuais existem com inequívocas dimensões substantivas essas são as que influem directamente na posição pessoal do arguido quanto à própria liberdade”.
Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 122/3, abordando as figuras de denúncia, queixa ou participação, então (na 1.ª edição) previstas no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 35.007, de 13-10-1945, colocava a questão de saber se eram de qualificar como exigências do direito penal substantivo ou antes verdadeiros pressupostos processuais. Considerava, à época, que a circunstância de tais requisitos, pela estreitíssima e necessária relação que possuem com os diversos tipos de crime, encontrarem assento no Código Penal (…), “não deve obstar a que se veja neles autênticos pressupostos processuais: são, é certo, em último termo, pressupostos da dignidade punitiva do facto, mas, verdadeiramente, estão fora deste, nada têm a ver com o comportamento violador dos bens fundamentais da comunidade, com a sua existência material, antes só com o problema prático da sua punição. Por isto se pode também dizer, com razão, que a decisão sobre a exigência ou não-exigência de denúncia e de acusação particular se inscreve no espaço processual e não afecta a valoração social da relação da vida a que se refere. São hipóteses em que a lei torna a iniciativa de investigar a prática da infracção e a decisão de a submeter a julgamento dependentes da co-actuação do ofendido ou de outras pessoas, a quem a lei confere o direito de denúncia, queixa ou participação”.
Diversa é a perspectiva de Figueiredo Dias em Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do crime, 1993, sobre a queixa e acusação particular, que são então encaradas como pressupostos positivos da efectivação da punição, da aplicação ou execução da consequência jurídica (§ 1057, pág. 661, com realce nosso). Ainda que seja fundada a sua qualificação como pressupostos processuais existe um conteúdo de sentido jurídico-material que as liga ao direito penal substantivo. No § 1059, pág. 663, explicita que o conteúdo de certos pressupostos processuais contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhes presidem têm ainda a ver com condições de efectivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser. Por isso, o regime de tais pressupostos é regulado essencialmente na PG do CP, no capítulo respeitante às consequências jurídicas do crime. Tais pressupostos não são elementos do tipo, não exercem qualquer influência sobre a ilicitude, não assumem relevo para a culpa, nem, tão pouco, devem ser vistos como condições de punibilidade. Podem relevar para efeitos de determinação do «regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente», a que se refere a parte final do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal (neste sentido Taipa de Carvalho, pág. 242). No § 1069, págs. 667/8, refere que a exigência de queixa ou (e) de acusação particular pode servir a função de específica protecção da vítima (ofendido) do crime. É esse o caso, nomeadamente, dos crimes que afectam de maneira profunda a esfera da intimidade daquela. Quem seja vítima de um crime que penetra profundamente em valores da intimidade – nomeadamente, mas não só, da esfera sexual ou familiar [cf., v. g., os arts. 178.º e ss. e 201.º e ss. (211.º)] – deve poder, em princípio, decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o que pode ser o mal do desvelamento da sua intimidade e da consequente estigmatização processual; sob pena, de outra forma, de poderem frustrar-se as intenções político-criminais que, nesses casos, se pretenderam alcançar com a criminalização”.
José Lobo Moutinho, A aplicação da lei penal no tempo segundo o Direito português, Revista Direito e Justiça, Vol. VIII, Tomo 2, 1994, convocando Taipa de Carvalho (quando distingue entre normas processuais formais e materiais defendendo a plena aplicabilidade a estas últimas dos princípios que regem a aplicação da lei substantiva no tempo), a fls. 115/6, afirma que para aplicação da lei processual penal tem hoje de se distinguir entre normas que afectam e normas que não afectam sensivelmente a situação processual do arguido (nomeadamente, interferindo no seu direito de defesa).
Como refere José Damião da Cunha, A participação dos particulares no exercício da acção penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), Ano 8, Fasc. 4.º, Outubro-Dezembro 1998, págs. 597/8, “As razões que podem levar à adopção de um crime dependente de queixa são razões ambivalentes, isto é, tanto podem ser deduzidas do direito material, como podem ser deduzidas do direito processual. Definindo uma dupla função nos crimes dependentes de queixa, num primeiro caso, o legislador intenta ressalvar os interesses das vítimas, em razão da protecção da sua intimidade ou em função de especiais relações pessoais entre vítima e agente – tal sucederá em especial nos crimes contra a liberdade sexual. Um segundo caso resulta da disponibilidade dos próprios bens jurídicos no caso do chamado acordo, tratando-se de situações em que, expressa ou implicitamente, é necessário a prova do «não acordo», o que é visível no âmbito dos crimes contra a reserva da vida privada (em que, em regra, é elemento típico o «sem consentimento»), mas pode verificar-se noutros crimes dependentes de queixa. O direito de queixa é uma declaração inequívoca de vontade de proceder contra determinada pessoa, constituindo um verdadeiro direito de opção, não sendo exigida qualquer motivação, qualquer fundamentação, o que corresponde às regras do processo segundo as quais é indiferente a motivação na prática de actos processuais. A págs. 619 refere que o instituto da queixa deve ser valorado como instituto processual, o que implica que devem ser aplicadas as valorações específicas do processo penal, como admissibilidade/não admissibilidade da apresentação da queixa ou da sua desistência e o problema da «coacção» na apresentação, desistência da queixa. O Autor, a págs. 602/3, versa a admissão da intervenção do Ministério Público nos casos dos artigos 113.º-5 e 178.º-2 do CP, a possibilidade de promoção de procedimento criminal, em crimes dependentes de queixa, quando especiais razões de interesse público assim o exigirem. [Em vigor à data do escrito estava a versão do Código Penal introduzida pela Reforma de 1995 e daí a referência a “especiais razões de interesse público”, substituídas em 1998 pelos “interesses da vítima”]. Começa por salientar dois aspectos: a) o de que se tratam de situações excepcionais (cfr. Actas 1993, p. 110, quanto ao art. 113.º-5 – «situação chocante»); b) o de que se tratam de situações diferenciadas – isto é, não há redundância entre os dois normativos – pois não se compreenderia que uma norma da parte geral do CP fosse de novo reproduzida na Parte Especial do CP (o que também decorre da diferente formulação de ambos os normativos: no art. 113.º, o MP pode dar início ao procedimento; no art. 178.º, pode dar início ao processo…). Analisando a primeira norma – o artigo 113.º, n.º 5 – refere que é uma cláusula de salvaguarda para todas aquelas situações em que se verifique uma coincidência entre pessoas que exercem o direito de queixa (em nome próprio ou alheio, consoante sejam sucessores ou representantes) e pessoa contra quem aquele direito é exercido, não havendo alternativa (isto é, não havendo outra pessoa que possa exercer tal direito) a tal situação. Daqui decorre que as especiais razões de interesse público que justificarão a intervenção do MP, nestes casos, serão exactamente as mesmas que levam a lei civil (ou processual civil, ou ainda as regras referentes à tutela de menores) a admitir a intervenção de entidades públicas no âmbito de relações jurídico-familiares, sempre que entre representante e representado se verifique um conflito de interesses. Nestes casos a intervenção do MP será sempre subsidiária e provisória. Nos casos previstos no art. 178.º, o Ministério Público pode dar início ao processo, quando, por parte do representante legal do menor, se não tenha verificado um exercício do direito de queixa, embora este pudesse validamente ter sido exercido. Aqui, pode o MP, por acto unilateral, se especiais razões de interesse público o impuserem, tornar público um crime semi-público, sendo fulcral a questão de saber o que entender por especiais razões de interesse público, justificantes desta intervenção. Para o Autor, a razão de ser para que tais interesses sobrelevem só pode ser a que justifica, do mesmo modo, no âmbito do direito privado, a intervenção em relações jurídico-familiares de autoridades públicas para substituir os representantes legais: exactamente aquelas situações em que o CC (cf., a título meramente exemplificativo, os arts. 1915.º e 1918.º, bem como os vários preceitos sobre tutela de menores) reconhece um determinado perigo para o menor (o perigo decorrente do abandono), pelo facto de subsistir uma inércia pelos titulares dos poderes inerentes ao poder paternal. A razão da intervenção do MP coincide com aquela que está subjacente à permissão de intervenção do Estado ou de organizações sociais no âmbito da instituição familiar, intervenção, que tanto num como noutro caso, é sempre justificada em ordem a garantir os interesses do menor – pelo que, referindo-nos agora exclusivamente ao âmbito penal, o MP apenas pode dar início ao processo, caso os interesses do menor o justifiquem, mantendo-se em aberto, pois, a possibilidade de não exercício da acção penal. Mais à frente, pág. 606, reafirma que o MP só deve intervir quando, de facto, exista um vazio no exercício do poder paternal, e que as especiais razões de interesse público são sempre razões no interesse do menor – da vítima.
Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), Ano 9, Fasc. 2.º, Abril-Junho 1999, Sobre a irrelevância da oposição ou da desistência do titular do direito de queixa artigo 178.º, n.º 2, do Código Penal, em comentário ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10-02-1999, pronuncia-se em total oposição ao decidido no acórdão, sendo de opinião que quando o Ministério Público dá início ao procedimento criminal, com fundamento no artigo 178.º, n.º 2, do Código Penal, tal obsta a que, posteriormente, em qualquer altura do processo, o ofendido (ou quem for titular do direito de queixa) venha aos autos dizer, relevantemente, que não deseja o prosseguimento do processo. O artigo 178.º-2 deve ser entendido como um dos casos previstos na lei em que o Ministério Público pode dar início ao procedimento, em nome do interesse da vítima, não obstante o procedimento criminal depender de queixa. Ou seja, o n.º 6 do artigo 113.º, introduzido pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, não é uma norma geral no sentido de valer para todos os crimes semi-públicos. Pelo contrário, a legitimidade excepcional que neste novo número é conferida ao Ministério Público depende de uma previsão expressa na lei. Daí o n.º 2 do artigo 178.º e a parte final do n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal – o outro caso previsto na lei em que o Ministério Público pode dar início ao procedimento se o interesse da vítima de maus tratos conjugais ou equiparados o impuser e não houver oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação.
Leal Henriques e Simas Santos em Código Penal Anotado, 3.ª edição, 1.º volume, Editora Rei dos Livros, 2002, pág. 1177, citando Figueiredo Dias em Direito Processual Penal, pág. 122 e Jescheck, pág. 1229, afirmam que “A queixa e a acusação particular, não obstante encontrarem o seu assento no Código Penal, são verdadeiros pressupostos processuais”.
Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 5.ª edição revista e actualizada, Verbo, 2008, versando a problemática da aplicação no tempo das leis processuais com efeitos materiais, sobretudo as relativas aos prazos de prescrição do procedimento criminal, diz – pág. 106 – entender que “se a lei tem efeitos sobre a penalidade concreta aplicável ao arguido deve ser considerada de natureza material, ainda que o seja também de natureza processual, ou seja, de natureza mista penal-processual”, citando o que ensinava em 1905 Henriques da Silva. Na pág. 107 refere que “No que respeita às normas sobre condições de procedibilidade, a orientação da doutrina e da jurisprudência não está ainda assente, verificando-se divergências acentuadas. Que a norma que transforma o crime particular ou semipúblico em crime público ou o crime público em crime particular ou semi público e aquelas que respeitam à disciplina da queixa ou da acusação particular condicionam a responsabilidade penal e têm por isso também natureza substantiva não aprece ser já controverso. As dúvidas resultam da aplicação prática, em termos gerais”. Convocando Taipa de Carvalho, Sucessão, 2.ª ed., 1997, “Em termos gerais é de aplicar a lei que concretamente se mostre mais favorável ao arguido e recusar a aplicação retroactiva da lei mais gravosa”.
Comentando o artigo 5.º do Código de Processo Penal, Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 4.ª edição actualizada, Abril de 2011, a págs. 62/63, pontos 1 e 2, diz que “A aplicação da lei processual penal no tempo depende da natureza da norma em causa. Há dois tipos de normas processuais: normas processuais materiais e normas processuais proprio sensu. As normas processuais materiais estão sujeitas ao princípio da legalidade criminal, tratando-se de normas que representam, em termos materiais, uma verdadeira pré-conformação da penalidade a que o arguido poderá ficar sujeito. O termo de referência para aferir da sucessão de normas processuais deste tipo é o da data dos factos. As normas da lei nova são retroactivas quando são aplicadas a factos verificados no período da vigência da lei anterior. O artigo 29.º, n.º 4, da CRP não só proíbe que se aplique retroactivamente normas processuais materiais menos favoráveis ao arguido, como impõe que se aplique retroactivamente as normas processuais materiais mais favoráveis (ou menos desfavoráveis) ao arguido. Por outro lado, quando as normas processuais materiais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicável “o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”. (…). “São exemplos de normas processuais materiais: normas relativas à natureza pública, semi-pública ou particular do ilícito criminal e, nomeadamente, normas que transformem um crime público em crime semi-público (…), normas relativas ao exercício, caducidade e desistência do direito de queixa e de constituição como assistente (…), normas relativas à prescrição do procedimento criminal e, nomeadamente, aos prazos, causas de interrupção e suspensão e efeitos da prescrição (…), normas relativas à aplicação, substituição e revogação de medidas de coacção, com a excepção do termo de identidade e residência (…), normas relativas ao ónus da prova (…), normas relativas à fundamentação das decisões (…), normas relativas à reformatio in pejus em recurso interposto apenas pelo arguido (…) e normas relativas à liberdade condicional e liberdade para prova (…) ou normas relativas à fixação do limite da pena aplicável no âmbito dos procedimentos sumários (…). Em qualquer um destes casos, a sucessão de leis no tempo é, pois, regida pelo artigo 29.º, n.º 4, da CRP (também neste sentido Fernanda Palma (…), concluindo que “ não deixa de se poder invocar directamente o artigo 29.º, n.º 4, a partir de um conceito amplo de leis penais, quando a lei nova interferir com uma posição processual do arguido, reconhecendo direitos essenciais à defesa que, em última análise, a não serem reconhecidos, poriam em causa uma condenação de acordo com o princípio da legalidade ou do processo justo e equitativo”)”. Mais à frente, no ponto 10, pág. 65, refere que “O artigo 5.º rege a sucessão de normas processuais proprio sensu. O CPP fixa um princípio de aplicabilidade imediata das normas processuais proprio sensu aos actos praticados nos processos pendentes após a entrada em vigor da lei nova e aos novos processos instaurados após a entrada da lei nova (concordando expressamente com esta doutrina, acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 4/2009…). A abordagem do tema na Jurisprudência
Para o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Junho de 1985, proferido no processo n.º 37 828-3.ª Secção, in BMJ n.º 348, pág. 280, O instituto do direito de queixa - condição objectiva de procedibilidade - é de natureza processual (aqui citando Luís Osório, Cavaleiro Ferreira, Eduardo Correia e Figueiredo Dias). Deste modo, a sua modificação é de aplicação imediata, visto ser de imediata aplicação a lei de processo. Este acórdão marca presença em vários Códigos anotados, havendo que ter em atenção o facto de ter sido lavrado no domínio do CPP de 1929. Então, como refere Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Almedina, 4.ª edição, 1980, págs. 23/4, era doutrina dominante a de que a lei processual penal só dispunha para o futuro, significando isto que se aplicava a todos os actos praticados na sua vigência, mesmo que o processo se tivesse instaurado ou a infracção tivesse sido cometida no domínio da lei antiga. Isto por se entender geralmente que o princípio da legalidade só tinha incidência substantiva e não processual, doutrina contestada por Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, págs. 111/2, para quem o princípio da legalidade é extensivo ao processo penal, concluindo que se não deve aplicar a nova lei processual penal a um acto ou situação processual que ocorra em processo pendente ou derive de um crime cometido no domínio da lei antiga, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido ou, em particular, uma limitação do seu direito de defesa. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Outubro de 1996, proferido no processo n.º 389/96, in CJSTJ 1996, tomo 3, pág. 177, versou caso em que em causa estava crime de burla dantes não dependente de queixa, mas exigida pela nova lei (então o n.º 3 do artigo 217.º do Código Penal de 1995), a qual foi entendida no acórdão recorrido como mero pressuposto processual não sujeita ao regime da aplicação das leis penais no tempo O STJ a partir da distinção entre normas processuais penais materiais e normas processuais formais considera a queixa e acusação particular como verdadeiros pressupostos adicionais da punição, convocando Taipa de Carvalho, em Sucessão de leis penais, a posição de Figueiredo Dias em 1993 em Direito Penal Português As consequências jurídicas do crime, e Cavaleiro Ferreira, este em Direito Penal, 1981, pág. 128, dando conta de adesão a esta posição por parte do STJ nos acórdãos de 4-10-1995 no recurso n.º 48.195, de 21-03-1996, no recurso n.º92/96 e de 20-06-1996, no recurso n.º 437/96. E do acórdão de 3-07-1985 (BMJ n.º 349, pág. 250), de que transcreve a seguinte passagem “Mas onde a doutrina dominante mais falha é em limitar a aplicação do art. 2.º, n.º 4 do C. Penal a normas incriminadoras e sancionatórias. Não é isso o que lá está: o preceito fala genericamente em “disposições penais”, aliás conforme o art. 29.º n.º 4 da Constituição que, também sem restrições, manda aplicar retroactivamente as “leis penais”, quaisquer que sejam, contanto que favoráveis ao arguido”. Fazendo aplicação desta posição o acórdão concluiu dever ser aplicado retroactivamente o Código Penal de 1995, por ser o regime que concretamente se mostrava mais favorável à arguida, não podendo na falta de queixa ser condenada pelos crimes de burla. Pode ler-se no sumário: “As normas processuais penais podem ter natureza material ou meramente formal, e as primeiras, para além de constituírem condições positivas de procedimento criminal, condicionam a responsabilidade penal, ou seja, produzem efeitos jurídico-materiais, pelo que, nessa medida, estão sujeitas aos princípios constitucionais de imposição da lei material mais favorável, contrariamente ao que ocorre com as normas processuais puramente formais, que estão sujeitas ao princípio da aplicação imediata da lei nova”. Para o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Janeiro de 1997, proferido no processo n.º 48.793, in CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 207, versando então caso de furto simples, passando o procedimento criminal a depender de queixa, a partir da revisão de 1995, a queixa, no ensinamento de Alimena, é uma condição objectiva de punibilidade, pois só com a sua ocorrência o legislador entende necessária a pena. O facto de a exigência da condição de punibilidade não ser posta para favorecer o réu, não impede que a situação que objectivamente dela resulta seja uma situação mais favorável para o transgressor da norma penal. O princípio constitucional da obrigatoriedade da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, expresso no n.º 4 do artigo 29.º da CRP e regulado no artigo 2.º do Código Penal (e não do Cód. Proc. Penal, como consta do texto) vale para todas as normas penais, quer materiais quer processuais, pois não há razões para restringir. Note-se que o art. 2.º do Cód. Penal tem a sua origem no Cód. Penal italiano, o qual, no entender de M. Leone (obra citada em Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, pág. 220) se aplica “não apenas à norma substantiva mas também a larga esfera de normas processuais que toca o interesse do arguido. Portanto, em abstracto, uma lei que transforme um crime público em semi-público, é mais favorável ao arguido que o anterior. E sê-lo-á em concreto se queixa não houve. No acórdão do STJ de 19 de Fevereiro de 1997, processo n.º 977/96, in CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 224, pode ler-se: “Com a entrada em vigor do CP/95 não se verificou uma descriminalização indirecta do crime de violação, que passou a ser crime semi-público, pois a queixa é uma mera condição de procedibilidade. Tendo os arguidos sido condenados, com trânsito em julgado, em 3-02-1994, pelo crime de violação, não pode ser agora declarado extinto o procedimento relativamente a esse ilícito, mesmo que tenha havido desistência de queixa anterior àquela condenação. Não é inconstitucional a excepção contida na parte final do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal. No acórdão de 19 de Março de 1997, proferido no processo n.º 192/97- 3.ª Secção, in CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 251 e BMJ n.º 472, pág. 413, pode ler-se: “Porque o crime de abuso de confiança simples passou a ter natureza de semi-público, três têm sido as soluções encontradas para os casos em que o procedimento for iniciado no domínio do CP de 1982: c) aguardar que no prazo de seis meses o ofendido, por sua iniciativa, venha ao processo declarar se deseja procedimento criminal. O acórdão de 11 de Fevereiro de 1998, proferido no recurso n.º 1418/97-3.ª Secção, in CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 197, aborda situação de sucessão de leis no tempo, em que o crime público de burla, dantes p. e p. pelo artigo 313.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, por força da revisão de 1995, passou a semi-público, nos termos do novo artigo 217.º, n.º 3 e em que há falta de queixa. O Ministério Público defendia a tese de que tendo sido denunciado o crime e ao abrigo da lei anterior, quando ainda não era exigível queixa, mantém-se a legitimidade do MP para prosseguir o procedimento criminal, embora a lei nova venha a entender que o referido crime depende de queixa do ofendido, assim se devendo interpretar o artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal. Consta do sumário: No caso de uma lei nova ter passado a considerar o crime que era público como semi-público, se o ofendido, titular do direito de queixa, não manifestou por qualquer forma a intenção de demandar criminalmente o arguido e o prazo para o fazer já expirou, falece legitimidade ao M.º P.º para continuar com a acção, o que conduz à extinção do procedimento criminal em relação a esse crime. De forma mais compreensiva, foi dito no texto do acórdão, após a transcrição do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal: “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente. Esta disposição legal transpõe para a lei ordinária o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, princípio consagrado no art. 29.º, n.º 4, da CRP. Ora, essa lei penal mais favorável, é alcançada através da própria lei penal, como por exemplo quando a moldura penal do ilícito é menor, e por vezes também através da lei processual penal quando este se integra em institutos que desencadeiam a aplicação daquele princípio como é o caso do instituto do direito de queixa, condição objectiva de procedibilidade (cfr. Prof. Figueiredo Dias in Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime, pág. 553; Dr. Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis Penais, págs. 209 e segs. e 242 e segs. e Prof Cavaleiro de Ferreira, in Lições de Direito Penal, vol. I, 4.ª edição, 1992, págs. 67/68). Conclui o acórdão que “In casu”, a ofendida, titular do direito de queixa, não manifestou por qualquer forma a intenção de demandar criminalmente a arguida pelo crime de burla e o prazo para o fazer já expirou, pelo que falece legitimidade ao M.º P.º para continuar com a acção contra a arguida, o que conduz à extinção do procedimento criminal em relação a esse crime”. No fundo, foi confirmada a improcedência do recurso. O acórdão de 7 de Julho de 1999, proferido no processo n.º 529/99-3.ª Secção, in CJSTJ 1999, tomo 2, pág. 248, abordando caso de violação e atentado ao pudor e depois em 1995, integrando abuso sexual de criança, segue de perto o acórdão de 29 de Janeiro de 1997, proferido no processo n.º 48.793, in CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 207, reafirmando que o princípio constitucional da obrigatoriedade de aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido vale para todas as normas penais, quer materiais quer processuais. Cotejando as diferenças de regimes de 1982 (crime público) para 1995 e 1998 (crime semi-público), refere que a intervenção do Ministério Público deixou de ser automática, não estando apenas dependente da idade, exigindo a lei, agora, ao Magistrado, que pondere a situação e equacione as vantagens e os inconvenientes apoiado em dados objectivos e que os expresse, para que se possa ajuizar se o interesse da vítima aconselha o desenvolvimento da acção. Do exame dos autos, não resulta que o Ministério Público tivesse feito qualquer ponderação alicerçada em factos objectivos, não referindo designadamente, porque relegou os titulares do direito de queixa – os referidos no n.º 3 do art. 113.º do Código Penal. Perante tal situação resulta que o Ministério Público não justificou a sua legitimidade para a acção, concordando o acórdão com o decidido na primeira instância - extinção por caducidade do direito de queixa dos ofendidos tendo o Ministério Público perdido a legitimidade para acompanhar o procedimento criminal. O Código Penal de 1995 é mais vantajoso para o arguido e daí ser o aplicável (art. 2.º, n.º 4, do Código Penal). Para o acórdão de 10 de Fevereiro de 2000, processo n.º 1156/99-3.ª, CJSTJ 2000, tomo 1, pág. 208, o artigo 178.º do Código Penal revisto tem de ser conjugado com o disposto no art. 113.º, n.º 5, do mesmo diploma. Tendo uma menor de 13 anos de idade sido violada pelo próprio pai, na altura o seu único legal representante conhecido, e tendo o M.º P.º tomado conhecimento dos factos na sequência de uma certidão de processo a correr termos no Tribunal de Menores, tem legitimidade para desencadear o processo criminal e exercer a acção penal, independentemente da apresentação de qualquer queixa e do regime que lhe corresponda (quer o da versão originária quer o da versão actual do CP). No caso versado no acórdão de 31 de Maio de 2000, proferido no processo n.º 272/2000-3.ª Secção, com o recurso do acórdão final subiu recurso de despacho que julgara irrelevante a desistência da queixa apresentada, durante a audiência de discussão e julgamento, pela mãe da menor ofendida. Em causa estava o quadro legal dos artigos 113.º, n.º 6 e 178.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro. Para além da contemplada no art. 113.º, n.º 5, a lei só previne a hipótese de, sendo o ofendido menor de 16 anos e impondo o seu interesse, objectivamente, o procedimento, a queixa não ser apresentada pelo seu representante legal (por razões necessariamente contrárias ou alheias ao interesse daquele), conferindo, então, a título excepcional, ao Ministério Público, apesar da natureza semi-pública do crime, o poder/dever de dar início ao processo (cfr. art.º 178.º, n.º 2). Mais à frente diz: a norma do n.º 2 do art. 178.º, por um lado, atribui relevância decisiva ao interesse da vítima menor de 16 anos, quando tal interesse, de um ponto de vista objectivo, impõe o procedimento, de tal forma que, sempre que se verifique, assim, esse interesse, o processo não pode deixar de iniciar-se ou de prosseguir, independentemente do representante legal não apresentar queixa ou de, tendo-a apresentado, desistir dela; por outro, confere ao Ministério Público o encargo de, a título subsidiário, promover a realização daquele interesse, iniciando ou fazendo prosseguir o procedimento”. Colocando a questão de saber qual a finalidade de ordem político-criminal que se persegue, adianta: “Sem dúvida, a de impedir situações de chocante impunidade, que justamente, por não estar justificada pela protecção do interesse da vítima, resulta, de todo em todo, socialmente intolerável (no mesmo sentido, Maria João Antunes, R.P.C.C., ano 9.º, 2.ª, pág. 327/8, e, a propósito do n.º 5, do art. 111.º do Anteprojecto de Revisão do Código Penal de 1982, Figueiredo Dias, “Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, M.J., 1993, pág. 100). Focando a fundamentação da decisão por parte do Ministério Público e a argumentação do acórdão de 7-07-1999, supra mencionado, refere o seguinte: “Porém, mesmo que se aceite a tese de que, certamente por se tratar de uma legitimidade de excepção, faltando a fundamentação da decisão de iniciar ou prosseguir o processo (entendida como ponderação da situação em geral e, de modo particular, das vantagens e inconvenientes para a vítima, a partir de dados objectivos), falta, em princípio, a legitimidade para o promover, afigura-se evidente que, sempre que sejam notórias as razões de facto em que se apoia o Ministério Público e a própria exigência do procedimento pelo interesse (objectivo) da vítima, a sua não especificação detalhada, só por si, nunca pode implicar, necessariamente, a ilegitimidade daquele”. Este acórdão foi objecto de “Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia” publicado em O Abuso Sexual de Menores com intervenção de Rui do Carmo, Isabel Alberto e Paulo Guerra, publicado pela Almedina, 2.ª edição, Março de 2006, a que acima já fizemos referência. O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 403/2007, de 11-07-2007, proferido no processo n.º 535/04, da 2.ª Secção, publicado in Diário da República, II Série, de 8-11-2007 e Acórdãos do Tribunal Constitucional (ATC), volume 69.º, pág. 557, estando em causa a questão de saber se releva a desistência da vítima ou representante legal em processo iniciado pelo Ministério Público, decidiu: Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal, interpretados no sentido de que, iniciado o procedimento criminal pelo Ministério Público por crimes de abuso sexual de crianças e de actos sexuais com adolescentes, independentemente de queixa das ofendidas ou seus representantes legais, por ter entendido, em despacho fundamentado, que tal era imposto pelo interesse das vítimas, a posterior oposição destas ou dos seus representantes legais não é suficiente, por si só, para determinar a cessação do procedimento. Na situação versada no acórdão do STJ de 9 de Abril de 2003, proferido no processo n.º 4628/02 - 3.ª Secção, apenas as mães das menores exerceram o direito de queixa desacompanhadas dos pais. Refere o acórdão que o artigo 113.º, n.º 4, do CP, de modo nenhum exige, determina ou mesmo reclama que tal queixa seja exercida pelos dois pais em conjunto, dado serem ambos representantes legais dos menores, estando em causa uma, pois a queixa é uma condição de procedibilidade, mera condição de procedibilidade processual, qualquer dos pais pode validamente apresentar queixa em nome do menor. “A constatação do interesse público na promoção do procedimento criminal não carece de ser expressamente declarada no processo pelo magistrado titular do mesmo”, sendo inquestionável e manifesto, como flui dos autos, que tal interesse se encontra bem sinalizado, e de uma forma claramente expressa, pela própria actuação em concreto do MP, a que não deixam de estar subjacentes razões bem notórias e mais do que evidentes para toda uma acção interventiva – neste aspecto cita o acórdão de 31-05-2000, proferido no processo n.º 272/00-3.ª – terminando por afirmar ser de todo inquestionável que assistiria legitimidade ao MP para promover o andamento do processo no quadro do art.º 178.º, n.º 2, do CP e 69.º da CRP, mesmo a não se ter por válidas as queixas deduzidas pela mães. acórdão tem voto de vencido quanto à auto-legitimação do Ministério Público. Para o acórdão do STJ de 22 de Outubro de 2003, processo n.º 2852/03-3.ª Secção, em caso de abuso sexual de adolescentes, sempre que o interesse do menor o justifique, nos termos do artigo 178.º, n.º 1, do CP, o Ministério Público pode dar início ao procedimento criminal, não carecendo o processado de ulterior ratificação pelo ofendido. “À questão da legitimidade “ad agendum” pertine o art.º 178.º, n.º 1, do CP, estabelecendo a natureza semi-pública do crime de actos homossexuais com adolescentes, fazendo depender, como princípio regra, o procedimento criminal da queixa, mas abrindo excepções. A queixa apresenta-se, então, como condição objectiva de punibilidade, exterior ao tipo legal, mas imprescindível ao desenrolar da acção penal; como limitação ao princípio da oficialidade, na medida em que o MP promove o exercício da acção penal depois de o ofendido lhe levar o conhecimento do facto criminoso ou depois de o ter feito perante entidade com o encargo legal de lho transmitir (…). Do artigo 178.º, n.º 4, na redacção dada pela Lei n.º 99/2001, de 25-08, correspondendo à anterior vertida no n.º 2 do preceito, decorre que pode o MP dar início ao procedimento criminal se o interesse da vítima o impuser. E acrescenta: “Na evolução da redacção do preceito, nota-se que na sua redacção inicial, se assiste à legitimação da intervenção, subsidiária, do M.P., quando especiais razões de interesse público o impusessem, para se fixar, nas duas formulações últimas, o apelo à ponderação do interesse da vítima, subalternizando-se o interesse público”. No caso o Ministério Público fundamentou o seu impulso processual em considerandos prévios à acusação. Respiga-se do acórdão de 10 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 617/08.5PAALGS.E2.S1, da 3.ª Secção: VIII - Os factos por que o arguido foi condenado, por abuso sexual de criança, tiveram lugar entre 2001 e 2002, tendo a menor D 9/10 anos, pois nascera em 07-01-1992. À data o crime, como regra, nos termos do art. 178.°, n.º 1, do CP, na redacção introduzida pela Lei 99/2001, de 25-08, tinha natureza semi-pública, o que limita o princípio da oficialidade ou promoção oficiosa pelo MP e o da imutabilidade da acusação pública, na medida em que pode haver desistência da queixa até publicação da sentença em 1.ª instância (arts. 116.º do CP e 51.° do CPP). IX - Excepcionava-se, então, de tal natureza, à luz do artigo e número citados, as hipóteses previstas nas als. a) e b), caso em que o crime assumia natureza pública, ou seja quando daí resultasse a morte ou suicídio da vítima ou quando, tendo o menor menos de 14 anos e o agente do crime tenha legitimidade para requerer procedimento criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou a tiver a seu cargo. Então a gravidade associada ao crime e a necessidade de não deixar impune o crime fundavam evidente interesse público, radicado no MP, no exercício da acção penal, substituindo-se ao titular natural, posto que inerte, do direito de queixa. X - De relevar, ainda, que aquele diploma, no seu n.º 4, na redacção daquela Lei, veio estabelecer – como o mesmo derivava já do n.° 2, em redacção anterior – que quando os crimes, entre os quais os de abuso sexual de criança (previsto no art. 171.° do CP) fossem cometidos contra menor de 16 anos, como era o caso da D, o MP pode dar início ao procedimento sempre que o interesse da vítima o impusesse. XI - E o art. 113.°, n.º 6, do CP, com o qual se harmoniza aquele preceito, veio estipular que, nos casos em que o procedimento depende de queixa, pode o MP, nos casos previstos na lei – o caso inserto no art. 178.°, n.º 4, do CP, é um deles – dar início ao procedimento criminal se especiais razões de interesse público o impuserem. XII - O MP não é titular dos especiais interesses de protecção da esfera da intimidade da vítima, mas, ao lado da consideração do interesse específico da vítima, alinha-se o evidente interesse público de protecção de crianças em razão da sua idade, fragilidade física e psíquica e do desinteresse ou impossibilidade da repressão penal manifestado pelo seu representante legal, legitimando que o MP exerça a acção penal. XIII - Esse interesse público em agir é corolário do crescente interesse colectivo reclamando protecção a esse segmento populacional, a que não é alheia a crescente prática de abuso sexual, o impacto condenatório da opinião pública, além da pressão internacional que se faz sentir. XIV - No contexto em que, como é o caso, o representante legal do menor não exerceu a acção penal, o MP estava legitimado para o efeito, para o que concorre a chocante consequência de deixar impune aquele que abusa sexualmente de criança de pouca idade, de 9/10 anos, mais fragilizada, ainda, por à data já lhe ter falecido a mãe. XV - A natureza pública que o crime passa a repercutir, se por um lado torna irretratável a posição do MP, também por via dessa natureza pública se torna inaplicável a norma do art. 115.° do CP, impondo que a queixa tenha de ser apresentada no prazo de 6 meses a contar do conhecimento do facto, pelo que improcede o argumento da caducidade do direito de queixa. XVI - Não deriva da lei que o MP tem o específico dever de fundamentar o despacho em que dá início ao processo, apenas sobre si recai a obrigação de fundamentar em geral os seus despachos, por força do art. 97.º, n.º 3, do CPP, mas a falta ou deficiente fundamentação não é sindicável pelo juiz, nem na altura do recebimento da acusação nem posteriormente, nem sequer integrando ilegitimidade, isso não invalidando que o Tribunal, se verificada por outras razões, decrete essa excepção dilatória, de conhecimento oficioso, nos termos dos arts. 331.º e 338.º do CPP. XVII - As razões em que aquela especial posição, face ao objecto do pleito, se funda, tanto podem ser expressas como tacitamente derivarem do processo, este será o caso em que esse condicionalismo resulta notoriamente justificado, sem necessidade de especificação detalhada.
A queixa na doutrina
Segundo Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, I, 1996, págs. 240/1 “São várias as razões de política criminal que levam o legislador a exigir que para haver procedimento criminal seja necessária a queixa ou acusação particular dos ofendidos, nuns casos, e a não as exigir noutros. São razões atinentes à gravidade das infracções, umas vezes à natureza dos interesses ofendidos, outras, às consequências para o próprio ofendido de existência de um processo crime, donde pode resultar que a publicidade inerente agrave o dano que o crime lhe causou, etc. O critério para a distinção dos crimes em públicos, semipúblicos e particulares é essencialmente pragmático”. Eduardo Correia, Processo Criminal, pág. 252, afirmava que nos casos de crimes semi-públicos «o legislador fixou semelhante regime tendo em atenção a natureza especial das infracções, nas quais o interesse público a defender e a realizar pelo Direito Criminal não se pode identificar totalmente com o exclusivo interesse da punição, antes obterá o seu critério de equação deste último com interesses de outra espécie, sobretudo de ordem moral e de defesa da família, da honra do ofendido, do próprio infractor, etc.».
Segundo Henriques Gaspar no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 181, em comentário ao artigo 49.º, “A titularidade da acção penal, com a consequente legitimidade para promover o processo penal, constitui a mais relevante das funções do MP. Mas em certas circunstâncias, por motivos de política criminal, o exercício da acção penal depende da verificação de pressupostos que constituem condições de integração da legitimidade do MP. A norma enuncia uma das circunstâncias em que a legitimidade do MP e o consequente exercício da acção penal dependem da comunicação do facto pelo ofendido ou por outras pessoas: «quando o procedimento criminal depender de queixa»; os crimes em que o procedimento depende de «queixa» são indicados na lei penal substantiva, pela definição das condições de procedimento relativamente a alguns tipos penais. “A noção de «queixa» tem conteúdo e natureza processual específicos; não constitui, como a denúncia, a simples transmissão do facto com relevância criminal, isto é, não constitui processualmente queixa uma simples declaração de ciência feita acerca de um facto. A queixa exige que se manifeste nessa declaração uma vontade específica de perseguição criminal pelo facto, e distingue-se nos seus elementos da denúncia; na queixa, além da declaração de ciência na transmissão da ocorrência de um facto, exige-se ainda «uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra o agente». A «queixa» constitui uma declaração de vontade e uma específica forma de comunicação da notícia de um crime no sentido dos artigos 241.º e seguintes; para efeitos de procedimento criminal, como condição de integração e pressuposto da legitimidade do MP para promoção do processo, tem de ser formulada pelo «titular do respectivo direito», que pode agir por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais (…). A queixa é um acto para exercício de um direito pessoal.
Para Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, UCE, Lisboa, 2010, pág. 365 (pág. 319 da edição de 2008), comentando o artigo 113.º, a queixa é um pressuposto positivo da punição. E na pág. 366, nota 12, afirma que “O juízo do Ministério Público [sobre o interesse do ofendido] não é sindicável pelo juiz, nem antes do recebimento da acusação, nem no momento da prolação do despacho de recebimento da acusação, nem em momento posterior”, posição que volta a assumir na nota 13. Paulo Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 4.ª edição actualizada, Abril de 2011, pág. 150, em comentário ao artigo 49.º, afirma: “A queixa pode manifestar-se por qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um determinado facto”.
Comentando o artigo 113.º do Código Penal M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio in Código Penal Parte geral e especial, Almedina, 2014, dizem a págs. 451, ponto 4, que a queixa distingue-se da denúncia e da acusação particular. A queixa envolve o procedimento por crimes semipúblicos e particulares e contém, além de uma declaração de ciência (como na denúncia), ainda uma manifestação de vontade de que se proceda criminalmente contra alguém. E no ponto 6 “A natureza jurídica da queixa é discutida, prevalecendo a teoria mista, que lhe atribui a dupla natureza de simples pressuposto processual e características jurídico-materiais”.
Revertendo ao caso concreto.
Tendo em conta os crimes cometidos entre Março de 2004 e 2007 (data anterior a 15 de Setembro) era aplicável a lei em vigor à data, ou seja, a versão dada pela Lei n.º 99/2001 ao artigo 178.º, maxime, n.º 4 e o disposto no artigo 113.º, como aquele do Código Penal, sendo este na redacção de 1995, complementada pela de 1998, que, como vimos, aditou o n.º 6. Sendo fora de dúvida inaplicável o regime da Lei n.º 59/2007, por mais gravoso para o arguido, o quadro normativo a ter em conta era constituído pelo artigo 113.º do Código Penal, na redacção de 1995, com o aditamento do n.º 6 em 1998 e pelo artigo 178.º, na formulação introduzida pela Lei n.º 99/2001 e em que o n.º 4 reproduz o que já constava do n.º 2 da versão de 1998, ou seja, no caso de crime praticado contra menor de 16 anos pode o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser. O n.º 2 e depois o n.º 4 do artigo 178.º é um dos “casos previstos na lei” da possibilidade do Ministério Público dar início ao processo a que alude o n.º 6 do artigo 113.º (o outro reportado aos maus tratos deixou de fazer sentido a partir de 2000, pois o crime passou a ter natureza pública). Assim, o quadro legal aplicável é o seguinte: Artigo 113.º (Titulares do direito de queixa) 1 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. 2 – Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence sucessivamente às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime: 3 – Se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa, este pertence ao representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas nas alíneas do número anterior, segundo a ordem aí referida, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime. 4 – Qualquer das pessoas pertencentes a uma das classes referidas nos n.ºs 2 e 3 pode apresentar queixa independentemente das restantes. 5 – Quando o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas, no caso, ao agente do crime, pode o Ministério Público dar início ao procedimento se especiais razões de interesse público o impuserem. 6 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, o Ministério Público pode, nos casos previstos na lei, dar início ao procedimento quando o interesse da vítima o impuser. (Aditado pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro). Artigo 178.º (Queixa) 1 – O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 167.º, 168.º, e 171.º a 175.º depende de queixa, salvo nos seguintes casos: a) Quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da vítima; b) Quando o crime for praticado contra menor de 14 anos e o agente tenha legitimidade para requerer procedimento criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou a tiver a seu cargo. 2 – Nos casos previstos na alínea b) do número anterior, pode o Ministério Público decidir-se pela suspensão provisória do processo, tendo em conta o interesse da vítima, ponderado com o auxílio de relatório social. 3 – A duração da suspensão pode ir até ao limite máximo de 3 anos, após o que há lugar a arquivamento, em caso de não aplicação de medida similar por infracção da mesma natureza ou de não sobrevir naquele prazo queixa por parte da vítima, nos casos em que possa ser admitida. 4 – Sem prejuízo do disposto nos n.º 2 e 3, e quando os crimes previstos no n.º 1 forem praticados contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser. O acórdão do Colectivo de Vila Nova de Gaia abordou como questão prévia a questão da ilegitimidade do Ministério Público, a fls. 771 e verso, nestes termos:
“Questão prévia: Suscitou o arguido AA na sua contestação a falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal quanto aos crimes de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelo artºs 171°, nº 1, e 177°, nº 1, al. b) do CP, e quanto aos crimes de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo art° 173°, nº 1, do CP, que lhe são imputados na acusação pública. Sustenta que, tratando-se de crimes semi-públicos - quanto aos crimes de abuso sexuais de crianças por ser aplicável a redacção do Código Penal anterior à alteração efectuada pela Lei 59/07 - inexiste queixa validamente apresentada (não tendo para este efeito relevância a declaração da mãe da menor no sentido de desejar procedimento criminal, uma vez que, posteriormente, foi constituída arguida e acusada, estando assim impedida de representar a menor) e deste modo o Ministério Público só tinha legitimidade para a acção penal se o interesse da vitima o impusesse, sendo certo que no caso em apreço o Ministério Público não consignou expressamente as razões objectivas que levaram à sua intervenção no interesse da vítima. Vejamos:
De acordo com a redacção conferida ao artº 178° do CP pela Lei 99/2001, de 25 de Agosto, o procedimento criminal pelos crimes previstos nos artºs 163° a 165°, 167° e 171° a 175° dependia de queixa, salvo nos casos previstos nas alíneas do nº 1, podendo, porém, nos termos do nº 4 do mesmo normativo, o Ministério Público, dar inicio ao procedimento criminal sempre que o interesse da vitima o impusesse. Posteriormente, a Lei 59/07, de 4.09, entrada em vigor em 15.09.07, alterou, entre outros preceitos, o art° 178°, excluindo a necessidade de direito de queixa no que se refere ao crime de abuso sexual de criança. Já no que tange ao crime de acto sexual com adolescente, previsto no art° 173° do CP, o procedimento criminal continua, face à redacção actual, introduzida por aquela lei, a depender de queixa, salvo se dela resultar suicídio ou morte da vitima. Todavia, se o ofendido for menor, o Ministério Público pode dar inicio ao procedimento criminal, no prazo de seis meses a contar da data em que tiver conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse do ofendido o aconselhar - art° 133°, nº 5, do CP. Relativamente aos crimes de abuso sexual de crianças imputados e que a acusação situa entre 2004 e 2007, é aplicável, tal como sustenta o arguido, a redacção do art° 178° do CP em vigor ao tempo, por conseguinte, a redacção anterior à Lei 59/07, de 4.09, nos termos do disposto no art° 2° do Código Penal, uma vez que esta veio a consagrar um regime objectivamente mais desfavorável ao arguido. Todavia, quer relativamente a estes crimes, quer relativamente aos crimes de actos sexuais com adolescentes, o certo é que direito de queixa foi exercido por legal representante da menor e, por outro lado, ainda que o não tivesse sido, é manifesto o interesse da vitima no exercício da acção penal e a consequente legitimidade do Ministério Público também por essa via. Com efeito, a mãe da menor ofendida declarou nos autos, na fase de inquérito, em representação da menor, desejar procedimento criminal contra o arguido. Esta declaração da mãe da menor - ao tempo menor de 16 anos - conferia ao Ministério Público, nos termos do disposto no art.° 113°, nº 1 e 3, do CP, a legitimidade de desencadear a acção penal, independentemente da aplicação do nº 4 do art,º 178° na redacção anterior à lei 59/07. A validade e eficácia da queixa apresentada pela mãe da menor, em representação desta, tem ser apreciada face à situação existente à data em que o direito de queixa é exercido e nessa data inexistia qualquer impedimento para que fosse considerado exercido validamente o direito de queixa por forma a que o Ministério Público iniciasse e prosseguisse o procedimento criminal, sem necessidade de fundamentar a sua intervenção no interesse da vitima. A circunstância de posteriormente a mãe da menor ter sido constituída arguida nos autos e ter sido acusada, não retira eficácia à queixa que oportunamente apresentou. Acresce, por outro lado, que dos elementos dos autos resulta manifesto o interesse da menor ofendida na instauração e desenvolvimento do procedimento criminal, considerando designadamente a natureza e gravidade e período temporal dos actos em causa, as relações familiares e de proximidade entre o arguido e a ofendida, a inserção da ofendida num agregado familiar instável, de fracos recursos económicos e com uma relação de dependência económica do arguido, a ausência de familiares que, antes de os factos terem sido denunciados, hajam adoptado medidas de protecção da menor, incluindo os seus progenitores, vindo a mãe, aliás, a ser constituída arguida e a ser acusada por cumplicidade. De todo o modo, a própria vítima, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, ao declarar ser de sua vontade o prosseguimento do procedimento criminal, confirmou a verificação daquele fundamento. Improcede, assim, pelas razões atrás explicitadas a excepção de ilegitimidade do Ministério Publico para o exercício da acção penal, quer quanto aos crimes de abuso sexual de criança previstos á data no artº 172°, nº 1, e actualmente no artº 171°, nº 1, do C.P., quer quanto aos crimes de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo artº 173°, nº 1 e 2 do CP.”. Analisando. Os presentes autos iniciaram-se com o envio pela GNR de Vila Nova de Gaia de um auto de denúncia datado de 29-11-2013, o qual teve por base uma participação elaborada no dia anterior por professora na Escola EB 2/3 Padre António Luís Moreira, nos Carvalhos, então frequentada pela CC, que à data contava 15 anos de idade. Em 5-12-2013, os Serviços do Ministério Público de Vila Nova de Gaia remeteram participação à Presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco a fim de ser instaurado processo de promoção e protecção relativo à menor CC. Em 11-12-2013 o Ministério Público em primeira intervenção proferiu despacho declarando a especial prioridade do processo, solicitando à PJ informação sobre se já iniciara a investigação dos factos denunciados. Ouvida em 6-12-2013, uma Técnica Superior de Educação na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco de Vila Nova de Gaia Sul relata que no dia 5-12-2013 fora informar a progenitora da ofendida na residência desta que a menor estaria a ser abusada sexualmente por um adulto, constatando com admiração que aquela não esboçou qualquer sinal de “repulsa, estranheza, emoção, indignação, etc) – fls. 34/5. A menor foi institucionalizada - fls. 36. Ouvida em 6 de Dezembro de 2013 (fls. 49), a mãe da menor comunicou desejar procedimento criminal contra o autor dos factos denunciados. A acusação foi deduzida em 4-06-2014, sendo certo não ter o Ministério Público proferido despacho a justificar o início do processo.
A queixa apresentada pela mãe da menor.
A declaração de procedimento criminal teve lugar no início do processo, a escassos sete dias do auto de denúncia. A validade e eficácia da queixa apresentada pela mãe da menor, em representação desta, foi questão abordada no acórdão recorrido. Pronunciou-se, a fls. 771 verso, no sentido de que “tem ser apreciada face à situação existente à data em que o direito de queixa é exercido e nessa data inexistia qualquer impedimento para que fosse considerado exercido validamente o direito de queixa por forma a que o Ministério Público iniciasse e prosseguisse o procedimento criminal, sem necessidade de fundamentar a sua intervenção no interesse da vítima. A circunstância de posteriormente a mãe da menor ter sido constituída arguida nos autos e ter sido acusada, não retira eficácia à queixa que oportunamente apresentou”. Por a mãe da menor ter tido comparticipação nos factos entende o recorrente tratar-se de algo surreal e inaceitável conferir valor a tal declaração - conclusão 29.ª A declaração de procedimento criminal é aferida no contexto do momento em que é feita e nessa altura, pelos elementos disponíveis nos autos, não se divisava que o caso viesse a ter os contornos e os desenvolvimentos que efectivamente teve. Mas mesmo que assim se não entendesse, sempre se dirá que o quadro fáctico ulterior, que veio a ser conhecido, justifica a intervenção do Ministério Público. Os dados objectivos presentes no terreno indicavam que a menor tinha sido abusada sexualmente desde os seis anos de idade até aos quinze pelo arguido, seu tio, e os desenvolvimentos posteriores vieram confirmar a justeza da ponderação e a necessidade da intervenção oficiosa, acabando a menor por ser retirada da sua família com rumo à institucionalização, tendo sido acolhida em instituição situada na área de Póvoa de Varzim. O pai da menor nunca apareceu nem foi ouvido, havendo a notícia de que quando alcoolizado verbalizava que a menor “tinha relações com o tio”. Pelo que consta dos autos terá sido um pai absolutamente ausente, que não manifestou mínimo interesse pela situação da filha.
O artigo 113.º, n.º 6, do Código Penal, veio estipular que, nos casos em que o procedimento depende de queixa, pode o Ministério Público, nos casos previstos na lei - o caso inserto no artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, é um deles – dar início ao procedimento quando o interesse da vítima o impuser. Como vimos, considerou o acórdão de 31-05-2000, processo n.º 272/00-3.ª, que sempre que sejam notórias as razões de facto em que se apoia o Ministério Público e a própria exigência do procedimento pelo interesse (objectivo) da vítima, a sua não especificação detalhada, só por si, nunca pode implicar, necessariamente, a ilegitimidade daquele”. E como se extrai do acórdão de 10-10-2012, proferido no processo n.º 617/08.5PAALGS.E2.S1, da 3.ª Secção “Não deriva da lei que o MP tem o específico dever de fundamentar o despacho em que dá início ao processo, apenas sobre si recai a obrigação de fundamentar em geral os seus despachos, por força do art. 97.º, n.º 3, do CPP, mas a falta ou deficiente fundamentação não é sindicável pelo juiz, nem na altura do recebimento da acusação nem posteriormente, nem sequer integrando ilegitimidade, isso não invalidando que o Tribunal, se verificada por outras razões, decrete essa excepção dilatória, de conhecimento oficioso, nos termos dos arts. 331.º e 338.º do CPP. As razões em que aquela especial posição, face ao objecto do pleito, se funda, tanto podem ser expressas como tacitamente derivarem do processo, este será o caso em que esse condicionalismo resulta notoriamente justificado, sem necessidade de especificação detalhada. Para Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, UCE, Lisboa, 2010, comentando o artigo 113.º, na pág. 366, nota 12, afirma que “O juízo do Ministério Público [sobre o interesse do ofendido] não é sindicável pelo juiz, nem antes do recebimento da acusação, nem no momento da prolação do despacho de recebimento da acusação, nem em momento posterior”, posição que volta a assumir na nota 13.
No contexto da situação presente é evidente, patente e notório que o interesse da menor CC reclamava pronta actuação do Ministério Público, estando legitimada a sua intervenção, o que resulta da situação com os contornos desenhados, sem necessidade de despacho prévio a fundamentar a tomada de posição. Todas as diligências efectuadas pelo Ministério Público contêm, implicitamente, fundamentos sobejos para justificar o exercício da acção penal. Conclui-se que o Ministério Público é parte legítima, improcedendo as conclusões 1.ª a 35.ª. Questão II – Ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, relativamente aos crimes de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada
A questão é suscitada pelo recorrente nas conclusões 36.ª a 66.ª, alegando não estar a legitimidade do Ministério Público integrada por queixa (conclusão 46.ª), repetindo o argumentário já presente na anterior conclusão 29.ª (ora conclusão 55.ª) no sentido de a queixa da progenitora ser surreal e inaceitável e, no geral, repete os argumentos constantes das conclusões 24.ª, 25.ª, 26.ª, 27.ª, 28.ª, 29.ª, 30.ª, 31.ª, 32.ª, 18.ª, 19.ª, 20.ª, 34.ª e 35.ª. Em causa a condenação do arguido – ponto 7 do dispositivo do acórdão recorrido – pela prática de um crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 173.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, tratando-se da situação referida na fundamentação de direito na alínea g), a fls. 780 verso, e correspondente aos Factos Provados n.º 9 (definição das condutas do arguido) e n.º 10 (quanto ao tempo da respectiva prática). A menor CC tinha então entre 14 e 15 anos, situando-se os factos entre 24 de Março de 2012 e Outubro de 2013, conforme a parte final do FP 10. O acórdão recorrido abordou a questão na citada “Questão prévia” de que se respiga a seguinte passagem apenas para efeitos de enquadramento: “Já no que tange ao crime de acto sexual com adolescente, previsto no art° 173° do CP, o procedimento criminal continua, face à redacção actual, introduzida por aquela lei [Lei n.º 59/2007, de 04-09], a depender de queixa, salvo se dela resultar suicídio ou morte da vítima. Todavia, se o ofendido for menor, o Ministério Público pode dar início ao procedimento criminal, no prazo de seis meses a contar da data em que tiver conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse do ofendido o aconselhar - art° 133°, nº 5, do CP”. A referência ao artigo 133.º dever-se-á a lapso de escrita, pois terá querido referir-se o artigo 113.º. Após referir a queixa apresentada pela mãe da menor e sua validade, acrescentou o acórdão recorrido: “De todo o modo, a própria vítima, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, ao declarar ser de sua vontade o prosseguimento do procedimento criminal, confirmou a verificação daquele fundamento”.
O recorrente invoca na conclusão 66.ª os artigos 113.º e 178.º, n.º 3, do Código Penal, devendo entender-se a menção do n.º 3 como lapso de escrita, pretendendo referir-se ao n.º 2, que dispõe que o procedimento criminal pelo crime previsto no artigo 173.º depende de queixa, salvo se dele resultar suicídio ou morte da vítima.
A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, entrada em vigor no dia 15 seguinte, alterou os artigos 113.º e 178.º do CPP, que passaram a estabelecer:
Artigo 113.º (Titulares do direito de queixa) 1 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. 2 – Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime: 3 – Qualquer das pessoas pertencentes a uma das classes referidas nas alíneas do número anterior pode apresentar queixa independentemente das restantes. 4 – Se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa, este pertence ao representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas nas alíneas do n.º 2, aplicando-se o disposto no número anterior. 5 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, o Ministério Público pode dar início ao procedimento no prazo de seis meses a contar da data em que tiver conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse do ofendido o aconselhar e: a) Esta for menor ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa; ou b) O direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas ao agente do crime. 6 – Se o direito de queixa não for exercido nos termos do n.º 4 nem for dado início ao procedimento criminal nos termos da alínea a) do número anterior, o ofendido pode exercer aquele direito a partir da data em que perfizer 16 anos. Artigo 178.º (Queixa) 1 – O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 170.º depende de queixa, salvo se forem praticados contra menor ou deles resultar suicídio. 2 – O procedimento criminal pelo crime previsto no artigo 173.º depende de queixa, salvo se dele resultar suicídio ou morte da vítima. 3 – Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravados pelo resultado, o Ministério Público, tendo em conta o interesse da vítima, pode determinar a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que não tenha sido aplicada anteriormente medida similar por crime da mesma natureza. 4 – No caso previsto no número anterior, a duração da suspensão pode ir até cinco anos.
Como já vimos, a mãe da menor declarou desejar procedimento criminal contra o arguido, anotando-se que de acordo com a nova redacção do n.º 2 do artigo 113.º do Código Penal, está afastada a intervenção de comparticipante em via supletiva, mas no caso de o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela.
Por outro lado, de acordo com o n.º 5, alínea a), do artigo 113.º do Código Penal, dependendo o procedimento criminal de queixa, como é o caso, o Ministério Público pode dar início ao procedimento no prazo de seis meses a contar da data em que tiver conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse do ofendido (maxime, se for menor, como é o caso) o aconselhar. Mesmo que se entendesse que o direito de queixa não foi exercido e figurando-se ainda que não tivesse sido dado início ao procedimento criminal nos termos da alínea a) do n.º 5, e tal ocorreu, ainda haveria uma outra via de conferir legitimidade ao Ministério Público.
Prevenindo tais quadros, estabelece o n.º 6 do artigo 113.º do Código Penal que o ofendido pode exercer o direito de queixa a partir da data em que perfizer 16 anos. [6 – Se o direito de queixa não for exercido nos termos do n.º 4 nem for dado início ao procedimento criminal nos termos da alínea a) do número anterior, o ofendido pode exercer aquele direito a partir da data em que perfizer 16 anos]. Prescreve o n.º 2 do artigo 115.º do Código Penal que o direito de queixa previsto no n.º 6 do artigo 113.º extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o ofendido perfizer 18 anos. Pois bem. Em derradeira via, haverá que ter em conta o que se passou na audiência de julgamento de 6 de Outubro de 2014 (tinha então a menor CC perfeito os 16 anos em 24 de Março anterior), em que a menor CC respondeu afirmativamente à pergunta se desejava procedimento criminal contra o tio. Respigando de novo o afirmado no acórdão recorrido na “Questão prévia”: “De todo o modo, a própria vítima, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, ao declarar ser de sua vontade o prosseguimento do procedimento criminal, confirmou a verificação daquele fundamento”. Não estivesse já assegurada a legitimidade do Ministério Público e tal declaração conferiria a presença do pressuposto. Concluindo: Improcedem as conclusões 36.ª a 66.ª apresentadas pelo recorrente.
Questão III – Determinação do número de crimes praticados
Ao longo das conclusões 67.ª a 79.ª bate-se o recorrente pela unificação das condutas dadas por provadas, pretendendo a integração das plúrimas condutas na figura de crime único, fora do quadro de continuação criminosa e de relação concursal efectiva. Invoca o recorrente que objectivamente não se terá determinado o número de vezes que a sua conduta preencheu cada um dos ilícitos em causa, sendo de distinguir dois períodos temporais distintos, sendo um de 2004 a 2007 e outro entre Agosto de 2010 e Outubro de 2013, defendendo que deveria ter sido condenado, não por sete, mas por três crimes, tal como assinala na conclusão 73.ª: - Um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal (abrangendo factos anteriores a Setembro de 2007, quando a vítima CC tinha 6, 7 e 8 anos de idade); - Um crime de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (abrangendo factos posteriores a 15-9-2007, mais concretamente entre Agosto de 2010 e 23-03-2012, tendo a ofendida CC 12 e 13 anos de idade); - Um crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, p. p. pelos artigos 173.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (abrangendo factos praticados entre 24-03-2012 e Outubro de 2013, contando então a ofendida 14 e 15 anos de idade).
Refere o recorrente na conclusão 79.ª a integração das várias condutas, a exemplo do que acontece com o crime de tráfico de estupefacientes, nas categorias de crimes “prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo”. (A designação, como se verá, consta do acórdão do STJ, de 29-11-2012, proferido no processo n.º 862/11.6TDLSB.P1.S1, da 5.ª Secção).
A questão colocada reconduz-nos à problemática da verificação de concurso real ou efectivo de crimes, ou de crime único, de trato sucessivo. Como se verá, a questão da pretendida unificação só se coloca em relação aos abusos sexuais de criança, já que os vários actos sexuais com adolescente, em número superior a quatro, configuram na opção subsuntiva assumida pelo acórdão recorrido apenas um crime.
Objecto de análise será a questão de saber se a matéria de facto dada por definitivamente assente comporta a integração das condutas provadas na figura do crime único, mais concretamente, de três crimes únicos, como pretende o recorrente, ou antes na pluralidade de crimes, em concurso real/efectivo, como considerou o acórdão recorrido, embora com as nuances redutoras/unificadoras que se analisarão. ****** Como referimos nos acórdãos de 13 de Julho de 2011, processo n.º 451/05.4JABRG.G1.S1, de 31 de Janeiro de 2012, processo n.º 2381/07.6PAPTM.E1.S1, de 12 de Setembro de 2012, processo n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1 e no voto de vencido declarado no acórdão de 13 de Julho de 2011, no processo n.º 1659/07.3GTABF.S1, relativo a acidente rodoviário com resultados múltiplos (morte e ofensas corporais), publicado in CJSTJ 2011, tomo 2, págs. 210 a 241, maxime, págs. 224 a 241: “A distinção entre unidade e pluralidade de crimes é decisiva na determinação das consequências jurídicas do facto, para efeito de punição do agente, sabido que no caso de concurso de crimes cabe a aplicação do critério especial de determinação da pena constante do artigo 77.º, extensível, nos termos do artigo 78.º, ao caso de superveniência de conhecimento da existência de relação concursal, cabendo ainda em caso de unificação do concurso, como crime continuado, tratado como uma situação ou caso de unidade de infracção, ou seja, como um só crime, um outro critério especial, este de privilegiamento punitivo, do artigo 79.º, sendo o crime punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação, podendo em certos casos, considerar-se ainda, num diverso plano, a existência de um único crime, a punir nos termos do critério geral do artigo 71.º, como os demais do Código Penal. Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Junho de 1986, proferido no processo n.º 38.292, publicado no BMJ n.º 358, pág. 267, a realização plúrima do mesmo tipo legal pode constituir: a) Um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) Um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para reiteração das condutas; c) Um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.
A regra é a de que, sendo vários os preceitos violados, ou sendo o mesmo preceito objecto de plúrimas violações, haja uma pluralidade de crimes; esta pluralidade só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas, seja como crime continuado, ou ainda fora dos quadros do artigo 30.º, como único crime (acórdão de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3.ª, configurando em caso específico de tráfico de estupefacientes, actividade contemplada por caso julgado anterior), ou como crime de trato sucessivo, como é ponderado a nível de situações de tráfico de estupefacientes (v. g., acórdão de 17-12-2009, processo n.º 11/02.1PECTB-5.ª), ou de infracções fiscais ou contra a segurança social, que se protraem por períodos mais ou menos longos (neste tipo foi já considerada a figura denominada de “infracções contínuas sucessivas” no acórdão de 18-12-2008, processo n.º 20/07-5.ª), ou mesmo em caso de burla qualificada e falsificação de documento (acórdão de 21-02-2008, processo n.º 2035/07-5.ª), tendo sido assim qualificados alguns casos de abusos sexuais de crianças, como veremos infra, solução que, segundo Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, UCE, 2.ª edição, 2010, pág. 162, será de afastar, a partir da Lei n.º 40/2010, de 03-09, por estarem em causa bens eminentemente pessoais, afirmando que no caso da sucessão de vários crimes contra bens eminentemente pessoais, deve punir-se as condutas do agente em concurso efectivo.
A matéria de concurso de crimes não é tratada no artigo 30.º do Código Penal de forma abrangente e esgotante, na medida em que as soluções indicadas no preceito se limitam a estabelecer um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, tratando-se de um ponto de partida estabelecido pelo legislador, a partir do qual à doutrina e à jurisprudência, caberá em última análise, encontrar soluções adequadas, tendo em vista a multiplicidade de casos e situações que se prefiguram e que ocorrem na vida real (assim acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-01-2006, processo n.º 3671/03-3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 159, que aborda a temática da distinção entre crime continuado e crime único, num caso de falsificação de três cheques para aquisição de produtos alimentares em hipermercado). Aliás, note-se que de acordo com a epígrafe do artigo 30.º, inserto no capítulo relativo a “Formas do crime” – cfr. Capítulo II do Título II – na perspectiva de unidade/pluralidade de infracções, só haveria lugar ao concurso de crimes e ao crime continuado, não albergando o preceito, por exemplo, as hipóteses de crime único, que o Código Penal de 1886 previa no § único do artigo 421.º para o crime de furto. Relembrando o preceito, após no corpo escalonar as penalidades de acordo com os valores da coisa furtada (mais tarde actualizados pela Lei n.º 27/81, de 22 de Agosto), dispunha no § único “Considera-se como um só furto o total das diversas parcelas subtraídas pelo mesmo indivíduo à mesma pessoa, embora em épocas distintas”. Há outras figuras de lesividade múltipla ou repetida de bens jurídicos com tutela jurídico-criminal, que se não contêm na dicotomia prevista no artigo 30.º - “Concurso de crimes e crime continuado”. Isto é, para além do concurso de crimes, a punir nos termos dos artigos 77.º e 78.º, e do crime continuado, a punir de acordo com o artigo 79.º do Código Penal, há toda uma gama de situações da vida real a demandar uma específica regulamentação. Estabelecendo um critério, assumidamente distintivo, o artigo 30.º contém a indicação de um princípio geral de solução da problemática do concurso de crimes, sendo também uma base de trabalho, a partir da qual há que olhar outras dimensões de violações de bens jurídicos, que ficam de fora, não estando abrangidos outros casos e situações que ocorrem no dia a dia, apresentando dificuldades de integração por exemplo as hipóteses de crimes culposos emergentes de acidentes de viação, sabido que o critério vale fundamentalmente para os crimes dolosos e mesmo nestes o critério não esgota todas as formas, todos os modos de execução do tipo legal.
Volvendo ao caso concreto.
Vejamos a situação em equação, tendo presente que em causa estão bens eminentemente pessoais, cabendo indagar se estamos perante crime único decorrente de uma só intenção criminosa, um crime de execução continuada, ou concurso real de infracções, sabido que a hipótese de crime continuado não foi aventada pelo recorrente. Antes de avançarmos, dir-se-á que neste plano do tratamento subsuntivo há que ter em atenção que muitas das vezes, a qualificação jurídica não é questionada pelo recorrente, o que bem se compreende nos casos em que beneficia da opção tomada na condenação, como acontece com o crime continuado. Nesses casos o objecto do recurso cinge-se à medida da pena. Acresce que raramente o Ministério Público questiona a qualificação jurídica. Por outro lado, as soluções jurisprudenciais têm muitas vezes a ver com a circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça entender ser de intervir oficiosamente ou não em sede de qualificação jurídica. Não intervindo, analisando apenas as questões que integram o âmbito do recurso, subsistem as figuras do crime de trato sucessivo ou de crime continuado assumidas na primeira instância. Intervindo de modo oficioso e operando a alteração, fica o registo da intervenção, mas necessariamente sem reflexos na aplicação da pena, face ao disposto no artigo 409.º do Código de Processo Penal.
Neste contexto, referir-se-á que foi requerida já uniformização de jurisprudência em sede de qualificação jurídica, tendo sido interposto recurso extraordinário para que se considerasse haver um só crime continuado e não, como foi condenado o recorrente no acórdão recorrido, por tantos crimes de abuso sexual de crianças quantas as suas condutas contra a mesma ofendida, tendo sido decidida no caso concreto a não verificação de oposição de julgados. Lê-se no acórdão de 3-07-2014, proferido no processo n.º 1431/11.6PEAVR.C1-A.S1, da 5.ª Secção “O silêncio do acórdão fundamento sobre a qualificação jurídica dos factos não significa necessariamente a sua concordância com o decidido em 1.ª instância e mantido na Relação. Questionada apenas medida da pena, a alteração oficiosa para concurso real não teria tradução na medida da pena por respeito ao princípio da proibição da reformatio in pejus por não integrar o objecto de recurso”.
A figura do crime único, de trato sucessivo.
Na Doutrina, a propósito de unificação de conduta, pode ler-se em Hans Heinrich Jescheck, Tratado, Parte General, 4.ª edição, pág. 648: “Deve ter-se por verificada uma acção unitária quando os diversos actos parcelares correspondem a uma única resolução de vontade e se encontrem tão vinculados no tempo e no espaço que para um observador não interveniente são tidos como uma unidade”. Para Eduardo Correia, Unidade e pluralidade de infracções, pág. 96: “É decisiva a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente e que funda o critério de definição da unidade ou pluralidade de infracções”.
Uma das primeiras abordagens em favor da tese da verificação de um único crime foi efectuada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 1993, publicado na CJSTJ 1993, tomo 2, pág. 220, o qual, proferido no recurso n.º 42290, versou sobre caso de crime de falsificação e contrafacção de moeda, e caracterizando-os como crime exaurido, a propósito da distinção entre crime único, crime continuado e acumulação de infracções, refere-se: “No domínio da matéria das resoluções criminosas, há que distinguir entre o propósito de cometer um acto criminoso concreto e o de cometer um determinado tipo de crime, que se possa consubstanciar em múltiplos actos de execução, relativamente aos quais possa existir a formulação de propósitos parcelares de conduta regidos por considerações especiais de oportunidade, ou de necessidade, ou conveniência (…). Condutas desse tipo, que correspondem psicologicamente ao desenvolvimento de diferentes intenções, são consideradas como manifestações prolongadas no tempo de um dado e único processo volitivo dinâmico, formado pelo somatório das diferentes resoluções parcelares”. E conclui que “nesta medida, as actuações dos arguidos, respeitantes à contrafacção das notas de 5000 pesetas, têm de ser consideradas como correspondentes à prática de actos de execução do mesmo e único crime, o qual terá, assim, uma natureza próxima da do crime de execução permanente”. Esta qualificação surge com alguma frequência em casos de tráfico de estupefacientes por constituir um crime de mera actividade, em que está contida uma certa ideia de actividade, que se prolonga necessariamente no tempo, como ocorre com os acórdãos de 27-06-1990, BMJ n.º 398, pág. 315; de 22-03-1995, BMJ n.º 445, pág. 114, definindo o crime de tráfico de estupefacientes como de trato sucessivo; de 21-06-1995, BMJ n.º 448, pág. 283, do mesmo relator do anterior, afastando igualmente a figura do crime continuado; de 18-04-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 170, onde se refere que o crime exaurido é “uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa, e em que a repetição dos actos, com produção de sucessivos resultados, é, ou pode ser, imputada a uma realização única”, isto é, “aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que a continuação da mesma, mesmo que com propósitos diversos do originário, se não traduz necessariamente na comissão de novas violações do respectivo tipo legal. Relativamente a tais crimes, os diversos actos constitutivos de infracções independentes e potencialmente autónomas podem, em diversas circunstâncias, ser tratados como se constituíssem um só crime, por forma que aqueles actos individuais fiquem consumidos e absorvidos por uma só realidade criminal. Cada actuação do agente no crime exaurido traduz-se na comissão do tipo criminal, mas o conjunto das múltiplas actuações reconduz-se à comissão do mesmo tipo de crime e é normalmente tratada unificadamente pela lei e pela jurisprudência como correspondente a um só crime”. (O conceito foi retomado pelo mesmo relator do anterior no acórdão de 18-06-1998, in CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 167, se bem que aqui olhado mais na perspectiva da unificação da conduta plural, abarcando a extensão do período temporal de conexão entre comportamentos protraídos em determinado lapso de tempo. Aí se diz: “O crime de tráfico de estupefacientes é um crime exaurido no sentido de que a condenação de alguém pela prática de tal crime, referida a um determinado período, corresponde a uma apreciação global da sua actividade delituosa durante esse período, independentemente da falta de consideração de algum ou alguns factos parcelares praticados durante essa época. Outros factos desse crime, praticados durante esse período, apesar de não conhecidos ou considerados na condenação anterior estão abrangidos pelo caso julgado que ela formou”; de 29-09-1999, BMJ n.º 489, pág. 109 - apontava como dominante a corrente jurisprudencial do STJ que considerava o tráfico de estupefacientes, não como uma situação de crime continuado (ou de concurso real), mas como um crime de trato sucessivo, citando os referidos acórdãos de 1995 e ainda os de 18-09-1997, processo n.º 466/97; de 20-01-1998, processo n.º 1172/97 e de 26-02-1998, processo n.º 687/97; de 08-02-2007, processo n.º 4460/06-5.ª: “O crime de tráfico de estupefacientes vem sendo considerado pela jurisprudência como um crime de trato sucessivo, desse modo se unificando o conjunto das múltiplas acções praticadas pelo agente”; de 17-12-2009, processo n.º 11/02.1PECTB-5.ª. A conduta plúrima é ainda considerada como crime único nos acórdãos de 19-04-2006, processo n.º 773/06-3.ª; de 12-07-2006, processo n.º 1709/06-3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 239 (crime de tráfico de estupefacientes concebido na sua natureza como crime de trato sucessivo, de execução permanente, crime exaurido ou delito de empreendimento – “o conjunto das múltiplas acções unifica-se e é tratado como tal pela lei e pela jurisprudência”); de 31-01-2008, processo n.º 1411/07-5.ª. A conduta múltipla é ainda considerada como crime único, sendo a reiteração de conduta analisada à luz do caso julgado, nos acórdãos de 22-05-2002, in CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 209; de 14-01-2004, processo n.º 3677/03-3.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 164 e de 2-04-2008, processo n.º 4197/07, por nós relatado. O crime único, de trato sucessivo, nos crimes sexuais
Em alguns casos, as condutas de abuso sexual de criança têm sido enquadradas na figura do crime único, ou de crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma, uma só resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente. É essa unidade de resolução, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos vários actos sucessivos num só crime. O dolo do agente abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização, estando-se no plano da unidade criminosa; a reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada. Há um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, configura o trato sucessivo.
Assim foi entendido nos seguintes acórdãos:
Acórdão de 02-10-2003, processo n.º 2606/03-5.ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 194 - Num quadro factual em que se entende haver uma conexão temporal unificadora, susceptível de integrar um único crime, se o arguido ganha a confiança dos pais de um menor de 9 anos de idade, carenciados economicamente, convence-os a deixarem o menor viver consigo e depois, ficando com o menor em sua casa e à sua guarda, obriga-o a dormir na cama com ele, todas as noites e, depois, reiteradamente, força-o a manter relações sexuais durante cerca de um ano. Na primeira instância o arguido fora condenado pela prática de um crime continuado de coacção sexual agravado, em concurso real com um crime de violação agravado, e em cúmulo na pena única de 12 anos de prisão. No STJ entendeu-se que o arguido cometeu um único crime, de trato sucessivo, e não um crime continuado, de violação agravada, ou seja, um dos crimes por que estava condenado, e manteve a condenação na pena de 12 anos de prisão, dizendo o acórdão: “Não houve crime continuado, pois que, embora se tenha dado a realização plúrima de dois tipos de crime que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico, executados por forma essencialmente homogénea e no quadro da mesma solicitação, a solicitação não foi “exterior”, mas cuidadosamente “providenciada “ pelo arguido. Por isso, não há qualquer diminuição da culpa que está na base do crime continuado. Antes pelo contrário!”. No que respeita ao novo enquadramento, explicita o acórdão: “Não há nesta requalificação jurídica dos factos qualquer atentado aos direitos de defesa do arguido ou ao princípio da reformatio in pejus, pois o recorrente foi condenado por dois crimes continuados de coacção sexual agravada e de violação agravada e este Supremo Tribunal entende que há um único crime de violação agravada, ou seja, um desses crimes por que estava condenado, com a única diferença que este abarca toda a situação factual em causa”; No acórdão de 29-03-2007, processo n.º 1031/07 - 5.ª - O tribunal recorrido integrou os factos num crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30.º e 172.º, n.º 2, do Código Penal, enquadramento jurídico não questionado pelo recorrente, mas entendeu o STJ que mais correcto teria sido considerar os vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado. Acentua que “No crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem”. Conclui: “Não podendo este Supremo corrigir in pejus a qualificação jurídica do colectivo relativa à existência de um crime continuado, pois o recurso é do arguido e em seu benefício, deve ficar, no entanto, o reparo”. No acórdão de 17-05-2007, processo n.º 1133/07 - 5.ª Secção – em caso em que ficou apurado que o arguido por várias vezes abusou sexualmente de uma criança de 13 anos de idade, o tribunal recorrido integrou os factos num crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30.º e 172.º, n.º 2, do CP, mas, embora não tenha sido questionado o enquadramento jurídico, entendeu o STJ configurar-se mais correcta a qualificação dos vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado. Respiga-se do acórdão: “Apurando-se que o arguido por várias vezes abusou sexualmente de uma criança de 13 anos de idade, embora não tenha sido questionado o enquadramento jurídico dos factos, que o tribunal recorrido integrou num crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30.º e 172.º, n.º 2, do CP, configura-se mais correcta a qualificação dos vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado No crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem. Não podendo este Supremo corrigir in pejus a qualificação jurídica do colectivo relativa à existência de um crime continuado, pois o recurso é do arguido e em seu benefício, fica, no entanto, o reparo”. Segundo o acórdão de 14-06-2007, processo n.º 1580/07-5.ª Secção, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220 - Comete um crime único, de trato sucessivo, aquele que, desde data não concretamente apurada, mas ao longo de três anos, decidiu manter e manteve com a menor, ao longo desse período, condutas de natureza sexual. No caso do acórdão de 23-01-2008, processo n.º 4830/07-3.ª, trata-se de um exemplo híbrido, de concurso real de dois crimes, abrangendo várias condutas com a mesma menor, sendo um mais grave, autónomo, e depois, três condutas diferentes daquela são unificadas na figura de trato sucessivo. Referindo que o aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia, exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado, afasta esta qualificação e considera a verificação de dois crimes de abuso sexual de criança (filha) agravados, em concurso real, sendo o primeiro constituído por uma conduta isolada e o segundo consistente nas diversas três acções sucessivamente praticadas pelo arguido em dias diferentes, mas não podendo estas três condutas ser unificadas em termos de continuação criminosa, entende-se poderem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza “pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime”. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude. O relator defende a qualificação como crime de trato sucessivo no voto de vencido aposto no acórdão de 14-05-2009, processo n.º 36/07-5.ª, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 221, em que fez vencimento, pelas suas “especiais circunstâncias” o enquadramento como crime continuado por cada uma das vítimas, afirmando então “Sem dúvida que há um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, configura o trato sucessivo”. No texto do acórdão, após frisar que se tratava de uma situação peculiar, afirma-se que “a maioria dos abusos sexuais de menores são praticados sobre vítimas «indefesas», que são violentadas física ou psicologicamente, pelo que o STJ tem muitas vezes entendido que, em regra, existe um agravamento de culpa por cada um dos crimes cometidos, incompatível com o crime continuado. Por isso, nesses casos, tem-se considerado que há um único crime de trato sucessivo (que a moldura penal permite graduar de forma mais intensa) e não um crime por cada contacto sexual”, acrescentando “Mas não neste caso particular, pelas suas especiais circunstâncias”. No acórdão de 21-10-2009, proferido no processo n.º 33/08.9TAMRA.E1.S1-3.ª, com o mesmo relator do acórdão de 23-01-2008, em caso de concurso real de três crimes do artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, em quadro factual em que três menores foram abusados por diversas vezes, e por diversos modos, foi considerada a verificação de um crime por cada um dos três menores abusados, com pena única reduzida para 6 anos de prisão; No acórdão de 07-01-2010, processo n.º 922/09.1GAABF-5.ª, CJSTJ 2010, tomo 1, pág. 176, na primeira instância o arguido fora condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, tentado e um outro na forma consumada, com penas de 2 e 6 anos, e em cúmulo, na pena única de 7 anos de prisão. O Tribunal da Relação de Évora considerou verificar-se um único crime consumado e condenou o arguido em 6 anos e 6 meses de prisão. O STJ afasta a qualificação de crime continuado e pela prática de um só crime de abuso sexual de criança, fixa a pena em 6 anos de prisão. Afasta a continuação, citando o acórdão de 5-12-2007, processo n.º 3989/07-3.ª, dizendo: “Quando a repetição do mesmo crime e a utilização de procedimento idêntico num quadro temporal circunscrito resulta de uma predisposição do agente, de uma persistência de propósitos de modo a levar a conduta até ao fim, ou de oportunidades, condições para a prática de vários actos, que ele próprio cria, está afastada a possibilidade de subsumir os factos ao crime continuado, por que se trata de culpa agravada, não atenuada”. No acórdão de 20-01-2010, processo n.º 19/04.2JALRA.C2.S1-3.ª, afirma-se que não é de excluir nos crimes sexuais a continuação criminosa, mas sempre que mais do que a um momento exterior ao agente, condicionante da prática do crime, se prove que a reiteração, menos que a tal disposição, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do agente não poderá falar-se em atenuação da culpa e fica excluída a figura da continuação, sendo o crime único punido com 8 anos de prisão. Do acórdão de 29-11-2012, processo n.º 862/11.6TDLSB.P1.S1 - 5.ª Secção, que entendeu, com um voto de vencido, verificar-se crimes de trato sucessivo, também chamados crimes prolongados, protelados, protraídos, ou exauridos, respiga-se o seguinte (o negrito é nosso): “I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem. II -O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante 1 ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade. III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime – tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido. IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem. V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque). VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma. VII - Tendo em atenção que os factos se devem agrupar em 3 crimes de trato sucessivo, como se explicou, vejamos como agrupá-los: - factos de 1999 a 2000: (…) - factos de 2003 a 2004 (entre os 13 e 14 anos da menor B), (...) - factos de 2009 (…). VIII - Considera-se, em suma, que o arguido cometeu 3 crimes de violação agravada, de trato sucessivo, p. p. nos arts. 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do CP (cujas redações atuais foram conferidas pela Lei 65/98, de 02-09, anterior, portanto, aos factos em apreço)”. Do voto de vencido retira-se este passo: “(…) Quanto ao número desses crimes, manteria a decisão recorrida, que considerou haver o recorrente praticado: 20 crimes de abuso sexual de crianças agravados p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP (…) 2 crimes de abuso sexual de menor dependente agravados p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP (…) 6 crimes de abuso sexual de crianças agravados p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP (…). Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constitui um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um «todo», em si mesmo, um autónomo facto punível. (…) E, em cúmulo jurídico, fixaria a pena única de 13 anos de prisão.”. O acórdão de 12-06-2013, processo n.º 1291/10.4JDLSB.S1-5.ª, manteve a subsunção das condutas a crimes de trato sucessivo, pois a questão não integrava o objecto do recurso. A primeira instância, com base no entendimento de que, no caso, não se verificava uma diminuição sensível da culpa do arguido, rejeitou a subsunção dos comportamentos à figura do crime continuado, sustentando a tese do crime de trato sucessivo – um crime de abuso sexual de criança de trato sucessivo, um crime de gravações e de fotografias ilícitas de trato sucessivo e um crime de pornografia de menores de trato sucessivo. O acórdão de forma crítica não deixou de anotar que a questão “era passível de gerar controvérsia”, citando Paulo Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2010, nota 32, pág. 162 e afirmando: “A Lei n.º 40/2010, de 3-09, ao alterar a redacção do n.º 3 do artigo 30.º do CP que foi introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4-09, ditou a sentença de morte do crime continuado nos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”.
A solução do concurso efectivo de crimes
Este Supremo Tribunal tem optado pela subsunção da pluralidade de condutas, neste plano do abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes, em vários acórdãos, afastando a configuração de tais situações nos restantes quadros reguladores possíveis, como no crime continuado, como ocorre na maioria da vezes, no crime único, ou ainda no crime de trato sucessivo, de que se apontam como exemplos os seguintes acórdãos: de 12-01-1994, processo n.º 45725, in CJSTJ 1994, tomo 1, págs. 190/2 - Em caso de violação, por parte de um homem casado, com cinco filhos a seu cargo, que se aproveita da inocência de uma criança de 7 anos incompletos, que estava confiada aos seus cuidados, considera-se que “se a conduta do agente nos revela que em cada actuação houve um renovar da sua resolução criminosa, estamos perante a prática de vários crimes, excepto se esse renovar do propósito criminoso for devido a uma situação exterior ao agente que facilite a renovação da resolução dentro de uma certa conexão temporal, tudo a revelar diminuição da culpa, caso em que se perfila a figura do crime continuado. Tendo sido provado que após ter esfregado o seu pénis erecto na vagina da ofendida até ejacular, o arguido voltou, nas mesmas circunstâncias, a esfregar o pénis na vulva da menor, até mais uma vez, ejacular, fica assente uma pluralidade de resoluções criminosas, tendo sido condenado por dois crimes de violação, com 3 anos de prisão por cada um deles, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos de prisão, sendo então, afastada, ope legis, a possibilidade de suspensão da execução da pena; de 9-11-1994, processo n.º 47275, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 248 – Em caso em que a primeira instância considerou a presença de crime continuado, diz o acórdão: “Sendo a matéria de facto omissa de qualquer circunstancialismo externo que se possa considerar como redutor de culpa, haveria tantos crimes de atentado ao pudor quantos os actos de impudícia por ele praticados sobre as duas crianças”. Prossegue, afirmando: “Mas não vale a pena prosseguir neste discretear, uma vez que a questão levantada excede o âmbito do recurso no qual a mesma não se contém”. de 17-10-1996, processo n.º 568/96, CJSTJ 1996, tomo 3, pág. 170 - Afasta a figura do crime continuado em caso de dois episódios de atentado ao pudor à mesma menor, afirmando a existência de concurso real entre o crime de violação e os dois crimes de atentado ao pudor de que foi vítima uma menor, por estarem em causa crimes autónomos, por serem diversos os interesses jurídico-penais neles protegidos, concluindo: “ (…) dos factos provados não resulta que a reiteração criminosa tenha sido fruto mais de uma facilitada situação exterior (circunstâncias exógenas) do que de motivos endógenos, relativos à personalidade do arguido. (Cita os acórdãos de 12-01-1994 e de 9-11-1994, supra referidos e de 09-05-1996, proferido no recurso n.º 40/96). Aí se pode ler que a continuação criminosa só poderá existir desde que ocorra uma pluralidade de resoluções levadas a cabo por forma essencialmente homogénea, em condições que diminuam consideravelmente a culpa, decorrente de uma situação exterior que facilitou a reiteração. de 10-12-1997, processo n.º 1192/97 -3.ª, SASTJ n.ºs 15 e 16, volume II, pág. 204 - Em caso de crime de homossexualidade com menores, pronunciava-se no sentido de ser de concluir pela existência de concurso real de crimes quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem e arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas, pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa. de 19-05-2005, processo n.º 890/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 202 - Afasta a continuação criminosa em caso de crime de coacção sexual agravado, por se verificar, efectivamente, uma pluralidade de crimes, pois o agente teve que renovar de cada uma das vezes o processo de motivação e, em consequência teve que tomar resoluções distintas, presididas por intenções diferenciadas quanto à decisão de, através da violência forçar o menor a ter de suportar os actos de carácter sexual descritos na matéria de facto, justificando: “No caso, a repetição das condutas proibidas pelo recorrente teve a ver apenas com circunstâncias próprias da sua personalidade e, por conseguinte, dignas de maior censura”; de 15-06-2005, processo n.º 1558/05-3.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 216 - Considera que tendo o arguido praticado actos de natureza sexual com a menor sua filha, por três vezes, sempre num quadro que não favorece qualquer ideia de diminuição acentuada da culpa, antes renovando a intenção criminosa, não se verifica qualquer situação de crime continuado, mas sim a prática de tantos crimes quantas as vezes que reiterou na violação do tipo legal de ilícito – três crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal; de 17-11-2005, processo n.º 2760/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 217 – Em causa dois crimes de abuso sexual em que o abusador é pai da ofendida, vítima por duas vezes de abusos sexuais – duas penas de 3 anos de prisão cada, sendo em cúmulo jurídico fixada a pena conjunta de 4 anos de prisão; de 05-07-2007, processo n.º 1766/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242 - Em caso de crime de abuso sexual de crianças considera-se não merecer censura o afastamento da figura de crime continuado, corrigindo apenas o número de crimes cometidos, que é reduzido de 11 para 7 crimes (um deles agravado); só há crime continuado quando se verifica uma diminuição considerável da culpa do agente, que deriva de um condicionalismo exterior e como tal não produzido pelo agente, que propicia a repetição das várias acções criminosas, mediante um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade. de 05-09-2007, processo n.º 2273/07-3.ª, CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 189 - Afasta a continuação criminosa e opta pela punição pelo cometimento de 3 crimes de violação agravada, ponderando que a presença constante da menor no âmbito familiar do arguido não constitui qualquer lastro de afirmação de uma menor inibição de comportamentos delituosos com reflexos a nível da culpa e, por isso, é de afastar a continuação criminosa e de optar pela sua punição pelo cometimento de três crimes de violação (em hipótese de consunção com abuso sexual de criança) agravados; de 16-01-2008, processo n.º 4735/07-3.ª, com o relator do anterior - Afasta a continuação, decidindo por concurso de dois crimes de violação – ponderando-se que não pode considerar-se que o facto de o arguido entrar com frequência na casa da ofendida ou de esta se encontrar isolada consubstancia o lastro de justificação de uma menor inibição de comportamentos com reflexo a nível de culpa. (No caso, com contornos especiais, com um voto de vencido, foi suspensa a execução da pena de 4 anos condicionada a pagamento de montante em que o arguido foi condenado por danos não patrimoniais); de 3-09-2008, processo n.º 3982/07- 3.ª – Caso de arguido condenado como autor de um crime de violação agravado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão; de um crime de violação agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, n.º 2, alíneas b) e c), 23.º, n.º 2, 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão; de um crime de coacção sexual agravado, p. e p. pelos artigos 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão; e de três crimes de coacção grave, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão por cada um dos crimes; e, em cúmulo, na pena única de 8 anos de prisão. Interposto recurso pretendia o arguido a unificação como crime continuado dos dois crimes de violação, não obtendo provimento; de 01-10-2008, processo n.º 2872/08-3.ª - Em caso de abuso de filhos pelo pai, afirma-se: sempre que se comprove que a reiteração, menos que a disposição das coisas, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se numa atenuação da culpa e fica, portanto, excluída a possibilidade de existir um crime continuado. (Acórdão seguido no acórdão de 19-03-2009, processo n.º 483/09-3.ª e no de 25-03-2009, proferido pelo mesmo relator do primeiro, no processo n.º 490/09-3.ª); de 29-10-2008, processo n.º 2874/08-3.ª, CJSTJ 2008, tomo 3, pág. 207 – Afasta a existência de situação de continuação criminosa em caso de violação e de abuso sexual de criança; de 05-11-2008, processo n.º 2812/08-3.ª, do mesmo relator do acórdão de 1-10-2008, no mesmo sentido e afastando o n.º 3 do artigo 30.º do Código Penal, dizendo que o preceito não possui um alcance inovador, que conduziria a um chocante e absurdo resultado de ter de ver-se o agente do crime, sobretudo no caso de as vítimas serem crianças ou mentalmente incapazes, justamente os mais indefesos da sociedade, punido, apenas, por um único crime quando sobre a vítima praticou vários, ofendendo o sentimento jurídico reinante no seio da comunidade, efeito ainda mais visível no caso de crianças vivendo sob o mesmo tecto do abusador, em que, em lugar de manter contenção e respeito sobre o seu instinto sexual, aquele exerce acção infrene e, assim, mais censurável. A ser outra a interpretação, conducente a um efeito perverso, ter-se-ia que, em nome da justiça, da lógica e do mais elementar bom senso, atalhar o alcance de quem fez a lei, lançando-se mão de uma imperiosa interpretação restritiva; de 19-03-2009, processo n.º 483/09-3ª; versando abuso sexual de crianças, afasta a figura do crime continuado, dizendo que o aditamento do n.º 3 ao artigo 30.º não permite uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito; ou seja, o aditamento não exclui, antes continua a pressupor, a verificação dos requisitos do crime continuado (segue de perto o acórdão de 1-10-2008). de 25-03-2009, processo n.º 490/09-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 1, pág. 237, ainda do mesmo relator dos dois anteriores - Versando abuso sexual de menores, afirma que sempre que se comprove que a reiteração, menos que a disposição das coisas, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se numa atenuação da culpa e fica, portanto, excluída a possibilidade de existir um crime continuado. No caso, na primeira instância o arguido fora condenado por sete crimes de abuso sexual de criança na pena de 6 anos cada e em cúmulo em 12 anos; a Relação condenou pela prática de um crime continuado em 9 anos de prisão; o STJ não subscreve tal entendimento e alterando a qualificação, considera repercutirem os factos descritos a prática de sete crimes de abuso sexual de criança, e não um único crime, na forma continuada, com pena de 5 anos por cada e fixando a pena única de oito anos de prisão (segue de perto o acórdão de 1-10-2008 do mesmo relator). Debita ainda no mesmo sentido do anterior sobre o alcance do n.º 3 do artigo 30.º do C. Penal, aditado pelo art. 1.º da Lei n.º 59/2007, dizendo que a alteração introduzida é pura tautologia, de alcance inovador limitado ou mesmo nulo, desnecessária, em nada prejudicando a jurisprudência sedimentada ao nível deste STJ; o aditamento não permite uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos, enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar uma interpretação sistemática e global do preceito (cita o acórdão de 8.11.2007, processo n.º 3296/07-5.ª); de 25-06-2009, processo n.º 274/07.6TAACB.C1.S1-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 247 (do mesmo Colectivo do acórdão de 29-10-2008, processo n.º 2874/08-3.ª, CJSTJ 2008, tomo 3, pág. 207) – Afastando a qualificação de crime continuado, confirma a verificação de concurso real de três crimes de abuso sexual de criança, reduzindo a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão para 8 anos de prisão. Pode ler-se no sumário: “Haverá um único crime, sempre que exista uma única resolução criminosa que domine uma acção unitária, ainda que seja reconduzível numa pluralidade de factos externamente separáveis, desde que estes se apresentem intimamente ligados no tempo e no espaço e dominados por aquela única resolução volitiva, tal sucedendo quando os actos sexuais adicionados surgirem na sequência da mesma resolução criminosa. Mas já haverá um concurso de crimes, ainda que esteja em causa o mesmo ilícito e a mesma vítima sexualmente abusada, quando haja a reformulação do desígnio criminoso, surgindo este de modo autónomo em relação ao propósito criminoso anterior”; de 07-01-2010, processo n.º 922/09.1GAABFE1.S1-5.ª, CJSTJ 2010, tomo 1, pág.176 - Na comarca o arguido fora condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças tentado e um outro na forma consumada, com penas de 2 e 6 anos, e em cúmulo, na pena única de 7 anos de prisão. O Tribunal da Relação de Évora considerou um único crime consumado e condenou em 6 anos e 6 meses de prisão. O STJ afasta a qualificação de crime continuado, entendendo que a conduta do arguido seria punida pela prática de um só crime de abuso sexual de criança consumado e não também, como na 1.ª instância, de um outro na forma tentada, fixando a pena em 6 anos de prisão Afasta a continuação dizendo: Quando a repetição do mesmo crime e a utilização de procedimento idêntico num quadro temporal circunscrito resulta de uma predisposição do agente, de uma persistência de propósitos de modo a levar a conduta até ao fim, ou de oportunidades, condições para a prática de vários actos, que ele próprio cria, está afastada a possibilidade de subsumir os factos ao crime continuado, por que se trata de culpa agravada, não atenuada. No acórdão de 13-07-2011, processo n.º 451/05.4JABRG.G1.S1, por nós relatado, na primeira instância, o Colectivo de Braga entendeu estar perante um concurso real de crimes e assim o arguido fora condenado por sete crimes de abuso sexual de crianças, p. p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na pena única de oito anos de prisão. O Tribunal da Relação de Guimarães considerou estar-se perante um único crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. p. pelo mesmo preceito, mas mantendo a pena de oito anos de prisão. No STJ foi reposta a qualificação da primeira instância, afastando-se a configuração das condutas provadas, quer como crime de trato sucessivo, quer a qualificação como crime continuado, como o fizera a primeira instância e por que pugnara o arguido no recurso. No acórdão de 12-07-2012, processo n.º 1718/02.9JDLSB.L1.S1, desta Secção (citado no acórdão recorrido, a fls. 779, pelo recorrente na conclusão 77.ª, a fls. 868/9 e pelo Ministério Público de Vila Nova de Gaia na resposta a fls. 906), afastando o crime continuado, afirma-se: “A negação da possibilidade da continuação criminosa em função da existência de uma pluralidade de vítimas resulta da circunstância de cada bem jurídico eminentemente pessoal ter de ser entendido em concreto numa união incindível com o seu portador individual. O bem da vida, tal como o da autodeterminação sexual ou o próprio direito à integridade física, consubstamciam-.se nas pessoas concretas que se vêem diminuídas na sua dignidade ou integridade próprias que é totalmente distinta dos restantes. No acórdão de 12-09-2012, processo n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1, por nós relatado, na 1.ª instância o arguido acusado de 13 crimes de abuso sexual de criança, na sequência de alteração efectuada pelo Colectivo, foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. p. pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal. Na Relação, concedendo parcial provimento a recursos do Ministério Público e assistentes foi entendido verificar-se concurso real de 13 crimes de abuso sexual de criança, p. p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal. No STJ foi afastada a figura do crime continuado e de crime de trato sucessivo, rectificando-se para concurso efectivo de 12 (e não 13) crimes de abuso sexual de criança, p. p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal. No acórdão de 10-10-2012, processo n.º 617/08.5PALGS.E2.S1-3.ª – é afastada a figura do crime continuado por estarem em causa bens eminentemente pessoais, considerando ainda que o crime continuado é de excluir, igualmente, sempre que a reiteração criminosa, menos que a uma disposição exterior, se deva a uma certa tendência da personalidade do criminoso, pois não pode falar-se aí de atenuação de culpa. Confirma a presença de 6 crimes de abuso sexual de criança na pessoa da menor J e de 5 crimes na pessoa da menor D. O acórdão de 22-01-2013, processo n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1-3.ª - Afastando a figura do crime de trato sucessivo, afirma “Configura o trato sucessivo a existência de um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas, a existência de uma mesma resolução criminosa desde o início assumida pelo agente, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal. No caso, nenhum elemento da materialidade provada permite a redução do processo volitivo do arguido a uma linha uniforme sem qualquer fractura temporal”. No acórdão de 14-03-2013, processo n.º 294/10.3JAPRT.P1.S1-3.ª, foi confirmada a prática de 3 crimes de abuso sexual de crianças do artigo 171.º, n.º 2, do CP e 3 crimes de recurso à prostituição de menores do artigo 174.º, n.º 2, do CP, podendo ler-se no sumário: “Sempre que se prove que a reiteração do crime é devida a uma tendência da personalidade criminosa, menos que a uma disposição exterior das coisas, não pode falar-se em atenuação da culpa, pelo que fica excluída a continuação criminosa”. No acórdão de 8-01-2014, processo n.º 154/12.3GASSB.L1.S1-3.ª é afastada a figura do crime continuado, estando em causa a prática ao longo de 4 anos de 5 crimes de violação agravada, 8 crimes de coacção sexual agravada e 2 crimes de coacção gravada. Apesar da redução de penas cominadas relativamente a 4 dos 5 crimes de violação agravada, foi entendido manter intocada a pena conjunta de 13 anos de prisão. No acórdão de 17-09-2014, processo n.º 595/12.6TASLV.E1.S1-3.ª, o arguido a quem fora imputada a prática de um só crime de abuso sexual de criança agravado, após comunicação de alteração de qualificação jurídica foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos nos 1 e 2 do artigo 171.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º, de 20 crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos nos 1 e 2 do artigo 171.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º, do Código Penal e de 20 crimes de abuso sexual com adolescente agravados, p. p. pelo artigo 173.º e alínea b) do n.º 1 do art.º 177.º, na pena única de 9 anos de prisão. O arguido interpôs recurso pedindo a integração da conduta num crime de trato sucessivo. O acórdão afastou a figura bem como do crime continuado, confirmando totalmente o decidido. “Inexiste o crime de trato sucessivo quando, embora haja homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade de resolução criminosa na produção do resultado que se desencadeia e autonomiza como tal”. No acórdão de 17-09-2014, processo n.º 67/12.9JAPDL.L1.S1-3.ª – Convocado acórdão de 12-07-2012, proferido no processo n.º 1718/12.9JDLSB.L1.S1, do mesmo relator, é afastada a existência de unidade resolutiva e consequentemente dum único crime, estando-se perante duas resoluções criminosas autónomas, dois crimes de abuso sexual de criança. Aí se lê: “A experiência e as leis da psicologia referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que inicialmente os abrangia a todos se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Deve considerar-se existente uma pluralidade de resoluções sempre que não se verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência e as leis psicológicas, se deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação. Confirmada pena única de 9 anos de prisão No acórdão de 22-04-2015, processo n.º 45/13.0JASTB.L1.S1-3.ª, em caso em que a Relação, nas situações em que os ofendidos foram objecto de repetidos abusos, afastou o concurso de crimes, por ter entendido que a solução do trato sucessivo era a mais ajustada a situações como a presente, afirmou a sua discordância da qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo, aderindo à argumentação do acórdão de 17-09-2014, processo n.º 595/12.6TASLV.E1.S1-3ª supra referido. Conclui pela presença em concurso real dos crimes especificados no dispositivo da decisão da 1.ª instância, mas atendendo apenas às penas aplicadas no acórdão recorrido por força da proibição estabelecida no artigo 409.º, n.º 1, do CPP. No acórdão de 17-06-2015, processo n.º 28/11.5TACVD.E1.S1- 3.ª é versado caso de arguido condenado pela prática de dois crimes de abuso de pessoa incapaz de resistência do artigo 165°, nº 2, do Código Penal, na pena de 8 (oito) anos de prisão por cada um dos delitos; de um crime de coacção agravada dos artigos 154°, nº l, e 155°, nº l, alíneas a) e b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão. O recorrente pede a subsunção na figura do crime continuado, sendo decidido inexistirem os pressupostos do crime continuado e confirmando o decidido.
Versando pluralidade de crimes sexuais em concurso real, mas estando em causa apenas a medida da pena única, podem ver-se os acórdãos do STJ de 22-05-2013, processo n.º 93/09.5TAABT.E1.S1-3.ª; de 5-11-2013, processo n.º 400/12.3JAPRT.P1.S1-5.ª; de 20-11-2013, processo n.º 1181/12.6JAPRT.P1.S1-3.ª (arguido com 85 anos de idade condenado por 6 crimes de abuso sexual de criança - pena única de 9 anos de prisão); de 13-02-2014, processo n.º 789/11.1JAPRT.P1.S1-5.ª; de 27-02-2014, processo n.º 1702/12.4TATVD.S1-5.ª; de 23-04-2014, processo n.º 68/08.1GABNV.L1.S1-3.ª; de 30-04 2014, processo n.º 415/12.1T3STC.E1.S1-5.ª; de 23-10-2014, processo n.º 1524/13.5JAPRT.S1-5.ª. Em registo diverso, de conhecimento superveniente do concurso, pode ver-se o acórdão de 2-12-2013, processo n.º 742/11.5TACTX.E1.S1-3.ª (ilícito global de 234 crimes de violação agravada, 10 crimes de abuso sexual de criança agravado, 3 crimes de violência doméstica e detenção de arma proibida - desagravada a pena única de 25 para 23 anos de prisão).
A opção do acórdão recorrido
O acórdão do Colectivo de Vila Nova de Gaia abordou a questão na “Fundamentação de Direito 1.Enquadramento jurídico-criminal”, de fls. 778 a 780 verso, nos termos seguintes: (…) “Por último, estando imputados aos arguidos a prática, em concurso efectivo, de vários crimes, para a determinação do número de crimes efectivamente praticado pelos arguidos, ter-se-á em consideração que, como se assinala no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2012, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral (disponível em www.dgsLpt, proc. n.º 1718/02.9JDLSS), citando Eduardo Correia, o índice de unidade, ou pluralidade de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente ( ... ). Deve considerar-se uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique entre as actividades efectuadas pelo agente uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou sem ter de renovar o respectivo processo de motivação”. E mais adiante no mesmo Acórdão: “Situação típica é a realização repetida do mesmo tipo legal de crime num curto espaço de tempo. O requisito para apreciar a unidade de acção nestes casos é a circunstância de que, com a repetição plural do tipo, a lesão do bem jurídico só experimenta uma progressão quantitativa e que o facto responda, além do mais, a uma situação motivacional unitária. Uma pluralidade de factos externamente separáveis deve conformar uma acção unitária quando os diversos actos parciais, que respondem a uma única resolução volitiva, se encontram tão ligados no tempo e espaço que, para um observador não interveniente são percepcionados como uma unidade natural. No mínimo, dir-se-ia que a autonomização tem como pressuposto um processo de renovação da vontade e não é incorrecto, á luz dos princípios, considerar uma renovação de propósito criminoso a sustentar uma renovação da formulação de um juízo de culpa”. Posto isto, analisemos a factualidade provada em relação a cada um dos arguidos. 1.2. Quanto ao arguido Raul Costa: Da factualidade que assente ficou, emerge, quanto à conduta deste arguido, e tendo presente[s] as directrizes supra enunciadas no que tange ao número de infracções praticadas, o seguinte núcleo de factos: a)Entre 2004 e 2007, em mais do que uma ocasião, a primeira das quais quando a menor tinha 6 anos de idade, o arguido, conforme referido em 4. da factual idade provada, apalpou o corpo da menor por fora e por dentro da roupa, o que indubitavelmente configura acto sexual de relevo, preenchendo a tipicidade objectiva do crime de abuso sexual de crianças, previsto à data da prática dos factos, no artº 172°, nº 1, do CP, na redacção anterior à Lei 59/07 e aí punido - tal como actualmente no correspondente art" 171°, nº 1 - com pena de prisão de 1 a 8 anos. Muito embora o acto em causa tenha ocorrido mais de uma vez, desconhecendo-se o número exacto de vezes que ocorreu e a distância temporal que entre os mesmo intercedeu, e tratando-se de uma mesma conduta homogénea, apenas é possível considerar praticado um crime pelo arguido relativamente a este núcleo de factos. b) Em data indeterminada, situada entre 24.03.2005 e 23.04.05, quando a menor tinha seis anos de idade, o arguido, conforme referido em 5., introduziu o seu pénis na boca da menor, ao mesmo tempo que lhe dizia "para mamar". Esta conduta preenche a tipicidade objectiva do crime de abuso sexual de criança, ao tempo previsto no art° 172°, nº 2 do Código Penal - na redacção introduzida pela Lei 65/98, de 2.09 e anterior à Lei 59/07 - e actualmente na correspondente norma do art,º 171°, nº 2, do C.P ,configurando coito oral, acto sexual de relevo especialmente previsto neste normativo e punido com pena de 3 a 10 anos de prisão. c) Em data indeterminada, situada entre 24.03.2005 e 23.04.07, quando a menor tinha sete ou oito anos de idade, o arguido, conforme referido em 6., despiu a menor da cintura para baixo, deitou-a na cama, e tentou introduzir o seu pénis na vagina da menor, não o tendo conseguido, após o que continuou a roçar o seu pénis na vagina da menor por vários minutos. Trata-se igualmente de acto sexual de relevo previsto ao tempo no nº 1 do art° 172° do CP (redacção anterior à Lei 59/07), uma vez que não chegou a ocorrer penetração, situação prevista no nº 2 do mesmo normativo. Em qualquer das situações acima referidas em a), b) e c), o arguido agiu voluntária e conscientemente, sabendo a idade da menor, e querendo praticar actos sexuais de relevo com esta, conhecendo o carácter proibido da sua conduta. Agiu, por conseguinte, com dolo e com consciência da ilicitude dos seus actos, preenchendo, de igual modo, a tipicidade subjectiva dos crimes vindos de referir. Em qualquer das situações mencionadas não é aplicável, de harmonia com o disposto no artº 2° do CP, a circunstância agravativa prevista no artº 177°, al. b) do CP, relativa à relação familiar, posto que esta foi introduzida pela Lei 59/07, 4.09, em data posterior à data da prática dos factos em causa, instituindo, no caso concreto, um regime mais gravoso para o arguido. d) Em data indeterminada do mês de Agosto de 2010, no Verão, quando a menor tinha 12 anos de idade, o arguido, conforme referido em 7. supra, no quarto da sua residência, depois de se despir e de pedir à menor para se despir e se deitar na cama, o que esta fez, roçou o seu pénis na vagina da menor, tentando introduzi-lo sem o conseguir. e) no mesmo dia, na parte da tarde, o arguido, conforme referido em 8. supra, praticou conduta idêntica à referida em d) e, após, introduziu o seu pénis na boca da menor e disse-lhe para “mamar”, sendo que tais actos foram praticados na presença simultânea de uma outra menor, também sua sobrinha, com quem o arguido praticou actos idênticos na ocasião. Não obstante as condutas referidas em d) e e) terem ocorrido no mesmo dia, respeitam a actos de natureza diversa, em distinto contexto situacional, que implicaram necessariamente uma renovação da vontade criminosa, configurando a segunda das situações referidas uma gravidade acentuada relativamente à conduta anterior. De igual modo em ambos os casos, o arguido agiu com dolo directo e com consciência da ilicitude. Assim sendo, praticou o arguido quanto à situação referida em d) o crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artº 171°, nº 1, do CP (na redacção actual, introduzida pela Lei 59/07, já vigente ao tempo dos factos) e, quanto à situação referida em e), o crime de abuso sexual de criança previsto e punido no art" 177°, nº 2 do CP, na mesma redacção. Ambos os crimes referidos são agravados nos termos do disposto no art° 177°, aI. b) do CP, na redacção actual, introduzida pela Lei 59/07, uma vez que o arguido se aproveitou da especial relação familiar e de proximidade que tinha com a ofendida para levar a cabo os seus intentos, conforme manifestamente decorre da factual idade provada. Assim sendo, as respectivas molduras penais sofrem agravamento de um terço nos seus limites máximos e mínimos, sendo, por conseguinte, respectivamente, de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão e de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão. f) Em data não concretamente apurada, situada entre Setembro e Outubro de 2010 quando a menor tinha 12 anos de idade, o arguido manteve relações sexuais de cópula com a menor e, desde essa altura, o arguido manteve o mesmo comportamento, por diversas vezes, não concretamente apuradas, mas superior a quatro vezes, quando a menor tinha entre doze e treze anos. Com esta actuação homogénea, a que presidiu a resolução de passar a manter relações sexuais de cópula com a menor, na altura com idade inferior a 14 anos, desconhecendo-se o concreto número de vezes em que tal teve lugar e a distância temporal que ocorreu entre cada uma delas, impõe-se concluir que o arguido, também aqui agindo voluntária e conscientemente, e aproveitando-se da especial relação que tinha com a menor, em razão dos laços familiares, que os uniam, praticou o crime de abuso sexual de criança, previsto e punido no art" 172°, nº 2, do CP, na sua forma agravada, por verificada a circunstância prevista no art° 177°, nº 1, aI. b), e, por conseguinte, punido com 4 anos de prisão a 13 anos e 4 meses de prisão. g) por último, ao praticar relações de cópula com a menor Catarina, desde que esta tinha 14 anos de idade e até Outubro de 2013, altura em que tinha quinze anos de idade, o que ocorreu um número indeterminado de vezes, superior a 4, o arguido praticou o crime de abuso sexual de menor adolescente, previsto e punido pelo art° 173°, nº 1, do CP, na sua forma agravada pela circunstância agravativa prevista no art° 177°, aI. b), a que corresponde pena de prisão até 4 anos ou multa. Refira-se que se verifica neste particular o abuso de inexperiência da menor que elemento do tipo de crime em causa. Com efeito, não há dúvida que foi o próprio arguido que criou a situação que facilitou a prática de actos sexuais de cópula com a menor, enquadráveis neste normativo, ao iniciar com a menor actos sexuais, desde os 6 anos desta, actos que que desenvolveu ao longo do tempo, e que foram aumentando progressivamente em gravidade e frequência, e não há dúvida que se aproveitou da situação por si criada para continuar a manter com a menor, entre os 14 e 15 anos desta, actos sexuais de cópula, sendo certo que, quer a enorme diferença de idades entre a menor e o arguido, quer o contexto em que tais relações de cópula sucederam, quer o estreitamento da relação com a ofendida que o arguido levou a cabo a partir do ano de 2010, por forma a obter a sua afectividade e confiança, conforme referido em 12. supra, conduzem a considerar claramente preenchido aquele elemento do tipo de ilícito em causa”.
Decorre do exposto que o acórdão recorrido privilegiou a subsunção no concurso real em relação aos sete crimes presentes no dispositivo, mas em relação a múltiplas condutas em dois casos procedeu a unificação, como melhor se verá infra.
Analisando.
Primeiro dado a assinalar é que a figura do crime continuado não foi aqui convocada, quer na decisão recorrida, quer pelo recorrente.
Pese embora o recorrente tenha sido condenado pela autoria de sete crimes em concurso real [três crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1 e 2 do Código Penal (factos anteriores a 2007); outros três crimes de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (factos posteriores a 15-9-2007, concretamente entre Agosto de 2010 e Outubro de 2013); e um crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, p. p. pelos artigos 173, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal], a verdade é que o acórdão recorrido, em três situações (ou mais correctamente, em duas), optou pela unificação de condutas múltiplas.
Vejamos como.
A acusação imputara ao arguido a prática de: - Onze crimes de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º n.º 1, alínea b), do Código Penal; - Cinco crimes de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º n.º 1, alínea b), do Código Penal; - Quatro crimes de actos sexuais com adolescente, na forma agravada, p. p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º n.º 1, alínea b), do Código Penal.
A redução do número de crimes explica-se em parte desde logo fora deste quadro de análise, face ao que resultou da prova produzida em julgamento, pois que não foram dados por provados todos os factos narrados na acusação, concretamente, no que concerne à matéria dos factos da acusação que vieram a ser vertidos, em via reduzida, nos pontos 4 e 5 dos Factos Provados, pois foi dado por não provado que as condutas tivessem ocorrido em número superior a quatro vezes e no Facto Provado n.º 6, que fosse superior a duas vezes. Mas, na perspectiva que ora interessa, de tratamento subsuntivo, e face ao que foi dado por provado (e não provado), entendeu o Tribunal Colectivo de Vila Nova de Gaia unificar condutas múltiplas em sede de subsunção jurídica.
Tal aconteceu no que se refere:
A) A uma primeira situação, relativa a factos praticados em datas indeterminadas, situadas num período temporal entre os anos de 2004 (mais concretamente, 24 de Março de 2004 – dia em que a menor CC perfez seis anos de idade, pois nasceu em 24 de Março de 1998) e 2007, em que a conduta consistiu em apalpar o corpo da menor, por fora e por dentro da roupa, o que aconteceu por mais de uma ocasião, a primeira das quais quando tinha 6 anos de idade (Facto Provado n.º 4 e situação descrita na alínea a) da fundamentação de direito, enquadramento jurídico-criminal, a fls. 779 e 780). A unificação das condutas, neste caso sem a mínima determinação, é explicada no acórdão recorrido a fls. 779 verso deste modo: “Muito embora o acto em causa tenha ocorrido mais de uma vez, desconhecendo-se o número exacto de vezes que ocorreu e a distância temporal que entre os mesmo[s] intercedeu, e tratando-se de uma mesma conduta homogénea, apenas é possível considerar praticado um crime pelo arguido relativamente a este núcleo de factos”.
Diga-se desde já que a opção do Colectivo merece inteiro aplauso, até porque, bem vistas as coisas, mais do que redução de pluralidade à unidade, o que está em causa é fazer acerto em relação a uma acusação que contém uma imputação genérica, sem a mínima concretização factual/temporal para além da única ocasião que é de ter por assente. Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça, com larga incidência em casos de tráfico de estupefacientes, as imputações genéricas, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o facto imputado no tempo e lugar, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente - neste sentido podem ver-se os acórdãos de 06-05-2004, processo n.º 908/04-5.ª; de 04-05-2005, processo n.º 889/05; de 07-12-2005, processo n.º 2945/05; de 06-07-2006, processo n.º 1924/06-5.ª; de 14-09-2006, processo n.º 2421/06 - 5.ª; de 17-01-2007, processo n.º 3644/06-3.ª; de 24-01-2007, processo n.º 3647/06-3.ª; de 21-02-2007, processos n.ºs 4341/06 e 3932/06, ambos da 3.ª Secção; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07-3.ª; de 16-05-2007, processo n.º 1239/07-3.ª; de 04-07-2007, processo n.º 2303/07-3.ª, in CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 234; de 15-11-2007, processo n.º 3236/07-5.ª; de 31-01-2008, processo n.º 1411/07-5.ª; de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3.ª, por nós relatado (São de evitar as imputações genéricas com utilização de fórmulas vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras, que afastarão a qualificação) e n.º 578/08-3.ª; de 02-07-2008, processo n.º 3861/07-3.ª, por nós relatado, em caso de imprecisão de matéria de facto em sede de crime de maus tratos a cônjuge; de 03-09-2008, processo n.º 2044/08-3.ª (do mesmo relator o acórdão de 09-06-2010, processo n.º 1699/07.2TBEVR.S1-3.ª); de 02-10-2008, processo n.º 1314/08-5.ª; de 06-11-2008, processo n.º 2804/08-5.ª; de 20-11-2008, processo n.º 3269/08-5.ª; de 25-03-2009, processo n.º 380/09-5.ª; de 27-05-2009, processo n.º 484/09, por nó relatado; de 17-12-2009, processo n.º 11/02. 1PECTB-5.ª e de 15-12-2011, processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1 (relatado pelo ora relator). Tal imprecisão da matéria de facto provada impede que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente nestes casos pronunciar-se sobre a afirmação genérica em causa, uma vez que não concretizada ou individualizada noutros pontos da matéria de facto, no concreto caso, no que respeita a mais do que uma ocasião, única concretizada, de forma que a situação tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo. Sendo indeterminado o número que extravasa a ocasião, sendo desconhecido o(s) facto(s) que integre(m) o “mais” do que uma ocasião, resta simplesmente a certificação da ocasião única. Correcta, pois, a opção pela determinação, não de um crime único, mas de um único crime. B) A uma segunda situação, relativa a factos concretizados com introdução do pénis na vagina da menor, friccionando-o por vários minutos, ejaculando no exterior da vagina sobre o corpo da menor, desde Setembro/Outubro de 2010 a Outubro de 2013, o que aconteceu por diversas vezes, não concretamente apuradas, mas superior a quatro vezes, quando a menor tinha entre 12 e 13 anos (Facto provado n.º 10-1.ª parte, com referência ao Facto Provado n.º 9, no que se refere ao início do comportamento (“Desde essa data”, ou seja, Setembro/Outubro de 2010) e situação descrita na alínea f) - 2.ª parte da fundamentação de direito, enquadramento jurídico-criminal, a fls. 780, in fine).
Neste caso decidiu o acórdão recorrido, a fls. 780 e verso: “Com esta actuação homogénea, a que presidiu a resolução de passar a manter relações sexuais de cópula com a menor, na altura com idade inferior a 14 anos, desconhecendo-se o concreto número de vezes em que tal teve lugar e a distância temporal que ocorreu entre cada uma delas, impõe-se concluir que o arguido, também aqui agindo voluntária e conscientemente, e aproveitando-se da especial relação que tinha com a menor, em razão dos laços familiares, que os uniam, praticou o crime de abuso sexual de criança, previsto e punido no artº 172°, nº 2, do CP, na sua forma agravada, por verificada a circunstância prevista no art° 177°, nº 1, aI. b), e, por conseguinte, punido com 4 anos de prisão a 13 anos e 4 meses de prisão”.
Sendo certo desconhecer-se o concreto número de vezes em que tiveram lugar as cópulas e a distância temporal que ocorreu entre cada uma delas, não menos certo é que foi dado por provado que tal aconteceu em número superior a quatro vezes – Facto Provado n.º 10. A indeterminação nesta situação apenas existia no que excedia as quatro vezes, sendo seguro e correcto afirmar-se terem-se verificado por quatro vezes.
C) A última situação tem a ver com o mesmo comportamento do arguido, com prática de cópula vaginal, quando a menor tinha entre 14 e 15 anos (ora integrando já não abuso sexual de criança, mas actos sexuais com adolescente (Facto provado n.º 10 -2.ª parte e situação descrita na alínea g) da fundamentação de direito, enquadramento jurídico-criminal, a fls. 780, in fine).
A justificação para unificação das condutas é dada na alínea g) da fundamentação de direito, enquadramento jurídico-criminal, a fls. 780 verso, nestes termos: “g) por último, ao praticar relações de cópula com a menor Catarina, desde que esta tinha 14 anos de idade e até Outubro de 2013, altura em que tinha quinze anos de idade, o que ocorreu um número indeterminado de vezes, superior a 4, o arguido praticou o crime de abuso sexual de menor adolescente, previsto e punido pelo art° 173°, nº 1, do CP, na sua forma agravada pela circunstância agravativa prevista no art° 177°, al. b), a que corresponde pena de prisão até 4 anos ou multa”.
Neste caso, tal como no anterior, foi feita prova de que as condutas abusivas ocorreram pelo menos por quatro vezes, diversamente do que o recorrente alega na conclusão 70.ª; uma coisa é o que resulta da prova produzida, outra o respectivo enquadramento subsuntivo. Vale para esta situação o exposto a propósito da alínea anterior, tendo sido dado por provado que o comportamento se verificou, pelo menos, por quatro vezes. Pelo que fica exposto, retira-se que nos dois últimos casos não será de aceitar a unificação, a redução da pluralidade (mínima dada por assente por quatro vezes) à unidade, face à matéria de facto provada, pelo que se propenderá pela afirmação de em cada caso se estar perante quatro crimes, em concurso efectivo. Face à opção tomada pelo Colectivo, deixando feita a correcção, não terá a mesma qualquer influência na medida das penas por respeito ao princípio da proibição da reformatio in pejus.
No mais, não merece reparo o enquadramento jurídico-criminal feito pelo acórdão do Colectivo de Vila Nova de Gaia.
Ressalta à evidência a circunstância de se verificar um hiato considerável na prática das condutas abusivas, distanciadas temporalmente entre 2007 e Agosto de 2010 (ou mais rigorosamente 31-07-2010), da forma que segue: As condutas dadas por provadas ocorreram:
Entre 24-03-2004 e 23-03-2005 – quando a menor CC tinha 6 anos de idade (a redução para a data ad quem justifica-se atendendo a que foi considerado um único crime quando a menor tinha 6 anos) – FP n.º 4; Entre 24-03-2004 e 23-03-2005 – quando a menor tinha 6 anos de idade – FP n.º 5; Entre 24-03-2005 e 23-03-2007 (e não 23-04-2007, pelas razões supra apontadas) – quando a menor tinha 7/8 anos – FP n.º 6; Em dia indeterminado de Agosto de 2010, quando a menor tinha 12 anos de idade, duas actuações, sendo mais abrangente a segunda – FP n.º 7 e 8; Entre Setembro e Outubro de 2010, quando a menor tinha 12 anos – FP n.º 9; Desde Outubro de 2010 a Outubro de 2013 - quando a menor tinha entre 12 e 13 anos de idade e entre 14 e 15 anos de idade (cópula com ejaculação no exterior da vagina sobre o corpo) – FP n.º 10.
Concretamente, face ao acervo dos factos provados retira-se que entre o dia 24 de Março de 2007, dia em que a menor CC completou 9 anos de idade e o dia 31 de Julho de 2010 (indicação de data apenas para salvaguardar a hipótese não concretizada de os factos narrados no FP n.º 7 e 8 terem ocorrido logo no dia 1 de Agosto) em que a menor tinha 12 anos, 4 meses e 7 dias de idade, não teve lugar qualquer conduta abusiva. A menor foi molestada sexualmente quando tinha 6 anos de idade (FP 4 e 5), 7/8 anos (FP 6) e depois deste ciclo, quando contava já com 12 anos, 4 meses e pelo menos 8 dias (FP 7 e 8 e 9), e até aos 15 anos (FP 10), verificando-se um interregno, de três anos, quatro meses e sete dias, enquanto a menor teve 9, 10, 11 e 12 anos, 4 meses e 7 dias. Não se divisa qualquer explicação para o interregno, mas também não cabe aqui cogitar e especular sobre o tema, cabendo tão só atender apenas aos factos que foram dados por assentes. Face à certificada descontinuidade temporal das condutas em apreciação, estando-se perante dois momentos ou períodos temporais distintos, como assinala o recorrente nas conclusões 71.ª, 74.ª e 78.ª, a questão que se coloca é a de saber se se justificará, como pretende o recorrente, a unificação, a redução à unidade das condutas tipificadoras de crimes de abuso sexual de criança cometidos antes da Lei n.º 59/2007 e dos abusos sexuais de criança, agora agravados, cometidos já no domínio daquela lei. (Relembra-se que a questão não se coloca em relação aos crimes de actos sexuais com adolescente, que o tribunal recorrido unificou).
Analisando desde já os casos ocorridos antes de Setembro de 2007, concretamente entre 24 de Março de 2004 e 23 de Março de 2007, verifica-se diverso modo de execução entre as situações versadas nos FP 4, 5 e 6, o primeiro quando a menor tinha 6 anos, apalpando o corpo da menor, por fora e por dentro da roupa, depois na garagem da residência, introduzindo o pénis na boca da menor dizendo-lhe para “mamar” e mais tarde quando a menor tinha 7 ou 8 anos, o arguido, no quarto de dormir da sua residência, despiu parcialmente a menor Catarina da cintura para baixo, deitou-a na cama e tentou introduzir o seu pénis na vagina daquela, não o tendo conseguido, após o que continuou a roçar o pénis na vagina da menor por vários minutos. Mais de três anos e quatro meses decorridos, já em 2010, num mesmo dia indeterminado de Agosto de 2010, o arguido molestou a menor então com 12 anos de idade por duas vezes com contornos diferentes “o arguido, no quarto da sua residência, depois de se despir e de dizer à menor para se despir e se deitar na cama, o que esta fez, roçou o seu pénis na vagina da menor, tentando introduzi-lo, sem o conseguir” – FP 7 – e no mesmo dia, na parte da tarde, o arguido, no quarto da sua residência, depois de dizer à menor para se despir e se deitar na cama, o que esta fez, e de por sua vez se despir, deitou-a na cama e roçou o seu pénis na vagina da menor. Depois, o arguido introduziu o seu pénis na boca da menor e disse-lhe para “mamar”. Os referidos actos foram praticados na presença simultânea de uma outra menor, também sua sobrinha, com quem o arguido praticou actos idênticos na ocasião – FP 8. Mais tarde, entre Setembro e Outubro de 2010, o arguido renova a resolução de molestar a menor, o que fez com introdução do pénis na vagina, mantendo o mesmo comportamento quando a menor tinha 12, 13, 14 e 15 anos, desde Outubro de 2010 a Outubro de 2013.
Na obra Unidade e Pluralidade de Infracções, a págs. 125, disse Eduardo Correia dever “considerar-se existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique entre as actividades do agente uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar, que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo da motivação”. Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Portuguesa, 2010, nota 32, pág. 162, acentua: “No caso da sucessão de vários crimes contra bens eminentemente pessoais, deve punir-se as condutas do agente em concurso efectivo. Esta é precisamente a consequência prática da supressão da benesse do crime continuado contra bens eminentemente pessoais. Foi este o resultado prático pretendido pelo legislador. Portanto, é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime “de trato sucessivo”, ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções”. E finaliza assim: “Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador”.
Nos casos de reiteração criminosa há que distinguir entre a que resulta de uma situação externa que subsiste ou se repete sem que o agente para tal contribua e aquela que resulta de uma situação procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente. Neste segundo caso, são obviamente razões endógenas relacionadas com a personalidade do agente, que levam à reiteração criminosa, não se reconduzindo no caso a um único desígnio, pois houve lugar a estreitamento de relação de proximidade, como resulta do FP 12 (O arguido, a partir do ano de 2010, estreitou a relação de proximidade que tinha com a menor CC, indo levá-la e buscá-la à escola, comprando-lhe material escolar, levando-a a almoçar, conversando com a menor Catarina sobre os seus assuntos e problemas, por forma a obter a afectividade e confiança desta), sendo os contactos sempre estabelecidos por vontade do arguido, dirigindo-se a menor a sua casa por iniciativa deste nos termos descritos no FP 15 (Pelo menos desde Setembro ou Outubro de 2010, o arguido solicitou à arguida que a menor fosse à sua residência e a arguida assim fez, ordenando à menor para que se dirigisse ao encontro do arguido, sabendo que nesses encontros o arguido praticaria com a menor actos sexuais, incluindo actos de cópula, nada fazendo para o impedir) e no FP 16 (No ano de 2012, quando a menor CC frequentava o 6° ano de escolaridade, o arguido, por diversas vezes, solicitou á arguida BB que a referida menor faltasse às aulas, da parte da tarde, no que a arguida Maria Moura consentiu e colaborou, justificando as faltas da menor, invocando na escola, como encarregada de educação, um motivo falso, sabendo que durante essas faltas o arguido se encontrava com a menor CC, sua filha, e com ela mantinha relações sexuais de cópula). No caso em apreço, a repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, que superou até a natural inibição inerente à relação familiar que o liga à ofendida e num total aproveitamento do contexto relacional com a mãe, como ilustrado ficou no FP 13 (A arguida Maria Moura e o arguido AA, no período compreendido ente 2002 e 2013 mantiveram, por diversas vezes, relações sexuais, designadamente na residência do arguido) e do FP 14 (Pelo menos em Setembro ou Outubro de 2010, a arguida soube que o arguido praticava com a menor actos sexuais, incluindo relações de cópula, e consentiu que o arguido e a menor mantivessem tais práticas) e ainda familiar e económico, como ressalta do FP 24 (Apesar de o arguido e a família terem baixos recursos económicos, prestavam apoio à menor CC e ao seu agregado familiar, designadamente apoio alimentar) e do FP 37 (Elementos da família alargada, nomeadamente os pais da menor CC colaboravam nas tarefas agrícolas e pecuárias e eram apoiados pelo arguido e mulher em bens alimentares, sendo que por vezes também estes e seus filhos faziam refeições na residência do arguido). Como ficou assente no FP 18 “Em cada uma das actuações (…) referidas em 4., 5., 6., 7., 8., 9. e 10., o arguido agiu com a vontade renovada de satisfazer os seus desejos sexuais e em contextos situacionais por ele procurados”. No caso em análise não se pode considerar que os comportamentos do arguido integraram apenas uma resolução criminosa, mas antes existindo várias resoluções criminosas, que se traduzem no facto de o arguido em dias e épocas diferentes ter accionado e renovado a sua vontade para praticar o crime sexual e repeti-lo. No caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, não há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, bem pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem; o sucesso da primeira actuação e das seguintes não pode integrar a diminuição da culpa do arguido, agindo este determinado pela vontade de satisfazer os seus instintos libidinosos, para o que se aproveitou das situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente do silêncio da própria vítima, que com a repetição daqueles actos vai sendo toda a vez, “atacada”, psicologicamente, com as repercussões que a ciência médica e a vida nos mostram. A jurisprudência aponta maioritariamente para a pluralidade de crimes nas situações que, similarmente com a que nos ocupa, esteja em causa o mesmo ilícito e a mesma vítima sexualmente abusada, quando haja a reformulação do desígnio criminoso, surgindo este de modo autónomo em relação ao propósito criminoso anterior. Nas diversas situações o arguido sempre buscou o contacto, aproveitando a proximidade com a menor, como já se referiu. O arguido criava as condições, procurava e fomentava as oportunidades de contacto, renovando o desígnio criminoso. De cada uma daquelas vezes, em cada actuação, o arguido renovou o processo de motivação, o propósito criminoso, estando-se perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores. No caso em apreciação, a repetição teve a ver com circunstâncias próprias da personalidade do arguido. Concluindo: entende-se estarmos perante um concurso real de crimes de abuso sexual de criança, improcedendo o recurso no que toca às conclusões 67.ª a 79.ª.
Questão IV – Medida das penas parcelares e única
O recorrente nas conclusões 80.ª a 101.ª defende serem as penas aplicadas extremamente penalizantes, visando particularmente uma pena de 5 anos e 2 meses de prisão (conclusões 96.ª e 97.ª) e a pena de 8 anos de prisão, bem perto da fronteira do limite máximo sensível (conclusões 82.ª, 86.ª e 97.ª), bem como a pena única, que patenteiam uma desproporcionalidade entre protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, entendendo deverem ser reduzidas e aplicada pena única nunca superior a 8 anos de prisão, com o dever de frequentar acompanhamento psicológico e/ou tratamentos médicos adequados.
As molduras abstractas penais cabíveis aos crimes em que foi condenado o recorrente são as seguintes: 1 – Pelo crime de abuso sexual de criança previsto pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, antes da versão de 2007 - prisão de 1 a 8 anos; 2 – Pelo crime de abuso sexual de criança previsto no artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal, antes da versão de 2007 - prisão de 3 a 10 anos de prisão; 3 – Pelo crime de abuso sexual de criança previsto no artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, antes da versão de 2007 - prisão de 1 a 8 anos; 4 – Pelo crime de abuso sexual de criança previsto no artigo 171.º, n.º 1, agravado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal - prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses; 5 – Pelo crime de abuso sexual de criança previsto no artigo 171.º, n.º 2, agravado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal - prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão; 6 – Pelo crime de abuso sexual de criança previsto no artigo 171.º, n.º 2, agravado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal - prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão; 7 – Pelo crime de actos sexuais com adolescentes previsto no artigo 173.º, n.º 2 (e não n.º l, como consta do acórdão), agravado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal - prisão até 4 anos.
Dentro destas molduras funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente: - O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; - A intensidade do dolo ou da negligência; - Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; - As condições pessoais do agente e a sua situação económica; - A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; - A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. ******* No domínio da versão originária do Código Penal de 1982, alguma jurisprudência, dizendo basear-se em posição do Professor Eduardo Correia (Actas das Sessões, pág. 20), segundo a qual o procedimento normal e correcto dos juízes na determinação da pena concreta, em face do novo Código, seria o de utilizar, como ponto de partida, a média entre os limites mínimo e máximo da pena correspondente, em abstracto, ao crime, adoptou tal orientação, considerando-se em seguida as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depusessem a favor do agente ou contra ele, sendo exemplos de tal posição os acórdãos de 13-07-1983, BMJ n.º 329, pág. 396; de 15-02-1984, BMJ n.º 334, pág. 274; de 26-04-1984, BMJ n.º 336, pág. 331; de 19-12-1984, BMJ n.º 342, pág. 233; de 11-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 226; de 19-12-1994, BMJ n.º 342, pág. 233; de 10-01-1987, processo n.º 38627 – 3.ª, Tribuna da Justiça, n.º 26; de 11-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 226; de 11-05-1988, processo n.º 39401 – 3.ª, Tribuna da Justiça, n.ºs 41/42. Manifestou-se contra esta interpretação Figueiredo Dias em Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 277, págs. 210/211. A refutação de tal critério foi feita por Carmona da Mota, in Tribuna da Justiça, n.º 6, Junho 1985, págs. 8/9 e Alfredo Gaspar, em anotação ao acórdão de 2 de Maio de 1985, in Tribuna da Justiça, n.º 7, págs. 11 e 13, dando-se conta, em ambos os casos, de que o primeiro aresto em que se verificou uma inflexão na jurisprudência foi o acórdão da Relação de Coimbra de 09-11-1983, in Colectânea de Jurisprudência 1983, tomo 5, pág. 73. Posteriormente, e ainda antes de 1995, partindo da ideia de que a culpa é a medida que a pena não pode ultrapassar nem mesmo lançando apelo às necessidades de prevenção, mesmo que acentuadas, começou a considerar-se não ser correcto partir-se dum ponto médio dos limites da moldura penal para a agravação ou atenuação consoante o peso relativo das respectivas circunstâncias, como vinha sendo entendido, salientando-se que a determinação da medida da pena não depende de critérios aritméticos. Neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-1986, BMJ n.º 362, pág. 359; de 25-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 255; de 22-02-1989, BMJ n.º 384, pág. 552; de 09-06-1993, BMJ n.º 428, pág. 284; de 22-06-1994, processo n.º 46701, CJSTJ 1994, tomo 2, pág. 255. E no acórdão de 27-02-1991, in A. J., n.º 15/16, pág. 9 (citado no acórdão de 15-02-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 216), decidiu-se que na fixação concreta da pena não deve partir-se da média entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta. A determinação concreta há-de resultar de a adaptar a cada caso concreto, liberdade que o julgador deve usar com prudência e equilíbrio, dentro dos cânones jurisprudenciais e da experiência, no exercício do que verdadeiramente é a arte de julgar. Anteriormente, não manifestando preocupações de adesão à pena média, pronunciaram-se, v. g., os acórdãos de 21-06-1989, BMJ n.º 388, pág. 245 e de 17-10-1991, BMJ n.º 410, pág. 360.
Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, diz: “o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena”.
Definindo o papel que cabe à culpa na determinação concreta da pena, nos termos da teoria da margem de liberdade (Claus Roxin, Culpabilidade y Prevención en Derecho Penal, págs. 94 -113) é ele o seguinte: a pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), limites esses que são determinados em função da culpa do agente e aí intervindo dentro desses limites os outros fins das penas (as exigências da prevenção geral e da prevenção especial). A partir de 1 de Outubro de 1995 foram alterados os dados do problema, passando a pena a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena. A terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação, com feição pragmática e utilitária, constante do artigo 40.º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, a reinserção social do agente do crime, o seu retorno ao tecido social lesado. Com esta reformulação do Código Penal, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o n.º 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71.º, n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; o n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º 1 do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada. (Em sede de processo decisório, a regulamentação respeitante à determinação da pena tem tratamento autónomo relativamente à questão da determinação da culpabilidade, sendo esta tratada no artigo 368.º, e aquela prevista no artigo 369.º, com eventual apelo aos artigos 370.º e 371.º do CPP). Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, no tema Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal, págs. 65 a 111, diz que o legislador de 1995 assumiu, precipitando no artigo 40.º do Código Penal, os princípios ínsitos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida: 1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
No dizer de Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição 1998, AAFDL, pág. 25, «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».
Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40.º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Está subjacente ao artigo 40.º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa. Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71.º do Código Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado artigo 40.º), estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito. Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar. O referido dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo - total no caso dos tribunais de relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena. Estando a cognoscibilidade em recurso de revista limitada a matéria de direito, coloca-se a questão da controlabilidade da determinação da pena nesta sede.
Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 218 (e pág. 224 na 4.ª edição actualizada de Abril de 2011), defende que a questão da determinação da espécie e da medida da sanção criminal redunda numa verdadeira questão de direito.
Segundo Maria João Antunes, em Consequências Jurídicas do Crime, Lições 2007-2008, págs. 19 e 20, no procedimento de determinação da pena trata-se de autêntica aplicação do direito – na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, por imposição do artigo 71.º, n.º 3, do CP. Consequentemente, há uma autonomização do processo de determinação da pena em sede processual penal (artigos 369.º, 370.º e 371.º do CPP) e a possibilidade de controlo da decisão sobre a determinação da pena em sede de recurso, ainda que este seja apenas de revista.
Figueiredo Dias, em Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, após dar conta de que se revela uma tendência para alargar os limites em que a questão da determinação da pena é susceptível de revista, afirma estarem todos de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda estar plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e relativamente à determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, esta será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. Ainda de acordo com o mesmo Professor, na mesma obra de 1993, § 280, pág. 214 e repetido nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena». Anabela Miranda Rodrigues em “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss., como proposta de solução defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Adianta que “é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”. Apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética: “Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”. E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.
Uma síntese destas posições sobre os fins das penas foi feita no acórdão de 10-04-1996, processo n.º 12/96, in CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 168, nos seguintes termos: “ O modelo de determinação da medida da pena no sistema jurídico-penal português comete à culpa (juízo de apreciação, de valoração, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da validade lógica e da moral ou do direito) a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, mas disso já cuidou, em primeira mão, o legislador, quando estabeleceu a moldura punitiva. Acontece, porém, que outras exigências concorrem naquele modelo: a prevenção geral (dita de integração) que tem por função fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e, no mínimo, fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Cabe à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, rectius, moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares) de advertência ou de segurança”. Ainda do mesmo relator, e a propósito de caso de tráfico de estupefacientes, diz-se no acórdão de 08-10-1997, processo n.º 356/97-3.ª, in Sumários de Acórdãos, Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, volume II, págs. 133/4: «As “exigências de prevenção” variam em função do tipo de criminalidade de que se trata. Na criminalidade relacionada com o tráfico de estupefacientes, com todo o seu cortejo de lesão de bens jurídicos muito relevantes, a carecerem de adequada protecção pelo direito penal - além do efeito propulsor de outras formas de criminalidade, nomeadamente contra as pessoas e contra o património, a que, a justo título, se tem chamado de “flagelo social” - são de considerar as particulares exigências de prevenção, tanto geral como especial». Uma outra formulação, em síntese, na esteira de Figueiredo Dias, “As consequências jurídicas do crime 1993”, § 301 e ss., é a que consta dos acórdãos do STJ de 17-09-1997, processo n.º 624/97; de 01-10-1997, processo n.º 673/97; de 08-10-1997, processo n.º 874/97; de 15-10-1997, processo n.º 589/97, sendo os três últimos publicados in Sumários de Acórdãos do Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, Outubro de 1997, II volume, págs. 125, 134 e 145, e de 20-05-1998, processo n.º 370/98, este publicado na CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 205 e no BMJ n.º 477, pág. 124, todos da 3.ª Secção e do mesmo relator, nos seguintes termos: “A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização. Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. No sentido deste último segmento, ver do mesmo relator, os acórdãos de 08-10-1997, processo n.º 976/97 e de 17-12-1997, processo n.º 1186/97, in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132 e n.º s 15/16, Novembro/Dezembro 1997, pág. 214.
A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, processo n.º 2693/00-5.ª; de 23-11-2000, processo n.º 2766/00 – 5.ª; de 30-11-2000, processo n.º 2808/00-5.ª; de 28-06-2001, processos n.ºs 1674/01-5.ª, 1169/01-5.ª e 1552/01-5.ª; de 30-08-2001, processo n.º 2806/01-5.ª; de 15-11-2001, processo n.º 2622/01 – 5.ª; de 06-12-2001, processo n.º 3340/01-5.ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5.ª; de 09-05-2002, processo n.º 628/02-5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo n.º 585/02 – 5.ª; de 23-05-2002, processo n.º 1205/02 – 5.ª; de 26-09-2002, processo n.º 2360/02 – 5.ª; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02 – 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo n.º 3399/03 – 5.ª; de 04-03-2004, processo n.º 456/04 – 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 220; de 11-11-2004, processo n.º 3182/04 – 5.ª; de 23-06-2005, processo n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, processo n.º 2521/05 – 5.ª; de 03-11-2005, processo n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 – 3.ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 – 3.ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 – 5.ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 – 5.ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 – 5.ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 – 5.ª; de 14-06-2007, processo n.º 1580/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 – 3.ª; de 05-07-2007, processo n.º 1766/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 – 3.ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 – 5.ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 – 3.ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 – 3.ª e 4832/07-3.ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 – 3.ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 – 3.ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 – 5.ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 – 5.ª e processo n.º 999/08-3.ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 – 3.ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 – 5.ª; de 03-09-2008, no processo n.º 3982/07-3.ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 – 3.ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 – 3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3.ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3.ª; de 27-05-2009, processo n.º 484/09-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 8523/06.1TDLSB-3.ª; de 1-10-2009, processo n.º 185/06.2SULSB.L1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1-3.ª; de 03-12-2009, processo n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1-3.ª; de 28-04-2010, processo n.º 126/07.0PCPRT.S1-3.ª; de 10-11-2010, processo n.º 145/10.9JAPRT.P1.S1-3.ª; de 29-06-2011, processo n.º 21/10.5GACUB.E1.S1-3.ª; de 15-12-2011, processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1; de 05-12-2012, processo n.º 250/10.1JALRA.E1.S1; de 5-06-2013, processo n.º 7/11.2GAADV.E1.S1-3.ª; de 11-06-2014, processo n.º 14/07.0TRLSB.S1-3.ª.
Na determinação da medida concreta da pena deve o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se no entanto de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido. O limite mínimo da pena a aplicar é assim determinado pelas razões de prevenção geral que no caso se façam sentir; o limite máximo pela culpa do agente revelada no facto; e servindo as razões de prevenção especial para encontrar, dentro daqueles limites, o quantum de pena a aplicar – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e seguintes. Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente, ou como diz o acórdão de 22-09-2004, processo n.º 1636/04-3.ª, in ASTJ, n.º 83: “a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível”. Ou, como expressivamente se diz no acórdão deste STJ de 16-01-2008, processo n.º 4565/07 - 3.ª: «A norma do art. 40.º do CP condensa em três proposições fundamentais o programa político-criminal sobre a função e os fins das penas: a) protecção de bens jurídicos; b) a socialização do agente do crime; c) constituir a culpa o limite da pena mas não o seu fundamento. O modelo do Código Penal é de prevenção: a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do art. 40.º determina, por isso, que os critérios do art. 71.º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição. O modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa. Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente».
Revertendo ao caso concreto.
Neste particular, ter-se-ão em conta as concretizações dos critérios legais estabelecidas pela decisão de primeira instância, que recolheu os elementos necessários e suficientes para o efeito e teve em vista os parâmetros legais a observar, bem como o contexto de actuação do arguido, e que foram acolhidas pelo acórdão recorrido, havendo apenas que considerar algumas especificidades do caso ora submetido a reapreciação.
Sobre a questão da determinação da medida concreta da pena, o acórdão recorrido a fls. 781 e 781 verso, após optar pela aplicação de pena de prisão prevista em alternativa com pena de multa na punição do crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, por a multa, atenta a gravidade dos factos e suas consequências, não realizar de forma adequada as finalidades da punição, relativamente ao arguido, expendeu o seguinte: “2. Escolha e Medida da Pena: (…) “Assim pondera-se: Em desfavor do arguido, a intensidade do dolo, com que agiu, configurado como intenso e directo, o período de tempo durante o qual se desenvolveu a sua conduta criminosa, a natureza dos actos praticados dentro da gravidade pressuposta no tipo de ilícito em que se enquadra a sua conduta, o prejuízo que causou no desenvolvimento pessoal harmonioso da menor CC, as consequências que causaram na sua vida, com o seu afastamento do seu núcleo familiar a sua institucionalização da menor e os efeitos que os actos praticados e suas consequências terão necessariamente no futuro da menor. A favor do arguido apenas ausência de antecedentes criminais, a sua inserção laboral e familiar. Revelam-se elevadas as necessidades de prevenção geral que cumpra acautelar, pelo justificado repúdio e alarme social que os crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes suscitam na comunidade, em particular quando praticados no seio de relações de família e por quem está obrigado a um especial dever de protecção e cuidado. Importa, todavia, ter em atenção que a medida da necessidade da tutela de bens jurídicos que assim cumpre determinar não é um acto de valoração em abstracto já tida em conta pelo legislador ao fixar a moldura penal abstracta aplicável) mas um acto de valoração ín concreto, de conformação social da valoração legislativa a levar a cabo à luz das circunstâncias de cada caso, entre elas, também os factores atinentes ao facto e agente em concreto - cfr. Figueiredo Dias, ob. cit, pág. 228. Assinale-se, por outro lado, que não ficaram demonstrados nos autos quaisquer factos reveladores de sentimento de arrependimento do arguido ou de consciência crítica quanto á gravidade dos actos praticados. Tudo ponderado, tem-se por ajustado, atento as molduras penais abstractas aplicáveis, a natureza e gravidade dos actos em causa e a período e número em que ocorreram, a aplicação ao arguido as seguintes penas: - pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo art" 172°, nº 1, do CP (na redacção anterior à Lei 59/07), a pena de um ano e seis meses de prisão (situação referida em a)) - pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art° 172°, nº 2, do CP (na redacção anterior à Lei 59/07), a pena de 4 anos de prisão (situação referida em b)); - pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo art" 172°, nº 1, do CP (na redacção anterior à Lei 59/07), a pena de dois anos e seis meses de prisão (situação referida em c)) - pela prática de um crime de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelo art" 171°, nº 1 e 177°, nº 1, aI. b) do Código Penal, na sua redacção actual, a pena de 2 anos de prisão (situação referida em d) - pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art° 171, nº 2 e 177°, nº 1, aI. b), do Código Penal, a pena de 5 anos e 2 meses de prisão (situação referida em g) - pela prática de um crime de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelo art° 171°, nº 2 e 177°, nº 1, aI. b), do CP, a pena de 8 anos de prisão (situação referida em f)) - pela prática de um crime de actos sexuais com adolescentes, agravado, p. e p. pelo art° 173°, nº 1 e 177°, nº 1, aI. b) do CP, a pena de 2 anos de prisão (situação referida em g)). ******* Vejamos se no caso em reapreciação são de manter, ou antes reduzir, as penas aplicadas, como defende o recorrente nas conclusões 80.ª a 101.ª, relembrando-se que o Ministério Público se pronunciou pela redução de algumas. ******* Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos – artigo 40.º do Código Penal, na versão da terceira alteração, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março – definindo a necessidade desta protecção os limites daquelas, há que, necessariamente, ter em atenção o bem jurídico tutelado nos tipos legais em causa.
Estabelece o artigo 171.º do Código Penal (Abuso sexual de crianças): 1.Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2. – Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 3.………………………………………………………………………………………. 4. ……………………………………...……………………………………………….
Na actual sistematização do Código Penal, o crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, ora na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, entrada em vigor em 15-09-2007 (artigo 13.º), enquadra-se na categoria “Dos crimes contra as pessoas” - Título I, do Livro II – (Parte especial), e mais especificamente, no Capítulo V, “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual” – artigos 163.º a 179.º – mais concretamente ainda na Secção II (Crimes contra a autodeterminação sexual) – artigos 171.º a 176.º – e com a agravação constante da disposição comum do artigo 177.º, para além das igualmente comuns normas dos artigos 178.º (queixa) e 179.º (inibição do poder paternal e proibição do exercício de funções), este actualmente revogado. Os referidos artigos 163.º a 179.º, introduzidos na reforma de 1995, “substituiram” os artigos 201.º a 218.º da versão originária do Código Penal de 1982, que tratavam “Dos crimes sexuais” - Secção II -, então inserta no Capítulo I, com a epígrafe “Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social”, por novos artigos, que passaram a integrar o capítulo V, «Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual» com os n.ºs 163.º a 179.º, repartidos por três secções, respectivamente, dos crimes contra a liberdade sexual (artigos 163.º a 171.º), dos crimes contra a autodeterminação sexual (artigos 172.º a 176.º) e das disposições comuns (artigos 177.º a 179.º), conferindo-lhes nova redacção (cfr. solução n.º 115, constante do artigo 3.º- A - Relativamente à parte geral - da Lei de autorização legislativa n.º 35/94, de 15-09, rectificada no Diário da República, I Série-A, de 13-12-1994, donde emergiu o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15-03, que procedeu à terceira alteração do Código Penal, entrado em vigor em 1-10-1995). O crime de abuso sexual de crianças não era dantes previsto como crime autónomo, no Código Penal de 1886 e na versão originária do Código de 1982, embora muitas das condutas abrangidas pela previsão do novo artigo caíssem, na vigência desses diplomas na previsão dos crimes de violação, atentado ao pudor ou de ultraje público ao pudor. Maia Gonçalves, in Código Penal Português, anotado e comentado, na 8.ª edição, 1995, pág. 643, em comentário retomado na 17.ª edição, de 2005, pág. 603, nota 2, afirma: “Neste artigo protegem-se pessoas que presumivelmente ainda não têm o discernimento necessário para, no que concerne ao sexo, se exprimirem com liberdade e autenticidade, defendendo-se tais pessoas contra a prática da cópula, coito anal, coito oral ou de outros actos sexuais de relevo, de actos de carácter exibicionista e de condutas censuráveis obscenas ou pornográficas. Como observou o Prof. Figueiredo Dias na discussão dos crimes desta subsecção no seio da CRCP, a especificidade destes crimes reside como que numa obrigação de castidade e virgindade, por estarem em causa menores, seja de que sexo forem. Estes menores até à idade dos 14 anos, segundo o pensamento legislativo, podem ser prejudicados no seu saudável desenvolvimento fisiológico ou psíquico com a prática dos referidos actos e não têm ainda a capacidade e o discernimento necessários para uma livre e esclarecida decisão no que concerne ao relacionamento sexual. Trata-se de um crime de perigo abstracto, pelo que pode verificar-se mesmo que não haja lugar a perigo concreto para o correcto desenvolvimento fisiológico ou psíquico do menor”.
O bem jurídico protegido é a liberdade e autodeterminação sexual, ligado a outro bem jurídico, a saber, o do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, devendo considerar-se a Secção II como um capítulo importante da função de protecção penal das crianças e dos jovens até certos limites de idade – assim, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 442. Mais à frente, pág. 541, especifica que trata-se ainda “de proteger a autodeterminação sexual, mas sob uma forma muito particular: não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade de vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade”. Para Teresa Beleza, O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal, pág. 169, o bem jurídico ofendido por um acto sexual de relevo, que seja praticado com, em ou perante uma criança, já não é o pudor, mas as potencialidades de desenvolvimento, não excessivamente condicionado ou traumatizado por experiências demasiado precoces. Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 473 (e na 2.ª edição actualizada de 2010, a pág. 536), versando os quatro crimes distintos previstos no artigo 171.º, afirma: “O bem jurídico protegido pelas incriminações é a liberdade de autodeterminação sexual da criança, isto é, do menor de 14 anos de idade. Em qualquer dos casos trata-se de um crime de perigo abstracto (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera actividade (quanto à forma de consumação do objecto da acção).
A reforma de 1995 teve em vista uma perspectiva de reforço da tutela dos bens jurídicos pessoais e de uma lógica de maior protecção ao menor, atenta a sua especial vulnerabilidade. Assim, de acordo com o n.º 8 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 48/95: “Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual foram objecto de particular atenção, especialmente quando praticados contra menor. Nessa conformidade, o crime sexual praticado contra menor é objecto de uma dupla agravação. Por um lado a que resulta de elevação geral das molduras penais dos crimes de violação e coacção sexual, quer no limite mínimo, quer no máximo; e por outro, a agravação estabelecida para os casos em que tais crimes sejam praticados contra menor de 14 anos. Donde resulta que o crime praticado contra menor de 14 anos é sempre punido mais severamente que o crime praticado contra um adulto, atenta a especial vulnerabilidade da vítima”.
O bem jurídico protegido pela incriminação do crime de abuso sexual de crianças, p. p. artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, é o da liberdade da pessoa menor de 14 anos, que se presume legalmente incapaz de avaliar o sentido e alcance de acto sexual de relevo praticado nela, mesmo que nele consinta. E sendo a liberdade sexual uma das valiosas manifestações da liberdade individual, na sua dimensão multifacetada, a conduta integrante de acto sexual de relevo contra criança naquela faixa etária, atentatório como é da sua liberdade individual, enquadra-se no conceito de criminalidade violenta previsto no artigo 1.º, alínea j), do CPP, que na redacção originária considerava criminalidade violenta “as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos”, anotando-se que com a redacção dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 26/2010, de 30-08, a par da já contemplada liberdade pessoal, foi aditada a referência a “liberdade e autodeterminação sexual” (para além de englobar referência a autoridade pública). As crianças, a par dos idosos, dos deficientes ou grávidas, em virtude do especial desamparo e da vulnerabilidade em que pela sua própria natureza se encontram, quer pela sua idade, quer pela sua constituição, quer pelo seu estado, são ou estão por natureza ingénuas, no sentido de desprevenidas: umas porque o são de forma inerente (as crianças e os deficientes mentais), (…) - neste sentido, Teresa Serra, em Homicídios em Série (Jornadas de Direito Criminal, 1995/6, editado em 1998, II Volume), a fls. 154/5. Nesta perspectiva, pode ver-se o enquadramento que é dado a estas matérias pela Lei de política criminal. A Lei n.º 38/2009, de 20 de Julho (publicada no DR, 1.ª Série, n.º 138, entrada em vigor em 1 de Setembro de 2009), define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2009-2011 (abarcando o período temporal compreendido entre 1 de Setembro de 2009 e 31 de Agosto de 2011), em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Diário da República, I Série, n.º 99), que aprovou a Lei Quadro da Política Criminal, “sucedendo” ao registo similar da antecedente Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto (entrada em vigor em 15 de Setembro de 2007, valendo para o biénio de 2007-2009). Estabelece o artigo 1.º: «São objectivos gerais da política criminal prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade, promovendo a defesa de bens jurídicos, a protecção das vítimas e a reintegração dos agentes do crime na sociedade». No artigo 2.º afirma-se constituírem objectivos específicos da política criminal, para além do mais: a) Prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade violenta, grave ou organizada, incluindo (…) os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual (…) b) Promover a protecção de vítimas especialmente vulneráveis, incluindo crianças e adolescentes, mulheres grávidas e pessoas idosas, doentes, deficientes e imigrantes (sublinhámos). Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores integram o lote dos crimes que tendo em conta a dignidade dos bens jurídicos tutelados e a necessidade de proteger as potenciais vítimas são considerados crime de prevenção prioritária - artigo 3.º, n.º 1, alínea a). E tendo em conta a sua gravidade e a necessidade de evitar a sua prática futura são considerados crimes de investigação prioritária - artigo 4.º, n.º 1, alínea a). No artigo 5.º, na prevenção e investigação dos crimes lesivos da componente pessoal, promove-se, em particular, a protecção de vítimas especialmente vulneráveis, incluindo crianças, mulheres grávidas, pessoas idosas, doentes ou portadoras de deficiência e imigrantes (voltámos a sublinhar). Em relação à versão anterior o adjectivo “vulneráveis” substituiu “indefesas” e foi aditado “imigrantes” na alínea b) do artigo 2.º No Anexo, onde se enuncia a fundamentação das prioridades e orientações da política criminal, pode ler-se o seguinte: “Os crimes violentos contra as pessoas e contra o património merecem tratamento prioritário. As pessoas especialmente vulneráveis - crianças, mulheres grávidas, pessoas idosas, doentes, deficientes e imigrantes - são os alvos mais fáceis desta criminalidade e justificam o desenvolvimento de programas de prevenção específicos (tornámos a sublinhar).
Como se extrai do acórdão do STJ de 01-04-1998, proferido no recurso n.º 1436/97, in CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 175, o bem jurídico protegido é a criança como criança, parafraseando Figueiredo Dias, em Actas da Comissão de Revisão do Código Penal, pág. 247. A criança não é só destinatário mas também sujeito de direitos, e direitos próprios. A Constituição da República Portuguesa estabelece no artigo 69.º, n.º 1, que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral”. Por Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12-09, foi aprovada para ratificação, depois de aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 8 de Junho, a Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26-01-1990, a qual, nos termos do artigo 8.º da CRP faz parte da nossa ordem jurídica. Segundo a Convenção, os direitos da criança abrangem todos os domínios, visando o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade. O artigo 19.º expressamente se refere à protecção da criança contra todas as formas de violência sexual. No nosso direito interno, o desenvolvimento da criança sob o aspecto sexual é protegido no art. 172.º CP. Importa que a criança continue criança durante toda a sua infância. Toda a criança tem direito de ser criança, como se exprime Marta Pais (Documentação e Direito Comparado, n.º 55/56, 1993, pág. 212).
Versando agora o crime de actos sexuais com adolescente.
Estabelece o artigo 173.º do Código Penal (Actos sexuais com adolescentes): 1 – Quem, sendo maior, praticar acto sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que ele seja por este praticado com outrem, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. 2 – Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes de corpo ou objectos, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Neste crime é tutelado o livre desenvolvimento da vida sexual de menor entre 14 e 16 anos, face a processos proibidos de sedução conducentes à prática de tais actos: acto sexual de relevo, que pode consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes de corpo ou objectos. (Assim, Código Penal, Parte geral e especial, com Notas e Comentários, de M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Almedina, 2014, pág. 726). Como se pode ler no acórdão de 19-10-2000, processo n.º 2546/00-5.ª, SASTJ, n.º 44, pág. 87 “Aos 14 anos, a lei fornece uma protecção absoluta aos menores no que concerne ao seu desenvolvimento e crescimento sexuais. A lei protege-os, inclusivamente deles próprios, considerando irrelevante consentimento que prestem para a prática de actos sexuais”. Como refere Denis Sala, Le délinquant sexuel, in “La Justice e le mal”, ed. Odile Jacob, 1997, pág. 53 e segs., referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2005: «Nos tempos actuais de fragmentação de valores e de referências, os crimes sexuais emergem como verdadeiro mal democrático numa sociedade onde a igualdade de condições conduz à redução da alteridade. A proximidade emocional própria do universo comunicacional das efervescentes democracias contemporâneas anula a distanciação, transportando fenómenos sociais de exigência intensa na resposta a crimes sexuais; o legislador, interpretando os sinais de sociedade, teve de sublimar e reordenar as imposições sociais na grelha de intervenção do direito e das reacções do sistema penal que tutela os valores mais essenciais da comunidade. Os crimes sexuais contêm, na imagem das democracias de comunicação, uma dimensão de negação alucinatória da ordem natural as coisas, uma desordem da natureza, um desequilíbrio cósmico que a cidade quer eliminar sem o referir».
No caso presente há que atender ao elevado grau de ilicitude e também ao intenso dolo, na modalidade de directo. As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração - que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da protecção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição - são prementes e muito elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – a autodeterminação sexual de crianças - e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade, maxime, nos últimos anos, em que estas questões passaram a assumir muito maior visibilidade, justificando resposta punitiva firme, o que de resto foi bem assinalado na decisão recorrida, sendo de ter em conta os prejuízos que são susceptíveis de acarretar na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional das vítimas. A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição. Como expende Figueiredo Dias, em O sistema sancionatório do Direito Penal Português, inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”. Como se expressou o acórdão do STJ de 04-07-1996, in CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 225, com o recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos. O crime de abuso sexual de menores é crime gerador de grande alarme social e repúdio das pessoas em geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, que vem assumindo uma prática frequente, sendo elevadas as exigências de reafirmação da norma violada. Segundo o já aludido acórdão de 01-04-1998, recurso n.º 1436/97, in CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 175, versando então caso de concurso real de crimes de atentado ao pudor e abuso sexual de crianças, um e outro unificados em continuação criminosa, pronunciou-se nestes termos: “as expectativas da comunidade ficam goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o vigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, respeitando o limite da culpa. Se uma pena de medida superior á culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins da prevenção constitui um desperdício”. Há mais de 24 anos, no acórdão de 16 de Maio de 1991, proferido no processo n.º 41004, in AJ, pág. 19, dizia-se: “Neste campo da criminalidade, qualquer apelo a permissivas decisões só poderia conduzir a resultados indesejáveis, se não mesmo perversos”. No que toca a prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como actuou ao longo do período em causa, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor em causa, não se esgotando na mera prevenção da reincidência. Como refere Américo Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir. E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.
Fazendo aplicação de todos estes dados e ponderando todos os factores presentes já enunciados no acórdão recorrido, justifica-se intervenção correctiva no que tange a algumas das penas parcelares aplicadas. Neste sentido, por adequadas e equilibradas, manter-se-ão as penas parcelares aplicadas no dispositivo sob os números 1, 2 e 3, reduzindo-se as restantes do modo seguinte: 4) Pelo crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, a pena de dois anos de prisão é reduzida para 1 ano e 6 meses; 5) Pelo crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, a pena de cinco anos e dois meses de prisão é reduzida para 4 anos e 6 meses; 6) Pelo crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, a pena de oito anos de prisão é reduzida para 6 anos de prisão; 7) Pelo crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 173.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, a pena de dois anos de prisão é reduzida para 1 ano e 6 meses.
A medida da pena única
O recorrente pede a redução da pena conjunta aplicada, na decorrência de pretendida redução das penas parcelares, concretizando na conclusão 98.ª que seja aplicada uma pena única nunca superior a 8 anos de prisão. O acórdão recorrido, sobre o ponto, a fls. 781 verso e 782, de forma parca, disse: “Encontrando-se os crimes praticados pelo arguido numa relação de concurso, importa proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas - art° 77°, nº 1, do C.P. revisto. Tendo em conta, em conjunto os factos e a personalidade do arguido neles espelhada, o período temporal durante o qual os factos ocorreram e o seu contexto e circunstancialismo, tem-se por ajustada a aplicação ao arguido da pena única de 14 anos de prisão”.
Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que operou a terceira alteração ao Código Penal, em vigor desde 1 de Outubro de 1995 (e inalterado pelas subsequentes trinta e duas modificações legislativas, operadas, nomeadamente, e mais recentemente, pelas Leis n.º 59/2007, de 4 de Setembro, n.º 61/2008, de 31 de Outubro, n.º 32/2010, de 2 de Setembro, n.º 40/2010, de 3 de Setembro, n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro, n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, n.º 60/2013, de 23 de Agosto, Lei Orgânica n.º 2/2014, de 6 de Agosto, Leis n.º 59/2014, de 26 de Agosto, n.º 69/2014, de 29 de Agosto, n.º 82/2014, de 30 de Dezembro, Lei Orgânica n.º 1/2015, de 8 de Janeiro, Leis n.º 30/2015, de 22 de Abril, rectificada na Declaração de Rectificação n.º 22/2015, in Diário da República, 1.ª série, n.º 100, de 25 de Maio de 2015, n.º 81/2015, de 3 de Agosto, n.º 83/2015, de 5 de Agosto, n.º 103/2015, de 24 de Agosto e n.º 110/2015, de 26 de Agosto): “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. E nos termos do n.º 2, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Segundo o n.º 3 “Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”.
No acórdão recorrido a moldura do concurso era de 8 anos a 25 anos e 2 meses de prisão, tendo sido fixada a pena conjunta de 14 anos de prisão. Atentas as reduções de penas parcelares efectuadas, a moldura a ter em conta é agora de 6 anos a 21 anos e 6 meses de prisão. Como se lê em Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 420, págs. 290/1, estabelecida a moldura penal do concurso, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.º-1 (actual 71.º-1), um critério especial: o do artigo 78.º (actual 77.º), n.º 1, 2.ª parte, segundo o qual na determinação concreta da pena do concurso serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso. E no § 421, págs. 291/2, acentua o mesmo Autor que na busca da pena do concurso, “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. Acrescenta ainda: “De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”. Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Maio de 2004, in CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 191, a propósito dos critérios a atender na fundamentação da pena única, nesta operação o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime, a dar indícios de projecto de uma carreira, ou é antes, a expressão de uma pluriocasionalidade que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido, mas antes numa conjunção de factores ocasionais, sem repercussão no futuro – cfr. na esteira da posição do citado Autor, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-07-1998, in CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 246; de 24-02-1999, processo n.º 23/99-3.ª; de 12-05-1999, processo n.º 406/99-3.ª; de 27-10-2004, processo n.º 1409/04-3.ª; de 20-01-2005, processo n.º 4322/04-5.ª, in CJSTJ 2005, tomo I, pág. 178; de 17-03-2005, no processo n.º 754/05-5.ª; de 16-11-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 210; de 12-01-2006, no processo n.º 3202/05-5.ª; de 08-02-2006, no processo n.º 3794/05-3.ª; de 15-02-2006, no processo n.º 116/06-3.ª; de 22-02-2006, no processo n.º 112/06-3.ª; de 22-03-2006, no processo n.º 364/06-3.ª; de 04-10-2006, no processo n.º 2157/06-3.ª; de 21-11-2006, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228; de 24-01-2007, no processo n.º 3508/06-3.ª; de 25-01-2007, nos processos n.ºs 4338/06-5.ª e 4807/06-5.ª; de 28-02-2007, no processo n.º 3382/06-3.ª; de 01-03-2007, no processo n.º 11/07-5.ª; de 07-03-2007, no processo n.º 1928/07-3.ª; de 14-03-2007, no processo n.º 343/07-3.ª; de 28-03-2007, no processo n.º 333/07-3.ª; de 09-05-2007, nos processos n.ºs 1121/07-3.ª e 899/07-3.ª; de 24-05-2007, no processo n.º 1897/07-5.ª; de 29-05-2007, no processo n.º 1582/07-3.ª; de 12-09-2007, no processo n.º 2583/07-3.ª; de 03-10-2007, no processo n.º 2576/07-3.ª; de 24-10-2007, no processo nº 3238/07-3.ª; de 31-10-2007, no processo n.º 3280/07-3.ª; de 09-01-2008, processo n.º 3177/07-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 181 (Na valoração da personalidade deve atender-se a se os factos são a expressão de uma inclinação, tendência ou mesmo carreira criminosa, ou delitos ocasionais, sem relação entre si. A autoria em série é factor de agravação dentro da moldura penal conjunta, enquanto a pluriocasionalidade, que não radica na personalidade, não tem esse efeito agravante); de 09-04-2008, no processo n.º 686/08-3.ª (o acórdão ao efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares não elucida, porque não descreve, o raciocínio dos julgadores que orientou e decidiu a determinação da medida da pena do cúmulo); de 25-06-2008, no processo n.º 1774/08-3.ª; de 02-04-2009, processo n.º 581/09-3.ª, por nós relatado, in CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 187; de 21-05-2009, processo n.º 2218/05.0GBABF.S1-3.ª; de 29-10-2009, no processo n.º 18/06.0PELRA.C1.S1-5.ª, in CJSTJ 2009, tomo 3, pág. 224 (227); de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.S1-5.ª; de 10-11-2010, no processo n.º 23/08.1GAPTM-3.ª. Na expressão dos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 20-02-2008, proferido no processo n.º 4733/07 e de 8-10-2008, no processo n.º 2858/08, desta 3.ª Secção, na formulação do cúmulo jurídico, o conjunto dos factos fornece a imagem global do facto, o grau de contrariedade à lei, a grandeza da sua ilicitude; já a personalidade revela-nos se o facto global exprime uma tendência, ou mesmo uma “carreira”, criminosa ou uma simples pluriocasionalidade. ******* Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, unificado, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso - cfr., neste sentido, inter altera, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-03-2004, proferido no processo n.º 4431/03; de 20-01-2005, in CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 178; de 08-06-2006, processo n.º 1613/06 – 5.ª; de 07-12-2006, processo n.º 3191/06 – 5.ª; de 20-12-2006, processo n.º 3379/06-3.ª; de 18-04-2007, processo n.º 1032/07 – 3.ª; de 03-10-2007, processo n.º 2576/07-3.ª, in CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 198; de 09-01-2008, processo n.º 3177/07-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 181 (Na formação da pena conjunta é fundamental uma visão e valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares de modo a que a pena global reflicta a personalidade do autor e os factos individuais); de 06-02-2008, processo n.º 129/08-3.ª e da mesma data no processo n.º 3991/07-3.ª, este in CJSTJ 2008, tomo I, pág. 221; de 06-03-2008, processo n.º 2428/07 – 5.ª; de 13-03-2008, processo n.º 1016/07 – 5.ª; de 02-04-2008, processos n.º s 302/08-3.ª e 427/08-3.ª; de 09-04-2008, processo n.º 1011/08 – 5.ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08 – 3.ª; de 21-05-2008, processo n.º 414/08 – 5.ª; de 04-06-2008, processo n.º 1305/08 – 3.ª; de 25-09-2008, processo n.º 2891/08 – 3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08 – 3.ª; de 27-01-2009, processo n.º 4032/08 – 3.ª; de 29-04-2009, processo n.º 391/09 – 3.ª; de 14-05-2009, processo n.º 170/04.9PBVCT.S1 – 3.ª; de 27-05-2009, processo n.º 50/06.3GAVFR.C1.S1 – 3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 577/06.7PCMTS.S1 – 3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 8253/06.1TDLSB-3.ª; de 25-06-2009, processo n.º 274/07-3.ª, in CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 251 (a decisão que efectiva o cúmulo jurídico das penas parcelares necessariamente que terá de demonstrar fundamentando que foram avaliados o conjunto dos factos e a interacção destes com a personalidade); de 21-10-2009, processo n.º 360/08.5GEPTM.S1-3.ª; de 04-11-2009, processo n.º 296/08.0SYLSB.S1-3.ª; de 18-11-2009, processo n.º 702/08.3GDGDM.P1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 490/07.0TAVVD-3.ª; de 10-12-2009, processo n.º 496/08.2GTABF.E1.S1-3.ª (citado no acórdão de 23-06-2010, processo n.º 862/04.2PBMAI.S1-5.ª), ali se referindo: “Na determinação da pena única do concurso, o conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva a avaliação e conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos concorrentes. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira» criminosa), ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”; de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.L1.S1-5.ª; de 10-03-2010, no processo n.º 492/07.7PBBJA.E1.S1-3.ª; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1-5.ª; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 28-04-2010, no processo n.º 260/07.6GEGMR.S1-3.ª; de 05-05-2010, no processo n.º 386/06.3SLSB.S1-3.ª; de 12-05-2010, no processo n.º 4/05.7TDACDV.S1-5.ª; de 27-05-2010, no processo n.º 708/05.4PCOER.L1.S1-5.ª; de 09-06-2010, processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª; de 23-06-2010, no processo n.º 666/06.8TABGC-K.S1-3.ª; de 20-10-2010, processo n.º 400/08.8SZLB.L1.S1-3.ª; de 03-11-2010, no processo n.º 60/09.9JAAVR.C1.S1-3.ª; de 16-12-2010, processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª; de 19-01-2011, processo n.º 6034/08.0TDPRT.P1.S1-3.ª; de 02-02-2011, processo n.º 217/08.0JELSB.S1-3.ª; de 31-01-2012, processo n.º 2381/07.6PAPTM.E1.S1-3.ª; de 12-09-2012, processos n.º 223/07.1GCVIS.C1.S1-3.ª e 2745/09.0TDLSB.L1.S1-3.ª; de 06-02-2013, processo n.º 639/10.6PBVIS.S1-3.ª; de 14-03-2013, processo n.º 224/09.5PAOLH.S1 e n.º 13/12.0SOLSB.S1, ambos desta Secção e do mesmo relator; de 10-07-2013, processo n.º 413/06.4JAFAR.E2.S1-3.ª; de 12-09-2013, processo n.º 1445/09.6JAPRT.P1.S1-3.ª; de 04-06-2014, processo n.º 186/13.4GBETR.P1.S1-3.ª; de 17-12-2014, processo n.º 512/13.3PGLRS.L1.S1-3.ª.
Como refere Cristina Líbano Monteiro, A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166, o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente. A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes. *******
Como referimos, inter altera, nos acórdãos de 20 de Janeiro de 2010, de 24 de Fevereiro de 2010, de 9 de Junho de 2010, de 10 de Novembro de 2010, de 2 de Fevereiro de 2011, de 18 de Janeiro de 2012, de 5 de Julho de 2012, de 12 de Setembro de 2012 (dois), de 22 de Maio de 2013, de 1 de Outubro de 2014, de 17 de Dezembro de 2014 e de 29 de Abril de 2015, proferidos no processo n.º 392/02.7PFLRS.L1.S1, in CJSTJ 2010, tomo 1, pág. 191, processo n.º 655/02.1JAPRT.S1, processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª, processo n.º 23/08.1GAPTM.S1, processo n.º 994/10.8TBLGS.S1-3.ª, processo n.º 34/05.9PAVNG.S1, CJSTJ 2012, tomo 1, pág. 209, processo n.º 246/11.6SAGRD.S1, processos n.º 223/07.1GCVIS.C1.S1 e n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1, processo n.º 344/11.6PCBRG.G1.S1, processo n.º 11/11.0GCVVC.S1, processo n.º 512/13.6PGLRS.L1.S1 e processo n.º 791/12 ALQ.L2.S1: Todo este trabalho de análise global se justifica tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados pelo(a) condenado(a) é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a feridente repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de factores meramente ocasionais”. ******* Por outro lado, na confecção da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso. Cremos que nesta abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 1 de Outubro de 1995, com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que este específico dever de fundamentação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, sendo que, in casu, a ordem de grandeza de lesão dos bens jurídicos tutelados e sua extensão não fica demonstrada pela simples enunciação, sem mais, do tipo legal violado, o que passa pela sindicância do efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta. Neste sentido, podem ver-se aplicações concretas nos acórdãos de 21-11-2006, processo n.º 3126/06-3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228 (a decisão que efectue o cúmulo jurídico não pode resumir-se à invocação de fórmulas genéricas; tem de demonstrar a relação de proporcionalidade entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação dos factos e a personalidade do arguido); de 14-05-2009, no processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 10-09-2009, no processo n.º 26/05.8SOLSB-A.S1-5.ª, seguido de perto pelo acórdão de 09-06-2010, no processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª, ali se referindo que “Importa também referir que a preocupação de proporcionalidade a que importa atender, resulta ainda do limite intransponível absoluto, dos 25 anos de prisão, estabelecido no n.º 2 do art. 77.º do CP. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1- 5.ª, onde se afirma, para além da necessidade de uma especial fundamentação, que “no sistema de pena conjunta, a fundamentação deve passar pela avaliação da conexão e do tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica e pela avaliação da personalidade unitária do agente. Particularizando este segundo juízo - e apara além dos aspectos habitualmente sublinhados, como a detecção de uma eventual tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade que não radica em qualidades desvaliosas da personalidade - o tribunal deve atender a considerações de exigibilidade relativa e à análise da concreta necessidade de pena resultante da inter-relação dos vários ilícitos típicos”; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 21-04-2010, no processo n.º 223/09.7TCLSB.L1.S1-3.ª; e do mesmo relator, de 28-04-2010, no processo n.º 4/06.0GACCH.E1.S1-3.ª. Com interesse para o caso, veja-se o acórdão de 28-04-2010, proferido no processo n.º 260/07.6GEGMR.S1-3.ª, relativamente a onze crimes de roubo simples a agências bancárias. Como se refere no acórdão de 10-09-2009, processo n.º 26/05.8.SOLSB-A.S1, 5.ª Secção “a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas. Ora, esse efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas. Se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta. (Asserção repetida no acórdão do mesmo relator, de 23-09-09, no processo n.º 210/05.4GEPNF.S2 -5.ª). A preocupação de proporcionalidade a que importa atender resulta do limite intransponível absoluto dos 25 anos de prisão estabelecido no n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras. Como referimos nos acórdãos de 23-11-2010, processo n.º 93/10.2TCPRT.S1, de 2-02-2011, processo n.º 994/10.8TBLGS.S1, de 24-03-2011, processo n.º 322/08.2TARGR.L1.S1, de 12-09-2012, processos n.º 223/07.1GCVIS.C1.S1 e n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1, de 10-07-2013, processo n.º 413/06.4JAFAR.E2.S1, de 12-09-2013, processo n.º 1445/09.6JAPRT.P1.S1-3.ª e de 1-10-2014, processo n.º 344/11.6PCBRG.G1.S2 “A determinação da pena do concurso exige um exame crítico de ponderação conjunta sobre a conexão e interligação entre todos os factos praticados e a personalidade do seu autor, de forma a alcançar-se a valoração do ilícito global e entender-se a personalidade neles manifestada, de modo a concluir-se pela motivação que lhe subjaz, se emergente de uma tendência para delinquir, ou se se trata de mera ocasionalidade ou pluriocasionalidade não fundamentada na personalidade, tudo em ordem a demonstrar a adequação, justeza, e sobretudo, a proporcionalidade, entre a avaliação conjunta daqueles dois factores e a pena conjunta a aplicar e tendo em conta os princípios da necessidade da pena e da proibição de excesso. Importará indagar se a repetição operou num quadro de execução homogéneo ou diferenciado, quais os modos de actuação, de modo a concluir se estamos face a indícios desvaliosos de tendência criminosa, ou se estamos no domínio de uma mera ocasionalidade ou pluriocasionalidade, tendo em vista configurar uma pena que seja proporcional à dimensão do crime global, pois ao novo ilícito global, a que corresponde uma nova culpa, caberá uma nova, outra, pena. Com a fixação da pena conjunta não se visa re-sancionar o agente pelos factos de per si considerados, isoladamente, mas antes procurar uma “sanção de síntese”, na perspectiva da avaliação da conduta total, na sua dimensão, gravidade e sentido global, da sua inserção no pleno da conformação das circunstâncias reais, concretas, vivenciadas e específicas de determinado ciclo de vida do(a) arguido(a) em que foram cometidos vários crimes ”. Como se extrai dos acórdãos de 12-05-2010, processo n.º 4/05.7TACDV.S1-5.ª e de 16-12-2010, no processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª, a pena única deve reflectir a razão de proporcionalidade entre as penas parcelares e a dimensão global do ilícito, na ponderação e valoração comparativas com outras situações objecto de apreciação, em que a dimensão global do ilícito se apresenta mais intensa. Reportam ainda a ideia de proporcionalidade os acórdãos de 11-01-2012, processo n.º 131/09.1JBLSB.L1.-A.S1-3.ª; de 18-01-2012, processo n.º 34/05.9PAVNG.S1-3.ª; de 31-01-2012, processo n.º 2381/07.6PAPTM.E1.S1-3.ª; de 05-07-2012, processo n.º 246/11.6SAGRD.S1-3.ª e os supra referidos de 12-09-2012, processos n.º 223/07.1GCVIS.C1.S1-3.ª e n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1-3.ª; de 22-01-2013, processo n.º 651/04.4GAFLTG.S1-3.ª; de 27-02-2013, processo n.º 455/08.5GDPTM.S1-3.ª; de 22-05-2013, processo n.º 344/11.6PCBRG.G1.S1-3.ª; de 19-06-2013, processo n.º 515/06.7GBLLE.S1-3.ª; de 10-07-2013, processo n.º 413/06.4JAFAR.E2.S1-3.ª; de 12-09-2013, processo n.º 1445/09.6JAPRT.P1.S1-3.ª; de 26-09-2013, processo n.º 138/10.6GDPTM.S2-5.ª e de 3-10-2013, processo n.º 522/01.6TACBR.C3.S1-5.ª, onde pode ler-se: «O equilíbrio entre os efeitos “expansivo” e “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos critérios da “imagem global do ilícito” e da “personalidade do arguido”»; de 24-09-2014, processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1-3.ª; de 1-10-2014, processo n.º 344/11.6PCBRG.G1.S2-3.ª. Como se refere no acórdão de 2 de Maio de 2012, processo n.º 218/03.4JASTB.S1-3.ª, a formação da pena conjunta é uma solução para o problema de proporção resultante da integração das penas singulares numa única punição e o «restabelecimento do equilíbrio» entre crime isolado e pena singular, pelo que deve procurar-se que nas sucessivas operações de realização de cúmulo jurídico superveniente exista um critério uniforme de avaliação de tal proporcionalidade”. Como se pode ler no acórdão de 21 de Junho de 2012, processo n.º 38/08.0GASLV.S1, “numa situação de concurso entre uma pena de grande gravidade e diversas penas de média e curta duração, este conjunto de penas tem de ser objecto de uma especial compressão para evitar uma pena excessiva e garantir uma proporcionalidade entre penas que correspondem a crimes de gravidade muito díspar; doutro modo, corre-se o risco de facilmente se poder atingir a pena máxima, a qual deverá ser reservada para as situações de concurso de várias penas muito graves”. Focando a proporcionalidade na perspectiva das finalidades da pena, pode ver-se o acórdão de 27 de Junho de 2012, processo n.º 70/07.0JBLSB-D.S1-3.ª, onde consta: “A medida da pena única, respondendo num segundo momento também a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente: a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não eliminar, pela duração, as possibilidades de ressocialização (embora de difícil prognóstico pelos antecedentes)”. (Sublinhados nossos). Sobre os princípios da proporcionalidade, da proibição de excesso e da legalidade na elaboração de pena única pode ver-se o acórdão de 10-09-2014, processo n.º 455/08-3.ª, por nós citado no acórdão de 24-09-2014, proferido no processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1-3.ª.
Revertendo ao caso concreto.
A pena conjunta visa corresponder ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido condenado por pluralidade de infracções. Há que valorar o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do recorrente, em todas as suas facetas. Na elaboração da pena conjunta impõe-se fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, em ordem a adequar a medida da pena à personalidade que nos factos se revelou. Importa ter em conta a natureza e diversidade ou igualdade/similitude dos bens jurídicos tutelados, ou seja, a dimensão de lesividade da actuação global do arguido. E como referiu o supra citado acórdão de 27 de Junho de 2012, a pena única não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente em função da sua maior ou menor duração. No mesmo sentido os acórdãos de 22 de Janeiro de 2013, processo n.º 651/04.4GAFLG.S1-3.ª, de 4 de Julho de 2013, processo n.º 39/10.8JBLSB.L1.S1-3.ª sobre o ponto e, citando neste particular os acórdãos do mesmo relator, de 9 de Fevereiro de 2011, processo n.º 19/05.5GAVNG.S1-3.ª e de 23 de Fevereiro de 2011, processo n.º 429/03. 2PALGS.S1-3.ª. No mesmo sentido, o acórdão de 2 de Fevereiro de 2011, processo n.º 217/08.0JELSB.S1, igualmente da 3.ª Secção, citando expressamente Figueiredo Dias no passo assinalado (§ 421 págs. 291/2). No caso presente é evidente a conexão e estreita ligação entre os seis crimes de abuso sexual de criança e mais tarde de actos sexuais com adolescente, cometidos pelo recorrente, revelando a assunção de condutas homótropas, com afinidades e pontos de contacto nas situações analisadas. As circunstâncias do caso em apreciação apresentam um acentuado grau de ilicitude global, manifestado no número, na natureza e gravidade dos crimes praticados, nos bens jurídicos violados na área dos direitos de personalidade da menor abusada. Há que ter em conta o elevado alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade, com repercussões altamente negativas também em sede de prevenção geral. No que toca à prevenção especial, dúvidas não há de que o arguido carece fortemente de socialização, com necessidade de fidelização ao Direito, tendo-se em vista a prevenção da prática de futuros crimes. A pena unitária tem de responder à valoração, no seu conjunto e interconexão, dos factos e personalidade do arguido, afigurando-se-nos que no caso a pluralidade emerge de pluriocasionalidade. No caso presente estamos perante um quadro de sete crimes, sendo seis de abuso sexual de criança quando esta tinha 6, 7/8 e 12/13 anos de idade e um crime de actos sexuais com adolescente, quando tinha 14 e 15 anos de idade, todos com acentuada gravidade, não se indiciando propensão ou inclinação criminosas. Na verdade, a facticidade dada por provada não permite formular um juízo específico sobre a personalidade do arguido que ultrapasse a avaliação que se manifesta pela própria natureza dos factos praticados, não se mostrando provada tendência radicada na personalidade, ou seja, que o ilícito global seja produto de tendência criminosa do agente, antes correspondendo no singular contexto ora apreciado, a reiteração de condutas, ocorridas num período compreendido entre 24 de Março de 2004, data em que a menor perfez 6 anos de idade até 23 de Março de 2007, quando tinha 8 anos de idade e mais tarde, decorridos mais de 3 anos e 4 meses, de Dezembro de 2010 a Outubro de 2013 quando a menor contava entre 12 e 15 anos, restando a expressão de ocasionalidades procuradas pelo arguido. Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do arguido, tendo em conta a moldura do concurso que vai de 6 anos a 21 anos e 6 meses de prisão, atendendo ao conjunto dos factos, a conexão entre eles, com similitude do modo de execução de conduta, período temporal da actuação, é de concluir por um elevado grau de demérito da conduta do recorrente, sendo no caso de justificar-se intervenção correctiva por parte do Supremo Tribunal de Justiça, conferindo uma pena proporcional em relação ao ilícito global. Ponderados todos os elementos disponíveis, considerando a dimensão e a gravidade global do comportamento delituoso do arguido, não se estando perante uma situação que espelhe uma “carreira criminosa”, a sequência da prática dos crimes, pondera-se como adequada e proporcional a fixação da pena conjunta em 12 anos de prisão.
A pretendida imposição de medida de frequência de acompanhamento psicológico e/ou tratamentos médicos adequados referida na conclusão 99.ª não cabe neste âmbito recursivo, sendo questão nova, desconhecendo-se o enquadramento que a imporia, sendo questão a colocar em sede de execução de pena.
Decisão
Pelo exposto, acordam nesta 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA, e em consequência: I – Reduzir as penas parcelares indicadas nos pontos 4, 5, 6 e 7 do dispositivo do modo seguinte: 4) Pelo crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal - pena reduzida para 1 ano e 6 meses; 5) Pelo crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal - pena reduzida para 4 anos e 6 meses; 6) Pelo crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal - pena reduzida para 6 anos de prisão; 7) Pelo crime de actos sexuais com adolescentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 173.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal - pena reduzida para 1 ano e 6 meses. II – Fixar a pena única em doze anos de prisão. Sem custas, nos termos dos artigos 374.º, n.º 4, 513.º, n.º s 1, 2 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril e pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, rectificada com a Rectificação n.º 16/2012, de 26 de Março, pela Lei n.º 66-B/2012, de 31de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto, e pela Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro), o qual aprovou – artigo 18.º – o Regulamento das Custas Processuais, publicado no anexo III do mesmo diploma legal). Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP. Lisboa, 30 de Setembro de 2015 Raul Borges
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