Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2863/21.7YRLSB.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: ARBITRAGEM
DECISÃO ARBITRAL
IMPUGNAÇÃO
ANULAÇÃO
FUNDAMENTOS
OBJETO DO RECURSO
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
Data do Acordão: 03/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV) acolhe um sistema monista de impugnação da sentença arbitral, prevendo apenas o pedido de anulação a formular diretamente no Tribunal de 2ª Instância.

II. A decisão da impugnação pelo Tribunal de 2ª Instância é puramente cassatória e não permite que o Tribunal estadual conheça do mérito das questões decididas pela decisão arbitral.

III. A decisão arbitral pode ser anulada face ao estabelecido no art.º 46º, n.º 3, alínea b), ii), da Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV), se o tribunal estadual competente verificar que o conteúdo da decisão arbitral ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português, nomeadamente, o manifesto atropelo do princípio da autonomia da vontade.

IV. A ordem pública internacional encerra um conceito indeterminado que, como os demais, em qualquer ordem jurídica, terá de ser concretizado pelo juiz no momento da sua aplicação, tomando em conta as circunstâncias particulares do caso concreto, todavia, a sua atuação positiva sobre o resultado obtido pela decisão arbitral não comporta qualquer juízo sobre a adequação da aplicação nela feita do direito tido por aplicável e a ação preclusiva da ordem pública internacional incide unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da decisão.

V. O controlo que o Tribunal estadual tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado não se confunde com revisão. O tribunal estadual não julga novamente o litígio decidido pelo tribunal arbitral para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que este chegou, apenas deve verificar se a sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica, daí que a contrariedade à ordem pública internacional do Estado português a que alude o art.º 46º n.º 1 e nº 3, alínea b), ii), da Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV), pressuponha que essa decisão conduza a um resultado intolerável e inassimilável pela nossa comunidade, por constituir um efetivo atropelo grosseiro do sentimento ético-jurídico dominante e de interesses de primeira grandeza ou princípios estruturantes da nossa ordem jurídica.

Decisão Texto Integral:

   Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO


1. SUBURBS, SGPS, LDA. e BAROD, LTD.  intentou ação especial de anulação de sentença arbitral, nos termos do art.º 46° da Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro) contra, THE NAVIGATOR COMPANY SA. pedindo a anulação da sentença arbitral, proferida em 21 de setembro de 2021, pelo Tribunal Arbitral ad hoc constituído pelos Árbitros, Professor Doutor Pedro Pais de Vasconcelos, Professor Doutor Fernando Ferreira Pinto e Professor Doutor Miguel Catela.

Articulou, com utilidade, que o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral violou princípios de ordem pública internacional do Estado Português “como o princípio da boa-fé e o princípio da autonomia da vontade, sendo por essa razão anulável em face do disposto no artigo 46.º, n.º 3, al. b), [subalínea] ii) da LAV.”

2. A Ré contestou, por exceção e por impugnação, arguindo a caducidade da presente ação, por não ter sido proposta dentro do prazo de 60 dias estabelecido no art.º 46°, n.º 6 da Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, sustentando, outrossim, que a presente ação mais não constitui do que uma tentativa de contornar o princípio da irrecorribilidade das decisões arbitrais estabelecido no artigo 39.º, n.º 4 da LAV e na própria convenção de arbitragem, visando obter uma apreciação do mérito da causa, sob a capa da ofensa à ordem pública internacional do Estado português.

3. As Autoras apresentaram articulado de resposta à matéria da exceçãodeduzida pela Ré.

4. Findos os articulados, foi proferido despacho que, por ter considerado ser de natureza processual ou judicial (e não de índole substantiva) o prazo fixado no art.º 46°, n.º 6, da LAV, ordenou que as Autoras fossem notificadas nos termos e para os efeitos do art.º 139°, n.º 5, do Código de Processo Civil (por não terem pago imediatamente a multa devida pelo facto de terem proposto a presente ação no 1° dia útil subsequente ao termo do prazo de 60 dias de que dispunham para o fazer), tendo as Autoras pago a referida multa.

5. Foi proferido acórdão pelo Tribunal a quo, em cujo dispositivo se consignou: “Acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente esta acção especial de anulação de sentença arbitral.

Custas da acção a cargo das Autoras, em partes iguais (artigos 527°, n°s 1 e 2, e 528°, n° 1, do Código de Processo Civil).”

6. Inconformadas com o proferido acórdão, as Autoras/SUBURBS, SGPS, LDA. e BAROD, LTD. interpuseram recurso de revista, aduzindo as seguintes conclusões:

“1.ª - O acórdão recorrido enferma de manifesta nulidade, de acordo com o n.º 1 do art. 615.º do CPC, ex vi art. 685.º do CPC, pois conclui apenas pela inexistência de qualquer violação do princípio da autonomia da vontade, recusando sindicar a “interpretação da vontade negocial das partes” efetuada pelo Tribunal Arbitral, sem invocar qualquer fundamentação de facto e/ou de direito que motivou tal segmento decisório;

2.ª - O acórdão recorrido enferma, ainda, de erro de julgamento ao concluir pela improcedência da ação especial de anulação de sentença arbitral por ausência de qualquer ofensa aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, mormente o princípio da autonomia da vontade, com base na invocada impossibilidade de sindicância da “interpretação da vontade negocial das partes” levada a cabo pelo Tribunal Arbitral;

3.ª - Contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, no caso em apreço, sempre caberia ao Tribunal da Relação sindicar, com base nos invocados princípios violados, integradores da ordem pública internacional do Estado Português, todo o raciocínio seguido pelo Tribunal que proferiu a sentença arbitral objeto dos presentes autos, tanto em matéria de direito como em matéria de facto, uma vez que tal tem influência sobre a aplicabilidade de um princípio da ordem pública internacional do Estado Português;

4.ª Com efeito, o Tribunal Arbitral logrou concluir pela existência de obrigações e, em consequência, pelo seu incumprimento, que não resultam do acordo celebrado entre as Partes, constante dos factos 1 e seguintes da matéria de facto dada como provada, porquanto não resulta do mesmo qualquer obrigação de instalação de unidade fabril pela ora R. Barod ou qualquer outra obrigação para esta sociedade, em manifesta contrariedade com a ordem pública.

5.ª - Os poderes de cognição do Tribunal Arbitral não poderão, como tal, abranger o poder de determinar a violação de uma obrigação (seja a de instalação de uma unidade fabril em ..., seja a de um qualquer dever de exclusividade no fornecimento) que as Partes manifestamente não pretenderam estipular, sob pena de, extravasando os seus poderes, o Tribunal Arbitral violar o princípio da autonomia ou da liberdade contratual.

6.ª - O princípio da autonomia da vontade integra a ordem pública internacional do Estado Português, razão pela qual, ao optar por ir além da simples aplicação das regras de interpretação dos contratos antes pretendendo aditar cláusulas que as Partes não estipularam, o Tribunal Arbitral violou, na sentença arbitral proferida objeto dos presentes autos, o princípio da autonomia privada ou da autonomia da vontade.

7.ª Contrariamente ao decido no acórdão recorrido, a sentença arbitral violou princípios da ordem pública internacional do Estado Português, como o princípio da autonomia da vontade, sendo, por essa razão, anulável em face do disposto no artigo 46.º, n.º 3, al. b), ii) da LAV;

8.ª O acórdão recorrido enferma, assim, de manifesto erro de julgamento, tendo violado, frontalmente, o disposto no artigo 46.º, n.º 3, al. b), ii) da LAV ao não anular o acórdão arbitral que viola, manifestamente, o princípio da autonomia privada ou da autonomia da vontade e, como tal, princípio da ordem pública internacional do Estado Português.

NESTES TERMOS,

Deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido e julgando-se procedente a presente ação de anulação, com as legais consequências. SÓ ASSIM SE DECIDINDO SERÁ CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA.”.

7. A Recorrida/Ré/THE NAVIGATOR COMPANY SA apresentou contra-alegações.

8. Foram dispensados os vistos.

9. Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pelas Recorrentes/Autoras/SUBURBS, SGPS, LDA. e BAROD, LTD., consiste em saber se:

(1) Contrariamente ao decido no acórdão recorrido, a sentença arbitral violou princípios da ordem pública internacional do Estado Português, como o princípio da autonomia da vontade, recusando sindicar a “interpretação da vontade negocial das partes” efetuada pelo Tribunal Arbitral, sem invocar qualquer fundamentação de facto e/ou de direito que motivou o respetivo segmento decisório, sendo, por essa razão, anulável em face do disposto no art.º 46º, n.º 3, alínea b), ii) da Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV)?


II. 2. Da Matéria de Facto


Os factos relevantes, a par do precedente relatório, são as seguintes:

1)   As aqui Autoras e a ora Ré celebraram, em 2015, um conjunto de instrumentos contratuais, descritos a págs. 4 e seguintes da decisão arbitral aludida em 9), nomeadamente o Contrato de compra e venda de ações e de créditos acionistas (“Contrato”) e o Acordo de concessão de desconto comercial e de cedência de equipamento (“Acordo”).

2)   O Acordo previa a concessão pela aqui Ré à aqui 2.ª Autora - a Barod. Ltd. - de descontos comerciais na aquisição de bobines de papel tissue fabricadas pela Ré, para conversão em papel higiénico na fábrica que a Barod Ltd. iria instalar em ... (cfr. a cláusula Primeira do “Acordo de Concessão de Desconto Comercial e Cedência de Equipamento” transcrita no art. 22° da Petição Inicial desta acção).

3)   Alternativamente, a aqui 2.ª Autora podia concretizar a atribuição de desconto comercial através da prestação de serviços de representação comercial de produtos da aqui Ré (tissue e papel de impressão), para o mercado de ..., auferindo uma remuneração pela prestação desses serviços (cfr. a cláusula primeira do Acordo transcrita no artigo 22° da PI desta acção).

4)    As referidas partes do Acordo estabeleceram um horizonte temporal máximo de validade para o Acordo, bem como um montante máximo dos benefícios suscetíveis de serem atribuídos à 2.ª Autora, seja pela via de desconto comercial, seja pela via de comissões de representação, que cumulativamente poderia atingir um máximo de €2.000.000,00 (dois milhões de euros), durante o período de vigência do Acordo.

5)    Em 2019, as aqui Autoras acionaram a convenção arbitral e vieram interpor ação pedindo a condenação da ora Ré no pagamento dos €2.000.000,00 acima descritos, acrescidos de juros de mora, alegando que esses dois de milhões de euros faziam parte do preço do Contrato e que o Acordo lhes conferia o direito ao recebimento dessa importância, a título de vantagem patrimonial financeira, independentemente de qualquer atuação da parte da 2.ª Autora;

6)  A ora Ré alegou, na sua contestação, que (i) o preço fora integralmente pago aquando do financial closing do Contrato, que (ii) o Acordo constituía um negócio distinto do Contrato e que (iii) foi celebrado no interesse de ambas as partes, baseado na confiança depositada nas declarações da aqui 2.ª Autora em como iria instalar uma fábrica em ... e ainda que (iii) o Acordo foi incumprido por causas exclusivamente imputáveis à Barod Ltd., pelo que nada lhe era devido pela Navigator.

7)  Além disso, a aqui Ré deduziu, na sua Contestação, pedidos reconvencionais contra as ora Autoras;

8)   Constituído o Tribunal Arbitral, e fixado o objeto do litígio, foram fixadas, em audiência preliminar realizada em 17 de novembro de 2020, as seguintes questões a decidir:

a)    Vontade real das partes quanto aos contratos entre si celebrados;

b)   Relação entre o Contrato de Compra e Venda de Acções e o Acordo de Desconto Comercial;

c)    Função económica e conteúdo do Acordo de Desconto Comercial;

d)   Sentido relevante das Cláusulas 1ª e 2ª do Acordo de Desconto Comercial, em função, quer da respectiva redacção, quer do contexto negocial;

e)    Razões por que a Barod não estabeleceu a fábrica em ... (unidade de converting de papel tissue) e se era ou não viável a prestação dos serviços de representação comercial previstos no Acordo;

f)    Existência ou não de uma expectativa da Navigator na construção dessa fábrica e, em caso afirmativo, se e porque a mesma se consolidou; relevância dessa expectativa na economia do Acordo de Desconto Comercial; da existência ou não de um interesse relevante da Navigator na construção dessa fábrica e, mais genericamente, na actividade da Barod em África, nomeadamente em ...;

g)    Existência ou não de um direito da Barod ao recebimento do valor de €2.000.000,00 e consequências do incumprimento da obrigação correspectivo;

h) Conduta das partes durante o período de vigência do Acordo Comercial a respeito da execução do mesmo;

i) Entrega do equipamento nos termos da cláusula 2ª do Acordo Comercial e eventual direito da Demandada ao reembolso do valor da mesma;

j) Cálculo da eventual indemnização devida pela Barod em função do alegado incumprimento do Acordo de Desconto Comercial; factores determinantes desse cálculo;

9)   Adicionalmente, o Tribunal Arbitral teria ainda de conhecer das excepções deduzidas pelas partes, a saber:

a)    Ilegitimidade processual da Suburbs;

b)    Excepção de não cumprimento do contrato;

c)    Enriquecimento sem causa;

d)    Abuso de direito;

e)    Ineptidão do pedido reconvencional;

10)  A final, foi proferido, pelo Tribunal Arbitral constituído ad hoc pelos Árbitros Professor Doutor Pedro Pais de Vasconcelos, Professor Doutor Fernando Ferreira Pinto e Professor Doutor Miguel Catela, um Acórdão, datado de 21-12-2021, que:

a)   julgou procedente a excepção de ilegitimidade processual da Demandante Suburbs deduzida pela Navigator na sua contestação;

b)    julgou procedente a excepção de não cumprimento do contrato, por parte da Barod, deduzida pela Navigator na sua contestação;

c)    julgou improcedente a excepção de abuso do direito, por parte da Barod, quanto à exigência do pagamento da quantia de dois milhões de euros, deduzida pela Navigator (por ter entendido que o direito invocado pela Barod ao recebimento de dois milhões de euros não existe;

d)    julgou procedente o pedido de condenação da Barod no pagamento de €170.000,00 à Navigator, a título de cumprimento da obrigação de restituir o enriquecimento sem causa de que beneficiou à custa da Navigator,

e)   julgou prejudicado o conhecimento da excepção de ineptidão do pedido reconvencional deduzida pela demandada Navigator,

f)    Julgou totalmente improcedente o pedido formulado pelas Demandantes;

g)   julgou improcedente o pedido reconvencional da Demandada relativo a indemnização por lucros cessantes;

h) julgou procedente o pedido reconvencional da Demandada em ser compensada pelo valor de €170.000,00, com fundamento em enriquecimento sem causa.”


II. 3. Do Direito


O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes/Autoras/SUBURBS, SGPS, LDA. e BAROD, LTD, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil - .

II. 3.1. Contrariamente ao decido no acórdão recorrido, a sentença arbitral violou princípios da ordem pública internacional do Estado Português, como o princípio da autonomia da vontade, recusando sindicar a “interpretação da vontade negocial das partes” efetuada pelo Tribunal Arbitral, sem invocar qualquer fundamentação de facto e/ou de direito que motivou o respetivo segmento decisório, sendo, por essa razão, anulável em face do disposto no art.º 46º, n.º 3, alínea b), ii) da Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV)? (1)

1. O exercício da função jurisdicional é reservado, em primeira mão, aos tribunais, órgãos de soberania, sendo a jurisdição plena exercida pelos juízes estaduais, todavia, conforme consignado na Constituição da República Portuguesa, poderão ser constituídos tribunais arbitrais, donde, o Estado quebra o monopólio do exercício da função jurisdicional dos seus órgãos, atribuindo à respetiva decisão os efeitos próprios da sentença judicial, quais sejam, a força de caso julgado e a força executiva.

Estabelece a este propósito o art.º 209º nºs. 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa que podem existir tribunais arbitrais, determinando a lei os casos e as formas em que estes tribunais se podem constituir, separada ou conjuntamente, em tribunais de conflitos, daí que os Tribunais arbitrais, podem ser necessários, quando, tendo em consideração concretas questões, a sua constituição é imposta por lei, ou voluntários, se resultam da vontade das partes, a instituir através de uma convenção de arbitragem, sublinhando-se, neste particular da arbitragem voluntária que as respetivas decisões assumem os efeitos próprios da sentença judicial, como já adiantamos, a força de caso julgado e a força executiva - art.º 42º n.º 7 da Lei n.º 63/2011 de 14 de Dezembro, a designada Lei da Arbitragem Voluntária (LAV).

Porque ao caso trazido a Juízo interessa, importa considerar a constituição da arbitragem voluntária.

A doutrina e jurisprudência (a título de exemplo, Francisco Cortez, in, A Arbitragem Voluntária em Portugal, O Direito, página 555; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Janeiro de 2000, in, www.dgsi.pt) aceitam pacificamente que o Estado, ao fazer participar os tribunais arbitrais no exercício da função jurisdicional, quebra o velho dogma do monopólio estadual, não da titularidade, mas do exercício da função jurisdicional.

 Estabelece o art.º 1º n.º 1 da Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV) “desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente a tribunal do Estado ou a arbitragem necessária, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros.”

A arbitragem voluntária é, assim, contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado.

2. Como nota prévia, impõe-se sublinhar que a questão da admissibilidade do recurso de revista de acórdão da Relação proferido em ação de anulação de sentença arbitral, encontra-se resolvida em sentido afirmativo pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, arrimando-se, para o efeito, a orientação sustentada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de novembro de 2016 (Processo n.º 1052/14.1TBBCL.P1.S1), in, www.dgsi.pt, em cuja síntese conclusiva, reproduzindo fielmente o respetivo enquadramento jurídico,  se consignou:


“I. A norma constante do nº 1 do art. 671º do CPC não deve interpretar-se no sentido de pretender excluir cabalmente o exercício do duplo grau de jurisdição nas causas em que a Relação haja excepcionalmente actuado, não como tribunal de recurso, mas como órgão jurisdicional que, em 1ª instância, apreciou o objecto do litígio - como ocorre com as acções de anulação de sentença arbitral, necessariamente iniciadas perante esse Tribunal.

II. Na verdade, numa interpretação funcionalmente adequada do sistema de recursos que nos rege, não se vê razão bastante para excluir o normal exercício pelo STJ do duplo grau de jurisdição sobre decisões finais proferidas pela Relação, em acções ou procedimentos que, nos termos da lei, se devam obrigatoriamente iniciar perante elas - podendo convocar-se relevantes lugares paralelos, em que o acesso ao STJ está assegurado, relativamente a decisões finais proferidas em causas apreciadas em 1ª instância pelas Relações, como ocorre com as acções especiais de indemnização contra magistrados ou com a revisão de sentença estrangeira.

III. É, assim, admissível a revista interposta do acórdão da Relação que apreciou a referida acção anulatória - não incluindo, porém, o seu objecto qualquer reapreciação do mérito da causa, vedado aos Tribunais estaduais pelo art. 46º, nº 9, da LAV, destinando-se o recurso, apenas e estritamente, a apurar da verificação ou inverificação dos específicos fundamentos de anulação da sentença arbitral, invocados pelo autor.”

3. Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre salientar que a Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV) apenas permite a impugnação da sentença arbitral pela via do pedido de anulação dirigido ao competente tribunal estadual (só prevendo, como forma de reação à dita sentença, a via do recurso nos casos em que as partes tiverem acordado na recorribilidade da decisão dos árbitros para os tribunais estaduais; o pedido de anulação, que origina uma forma procedimental autónoma, moldada pelas regras da apelação no que se não mostre especialmente previsto no n.º 2 do art.º 46º da Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro) e pressupõe a verificação de algum ou alguns dos fundamentos taxativamente previstos na Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV), invocado(s) pelo demandante na ação que propõe, e, naturalmente, incluídos no âmbito das conclusões que formula na revista que interpõe do acórdão da Relação que julgou a ação anulatória, sendo que tal pretensão não envolve um amplo conhecimento do mérito da decisão que se pretende anular.

4. Considerado admissível a presente revista temos que o respetivo objeto está circunscrito à questão da verificação ou inverificação do específico fundamento de anulação do acórdão arbitral, invocado pelas Recorrentes/Autoras/SUBURBS, SGPS, LDA. e BAROD, LTD, ou seja, a questão a abordar é a de saber se a confirmação da decisão arbitral proferida no litígio que opõe as aqui litigantes, conduz ou não a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português.

5. Cotejado o acórdão arbitral e o percurso lógico jurídico nele seguido, não reconhecemos como verificada a arrogada nulidade da decisão arbitral proferida.

6. Perante os termos da pretensão anulatória que constitui o objeto deste recurso de revista, em conjugação com o estabelecido no art.º 46º, n.º 3, alínea b), ii), da Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV), distinguimos que a decisão arbitral pode ser anulada se o tribunal estadual competente verificar que o conteúdo da decisão arbitral ofende, claramente, os princípios da ordem pública internacional do Estado português, nomeadamente, com o putativo atropelo do princípio da autonomia da vontade, arrogado pelas Recorrentes/Autoras/SUBURBS, SGPS, LDA. e BAROD, LTD.

7. A propósito da anulação da decisão arbitral pelo tribunal estadual ao abrigo art.º 46º n.º 3, alínea b), ii), da Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV), respigamos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de setembro de 2017 (Processo n.º 1008/14.4YRLSB.L1.S1), orientação que sufragamos e que de seguida adiantamos: “(…) o princípio da autonomia privada reconduz-se a uma permissão genérica de conduta a todos os sujeitos da ordem jurídica, possibilitando-lhes estabelecer os efeitos jurídicos que se irão repercutir na sua esfera jurídica, através da liberdade de celebração do contrato e de fixação de conteúdo do mesmo.

Porém, a constatação de ter havido um abuso ou um aproveitamento excessivo da autonomia privada implica o reconhecimento de que o contrato não assentou numa igualdade jurídico-económica, ou seja, afinal, em tal autonomia, o que conduz à contenção da liberdade contratual, mediante a intervenção do Estado, no interesse colectivo, munido dos comandos resultantes, tanto da falada cláusula da “ordem pública”, como dos da boa-fé e dos “bons costumes”.


Ora, a constatação de a arbitragem, em si mesma, ter como corolário o princípio da autonomia privada - que rege as relações dos particulares entre si, fundadas na sua igualdade jurídica e na sua autodeterminação - não colide com a aplicação de tal cláusula ao resultado de uma decisão arbitral com que se tenha pretendido solucionar um litígio emergente de uma situação da vida real, porquanto a reserva por ela imposta visa, precisamente, estabelecer limites a essa autonomia face a outros princípios ou valores que o ordenamento quer preservar.

Com efeito, a ordem pública é um elemento limitador da liberdade das partes em contratar.

Deparamos, pois, com uma cláusula geral cuja atuação, à partida, não pode ser arredada apenas por estar em causa a “confirmação” de uma decisão com origem na autonomia privada, tanto quanto ao seu desencadeamento como ao mecanismo nela usado para solucionar o litígio que lhe foi submetido.

Com efeito, uma interpretação que fosse ao ponto de, quaisquer que fossem os particulares contornos dum caso em apreciação, considerar vedada a intervenção da reserva da ordem pública internacional em relação ao resultado da aplicação do contratualmente estipulado pelas partes no âmbito da respectiva autonomia conduzir-nos-ia, na prática, não apenas à proscrição da citada norma - porque a mesma, evidentemente, só se justifica para limitar, precisamente, a autonomia privada diante de outros princípios ou valores que o ordenamento jurídico quer preservar (“Embora a arbitragem voluntária seja fortemente dominada pelo princípio da autonomia privada, é óbvio que existem limites à autodeterminação das partes. Estas não podem, através do recurso à arbitragem, derrogar, contornar, atenuar e/ou fugir à aplicação de normas e princípios de ordem pública” (A. P. Pinto Monteiro, no cit. artigo “Da Ordem Pública no Processo Arbitral”, p 672). Também M. Pereira Barrocas, in “A Ordem Pública na Arbitragem”, in Separata da Rev. da Ordem dos Advogados, Ano 74, Jan./Mar.2014, exibe “cautelas a observar na aplicação do critério super restritivo”) - como à eventual afronta de princípios e valores fundamentais plasmados na nossa Constituição, de cujo primado já decorre a informação e a conformação de tal reserva (“Tende hoje a entender-se que as normas e princípios constitucionais, principalmente os que tutelam direitos fundamentais, não só informam mas também conformam a ordem pública internacional” (Sampaio Caramelo – “O reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras”, Almedina, Coimbra, 2016, p. 663).

Trata-se, portanto, de um conceito indeterminado, que, como os demais, em qualquer ordem jurídica, terá de ser concretizado pelo juiz no momento da sua aplicação, tomando em conta as circunstâncias particulares do caso concreto (“Só perante das circunstâncias do caso concreto se pode dizer se uma determinada violação de um princípio ou norma fundamental é intolerável” (Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, I, 2014, p. 659).”

8. Revertendo ao caso trazido a Juízo, e escrutinada a decisão arbitral, enxergamos que o aresto proferido está bem cadenciado, com relatório donde consta indicação bastante dos termos da causa, com posterior consignação precisa das principais questões que importa solucionar, ao que se segue a facticidade apurada (e respetiva motivação), e a fundamentação de direito, onde se procedeu à análise jurídica em função das questões enunciadas, deixando afirmados princípios e conceitos jurídicos aplicáveis, tendo-se concluído pelo segmento decisório.

9. A decisão da impugnação pelo Tribunal de 2ª Instância é puramente cassatória e não permite, como já adiantamos, que o Tribunal estadual conheça do mérito das questões decididas pelo acórdão arbitral, sendo que do acórdão recorrido, recolhemos copiosos contributos decorrentes da jurisprudência e doutrina no sentido de densificar a vaguidade do conceito da “ordem pública internacional”, dispensando-nos de enveredar por uma fastidiosa consignação desta mesma enunciação, respigando apenas, neste particular, do acórdão recorrido:

“2) Se o Acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral violou princípios da ordem pública internacional do Estado Português, a saber: o princípio da boa-fé e o princípio da autonomia da vontade, sendo por essa razão anulável em face do disposto no artigo 46.º, n.°3, ai. b), subalínea ii) da LAV

As Autoras alegam que o Acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral em 21-09-2021 violou princípios de ordem pública internacional do Estado Português "como o princípio da boa-fé e o princípio da autonomia da vontade, sendo por essa razão anulável em face do disposto no artigo 46°, n.°3, al. b), [subalínea] ii) da LAV.

Isto porque:

-    Resulta do decidido no ponto f) dessa mesma decisão (fls. 28 a 39 da sentença arbitral) que a Barod não fez o que dela era esperado, que era concluir a fábrica instalando nela a máquina recebida da Navigator, proceder ao seu arranque e operação e encomendar da Navigator as bobinas de papel tissue dentro do preço previsto ou encomendá-las a outro fornecedor se a esta as não fornecesse dentro dos limites de preço estipulados.

-    Ora, do instrumento denominado Acordo de Concessão de Desconto Comercial e Cedência de Equipamento celebrado entre as partes, não resulta qualquer dever de exclusividade pela A. Barod;

-    Ou seja, ainda que instalasse qualquer unidade fabril em ..., a A. Barod poderia, se assim o entendesse, não recorrer ao fornecimento de material pela Ré ou recorrer a esta apenas pontualmente;

-    Sucede que o plano de risco do acordo era exatamente a não instalação da unidade fabril ou a sua instalação não atempada;

-     Do Acordo de Desconto Comercial não resulta qualquer obrigação de instalação de uma unidade fabril pela Demandante - ao contrário que foi pressuposto no ponto f) da decisão ora impugnada;

-    O mesmo se diga quanto à estipulação de qualquer obrigação de exclusividade.

-     Assim, a decisão arbitral objeto de impugnação viola o princípio da autonomia privada ou da autonomia da vontade;

-     A decisão arbitral, ao sujeitar a A. Barod ao cumprimento de uma obrigação que ela não declarou assumir, quando essa declaração expressa se revela essencial (o compromisso de instalação de uma unidade fabril e a atribuição de um qualquer exclusivo à Ré), restringe de forma manifesta a liberdade contratual da A.;

-     Trata-se de uma obrigação imposta ou ditada pelo tribunal arbitral, sem correspondência com a vontade expressa, declarada, do contraente.

-     A decisão arbitral modela o conteúdo da obrigação sem correspondência com a vontade expressa do contraente, quando a mesma é, ou devia ser, fundamental à sua existência

Quid júris?

Há que distinguir, desde logo, entre a ordem pública de direito material - a que se referem, nomeadamente, os artigos 81°, n° 1, 182°, al. d), 192°, n° 2, al. d), 271°, 280°, 345°, 465°, al. a), 800°, n° 2, 967°, 1083°, n° 2, al. b), 2186°, 2230°, n° 2, e 2245° do Código Civil - e a excepção ou reserva de ordem pública internacional (ou ordem pública de direito internacional privado) prevista no art. 22° do Código Civil e no art. 978°, al. f), do Código de Processo Civil de 2013 (correspondente ao art. 1096°, al. f), do Código de Processo Civil de 1961).

(…)

No caso dos autos, os princípios de ordem pública internacional do Estado Português alegadamente violados pela sentença do Tribunal arbitral impugnada na presente acção são: o princípio da boa-fé e o princípio da autonomia da vontade.

Quid júris?

Como vimos, só muito excepcionalmente é que a contrariedade a regras e princípios que não tenham dignidade constitucional pode desencadear a actuação da reserva de ordem pública internacional.

Excepcionalmente, poderão existir princípios fundamentais estruturantes da ordem jurídica portuguesa que não tenham dignidade constitucional, mas terão de resultar de uma sedimentação e consolidação em sectores importantes da ordem jurídica, mediante uma consagração legislativa ou consuetudinária, facultada pela vontade colectiva manifestada pelos órgãos do poder político com competência legislativa ou pelo consenso social.

A jurisprudência já considerou que o princípio pacta sunt servanda, entendido no sentido de que os contratos livremente firmados existem para serem cumpridos, obrigando as partes nos precisos limites da lei, integra o conceito de ordem pública internacional do Estado português - Acórdão da Relação de Lisboa de 13-07-2017 (Proc. n° 1358/16.5YRLSB-7; relator - GRAÇA AMARAL), acessível on-line in: www.dgsi.pt.

Na doutrina, ANTÓNIO SAMPAIO CARAMELO e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e outros incluem a proibição do abuso de direito, o princípio da boa-fé e da protecção da confiança, a proibição do locupletamento (e do empobrecimento) à custa de outrem e o princípio da autonomia da vontade concretizado no princípio da liberdade contratual entre os princípios jurídicos que, na nossa ordem jurídica, fazem parte da ordem pública internacional, para efeitos do cit. art. 46°, n° 3, ai. b), subalínea ii), da LAV.

Só que, quando o tribunal judicial tem de decidir se anula ou não a sentença arbitral impugnada, com fundamento na alegada ofensa da ordem pública internacional, está-lhe vedado proceder à revisão do mérito do litígio decidido pela sentença arbitral: cabe-lhe apenas verificar se o resultado material (ou seja, os efeitos jurídicos criados pela decisão arbitral nas esferas jurídicas das partes) da decisão proferida pelo tribunal arbitral é contrário às regras e princípios jurídicos que constituem a ordem pública internacional do Estado português. (sublinhado nosso)

É o conteúdo da sentença arbitral que é controlado, mas é em função do seu resultado que ela deverá ser sancionada. Embora todo o raciocínio do árbitro deva poder ser examinado pelo juiz, o controlo deste deve incidir, não sobre esse raciocínio, mas sobre a solução dada ao litígio. O controlo do juiz sobre a sentença do árbitro deve ser efectuado com o preciso fim de apurar se a situação criada pela sentença arbitral ofendeu, concreta e gravemente, os objectivos prosseguidos pelas regras e princípios de ordem pública aplicáveis ao caso. (sublinhado nosso)

No caso dos autos, as Autoras baseiam a sua alegação de que a sentença arbitral teria violado o princípio da boa-fé e o princípio da autonomia da vontade na imputação à decisão arbitral duma interpretação errónea do instrumento denominado Acordo de Concessão de Desconto Comercial e Cedência de Equipamento celebrado entre as partes, porquanto - ao contrário do que foi pressuposto naquela decisão -, não resultaria daquele instrumento qualquer obrigação, por parte da Demandante Barod, Ltd., de instalação de uma unidade fabril em ..., nem a estipulação de qualquer obrigação de exclusividade (já que, ainda que instalasse qualquer unidade fabril em ..., a Autora Barod poderia, se assim o entendesse, não recorrer ao fornecimento de material pela Ré).

Ora, ao tribunal estadual incumbido de decidir se deve ou não anular a sentença arbitral está vedado, porque isso envolveria uma reapreciação do mérito do litígio decidido pelo Tribunal Arbitral, sindicar se este último interpretou correcta ou erroneamente a vontade das partes contratantes no aludido Acordo de Concessão de Desconto Comercial e Cedência de Equipamento. (sublinhado nosso)

Tenha ou não o Tribunal Arbitral interpretado correctamente a vontade negocial dos contratantes no mencionado Acordo de Concessão de Desconto Comercial e Cedência de Equipamento, a solução dada ao litígio - denegando a pretensão indemnizatória das Demandantes, por ter considerado que o invocado direito da Demandante Barod a descontos nos preços de fornecimento dependia de ter ocorrido o fornecimento de bobinas, e que a remuneração na comercialização em produtos da Navigator dependia de ter havido a opção pela assunção da posição de representante comercial da Navigator pela Barod, de sorte que, não se tendo verificado qualquer destes casos, não há fundamento jurídico para a pretensão da Barod, porque foi a Barod que o impediu ao não concluir a fábrica, não a colocar em funcionamento, vender a máquina a terceiro, ao não encomendar qualquer bobina de papel tissue e finalmente ao não exercer a opção pela representação comercial de produtos da Navigator em ... - não é ostensivamente violadora do princípio da boa fé. Efectivamente - segundo o raciocínio dos Árbitros vertido na Sentença arbitral - a pretensão da Barod de receber a quantia de €2.000.000 é incongruente com o plano de risco do contrato, é contrária à boa-fé e colide com o n° 2 do artigo 762° do Código Civil, porquanto foi a própria Barod que impossibilitou a realização do programa contratual ao não instalar a máquina na fábrica, ao não concluir nem arrancar nem fazer funcionar a fábrica, ao não ter encomendado qualquer bobina de papel tissue à Navigator, e ao não ter instalado na fábrica e vendido a terceiro a máquina.

Este raciocínio jurídico, assente na interpretação da vontade negocial dos intervenientes no Acordo de Concessão de Desconto Comercial e Cedência de Equipamento feita pelo Tribunal Arbitral (segundo a qual a celebração do Acordo criou na Navigator, mais do que uma forte expectativa, a convicção de que a fábrica de converting da Barod seria construída,   entraria em funcionamento e utilizaria como matéria-prima rolos de papel tissue adquiridos à Navigator, o que corresponderia à abertura de um novo mercado para a Navigator, não só para o papel tissue mas também para outros produtos seus) mostra que o Tribunal Arbitral não desconsiderou o princípio da boa-fé, antes fundou nele a improcedência da pretensão da Demandante Barod, por ter entendido que esta pretensão seria contrária a tal princípio, já que foi a Barod (e não a Demandada Navigator) quem impossibilitou a realização do programa contratual, ao não instalar a máquina na fábrica, ao não concluir nem arrancar nem fazer funcionar a fábrica, ao não ter encomendado qualquer bobina de papel tissue à Navigator, e ao não ter instalado na fábrica e vendido a terceiro a máquina.

A invocação duma pretensa violação, pela Sentença arbitral, do princípio da autonomia da vontade, consubstanciada numa alegada violação da liberdade de iniciativa económica, consagrada no artigo 61°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa, entendida como a liberdade de reger livremente a organização em que assenta a empresa constituída para a prossecução de uma atividade, mostra-se ainda mais carente de fundamentação do que a alegação da pretensa violação do princípio da boa-fé.

Na verdade, o princípio da autonomia da vontade e da liberdade de iniciativa económica não é minimamente beliscado pelo facto de a pretensão indemnizatória da ora Demandante ser denegada, com base numa interpretação da vontade negocial das partes - cujo acerto ou desacerto esta Relação não pode sindicar, no âmbito desta acção de anulação de sentença arbitral - segundo a qual a celebração do Acordo de Concessão de Desconto Comercial e Cedência de Equipamento criou na Navigator, mais do que uma forte expectativa, a convicção de que a fábrica de converting da Barod seria construída, entraria em funcionamento e utilizaria como matéria-prima rolos de papel tissue adquiridos à Navigator, o que corresponderia à abertura de um novo mercado para a Navigator, não só para o papel tissue mas também para outros produtos seus.

Assim sendo, não se vislumbra que a Sentença proferida pelo Tribunal Arbitral em 21-09-2021 tenha ofendido quaisquer princípios da ordem pública internacional do Estado português, nomeadamente os invocados princípios da boa-fé e da autonomia da vontade. (sublinhado nosso)”.

10. Daqui decorre, afirmamos sem reservas, que as linhas orientadoras consignadas e que aprovamos, permitem afirmar que a decisão arbitral que constitui o objeto desta ação, não conduz a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português, não constitui atropelo do princípio da autonomia da vontade, tampouco o acórdão recorrido se recusou a sindicar a “interpretação da vontade negocial das partes” efetuada pelo Tribunal Arbitral, conforme vimos de consignar, revelando o acórdão recorrido uma desenvolvida fundamentação de facto e de direito que justifica a inexistência de fundamento que determine a anulação da decisão arbitral nos termos do art.º 46º, n.º 3, alínea b), ii) da Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV), devendo ser recusado o pedido da sua anulação, razão pela qual não merece censura o acórdão recorrido, pois, como não é despiciendo reafirmar, não se cuida aqui de refletir sobre uma suposta divergência entre as regras de direito que foram utilizadas na decisão arbitral e as que seriam aplicadas pelos tribunais estaduais ou de aquilatar da adequação da fundamentação de facto ou de direito por estes usada na concretização das estatuídas consequências do (declarado) segmento decisório, nem, também, de aferir da bondade do entendimento expresso na questionada decisão.

É indiferente o direito aplicado ao fundo da causa na decisão arbitral em questão, já que se trata apenas de saber se o respetivo resultado afronta, pelo seu conteúdo, princípios estruturantes da nossa ordem jurídica, a ponto de esta não poder tolerar que ela constitua solução válida e vinculativa para o litígio sobre que versou, o que, como vimos, não é o caso.

Com tal pressuposto, o efeito jurídico que a aplicação de tal raciocínio produziu não é incompatível - muito menos, manifestamente - com os postulados basilares da ordem pública internacional do Estado português, quaisquer que sejam as luzes ou os termos usados para preencher tal conceito indeterminado.

Significa isto que a decisão condenatória proferida, cujo mérito não cabe sindicar nos presentes autos, não ofende o princípio da autonomia da vontade, enquanto postulado elementar da ordem pública internacional do Estado português, encontrando-se suficientemente fundamentada, nos planos factual e jurídico, sendo perfeitamente percetível o iter lógico jurídico que nela se seguiu para demonstrar a salvaguarda daquele princípio atinente à autonomia da vontade e da liberdade de iniciativa económica, justificando que o mesmo não foi minimamente beliscado pelo facto de a pretensão indemnizatória da Demandante ser denegada com base numa interpretação da vontade negocial das partes, segundo a qual a celebração do Acordo de Concessão de Desconto Comercial e Cedência de Equipamento criou na Navigator, mais do que uma forte expectativa, a convicção de que a fábrica de converting da Barod seria construída, entraria em funcionamento e utilizaria como matéria-prima rolos de papel tissue adquiridos à Navigator, o que corresponderia à abertura de um novo mercado para a Navigator, não só para o papel tissue, mas também para outros produtos seus, cujo acerto ou desacerto, de resto, acentua-se, o Tribunal recorrido não pode modificar, no âmbito da ação de anulação de sentença arbitral, conforme discreteamos.

Na inteligibilidade do discurso decisório, e acreditando ser despiciendo quaisquer outras considerações, concluímos pela não ocorrência da arrogada nulidade do acórdão recorrido, por mor da inverificada alegação da violação dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, como o princípio da autonomia da vontade, reconhecendo-se que o acórdão recorrido não merce reparo, devendo ser mantido, e por consequência a decisão arbitral, improcedendo, pois, as conclusões aduzidas no presente recurso.


III. DECISÃO

Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em negar provimento à revista, confirmando o decidido no acórdão recorrido.

Custas pelas Recorrentes/Autoras/SUBURBS, SGPS, LDA. e BAROD, LTD..

Notifique.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 21 de março de 2023  


Oliveira Abreu (Relator)

Nuno Pinto Oliveira

Ferreira Lopes