Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL) | ||
| Relator: | GABRIEL CATARINO | ||
| Descritores: | HOMICÍDIO QUALIFICADO DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA CONCURSO DE INFRAÇÕES ARMA DE FOGO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO MEDIDA DA PENA PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DANO MORTE EQUIDADE | ||
| Data do Acordão: | 11/25/2020 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
| Sumário : | I. - A qualificação do crime de homicídio investida no artigo 132º do Código Penal emerge de um incremento adensado da intencionalidade e das circunstâncias atinentes ao comportamento subjectivo e/ou objectivo do agente. São circunstâncias antepostas e circunstancias à acção que inculcam e induzem atitudes de ser e estar do agente perante a vítima, de modo de agir e realizar a acção, do seu planeamento, do estado de relacionamento social-familiar existente entre o agente e a vítima, de satisfação pessoal de instintos e emoções despojadas de sentir e agir humano, ou seja de uma atitude do agente perante o valor da vida e de factores circunstanciais que lhe conferem, pela proximidade e especial relacionamento do agente com a vítima um especial respeito e/ou um distanciamento e alheamento do valor da vida que reverberam um especial desvalor da atitude e uma incapacidade de acolher valores de respeito e asseguramento da vida humana. Instigam, como resulta da representação intelectual-cognitiva que inculcam, uma propensão do individuo perante o significado individual da vida a relevar na aferição da culpabilidade do acto.
II. – A agravação da punição cominada no preceito incriminador pela detenção da arma não se destina a sancionar a detenção da arma mas a agravar o desvalor da acção pelo meio utilizado, a arma proibida. Não ocorre, no caso, uma dupla valoração – entre a incriminação pelo crime de detenção de arma proibida e a circunstância de o crime de homicídio sofrer uma agravação na sua moldura legal – dado que a agravação cominada na norma repercute uma censura do sistema penal pela utilização de um meio fatalmente letal e com uma aptidão lesiva de capacidade e inserção superior a qualquer outro meio apto a lesionar o corpo de um ser humano. III. – Situando-se a moldura penal abstracta entre 16 e 25 anos, é ajustada a pena de 20 anos de prisão a um agente que dispara 3 tiros de caçadeira sobre a a mulher, depois de uma discussão caseira; IV. - para ponderação e aferição dos critérios e factores de avaliação do dano sofrido pelo lesado, são as instâncias, em primeira linha, de acordo com os elementos de prova colhidos em audiência de julgamento, quem determina o montante a atribuir. Só se o Supremo Tribunal vier a verificar que o modo e os vectores intelectivos de indicação do exercício racional que conduziu aos valores pecuniários atribuídos se mostram desajustados e desviados das regras de experiência comum e de razoamento prevalentemente maioritário será possível sindicar a decisão. | ||
| Decisão Texto Integral: |
§1. RELATÓRIO. No processo supra epigrafado, o “Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em processo comum e com intervenção do Tribunal Colectivo, contra: AA, com os sinais de identificação ali inscritos, (…) imputando-lhe factos susceptíveis de o constituírem como autor da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, als. b), e) e h), do CP.” Em aceitação dos factos ineridos na acusação, os demandantes, BB, CC e DD, “por si e na qualidade de herdeiros de EE” formularam “pedido de indemnização civil contra o arguido AA, pedindo a condenação deste, com fundamento no homicídio doloso praticado, pagar-lhes as seguintes quantias: i. 50.000,00 €, a título de indemnização pelos danos de morte da vítima EE; ii. 20.000,00 €, a título de indemnização pelo dano intercalar que sofreu a vítima EE; iii. 2.350,00 €, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, resultantes das despesas com as cerimónias fúnebres da vítima; iv. 15.000,00 €, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados à demandante CC; v. 15.000,00 €, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados ao demandante DD; vi. 15.000,00 €, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados ao demandante BB; vii. Acrescidas de juros legais, desde a notificação até ao efectivo e integral pagamento.” Em desinência do sucesso antijurídico e ilícito, os demandantes, BB, CC e DD “peticionam que seja declarada a indignidade sucessória do arguido/demandando relativamente a EE.” Com a realização do julgamento, o tribunal recorrido, proferiu veredicto no sentido de, relativamente à (sic): “3.1. Parte Criminal. Julgamos a acusação procedente e, consequentemente, decide-se: a) Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b), do CP, e 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 20 (vinte) anos de prisão; b) Manter a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido AA” (…) e relativamente à: “3.2. Parte Cível. Julgamos o pedido de indemnização civil deduzido por BB, CC, DD, por si e na qualidade de herdeiros de EE, parcialmente procedente e, em consequência, decide-se: i. Condenar o demandado/arguido AA a pagar-lhes: a. em partes iguais, a quantia de 50.000,00 € (cinquenta mil euros) (dano morte), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento; b. a quantia de 10.000,00 € (dez mil euros), pelo dano intercalar sofrido por EE, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a presente decisão até integral pagamento; c. a quantia relativa às despesas do funeral de EE, cuja exacta quantificação relegamos para o incidente de liquidação; e d. a quantia de 15.000,00 € (quinze mil euros), por danos não patrimoniais, a cada um dos demandantes, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a presente decisão até integral pagamento; ii. Absolver o demandado/arguido do demais peticionado”, pronunciando-se relativamente ao pedido de declaração de indignidade sucessória foi a mesma julgada procedente (“Julgamos a indignidade sucessória do arguido AA em relação à de cujus, sua mulher, EE.”) – cfr. acórdão constante de fls. 602 a 643. Desquiciado com o julgado, impulsou o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães – cfr. fls. 657 a 666 vº - que foi recebido – cfr. fls. 671 – como devendo ser conhecido para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo dessumido a fundamentação no epítome conclusivo que a seguir queda extractado. §1.(a). – QUADRO CONCLUSIVO. “1º Foi o recorrente, por acórdão preferido pelo douto Tribunal a quo, condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b), do CP, e 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 20 (vinte) anos de prisão. 2º Foi ainda condenado a pagar a cada um dos herdeiros da vítima a quantia global de 105.000,00€, a título de indemnização, montante, que considera manifestamente excessivo. 3º O arguido não se conforma com o quantum da pena aplicada, por a considerar excessiva. 4º Considera, ainda, o arguido que o Tribunal a quo violou o princípio da proibição da dupla valoração, ao agravar a pena em um terço, nos termos disposto o artigo 86º nº 3 da Lei das Armas. 5º O Douto Tribunal a quo violou, ainda, o disposto no artigo 40º e 71º nº 2 e 3 do Código Penal, ao não considerar “circunstâncias” que não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do arguido. 6º Assim, deveria do Douto Tribunal ter considerado para efeitos de determinação concreta pena: a) O estado de saúde do arguido e as limitações motoras ao nível dos membros superiores e inferiores, na sequência de um acidente e que levou ao internamento hospital até ao dia 9 de agosto de 2019; b) O facto de o arguido ter sido empurrado, aquando da discussão, pela vítima, ficando prostrado no chão, com dificuldade em se levantar, não recebendo ajuda desta; c) O arguido encontrava-se a receber acompanhamento psiquiátrico no Hospital de ……, por Síndrome Depressivo-Ansioso, com ataque de pânico e com medicação prescrita que tomava. d) No estabelecimento prisional o arguido continua a receber acompanhamento psiquiátrico e passou a ser acompanhado por psicólogo; e) No dia 25-06-2020, o arguido foi submetido a uma cirurgia vascular de carácter prioritário; f) O arguido tem 60 anos de idade. g) A vítima tinha 54 anos de idade aquando dos factos. h) O arguido encontrava-se plenamente inserido na sociedade, era sociável e participava nas atividades locais; i) O arguido entregou-se voluntariamente às autoridades; j) O arguido após o cometimento dos factos, tentou por termo sua vida, não conseguindo por circunstâncias alheias àquela vontade. 7º Caso o Douto Tribunal tivesse considerado estas circunstâncias (positivas) para efeitos de determinação da medida concreta da pena, esta seria mais reduzida que aquela a que chegou – mais justa. 8º As exigências de prevenção geral são elevadas, mão não elevadíssimas, contrariamente ao entendimento do Tribunal. 9º A crescente necessidade de proteção do bem jurídico em causa não legitima que a pena aplicada assuma (apenas) carater retributivo. 10º Ao arguido não poderá ser aplicada uma pena substancialmente maior - ou, sequer, maior - em face daquela crescente necessidade, mas apenas na medida do seu contributo tendo o Douto Tribunal a quo excedido largamente aquele contributo. 11º As exigências de prevenção especial são diminutas- o arguido estava plenamente integrado na sociedade. 12º O Tribunal deveria ter dado relevo à tentativa de suicídio, pois que indicador de uma certa interiorização da culpa pelo sucedido, como manifestação de um juízo crítico e negativo, de demonstração de consciência crítica relativamente ao desvalor da sua conduta. 13º A pena aplicada ao arguido é superior à aplicada pelos Tribunais Superiores em idênticas ou circunstâncias até mais graves, como são exemplo, os acórdãos do STJ datado de 27-11-2019, de 05-07-2012, de 26-06-2015, de 13-04-2016 e de 15-01-2019. 14º O artigo 132º nº 1 do Código Penal, estabelece como moldura penal, a pena máxima constitucionalmente permitida de 25 anos de prisão. 15º Ao estabelecer a pena máxima, o legislador, considerando os exemplos padrão ao nível da ilicitude (e que não se esgota no tipo de artigo 131º) e ao nível da culpa (admitindo que se estabelece um grau diferente quanto ao ultimo) (e)levou ambos ao LIMITE MÁXIMO – não sendo possível uma outra agravação, quer ao nível da ilicitude, quer ao nível da culpa, com recurso a outros elementos externos à norma - outras normas, mormente, o artigo 86º nº 3 da lei das Armas. 16º O artigo 132º do Código Penal, é uma norma especial e esgota-se em si mesma – com todos os elementos integradores que compõe a infração criminal – a ação, típica, ilícita, culposa e punível (conjugada, naturalmente, com a norma geral – artigo 131º). 17º Uma vez integrada a conduta delituosa no tipo de crime “homicídio qualificado” – pelo nº 1 do art. 132º ou também por qualquer das alíneas do nº 2 – não pode ocorrer o acionamento da agravante da Lei das Armas. 18º Exigências de compatibilização lógico-valorativa dos preceitos legais impõem que o art. 86º, nº 3 funcione apenas por referência ao tipo do art. 131º (ou a outros tipos de homicídio não qualificado). 19º Da aplicação do artigo 132º resulta desde logo uma agravação, quer em sede de ilicitude, quer em sede de culpa, ainda que em graus diferentes. 20º Nos casos em que o agente deva ser punido pelo crime do art. 132.º do Código Penal não há lugar à agravação prevista no artigo 86.º, nºs 3 na Lei das Armas, sob pena de violação do princípio de proibição de dupla valoração. 21º É, quanto a nós, inquestionável que o Douto Tribunal violou o referido princípio. 22º A medida da pena tem como limite inultrapassável, a medida da culpa. 23º A medida concreta da pena aplicada extravasa largamente a medida da culpa do ora recorrente, bem como as particulares exigências de prevenção geral e especial - violando, por isso, o disposto nos arts. 40º, nº 1 e 2 e 70º, nº 1 e 2, do Código Penal. 24º Assim, deveria o arguido ter sido condenado pelo crime de homicídio qualificado nos termos do disposto no artigo 131º e 132º, nº 1 e 2º alínea b) do Código Penal, 25º e na pena de 14 anos de prisão, por justa, adequada e proporcional à gravidade dos factos e à culpa do arguido. 26º Os valores atribuídos a título de indemnização pelo Douto Tribunal são manifestamente exagerados, essencialmente, no que reporta aos danos não patrimoniais atribuídos a cada herdeiro, sendo que o valor a atribuir deverá ser de 7.500,00€. (…) deverá o presente recurso ser julgado procedente (...)”. §1.(a).i). – RESPOSTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. “1 – O arguido praticou um crime de homicídio qualificado nos termos previstos nos arts. 131º e 132º, n.º 1 e 2, al. a), do CP, uma vez que, à data dos factos (23.08.2019), era casado com EE, desde 30.01.1982 (cfr. assento de nascimento do arguido de fls. 102-103). 2 -É maioritária e actual a jurisprudência do STJ no sentido que tendo o crime de homicídio sido cometido com uma arma caçadeira e não sendo o simples uso e porte de arma elemento típico do crime, nem ocorrendo agravação da pena por esta circunstância nos termos do art. 132.º do CP, há sempre lugar à agravação prevista no n.º 3 (por referência ao nº4) do art. 86.º da Lei das Armas; 3 - Não se vislumbra razão legal ou imperativo constitucional, que proíba uma dupla agravação da pena, decorrente do funcionamento da qualificativa do n.º 2 do art. 131º, do Código Penal, juntamente com a agravação da pena prevista na norma do n.º 3, do art. 86.º da Lei 5/2006 porquanto a qualificativa do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa, já a agravação do art. 86º, n.º 3 prende-se com a maior ilicitude da conduta e com razões de prevenção, inexistindo para estes casos critério ou fundamento legal que impeça a dupla agravação. 4 – O arguido não confessou a prática dos factos, antes tentou desculpabilizar-se e eximir-se às suas responsabilidades, assacando culpas à própria vítima, versão que não mereceu credibilidade; 5 - O Tribunal "a quo" teve na devida conta as exigências de prevenção geral, que são elevadíssimas, assim como o grau de ilicitude, o dolo directo e intenso com que o arguido actuou pelo que bem andou, face à moldura penal aplicável ao fixar a pena em 20 anos de prisão, termos em que o recurso deve ser considerado improcedente e, em consequência, deve o acórdão recorrido ser mantido na íntegra por ter efectuado uma correcta apreciação dos factos e integração do direito.” §1.(a).ii). – RESPOSTA DOS ASSISITENTES/DEMANDANTES CIVIS. “1. O Arguido praticou um crime de homicídio qualificado nos termos previstos nos artigos 131.º e 132.º n.º 1 e 2 al. b) do Código Penal, visto que à data dos factos era casado com a vítima do crime, EE. 2. O crime foi executado com uma caçadeira, e como o uso e porte de arma não é elemento típico do crime em questão, a jurisprudência maioritária e actual entende que há lugar à agravação prevista no artigo 86.º n.º 3 da Lei das Armas. 3. Como tal, andou bem o Tribunal a quo ao condenar o Arguido pela prática do crime de homicídio qualificado agravados, nos termos dos artigos 131.º e 132.º n.º 1 e 2 al. b) do Código Penal e 86.º n.º 3 da Lei das Armas, não tendo incorrido na violação do princípio ne bis in idem, porquanto o primeiro normativo se prende com na especial perversidade do crime, ao passo que o segundo cumpre essencialmente necessidades de prevenção especial. 4. O Arguido nunca confessou a prática do crime nem mostrou qualquer tipo de arrependimento para além do que sente por ter desgraçado a sua vida. 5. Apenas se desculpabilizou, tentando responsabilizar a vítima pela sua própria morte e impingindo uma tese de que havia assassinado a vítima por acidente, sem nunca pedir a requalificação jurídica do crime pelo qual vinha acusado para homicídio por negligência, referido que não viu nem ouviu a vítima, quando disparou três tiros de caçadeira sobre ela. 6. Perante todos os factos do crime e a postura do Arguido, bem andou o Tribunal na determinação da medida concreta da pena em vinte anos de prisão efectiva. 7. Dizer-se que as necessidades de prevenção especial são diminutas é uma afronta à memória desta vítima mortal e aos seus filhos. 8. Dizer-se que as necessidades de prevenção geral são bastante acentuadas mas não elevadíssimas, é um insulto para as famílias das 35 pessoas mortas em contexto de violência doméstica no ano de 2019. 9. O Arguido não parece ter interiorizado minimamente o desvalor da sua conduta e, como tal, uma pena inferior àquela que foi aplicada não cumprirá as necessidades de prevenção especial e geral que se pretendem, antes dando ao Arguido um sentimento de que o crime que cometeu foi parcialmente desculpado pela Justiça Portuguesa 10. Bem andou o Tribunal a quo ao quantificar os valores indemnizatórios e a condenar o Arguido no dever de indemnizar os herdeiros pelo dano da morte e dano intercalar da vítima EE e, ainda, os herdeiros pelos danos não patrimoniais sofridos. 11. O Arguido não sustenta a sua motivação, nesse sentido, com qualquer impugnação de matéria de facto ou de Direito e, como tal, a mesma deve simplesmente ser desconsiderada uma vez que não cumpre com os requisitos legais necessários no que toca a motivações de recurso nos termos do artigo 412.º n.º 3 do Código de Processo Penal. Deve o recurso interposto pelo Arguido ser considerado improcedente e, em consequência, deve o acórdão proferido pelo douto Tribunal a quo ser mantido na íntegra por se revelar uma decisão justa, tendo feito uma correcta interpretação dos factos e subsunção dos mesmos ao Direito.” §1.(a).iii). - PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO. “1 - O arguido AA foi submetido a julgamento no Juízo Central Criminal de …., comarca de …, vindo a ser condenado, por acórdão proferido a 15/07/2020, pela prática de um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b), do CP, e 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 20 (vinte) anos de prisão. O arguido foi também condenado no pagamento de indemnização aos demandantes, filhos da vítima e do arguido, no âmbito do pedido cível por aqueles formulado. O arguido não se conformou com aquela decisão condenatória e da mesma interpôs o presente recurso. 2 - O recorrente pretende o reexame da decisão de direito no segmento relativo à determinação da medida concreta da pena, que considera excessiva, mas também quanto ao enquadramento jurídico dos factos, entendendo que a agravação decorrente do disposto no art. 86, nº 3, da Lei das Armas não é aplicável no caso de condenação pelo crime de homicídio qualificado nos termos do disposto no art. 132, do Código Penal, sob pena de violação do princípio da dupla valoração. Argumenta, ainda, no que respeita à determinação da medida concreta da pena, que o Tribunal violou o disposto nos arts 40 e 71, nºs 2 e 3, do Código Penal, porque não considerou circunstâncias que depunham a seu favor e sobrevalorizou outras, considerando, também, que as exigências de prevenção geral não são elevadíssimas e que a pena aplicada é desajustada, excedendo manifestamente a culpa, sendo superior à aplicada pelos Tribunais superiores em idênticas circunstâncias. E conclui que: - “a medida concreta da pena aplicada extravasa largamente a medida da culpa do ora recorrente, bem como as particulares exigências de prevenção geral e especial - violando, por isso, o disposto nos arts. 40º, nº 1 e 2 e 70º, nº 1 e 2, do Código Penal”; - “deveria ter sido condenado pelo crime de homicídio qualificado nos termos do disposto no artigo 131º e 132º nº 1 e 2º alínea b) do Código Penal, na pena de 14 anos de prisão, por justa, adequada e proporcional à gravidade dos factos e à culpa do arguido.” 3 - A Magistrada do Ministério Público no Tribunal recorrido respondeu à motivação do recurso, sustentando o acerto da decisão impugnada. Também o assistente e os demandantes apresentaram resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela manutenção da decisão. 4 - Não se suscitam, a nosso ver, quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso interposto pelo arguido, devendo o mesmo ser julgado em conferência, nos termos do disposto no art. 419, n.º 3, do CPP. Do mérito 5 - Acompanhamos as considerações expressas pela Magistrada do Mº Pº na 1ª Instância na resposta ao recurso que apresentou e entendemos, igualmente, que não assiste razão ao recorrente nas críticas que dirige à decisão recorrida. 6 - O recorrente discorda da agravação do crime de homicídio por que foi condenado por força do disposto no art. 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, considerando que essa agravação viola o princípio da proibição da dupla valoração. Todavia, a decisão recorrida pronunciou-se expressamente sobre essa questão e fundamenta a aplicação daquela norma, invocando, designadamente, jurisprudência recente deste Supremo Tribunal. Subscrevemos inteiramente as considerações constantes da decisão recorrida a este propósito, mas também da resposta do Mº Pº, bem como dos arestos deste Supremo Tribunal citados naquelas peças processuais, não tendo qualquer sustentabilidade as críticas do recorrente, não se verificando qualquer violação do princípio da dupla valoração. 7 - O recorrente discorda, também, da medida da pena em que foi condenado, considerando que a mesma viola o disposto nos arts 40 e 71, do Código Penal, argumentando que o Tribunal recorrido não valorou de forma adequada todas as circunstâncias que depõem a seu favor. Entende que a aplicação de uma pena de 14 anos de prisão será adequada e proporcional às exigências de prevenção. No entanto, o Tribunal na determinação da pena concreta teve em consideração o seguinte: “A pena de prisão tem como limite mínimo 16 anos de prisão e como limite máximo 25 anos de prisão. O bem jurídico protegido pelo crime de homicídio (vida humana) foi afectado em termos definitivos e de forma irreversível. O grau de ilicitude é elevadíssimo, atendendo ao modo de actuação do arguido, ao instrumento utilizado para praticar o facto ilícito e às consequências desse facto. O arguido disparou 3 tiros de caçadeira, que atingiram o corpo da vítima (um deles dirigido ao peito da vítima, junto ao pescoço) – desvalor da acção muito significativo –, provocando-lhe a morte (desvalor de resultado). O dolo é directo (e muito intenso). O grau de culpa – que desempenha o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – é elevadíssimo: o comportamento do arguido, ao nível dos factos praticados, revela uma muito significativa censurabilidade, não tendo qualquer enquadramento possível, que não seja o desrespeito pela mulher e pela sua vida, em termos absolutamente in aceitáveis e censuráveis. Os sentimentos manifestados no cometimento do crime – comportamento socialmente desajustado e absolutamente desconforme com as regras básicas de convivência humana e familiar (já que a vítima era sua mulher desde 1982, portanto, há mais de 37 anos). Os motivos que estiveram na determinação dos crimes estão na incapacidade do arguido de respeitar a mulher com quem vivia e de a aceitar como ser humano autónomo, independente e merecedor de respeito. A necessidade de pôr cobro na sociedade a este tipo de comportamento que se mostra demasiado frequente nos dias que correm, em concreto, ao nível das relações conjugais, familiares e domésticas. As expectativas comunitárias na validade das normas jurídicas violadas são significativamente elevadas (seja pela gravidade do facto ilícito culposo praticado e os seus termos, seja pelo abalo provocado nas expectativas da comunidade na validade da norma violada). Existem razões de prevenção geral muito elevadas a exigirem protecção. São, portanto, elevadíssimas as exigências de prevenção geral (o necessário à tutela das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e o absolutamente imprescindível para assegurar a defesa da ordem jurídica). Sobre a sua situação pessoal, social e profissional, temos que o arguido tem o 4º ano de escolaridade, trabalhando, desde então, em especial como ... na construção civil. O seu percurso profissional, circunscrito a esta atividade, caracterizou-se pela regularidade de hábitos e rotinas de trabalho. Casou aos 22 anos e tem três filhos (os demandantes cíveis nestes autos). Enquanto trabalhava nestes termos, a mulher (vítima nestes autos de homicídio) era doméstica, dedicando-se ainda ao cultivo dos terrenos da família e a criação de animais domésticos, produtos que garantiam a subsistência do agregado constituído. Viviam em casa própria, dedicando-se o arguido, nos seus tempos livres, à caça. À data dos factos, o arguido residia apenas com a vítima. Os três filhos do casal, adultos, têm agregados constituídos e autonomizados. O arguido convivia regularmente com amigos e vizinhos em contexto de trabalho ou encontros, durante os quais não existem referências a comportamentos desadequados por parte do arguido. No estabelecimento prisional assume comportamentos adequados e beneficia das visitas de uma irmã e de alguns amigos. O arguido nasceu em … .04.1960, pelo que tem, actualmente, 60 anos de idade. Tinha 59 anos quando praticou os factos objectos destes autos. O arguido não tem antecedentes criminais. Depois dos factos praticados tem estado preso em prisão preventiva à ordem destes autos. Após a prática dos factos, nenhum facto ou acto foi apurado, nomeadamente em julgamento, que mereça ser qualificado como arrependimento ou (sequer) mudança de comportamento. Não apuramos, apesar do arguido estar preso preventivamente à ordem dos autos, nenhum concreto juízo de censura por parte do arguido relativamente aos factos que praticou. Não identificamos, com excepção do seu bom comportamento prisional, qualquer atitude do arguido posterior ao crime que nos indique que interiorizou o desvalor da sua conduta, seja ao nível da acção, seja do resultado. Mostra-se provado que o arguido necessita de reconhecer e interiorizar o desvalor da conduta criminal praticada, bem como adquirir controlo de impulsos e de agressividade, e estratégias de relacionamento familiar equilibradas. São muito elevadas as exigências de prevenção especial, desde logo, ao nível de socialização e de conformação do arguido com os valores de respeito pela vida humana, com especial relevância da mulher, com quem estava casado, mas também ao nível das necessidades de intimidação e de segurança individual. Assim, ponderando-se todos estes elementos enunciados, julgamos adequada a fixação da pena em 20 anos de prisão.” 8 - Do exposto ressalta que, ao contrário do que alega o recorrente, a decisão recorrida fez uma análise e valoração criteriosas das circunstâncias que rodearam a prática dos factos, do grau de culpa manifestado, da ilicitude e das exigências de prevenção especial e geral que no caso ocorrem, nomeadamente, considerou todas as circunstâncias anteriores e posteriores à prática do crime que depunham a seu favor, não podia era atender a circunstâncias que não resultaram provadas, como pretende. Aliás, o Tribunal recorrido teve até o cuidado de realçar que “nenhum facto ou acto foi apurado, nomeadamente em julgamento, que mereça ser qualificado como arrependimento ou (sequer) mudança de comportamento”; que não apurou “apesar do arguido estar preso preventivamente à ordem dos autos, nenhum concreto juízo de censura por parte do arguido relativamente aos factos que praticou; que não identificou, “com excepção do seu bom comportamento prisional, qualquer atitude do arguido posterior ao crime que nos indique que interiorizou o desvalor da sua conduta, seja ao nível da acção, seja do resultado.” Assim, as exigências de prevenção especial, tal como as de prevenção geral, não podiam deixar de ser consideradas muito elevadas, o que a par do elevadíssimo grau de ilicitude e de culpa, impõem que se considere que a pena fixada de 20 anos de prisão - dentro da moldura penal abstracta que tem como limite mínimo 16 anos de prisão e como limite máximo 25 anos de prisão – não é excessiva, antes adequada e proporcional, não havendo qualquer fundamento para que a mesma seja reduzida. Em conformidade com o exposto, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido.” §1.(b). – QUESTÕES SOLVENTES PARA A SOLUÇÃO DO RECURSO. A pretensão recursiva do recorrente ficará solvida com o conhecimento/pronúncia das três (3) questões elencadas nas conclusões com que rematou a fundamentação do pedido. Assim, a primeira questão prende-se com (i) a determinação/individualização judicial da pena (que o arguido estima ter sido estimada com excesso; a segunda (ii) com a violação do princípio da dupla valoração, na medida em que (sic): “nos casos em que o agente deva ser punido pelo crime do art. 132.º do Código Penal não há lugar à agravação prevista no artigo 86.º, nºs 3 na Lei das Armas, sob pena de violação do princípio de proibição de dupla valoração”; e a terceira (iii) com “os valores atribuídos a título de indemnização pelo Douto Tribunal são manifestamente exagerados, essencialmente, no que reporta aos danos não patrimoniais atribuídos a cada herdeiro, sendo que o valor a atribuir deverá ser de 7.500,00€.” §2. FUNDAMENTAÇÃO. §2.(a). FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO. O recorrente não discrepa da decisão quanto à matéria de facto, nem nesta sede se descortinam aleijões de raciocínio lógico-racional que permitam desfeitear a lhaneza da factualidade adquirida e consolidada pelo tribunal recorrido. Assim, fica definitivamente estabelecida a factualidade que a seguir queda transcrita. “A. Da acusação pública 1. O arguido e EE casaram, entre si, a 30 de Janeiro de 1982, tendo tido três filhos: BB, CC, DD. 2. E tinham a sua casa, onde moravam, na Rua de…, em ……, … . 3. No dia 23 de Agosto de 2019, pelas 21:00 horas, quando ambos se encontravam no interior da referida residência, ocorreu uma discussão, entre o arguido e a sua mulher, na cozinha, situada no rés-do-chão das traseiras da habitação. 4. A determinada altura, o arguido deslocou-se a um quarto de arrumos e, aí, muniu-se de uma espingarda, de funcionamento semiautomático, de calibre 12, de marca Breda, de modelo Altair Special, com o nº de série …, exibindo o número …. no cano, municiada com três munições, da sua propriedade. 5. Após, o arguido, munido com a referida espingarda empunhada, foi para a cozinha. 6. Nesse momento a vítima encontrava-se no exterior, junto à porta de acesso à cozinha, que se encontrava aberta, altura em que o arguido efectuou três disparos a uma distância de cerca de 2 a 3 metros da vítima, que a atingiram no ombro esquerdo, no braço, junto à ligação do antebraço direito, e no nó da garganta. 7. Como consequência directa e necessária dos disparos efectuados pelo arguido, EE veio a falecer, sofrendo: a. na cabeça, escoriação avermelhada, sem crosta hemática, localizada na região infra-ocular direita, com 0,7 por 0,5 cm de maiores dimensões; escoriação avermelhada, sem crosta hemática, punctiforme, localizada na região mentoniana à esquerda; b. no pescoço, esfacelo com exposição de tecidos moles e ósseos, com infiltração sanguínea das margens, localizado na linha média da transição entre a região anterior do tórax e cervical, encontrando-se o seu polo lateral esquerdo a 12 cm do acrómio esquerdo e a 15 cm do mamilo esquerdo e o seu polo lateral direito a 8 cm do acrómio direito, com comprimento vertical total de 2 cm e horizontal de 9 cm, compatível com lesão por projétil de arma de fogo de cano longo, esta lesão encontra-se rodeada (sobretudo nas regiões inferior e laterais) por múltiplas escoriações circulares punctiformes, com infiltração sanguínea, compatíveis com área de dispersão de chumbos, ocupando uma área total de 17,5 cm (vertical) por 18 cm (horizontal); c. membro superior direito, esfacelo com exposição de tecidos moles e ósseos, com infiltração sanguínea das margens, localizado na metade distal da região póstero-lateral do braço, cotovelo e metade proximal do antebraço, encontrando-se o seu polo superior a 19 cm do acrómio direito, e o polo inferior a 14 cm da apófise estiloide do rádio e 16 cm da apófise estiloide do cúbito, com comprimento vertical total de 17,7 cm e horizontal de 9 cm, compatível com lesão por projétil de arma de fogo de cano longo, esta lesão encontra-se rodeada (exceto na porção superior) por múltiplas escoriações circulares punctiformes, com infiltração sanguínea, compatíveis com área de dispersão de chumbos, ocupando uma área total de 22 cm (vertical) por 13 cm (horizontal); d. no membro superior esquerdo, esfacelo com exposição de tecidos moles e ósseos, com infiltração sanguínea das margens, localizado na região lateral do ombro, encontrando-se o seu polo superior a 3 cm do acrómio esquerdo, a 20 cm do olecrânio esquerdo e a 14 cm do mamilo esquerdo, com comprimento vertical total de 9,5 cm e horizontal de 26,5 cm, compatível com lesão por projétil de arma de fogo de cano longo, esta lesão encontra-se rodeada (sobretudo na região superior e mais anterior) por múltiplas escoriações circulares punctiformes, com infiltração sanguínea, compatíveis com área de dispersão de chumbos, ocupando uma área total de 18,5 cm (vertical) por 7 cm (horizontal); e. membro inferior direito, equimose figurada, constituída por duas áreas avermelhadas paralelas entre si, com área central pálida, compatível com lesão em "carril", localizada no terço médio da região ântero-lateral da coxa, com 9 por 1,5 cm de maiores dimensões; f. no encéfalo (cabeça), circunvoluções cerebrais alargadas, compatíveis com fenómeno de edema ligeiro; g. no pescoço, (i) no tecido celular subcutâneo, esfacelo dos tecidos moles subjacentes à lesão descrita em "hábito externo", com margens infiltradas de sangue, com presença de chumbos dispersos; (ii) nos músculos do pescoço, laceração parcial das fibras musculares do músculo esternocleidomastoideu bilateralmente junto à sua inserção com infiltração sanguínea das margens; infiltração sanguínea do músculo esternocleidomastoideu direito na sua região postero-inferior e do esquerdo junto à sua inserção proximal; e infiltração sanguínea dos músculos esternohioideu e esternotiroideu bilateralmente; e (iii) na glândula tiróide infiltração sanguínea da metade inferior; h. no tórax, (i) nas paredes, esfacelo dos tecidos moles subjacentes à lesão descrita em "Hábito Externo", com infiltração sanguínea das margens, com presença de chumbos dispersos; infiltração sanguínea da região anterior da porção dorsal da coluna vertebral; (ii) no esterno fratura cominutiva com perda de tecido ósseo no terço proximal do esterno, com infiltração sanguínea dos topos ósseos e tecidos moles adjacentes; (iii) na clavícula, cartilagens e costelas direitas, fratura cominutiva com perda de tecido ósseo no terço proximal da clavícula e da primeira e segunda costelas, com infiltração sanguínea dos topos ósseos e tecidos moles adjacentes; (iv) na clavícula, cartilagens e costelas esquerdas, fratura cominutiva com perda de tecido ósseo no terço proximal da clavícula e da primeira e segunda costelas, com infiltração sanguínea dos topos ósseos e tecidos moles adjacentes; (v) no pericárdio e cavidade pericárdica, laceração da face superior do saco pericárdico com bordos irregulares e infiltrados de sangue; (vi) no coração, laceração da região anterior das duas aurículas com bordos irregulares e infiltrados de sangue, presença de chumbos incrustados no epicárdio do ventrículo esquerdo e aurícula esquerda, presença de bucha compatível com projétil de arma de fogo de cano longo na região das aurículas cardíacas; (vii) nas artérias coronárias, infiltração sanguínea dos tecidos moles circundantes ao longo do trajeto do ramo descendente anterior da artéria coronária esquerda e da artéria coronária direita; (viii) na artéria aorta laceração completa da artéria aorta junto à sua raiz com bordos irregulares e infiltrados de sangue, placas de ateroma não calcificadas dispersas em toda a sua extensão; (ix) na artéria pulmonar, laceração completa da artéria pulmonar com bordos irregulares e infiltrados de sangue; (x) laceração completa da veia cava com bordos irregulares e infiltrados de sangue; (xi) traqueia e brônquios, laceração parcial da metade distal da traqueia e brônquio esquerdo, com bordos irregulares e infiltrados de sangue; (xii) pleura parietal e cavidade pleural direita: sangue na cavidade pleural no volume de 200 cc; (xiii) hemotórax na pleura parietal e cavidade pleural esquerda sangue na cavidade pleural no volume de 150 cc, e aderências pleuro-diafragmáticas fibrosas dispersas; (xiv) pulmão direito e pleura visceral, áreas de laceração nos três lobos, com bordos irregulares e infiltrados de sangue; presença de focos de contusão dispersos sobretudo pela face ântero-medial dos lobos pulmonares; (xv) pulmão esquerdo e pleura visceral, laceração do lobo superior esquerdo, com bordos irregulares e infiltrados de sangue (infiltração sanguínea das margens), infiltração sanguínea do hilo, presença de chumbos na superfície da cisura do pulmão, aspeto compatível com projétil de arma de fogo de cano longo; parênquima de consistência elástica e crepitante à palpação; presença de focos de contusão dispersos sobretudo pela face ântero-medial dos lobos pulmonares; e (xvi) no esófago, laceração incompleta do terço médio do esófago, com bordos irregulares e infiltrados de sangue; i. Nos membros, (i) membro superior direito, laceração do músculo bicipital com bordos irregulares e infiltrados de sangue; (ii) membro superior esquerdo laceração do músculo deltóide com bordos irregulares e infiltrados de sangue. 8. A morte de EE foi devida às lesões traumáticas cervicais, torácicas e dos membros superiores resultantes de traumatismo de natureza perfuro-contundente, devido à ação de projéteis da arma de fogo de cano longo, cujo trajeto da lesão cervico-torácica no corpo da vítima se pode descrever como tendo sido de superior para inferior, da direita para a esquerda e de anterior para posterior (não tendo sido possível definir o trajeto das lesões nos membros superiores). 9. O arguido tem licença de uso e porte de arma, é caçador desde os seus vinte anos de idade, tendo perfeito conhecimento do manuseamento de armas de fogo. 10. O arguido sabia que ao empunhar a aludida arma em direcção de órgãos vitais e ao efectuar três disparos a curta distância da vítima, isso era um meio idóneo a causar a morte à vítima. 11. O arguido agiu com o propósito de tirar a vida à vítima, sua mulher, actuando da forma descrita, impulsionado por uma discussão e, consequentemente, por motivo desproporcional, actuando de forma inesperada, ciente que ao disparar a referida arma (uma espingarda) a cerca de 2 a 3 metros da vítima, a mataria, resultado que idealizou e quis. 12. Após, o arguido ligou a FF pedindo-lhe que fosse a sua casa e solicitou-lhe que o levasse até à GNR, o que aquele fez. 13. Agiu o arguido sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser proibida e punida a sua conduta por lei penal como crime. B. Do pedido de indemnização civil 14. EE nasceu a … .08.1965. 15. Os demandantes BB, CC e DD são filhos de EE e do arguido. 16. EE, antes de morrer, devido à acção do arguido, sentiu medo, pânico e horror. 17. Teve dores horríveis. 18. Estava, aquando dos disparos, ainda viva, lúcida, consciente. 19. Foi atingida, com os cartuchos da espingarda, num dos seus membros superiores (braço direito), desfazendo os tecidos vivos que o ampararam, no ombro esquerdo, e (no terceiro disparo) na zona do tórax, ferindo a artéria carótida. 20. Sentiu desespero, antecipou a própria morte, enquanto se esvaia em sangue, até ter sucumbido. 21. EE era uma mulher alegre, feliz, extremamente dedicada à família. 22. Uma mãe carinhosa, preocupada e presente na vida dos seus filhos. 23. Cheia de vontade de viver. 24. EE era uma pessoa bem-disposta, sensível, pacífica, avessa a violências e conflitos. 25. Era ainda uma mulher muito activa, com invejável vontade de viver. 26. Os demandantes passaram, e ainda passam, momentos extremamente perturbadores. 27. A brutalidade da morte da mãe causou em todos enorme desgosto e choque emocional. 28. Nutriam amor e afecto desmedido pela mãe. 29. Tiveram e têm de lidar com o facto de que a mulher que lhe deu a vida foi morta com três tiros de caçadeira, pelo seu próprio pai. 30. O que lhes produziu uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio sócio-psíquico-emocional. 31. Os demandantes têm, ainda hoje, imensa dificuldade em aceitar o sucedido, algo que os irá acompanhar pelo resto das suas vidas. 32. A vida dos demandantes é marcada por um pesado sentimento de revolta e de infelicidade. 33. São inúmeras as vezes que acordam a meio da noite assolados pela imaginação daquilo que a sua mãe terá sentido, vivido, pensado. 34. Sentem saudade da mãe extremosa, das suas palavras amigas, do seu colo. 35. Ainda choram o luto da sua mãe e acreditam que será muito difícil ultrapassar a dor que sentem. 36. Sofrem pelo facto de o próprio pai ter morto a mãe. 37. Tiveram de explicar esta situação aos seus filhos, que terão de viver sempre com este marco. 38. Na sequência da morte de EE, os demandantes suportaram as despesas com as cerimónias fúnebres. C. Da situação pessoal, profissional e de vida do arguido 39. O arguido AA nasceu a … .04.1960. 40. Oriundo de……, …, AA teve um processo de desenvolvimento integrado num agregado numeroso, cujo pai, ..., era a única fonte de rendimento. Cabia à progenitora a gestão do orçamento familiar e o acompanhamento dos 6 filhos, num ambiente familiar referenciado como disfuncional, por força da violência física e verbal infligida pelo pai ao cônjuge e descendentes. 41. O arguido AA abandonou a sua trajetória escolar após a conclusão do 4º ano de escolaridade, privilegiando a necessidade de contribuir financeiramente para o agregado familiar. 42. Aos 13 anos de idade, iniciou a sua trajetória laboral como ... e trabalhava com o progenitor, cujo salário lhe era entregue na íntegra. Aos 26 anos, estabeleceu-se por conta própria como ... na construção civil, restauro e conservação de muros, tanto na freguesia de residência como em freguesias vizinhas. O seu percurso profissional, circunscrito a esta atividade, caracterizou-se pela regularidade de hábitos e rotinas de trabalho. 43. AA contraiu matrimónio aos 22 anos de idade, na constância do qual nasceram os três filhos, passando a residir em …, .... . 44. O arguido continuou a exercer a sua profissão de ... e cabia ao cônjuge, doméstica, o acompanhamento do processo educativo dos filhos, o cultivo dos terrenos da família e a criação de animais domésticos, produtos que garantiam a subsistência do agregado constituído. 45. O casal residia em casa própria, construída conforme as suas possibilidades económicas. 46. O arguido, nos seus tempos livres, ocupava-se com a caça, atividade que mantinha desde jovem com um grupo de amigos. Nas relações de sociabilidade privilegiava o convívio com esse mesmo grupo em sua casa, onde faziam refeições preparadas pelo cônjuge. 47. À data dos factos, AA residia apenas com a vítima. Os três filhos do casal, adultos, com agregados constituídos e autonomizados, residiam em freguesias limítrofes e o mais novo havia emigrado para … . A família alargada, irmãos, cunhados e sogra residiam na mesma freguesia. 48. Não lhe são conhecidos comportamentos aditivos ou problemas de saúde que condicionem o seu comportamento/percurso vivencial. 49. O arguido mantinha relação conflituosa com os filhos. Havia proibido a filha de frequentar a casa. O mesmo aconteceu ao filho mais velho, depois de pedir ao pai que não maltratasse mais a progenitora, sob pena de apresentar queixa-crime. 50. No seu quotidiano, a superficialidade afetiva do arguido e a sua incapacidade para estabelecer uma relação afetiva mais profunda com o cônjuge e os filhos foi uma constante. 51. No estabelecimento prisional assume comportamentos adequados e beneficia das visitas de uma irmã e de alguns amigos. 52. AA necessita de reconhecer e interiorizar o desvalor da conduta criminal praticada, bem como adquirir controlo de impulsos e de agressividade, e estratégias de relacionamento familiar equilibradas. D. Dos antecedentes criminais 53. O arguido não tem antecedentes criminais. 2.1.2. Julgamos não provado que: a. EE apercebeu-se de que o arguido (após os três disparos) a abandonou, virando-lhe costas. b. Os demandantes vivem hoje num estado depressivo. c. Nunca mais tiveram uma noite tranquila de sono. d. Pesa-lhes, e sempre irá pesar, a ideia de que a poderiam ter salvo. e. As despesas com as cerimónias fúnebres de EE custaram 2.350,00 €. 2.1.3. Fundamentação (Porque a motivação da decisão de facto – pese embora a inexistência de vício na formação e afirmação da convicção (lógico-racional) do tribunal – pode ser interessante para a compreensão da motivação da acção ilícita, do modo e forma de agir do arguido e da prefiguração do resultado da acção, achamos interessante a sua transcrição.) 2.1.3.2. Do arguido e da vítima O arguido confirmou, nas suas declarações, os pontos 1. e 2. da acusação pública. O casamento do arguido e da vítima está documentado a fls. 102-103 – assento de nascimento do arguido –, de onde resulta ser, à data dos factos (23.08.2019), casado com EE, desde 30.01.1982 (com quem vivia, na morada referida na acusação – neste sentido, desde logo, as declarações do arguido). A residência do arguido e de EE foi, exactamente, o local onde ocorreram os factos objectos destes autos – vide a reportagem fotográfica, que não deixam margem para qualquer dúvida, de fls. 40 e ss., bem como a de fls. 71 e ss. Ouvimos em audiência de julgamento os assistentes e demandantes cíveis, filhos dos arguidos. Consta dos autos a habilitação de herdeiros de fls. 374 e ss., que identificam os demandantes/assistentes como filhos de EE e do arguido. Julgamos, por isso, tal matéria de facto como provada. A acusação (no seu ponto 3.) refere que: o casamento foi pautado por permanentes episódios de violência física e verbal, que o arguido perpetrava sobre a sua mulher. O filho do arguido DD, de 26 anos, relatou episódios, muito claros e pormenorizados, sobre a violência física e verbal que o arguido perpetrava sobre a sua mulher. Deixou claro que “mãe tinha medo do pai”. Desde os 10 anos, relatou, “vi violência”. Ele batia nela. Eu vi e cheguei a levar para a defender (disse mesmo). Ela não fazia queixa porque tinha medo. E a mãe dizia que a sua vida era ali. Concretizou mesmo os nomes que ouviu: cabra, estúpida, puta. E acrescentou: puta não, dizia ela. Sobre ameaças referiu: ele não ameaçava, batia-lhe logo. Não ficamos com qualquer dúvida a este respeito. E assim se enquadra e compreende o acto praticado a 23.08.2019, no qual, nos termos infra descritos, o arguido disparou sobre a sua mulher três tiros com uma caçadeira. Para enquadrar o ocorrido, referiu o arguido, nas suas declarações, que: - Peguei na arma para intimidar (para ver se ela me deixava de tratar mal)… ela não se assustou. - Disse-lhe: já me perdeste o respeito todo. (...) Não tens respeito, ao menos, a uma arma. - E disparei para intimidar… pois ela disse que ia chamar os vizinhos. Ora, quem pensa assim e quem age assim, sem margem para qualquer dúvida, enquadra-se num agressor doméstico, o que confirma o relato, pormenorizado, descrito supra. E não se diga que os vizinhos ou amigos referiram que os consideravam um “casal perfeito”. Mas não é (muitas vezes) assim? Não é esse o problema do fenómeno criminal da violência doméstica? Não ficamos com qualquer dúvida acerca do exposto. Desvalorizamos, por isso, os depoimentos que relataram o arguido como um bom marido. Era essa a percepção que tais pessoas tinham do arguido e do seu casamento, mas isso não correspondia à verdade. E sobre isso, as declarações dos filhos do casal são absolutamente esclarecedoras. É este o sentido da nossa valoração sobre os depoimentos de GG (tia do arguido), de HH (vizinho e amigo, que se deslocava à casa onde morava o arguido e a vítima, com quem convivia e onde chegou a almoçar e jantar), de II (vizinho e colegas de caça, que frequentava a casal do casal, que se referiu a um ambiente bom), de JJ (que trabalhou com o arguido e que ia lá a casa, que sempre os vi-o normalmente, como casal normal) e de LL (reformado da GNR, que conhece o arguido há 25 anos, que convivia com o casal, frequentando a casa do casal, que declarou que não lhe reconhecia violência, declarando que, para si, eram um casal exemplar). Sem prejuízo do exposto, verificamos que a acusação define os actos de violência doméstica sem os concretizar. Refere: o casamento (do arguido e da vítima, portanto) foi pautado por permanentes episódios de violência (agressões) física e verbal que o arguido perpetrava sobre a sua mulher. Esta é matéria conclusiva que o tribunal poderia chegar se julgar como provado os actos de violência, verbal e física, descritos supra. Não constam da acusação esses actos, a qual, a este respeito, é completamente omissa (porventura, por desnecessário, já que o arguido não está acusado da prática de tal crime). Porém, dada tal formulação genérica e conclusiva, o Tribunal não pode pronunciar-se positivamente sobre a matéria em causa. Pode ler-se no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17.01.20187, não se pode ter como acusação, no sentido adoptado, a imputação de factos genéricos, vagos, que não permita ao acusado localizar, no tempo e espaço, as acções que lhe são atribuídas. Quanto à consequência dos factos genéricos, vagos e sem possibilidade de qualquer concretização, os mesmos têm-se por não escritos. Não pode, portanto, o Tribunal considerar na matéria de facto provada tais considerações meramente conclusivas – as de que o casamento foi pautado por permanentes episódios de violência (agressões) física e verbal que o arguido perpetrava sobre a sua mulher. Assim, tal como defende o Tribunal da Relação de Évora, de 1.10.2013, serão tidas por não escritas aquelas formas de imputação genérica, que colidem com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado (art. 32º da CRP). 2.1.3.3. Dos factos do dia 23.08.2019 e a morte da vítima O arguido, nas circunstâncias que iremos fundamentar de seguida, desferiu no corpo de EE, sua mulher, com uma espingarda (de que era titular), que a atingiram no ombro esquerdo, no braço, junto à ligação do antebraço direito, e no peito, junto ao nó da garganta, que lhe provocaram lesões que determinaram a morte de EE. O arguido admitiu nas suas declarações proferidas em audiência de julgamento – exactamente – que desferiu três tiros de caçadeira no dia aludido na acusação. Os três tiros, no corpo da vítima, estão documentados, através dos danos provocados, nas fotos de fls. 54 e 55. O relatório de autópsia, de fls. 215 e ss., descreve as lesões causadas pelos disparos da caçadeira. Na foto 6 de fls. 46 estão, dentro da cozinha e no compartimento contíguo à cozinha, definidas a localização de cada um dos invólucros dos três cartuchos da espingarda (pormenorizados nas fotos de fls. 43 e 44). A espingarda utilizada para tal é visível nas fotos de fls. 47. O arguido disparou um quarto tiro com a espingarda no quarto. Os danos do mesmo constam de fls. 49 – foto 20. Segundo o arguido, disparou tal tiro para se matar, não tendo conseguido. (Suprimiu-se a impressiva, conspícua e fundamentada explicitação argumentativa organizada/elaborada pelo tribunal para demonstrar a convicção adquirida de que a versão apresentada pelo arguido não podia, em face da posição respectiva do agente e da vítima ter ocorrido com os contornos e passos activos que ficaram plasmados no acervo factual que o tribunal deu como consolidado). Assim, em conformidade com a prova enunciada, julgamos como provado que: - No dia 23 de Agosto de 2019, pelas 21:00 horas, quando o arguido e EE se encontravam no interior da residência onde moravam, tiveram uma discussão, na cozinha situada no rés-do-chão (voltada para as traseiras da habitação). - Nesse âmbito, a determinada altura, o arguido deslocou-se a um quarto de arrumos dessa habitação e muniu-se de uma espingarda, de funcionamento semiautomático, de calibre 12, de marca Breda, com o nº de série …, exibindo o número …. no cano, municiada com três munições, da sua propriedade. - Após, munido com a referida espingarda empunhada, o arguido foi com a mesma para a cozinha. - Nesse momento, a vítima encontrava-se no exterior, junto à porta de acesso à cozinha que se encontrava aberta, altura em que o arguido efectuou três disparos a uma distância de cerca de 2 a 3 metros da vítima, que a atingiram no ombro esquerdo, no braço, junto à ligação do antebraço direito, e no nó da garganta. - Como consequência directa e necessária dos disparos efectuados pelo arguido, EE sofreu as lesões que estão descritas no relatório de autópsia médico-legal de fls. 215 e ss., as quais julgamos como provadas. - Tais lesões determinaram a morte de EE – o relatório de autópsia é esclarecedor a este respeito (vide as suas conclusões a fls. 219). Na verdade, tal como resulta do relatório de autópsia, a morte de EE foi devida às lesões traumáticas cervicais, torácicas e dos membros superiores resultantes de traumatismo de natureza perfuro-contundente, devido à ação de projéteis da arma de fogo de cano longo, cujo trajeto da lesão cervico-torácica no corpo da vítima se pode descrever como tendo sido de superior para inferior, da direita para a esquerda e de anterior para posterior (não tendo sido possível definir o trajeto das lesões nos membros superiores). As lesões julgadas como provadas estão documentadas no relatório de autópsia (exame do hábito externo e interno). Resulta de fls. 83 (pontos 18. e 19.) e de fls. 85 que: - O arguido tem licença de uso e porte de arma. Mais apuramos em julgamento que o arguido é caçador desde os seus vinte anos de idade. Neste sentido, as declarações do arguido e dos seus filhos, demandantes cíveis. O arguido referiu que pertence à Associação de Caça … .. Portanto, o arguido tem perfeito conhecimento do manuseamento de armas de fogo, bem sabendo que ao empunhar a aludida arma em direcção de órgãos vitais e ao efectuar três disparos a curta distância da vítima, estes eram um meio idóneo a causar a morte à vítima. Nestes termos, é por demais evidente que o arguido agiu com o propósito de tirar a vida à vítima, sua mulher, actuando da forma descrita, impulsionado por uma discussão, actuando de forma desproporcional e inesperada (o que também nos parece bastante claro), ciente que ao disparar a referida a arma a cerca de 2 a 3 metros da vítima, a mataria, resultado que idealizou e quis. Refere a acusação que a sua actuação foi determinada por motivo fútil. Estamos perante matéria conclusiva a retirar dos factos, pelo que não emitiremos a este respeito qualquer juízo probatório. Mais julgamos provado que, após, o arguido ligou a FF pedindo-lhe que fosse a sua casa e solicitou-lhe que o levasse até à GNR, o que aquele fez. Neste sentido as declarações do arguido e as de FF, ouvido como testemunha em audiência de julgamento, mas também o auto de análise a telemóvel de fls. 59 e ss. Perante o exposto, julgamos ainda como provado que: - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser proibida e punida a sua conduta por lei penal como crime. A sua actuação, de acordo com os meios de prova analisados em audiência, foi neste exacto sentido e apenas neste exacto sentido. O arguido referiu-se aos seus problemas de saúde, o que está documentado nos autos. Porém, em momento algum, nas suas declarações, relacionou os mesmos com a sua actuação no dia em causa. Não se referiu a qualquer limitação intelectual ou a nível da vontade que tivesse influenciado a sua actuação no dia em causa. * 2.1.3.4. Dos danos do pedido de indemnização civil EE nasceu a … .08.1965 – vide o seu cartão de cidadão a fls. 28 autos. Tinha, quando foi morta nos termos descritos supra, 53 anos. Faria 54 anos no dia seguinte. Os demandantes são filhos da vítima mortal do crime objecto destes autos e do arguido / demandado – isso mesmo o demonstra o documento de fls. 374 e ss. – habilitação de herdeiros (o que julgamos como provado). As pessoas em causa foram, todas elas, ouvidas em julgamento e identificaram-se nestes precisos termos. Sobre o sofrimento de EE, no período que mediou entre os actos do arguido, que disparou três tiros de caçadeira, até ao momento do seu falecimento, temos presente que, perante o apurado (e já descrito supra) decorreu tempo suficiente para EE – desde o primeiro disparo até ao terceiro e à sua morte –, se aperceber da sua “sorte”, da gravidade da agressão de que estava a ser vítima (estava de frente para o arguido – daí a localização dos disparos no seu corpo), e do fim da sua vida. O arguido estava a disparar uma caçadeira dirigida a si e, portanto, nesse âmbito temporal, devido à acção do arguido: - EE sentiu medo, pânico e horror. - Teve dores horríveis (nenhuma dúvida pode existir a este respeito – os danos no corpo, na pele, são esclarecedores). - Estava, aquando dos disparos, ainda viva, lúcida, consciente. - Foi atingida, com os cartuchos da espingarda, num dos seus membros superiores (braço direito), desfazendo os tecidos vivos que o ampararam, no ombro esquerdo, e (no terceiro disparo) na zona do tórax, ferindo a artéria carótida. - Sentiu desespero, antecipou a própria morte, enquanto se esvaia em sangue, até ter sucumbido. Julgamos, pois, tal matéria, perfeitamente conforme às regras da experiência comum (o sofrimento de qualquer pessoa nessas circunstâncias é exactamente esse e nesses precisos termos). Consideramos demonstrado que o último disparo a atingiu, portanto, a zona do torax, junto ao pescoço – tal como resulta das fotos e do relatório de autópsia –, na medida em que a posição do disparo remete-nos para o facto de o mesmo ter sido de cima para baixo, o que significa que a vítima estava, no seguimento dos anteriores disparos, com as dores, mais próxima do solo, enquanto o arguido continuou a disparar a caçadeira (até esse último disparo). Não consideramos demonstrado, porém, que: EE apercebeu-se de que o arguido a abandonou, virando-lhe costas. Ouvimos em audiência de julgamento, a respeitos dos danos sofridos pelos demandantes cíveis, os próprios demandantes, bem como os cônjuges de dois desses demandantes. Estamos, quanto à matéria em apreciação, perante factos bastante claros sobre o que representa perder uma mãe, morta a tiro de caçadeira, pelo marido e pai dos demandantes. Não ficamos com qualquer dúvida sobre o sofrimento que isso representou. DD, actualmente com 26 anos, que trabalha em…, recordou em julgamento que a morte da mãe ocorreu no dia de aniversário do filho, com quem havia falado algum tempo antes, descreveu a mãe, a relação que tinha com a mesma, e o sofrimento que padeceu e (ainda) sofre depois dos factos objecto destes autos. MM, nora da vítima e do arguido, casada com o filho BB, desde 2011, descreveu EE em vida e relatou o sofrimento e revolta do marido, que era muito próximo da mãe. Recordou que estava grávida na altura e explicou porque isso os perturbou ainda mais. NN, genro, casado com a filha CC, descreveu, nos mesmos termos, EE, a relação da mulher com a mãe e o seu sofrimento, tanto mais que estava grávida na altura de 38 semanas (o filho nasceu 15 dias depois), nos termos em que explicou e enquadrou. BB, filho, de 37 anos, descreveu a mãe, a relação que mantinha com a mesma e a sua importância na sua vida. Relatou ainda, com grande pormenor, o sofrimento e a forma como isso o afectou (a todos os níveis, disse). Não deixou também de relatar o sofrimento dos irmãos, em especial, do Jorge (irmão mais novo). CC, filha, no mesmo sentido, descreveu a mãe e a sua maneira de ser, a relação que mantinha com a mesma e a falta que lhe faz, nomeadamente com o nascimento do primeiro filho. Morreu – disse – quando andava a mãe feliz pelos dois netos “a caminho”. Descreveu ainda o sofrimento e a dor porque passou e passa com a sua morte. Confirmou a revolta e a dor dos irmãos. Assim, perante tal prova absolutamente clara e esclarecedora, julgamos, pois, provado que: - EE era uma mulher alegre, feliz, extremamente dedicada à família. - Uma mãe carinhosa, preocupada e presente na vida dos seus filhos. - Cheia de vontade de viver. - EE era uma pessoa bem-disposta, sensível, pacífica, avessa a violências e conflitos. - Era ainda uma mulher muito activa, com invejável vontade de viver. Mais julgamos como provado, com fundamento nas declarações e nos depoimentos elencados supra, que: - Os demandantes passaram, e ainda passam, momentos extremamente perturbadores. - A brutalidade da morte da mãe causou em todos enorme desgosto e choque emocional. - Nutriam amor e afecto desmedido pela mãe. - Tiveram e tem de lidar com o facto de que a mulher que lhe deu a vida foi morta com três tiros de caçadeira, pelo seu próprio pai. - O que lhes produziu uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio sócio-psíquico-emocional. - Os demandantes têm, ainda hoje, imensa dificuldade em aceitar o sucedido, algo que os irá acompanhar pelo resto das suas vidas. - A vida dos demandantes é marcada por um pesado sentimento de revolta e de infelicidade. - São inúmeras as vezes que acordam a meio da noite assolados pela imaginação daquilo que a sua mãe terá sentido, vivido, pensado. - Sentem saudade da mãe extremosa, das suas palavras amigas, do seu colo. - Ainda choram o luto da sua mãe e acreditam que será muito difícil ultrapassar a dor que sentem. - Sofrem pelo facto de o próprio pai ter morto a mãe. - Tiveram de explicar esta situação aos seus filhos, que terão de viver sempre com este marco. A matéria em causa é absolutamente conforme às declarações prestadas em audiência citadas supra, as quais não nos levantaram qualquer dúvida, antes pelo contrário, se nos apresentaram consistentes e conformes às regras da experiência. Não consideramos, porém, estar suficientemente demonstrado que: - Os demandantes vivem hoje num estado depressivo. - Nunca mais tiveram uma noite tranquila de sono. - Pesa-lhes, e sempre irá pesar, a ideia de que a poderiam ter salvo. Tal factualidade, alegadas pelos demandantes, não ficou suficientemente demonstrado, pelos menos nestes precisos termos, razão pela qual julgamos tal matéria como não provada. * Consideramos provado que, na sequência da morte de EE, os demandantes suportaram despesa com as cerimónias fúnebres. BB, filho, explicou que as despesas do funeral da mãe foram suportadas – e divididas – pelos irmãos. Sobre o montante despendido, consta do pedido de indemnização que tal consubstanciou o valor de 2.350,00 €, porém, nenhum elemento de prova demonstra esse valor, que assim julgamos como não demonstrado (refere-se no pedido de indemnização a uma factura, que se protestou juntar, mas que também não foi cumprido). * 2.1.3.5. A situação pessoal, profissional, social e de vida do arguido, actualmente preso em estabelecimento prisional, apurada – nos termos julgados como provado – resultou do relatório social elaborado pela DGRSP e juntos aos autos a fls. 505 e ss., de 29.05.2020. O arguido, em requerimento junto aos autos, veio colocar em causa o vertido no relatório social no que se reporta às suas condições sociais pessoais, por as informações terem sido recolhidas junto dos filhos e familiares da vítima, pessoas sem isenção e imparcialidade. Não aprendemos qualquer falta de isenção e imparcialidade dos filhos e familiares, ouvidos em audiência de julgamento. A este respeito, porém, tendo presente o exposto, consideramos apenas demonstrado aquilo que foi apurado em audiência de julgamento e o que se mostra conforme a isso mesmo. Assim, tendo presente os actos praticados pelo arguido objecto destes autos, as explicações e as justificações (ou enquadramento) do mesmo a este respeito, tendo presente o que os filhos do arguido relataram da sua personalidade, nomeadamente o filho mais novo, DD, não temos qualquer dúvida acerca da matéria que consta da factualidade julgada como provada, em especial que: - AA necessita de reconhecer e interiorizar o desvalor da conduta criminal praticada, bem como adquirir controlo de impulsos e de agressividade, e estratégias de relacionamento familiar equilibradas. - Não lhe são conhecidos comportamentos aditivos ou problemas de saúde que condicionem o seu comportamento/percurso vivencial. Os problemas de saúde que estão documentados no processo (vide fls. 513 e ss., mas também fls. 503 e ss., e a informação de fls. 469) em nada interferiram, pelo menos isso não apuramos como certo ou minimamente seguro, com o seu comportamento ou percurso vivencial. Ouvido o arguido acerca do ocorrido, nenhuma dúvida pode existir a este respeito. - O arguido matinha relação conflituosa com os filhos. Havia proibido a filha de frequentar a casa. O mesmo aconteceu ao filho mais velho, depois de pedir ao pai que não maltratasse mais a progenitora, sob pena de apresentar queixa-crime. As declarações de CC e BB, bem como dos respectivos cônjuges, as testemunhas MM e NN, não deixam qualquer margem para dúvida a este respeito. Julgamos, pois, ter elementos absolutamente claros, perante tudo o que já expusemos nesta fundamentação da matéria de facto, no sentido de que: - No seu quotidiano, a superficialidade afetiva do arguido e a sua incapacidade para estabelecer uma relação afetiva mais profunda com o cônjuge e os filhos foi uma constante. A ausência de antecedentes criminais, tal como julgamos como provado, resultaram do certificado de registo criminal do arguido de fls. 498 dos autos. §2.(b). – DE DIREITO. §2.(b).1. – VIOLAÇAO DO PRINCÍPO DA DUPLA VALORAÇÃO (Punição agravada pelo uso de arma de fogo). Pugna o recorrente pelo aleijão ao princípio da dupla valoração, por Ao estabelecer a pena máxima, o legislador, considerando os exemplos padrão ao nível da ilicitude ( e que não se esgota no tipo de artigo 131º) e ao nível da culpa ( admitindo que se estabelece um grau diferente quanto ao ultimo) (e)levou ambos ao LIMITE MÁXIMO – não sendo possível uma outra agravação, quer ao nível da ilicitude, quer ao nível da culpa, com recurso a outros elementos externos à norma - outras normas, mormente, o artigo 86º nº 3 da lei das Armas. 16º O artigo 132º do Código Penal, é uma norma especial e esgota-se em si mesma – com todos os elementos integradores que compõe a infração criminal – a ação, típica, ilícita, culposa e punível (conjugada, naturalmente, com a norma geral – artigo 131º). 17º Uma vez integrada a conduta delituosa no tipo de crime “homicídio qualificado” – pelo nº 1 do art. 132º ou também por qualquer das alíneas do nº 2 – não pode ocorrer o acionamento da agravante da Lei das Armas. 18º Exigências de compatibilização lógico-valorativa dos preceitos legais impõem que o art. 86º, nº 3 funcione apenas por referência ao tipo do art. 131º (ou a outros tipos de homicídio não qualificado). 19º Da aplicação do artigo 132º resulta desde logo uma agravação, quer em sede de ilicitude, quer em sede de culpa, ainda que em graus diferentes. 20º Nos casos em que o agente deva ser punido pelo crime do art. 132.º do Código Penal não há lugar à agravação prevista no artigo 86.º, nºs 3 na Lei das Armas, sob pena de violação do princípio de proibição de dupla valoração. 21º É, quanto a nós, inquestionável que o Douto Tribunal violou o referido princípio.” Convocando os preceitos reguladores – artigo 86.º, nº 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições (RJAM) – refere-se no citado preceito que “[a]s penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”, e o artigo 132º, nº 1 e 2, alíneas b) e h) do Código Penal que “[s]e a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. 2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau; h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”. O tribunal recorrido, numa proficiente e bem estruturada argumentação defendeu a agravação do crime de homicídio qualificado nos termos que a seguir quedam expostos (sic). “2.2.1.1.4. O art. 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro – Lei das Armas e Munições – consagra uma agravação especial de um terço nos limites da moldura legal da pena – sem exceder o limite máximo de 25 anos de prisão (n.º 5) – para os crimes cometidos com o recurso a arma. Define a norma citada, em vigor aquando da prática dos factos [ ] 29, que: as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma. Explica o n.º 4 que “para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente”. A agravação só ocorre nos casos em que o porte ou uso da arma não for elemento do tipo de crime ou não o previr isso como agravação mais elevada para o crime (como ocorre no furto qualificado ou roubo agravado, em que se prevê já essa circunstância: trazer, no momento do crime, arma aparente ou oculta – arts. 204º, n.º 2, al. f) e 210º, n.º 2, al. b) do CP. Assim, considera-se, para este efeito, que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante (abrangendo também o cúmplice) traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas als. a) a d) do n.º 1 do art. 86º – a arma é aparente quando se apresenta visível, ostensiva, que é exibida; e oculta quando está escondida (não é visível), ainda que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente. O agente, ao nível do tipo subjectivo, para ser punido pelo crime qualificado, tem de saber ou, pelo menos, representar a verificação da circunstância qualificativa e aceitar a verificação da mesma (dolo eventual). No âmbito do crime de homicídio, explica o STJ, em acórdão de 31.03.2011[ ]31, que o uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no art. 131.º do CP. Pode ser um factor de agravação, mas só o será se, para além de preencher um dos exemplos-padrão «meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da al. h) do n.º 2 do art. 132.º, revelar «especial censurabilidade ou perversidade». Enquanto que a agravação do n.º 3 do art. 86.º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma; a (qualificação) do art. 132.º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa. Além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime, aqui não. 2.2.1.1.5. No caso sub iudicio mostra-se provado que: - O arguido e EE eram casados desde 1982 e viviam juntos em …, ... . - No dia 23.08.2019, pelas 21:00 horas, na residência onde viviam, ocorreu uma discussão, entre o arguido e a sua mulher, na cozinha, situada no rés-do-chão das traseiras da habitação. - A determinada altura, o arguido deslocou-se a um quarto de arrumos e, de seguida, muniu-se de uma espingarda, de funcionamento semiautomático, de calibre 12, de marca Breda, de modelo Altair Special, com o nº de série ..., exibindo o número ... no cano, municiada com três munições, da sua propriedade. - Após, o arguido, munido com a referida espingarda empunhada, foi para a cozinha. - Nesse momento a vítima encontrava-se no exterior, junto à porta de acesso à cozinha que se encontrava aberta, altura em que o arguido efectuou três disparos a uma distância de cerca de 2 a 3 metros da vítima, que a atingiram no ombro esquerdo, no braço, junto à ligação do antebraço direito, e no nó da garganta. - Como consequência directa e necessária dos disparos efectuados pelo arguido, EE sofreu um conjunto de lesões – traumáticas cervicais, torácicas e dos membros superiores resultantes de traumatismo de natureza perfuro-contundente, devido à ação de projéteis da arma de fogo de cano longo, cujo trajeto da lesão cervico-torácica no corpo da vítima se pode descrever como tendo sido de superior para inferior, da direita para a esquerda e de anterior para posterior – que lhe causaram a morte. - O arguido tem licença de uso e porte de arma, é caçador, tendo perfeito conhecimento do manuseamento de armas de fogo. - O arguido sabia que, ao empunhar a aludida arma em direcção de órgãos vitais e ao efectuar três disparos a curta distância da vítima, era um meio idóneo a causar a morte à vítima. - O arguido agiu com o propósito de tirar a vida à vítima, sua mulher, actuando da forma descrita impulsionado por uma discussão e, consequentemente, por motivo desproporcional, actuando de forma inesperada, ciente que ao disparar a referida a arma a cerca de 2 a 3 metros da vítima, a mataria, resultado que idealizou e quis. - Agiu o arguido sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser proibida e punida a sua conduta por lei penal como crime. Do exposto resulta que o arguido, com o comportamento descrito, matou outra pessoa, a sua então mulher EE. O tipo legal de homicídio consuma-se com a morte de outra pessoa. Estamos perante um crime de dano, quanto ao bem jurídico, e de resultado, quanto ao objecto da acção. In casu, tal morte ocorreu e o homicídio consumou-se. O arguido actuou com dolo directo de homicídio: querendo provocar a morte de EE (o que quis e conseguiu). Dos actos praticados resulta que a vítima do homicídio era a mulher do arguido, com quem era casado desde 1982 e com quem residia. Nos termos da al. b) do n.º 2 do art. 132º do CP, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade … a circunstância de o agente praticar o facto contra cônjuge. Pensamos que efectivamente as circunstâncias em que ocorreram os actos praticados pelo arguido – de execução de um crime de homicídio – são reveladores de especial censurabilidade ou perversidade. O arguido provocou a morte da sua mulher, com a utilização de uma caçadeira, com a qual desferiu na mesma, a curta distância e no espaço (na casa) onde habitavam, três tiros, que a atingiram. Não existe qualquer circunstância que atenue (ou sequer explique) o comportamento do arguido. A morte dolosa da mulher comporta uma quebra (definitiva e) radical da solidariedade que é devida pelo arguido à vítima. Estamos perante actos praticados, que, globalmente apreciado, se enquadram numa atitude que revela qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do arguido, o que conforma uma culpa qualificada. O comportamento do arguido é, portanto, subsumível ao homicídio qualificado (art. 132º, n.º 2, al. b) do CP). Não é, porém, quanto a nós, subsumível às als. e) e h) do n.º 2 do art. 132º do CP. O arguido matou a sua mulher, disparando sobre o corpo da mesma, três disparo com uma caçadeira, no seguimento de uma discussão que ambos tiveram, momentos antes. Não enquadramos a motivação do arguido como sendo reveladora de “matar por avidez (desejo de lucro), “prazer de matar” ou “excitação ou para satisfação do instinto sexual” ou “qualquer motivo torpe ou fútil”. Não estamos perante uma actuação que deva ser enquadrada como repugnante ou gratuita, nem que exista uma desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça, com os padrões éticos geralmente aceites na comunidade. Nem nos mesmos comparticiparam, pelos menos, 3 agentes, nem o meio pode ser considerado como particularmente perigoso. A utilização de uma arma, ainda que de caça, não é um meio que releva uma perigosidade muito superior ao normal dos meios usados para matar. Nem isso se traduz na prática de crime de perigo comum. A utilização de uma pistola para matar não é considerado um meio, ao nível da perigosidade, muito superior ao normal dos meios usados para matar (não se integram neste âmbito a pistola, a faca ou vulgares instrumentos contundentes). O uso de arma só é um factor de agravação, ao nível do preenchimento de um dos exemplos-padrão, se o considerarmos um «meio particularmente perigoso» ou subsumível à «prática de um crime de perigo comum». Pensamos que, pelas razões referidas, não é o caso. Assim, o arguido praticou um crime de homicídio qualificado nos termos previsto nos arts. 131º e 132º, n.º 1 e 2, al. a), do CP. Porém, tendo o crime sido cometido com uma arma (estamos perante uma espingarda (art. 2º, n.º 1, al. ae) da Lei das Armas e Munições - Lei n.º 5/2006, que se integra numa arma de fogo semiautomática - art. 2º, n.º 1, al. ae), da classe D (art. 3º, n.º 6, al. c), por força do art. 86º, n.º 3, da Lei das Armas e Munições, releva tal comportamento criminal um maior grau de ilicitude, o que se integra na agravação do crime de homicídio (neste caso, qualificado). Explica o STJ, no acórdão de 15.01.2019, que, tendo o crime de homicídio sido cometido com uma arma caçadeira e não sendo o simples uso e porte de arma elemento típico do crime, nem ocorrendo agravação da pena por esta circunstância nos termos do art. 132.º do CP, há lugar à agravação prevista no n.º 3 (por referência ao nº 4) do art. 86.º da Lei das Armas, pelo que, tendo em atenção o limite máximo de 25 anos (art. 41.º, n.ºs 2 e 3, do CP), a moldura abstracta da pena, é de 16 a 25 anos de prisão. No mesmo sentido, o Ac. do STJ, de 27.03.2019, refere que: o arguido foi condenado por um crime de homicídio qualificado, agravado pelo disposto no art. 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23.02, devido à utilização de arma de fogo. Conforme resulta claramente do texto da lei, sem dar lugar a dúvidas, a agravação nela prevista, que se funda numa maior ilicitude da conduta, só é afastada quando o porte ou uso da arma já é punido, quer por ser elemento do tipo legal, quer por a lei prever agravação em função desse uso ou porte. Assim, se o homicídio for qualificado em razão do uso de arma (al. h) do n.º 2 do art. 132.º do CP), não pode ser agravado pelo n.º 3 da disposição citada. Mas não foi esse o caso dos autos. O uso da arma de fogo pelo arguido não faz parte do tipo legal, nem foi a razão da agravação do homicídio. Consequentemente, as penas foram bem agravadas nos termos do n.º 3 do art. 86.º da Lei 5/2006, de 23.02. É esse ainda o sentido da decisão constante do Ac. do STJ, de 13.04.2016, (neste processo o arguido foi condenado pela prática de dois crimes de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.°, 132º, n.ºs. 1 e 2, al. l), 22.° e 23.°, todos do CP, e 86.°, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23.02): o disparo é co-natural ao funcionamento da arma, e ainda que a arma de fogo seja um meio perigoso, pela potencialidade letal que lhe é inerente, não constitui, por isso, um meio particularmente perigoso, para efeito de qualificação do crime de homicídio, sendo que, por outro lado, a mera detenção ou utilização da mesma arma não traduz a prática de crime comum. Donde, não poder considerar-se preenchida a agravante qualificativa da al. h) do art. 132° do CP, nem da al. i). O n.º 3 do art. 86.º, da Lei 5/2006, de 23.02, só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do art. 86.º, n.º 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de accionar efectivamente essa outra agravação. O uso de arma não é elemento do crime de homicídio e, no caso, não leva ao preenchimento do tipo qualificado do art. 132.º (essa qualificação ocorre por outra circunstância qualificativa), pelo que não há fundamento para afastar a agravação do art. 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23.02. Assim, aplicando o exposto ao caso dos autos, importa concluir que o comportamento do arguido é subsumível à prática de um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131.º, n.º 1, 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. b), do CP, e 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23.02. O arguido – mostra-se provado – actuou com dolo directo (art. 14º, n.º 1, do CP), preenchendo o tipo subjectivo do ilícito. O arguido, ao disparar a arma em causa, quis matar a sua mulher, como efectivamente matou, bem sabendo disso mesmo e que utilizava uma arma para o concretizar. Será, nestes termos, o arguido condenado pela prática de tal crime de homicídio qualificado agravado.” A cumulação da punição do crime de homicídio qualificado (artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea h) do Código Penal) com o crime de detenção de arma proibido, tem vindo a ser objecto de debate doutrinal e jurisprudencial, assumindo, ou sendo encarado em, distintos ângulos, ou perspectivas de análise e integração em institutos do direito penal – concurso de crimes; violação do princípio do ne bis in idem; e vulneração/socavo do princípio da proibição da dupla violação – o que é atestado pela abastança de arestos que se têm dedicado a devassar a questão. No aresto por nós relatado (processo nº 1125/16.6PZLSB.L1:s1, de 19 de Fevereiro de 2020) tivemos a oportunidade de tecer acerca do tema as sequentes consideração: “Estipula o artigo 30º, nº 1 do Código Penal que “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.” (Afeiçoando a análise do preceito á problemática do instituto do ne bis in idem, defende Inês Ferreira Leite, ““Ne (Idem) Bis In Idem. Proibição da Dupla Punição e de Duplo Julgamento: Contributos para a Racionalidade do Poder unitivo Público, Vol. I, AAFDL Editora, 2016, p. 860, que o sentido a conferir ao termo “efectivamente” “é a que impõe ao intérprete que relacione o termo “efectivamente”, não com o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade penal, nem com um critério único – como a acção, o resultado ou o bem jurídico –, mas antes com o conjunto de critérios sobre os quais se assentou a proibição de um ne bis in idem e que forma focados no capítulo anterior: identidade do agente, unidade normativo-social do facto, identidade funcional da norma de valoração e identidade funcional da norma sancionatória.”) Para a Autora – e mantendo sempre uma presença e uma correlação com a temática do princípio ne bis in idem – “para que se conclua pela existência de um concurso efectivo de crimes, previsto no nº 1 do artigo 30º e regido plenamente pelo artigo 77º, ambos do CP, não basta a verificação de vários tipos incriminadores. É ainda preciso que, subjacente a cada um dos tipos em concurso, esteja, efectivamente, um crime autónomo sobre o qual possa ser realizado um juízo de censura jurídico-penal também autónomo. Não poderá, portanto, concluir-se no sentido de concurso efectivo de crimes sempre que: o mesmo agente pratique um só facto normativo-socialmente unitário, em sentido estrito, na sua unidade mínima; o mesmo agente pratique um facto normativo-socialmente unitário, em sentido amplo, quando algum dos elementos nucleares do facto – desvalor da acção, desvalor do resultado ou imputabilidade – não permita a autonomização necessária para a realização de dois ou mais juízos de censura jurídico-penal distintos, imprescindível para a determinação, também individual, das respectivas penas; ou o mesmo agente pratique uma pluralidade de factos, mas a aplicação de m dos tipos incriminadores imponha a ponderação de alguma das unidades nucleares essenciais a outro ou outros dos tipos incriminadores, ocorrendo assim uma dupla valoração proibida do mesmo facto, no seu sentido normativo-social.” (Inês Ferreira Leite, ibidem, vol. II, p. 287) “No plano do concurso, estando em causa a proibição da dupla valoração, interessa avaliar a identidade normativo-social dos factos que constituem cada tipo incriminador e que não poderão deixar de ser valorados, em sede de determinação da medida da pena, Assim, não basta o preenchimento do tipo incriminador, é preciso que, subjacente a cada um dos tipos em concurso, resulte, efectivamente, um desvalor autónomo, sobre o qual possa ser realizado um juízo de censura jurídico-penal, também autónomo.” (Inês Ferreira Leite, ibidem, vol. I, p. 861) Procurando pontilhar os traços definidores e essenciais da temática da unidade e pluralidade de infracções, refere Claus Roxin, (Derecho Penal. Parte General, Tomo II. Especiales Formas de aparición del delito. Civitas e Thomson, 2014, Editorial Aranzadi, Cizur Menor (Navarra), ps. 941 a 987), que ocorre alguma dificuldade no seu exacto e delimitador campo de reconhecimento jurídico-categorial dado que, por vezes, as categorias do concurso ideal e concurso real se entrecruzem ou mesclem com o concurso de leis (ou unidade de leis, “es difícil hablar de un autentico “concurso” ou concorrência de diversas leys, porque la condena se basa sólo en una infracción de ley” – cfr, Claus Roxin, ibidem, p. 998). “Os conceitos da linguagem legal “unidade de facto” e “pluralidade de facto” explicam-se porque no primeiro caso as distintas infracções d lei se produzem através de um facto e no segundo através de uma pluralidade de factos. As expressões habituais na linguagem técnico “concurso ideal” e “concurso real” baseiam-se na ideia de que o concurso realmente efectivamente (=realmente) existem vários factos, enquanto que a pluralidade de infracções da lei no concurso ideal só é de natureza ideal, quer dizer, baseiam-se numa pluralidade de tipos realizados enquanto que realmente só se cometeu uma acção”, “No concurso ideal homogéneo naturalmente só está disponível o marco penal do preceito lesionado várias vezes, Pelo contrário no concurso real fixa-se uma pena individual pra cada um dos factos e em seguida será configurada a partir das penas individuais uma “pena conjunta ou global”, que por regra geral consiste em “um aumento da pena mais alta merecida”. (Clau Roxin, ibidem, p. 941-942) Prossegue o Mestre que “o conceito de acção da teoria do concurso não se identifica nem com o conceito de acção do sistema de delito (o facto como uma acção típica, antijurídica e culpável) nem com o conceito processual penal de “facto”. (Claus Roxin, ibidem, p. 944) “A unidade de acção (quer dizer, a existência de uma mesma acção) [não se pode confundir] com “unidade de facto”. Certamente, cada unidade de facto pressupõe uma unidade de acção (isto é, a realização do resultado através de uma acção). Mas à unidade de acção se hão-de acrescer várias infracções da lei (de diferente ou da mesma natureza) para que surja uma unidade de facto.” (Pode distinguir-se entre acção em sentido natural, a unidade típica de acção e a unidade natural de acção) (Claus Roxin, ibidem, ps. 944-945) “A acção em sentido natural é uma manifestação da personalidade penalmente relevante que se manifesta nos delitos de comissão num emprego de energia positiva, quer dizer num movimento corporal levado pela vontade do actuante: por exemplo uma pedrada)”; já “a unidade típica de acção que se denomina também unidade jurídica ou normativa de acção e que às vezes é qualificada como unidade típica de valoração, se dá se a conduta típica, já seja conceptualmente, ou ao menos fáctica ou tipicamente, pressupõe várias acções únicas”; por fim “dá-se uma unidade natural de acção quando o agente põe operativa a vontade unitária dirigida à consecução de um resultado no mundo exterior através de uma pluralidade de actos uniformes e esses actos operantes individuais em virtude da sua conexão espacial e temporal é objectivamente reconhecível que pertencem de tal modo ao mesmo grupo que formam uma acção segundo a normal concepção da vida. (…) Há “quatro critérios que se devem dar juntos para a unidade natural da acção: uma vontade única; uma pluralidade de actos uniformes; uma estreita relação e conexão espacial e temporal dos actos individuais; e a sua pertença ao mesmo grupo reconhecível também objectivamente a para um terceiro”. (Claus Roxin, ibidem, ps. 945-950. Desenvolvidamente cfr. ps. 950 a 959) Ocorre uma situação de concurso aparente de leis “quando, ainda que de facto (“es cierto”) se hajam formalmente realizado vários tipos, não obstante (“empero”) mediante o castigo por um desses tipos já se retribuiu e saldou completamente o conteúdo do injusto ou ilícito e de culpabilidade do sucesso” (Claus Roxin, ibidem, pag. 997. Inês Ferreira Leite, in “Ne (Idem) Bis In Idem. Proibição da Dupla Punição e de Duplo Julgamento: Contributos para a Racionalidade do Poder Punitivo Público, Vol. I, AAFDL Editora, 2016, p. 815 refere que “Desde que Puppe recentrou as atenções na identidade do desvalor inerente aos ilícitos típicos, pouco mais se poderá acrescentar que seja substancialmente inovador. A autora procurou encontrar respostas na construção típica dos crimes e em linguagem jurídica, ou mesmo nas relações lógicas entre normas, mas acabou por concluir o inevitável: relevante é que não ocorra uma dupla valoração do mesmo facto jurídico. (…) A relevância das categorias lógicas tornou-se ainda mais despicienda depois das conclusões de Peter Abels, para quem a distinção entre concurso aparente e concurso ideal reside na contraposição entre proibição de dupla valoração e a necessidade de uma apreciação esgotante da ilicitude do facto global”) A solução legislativa regulamentar e própria adoptada, de ordinário, para integrar o concurso de leis é mediante “denominadas cláusulas de subsidiariedade”, como será o caso do artigo 292º do Código Penal quando depois de descrever o crime de condução de veículo em estado de embriaguez lhe injunge a punição “até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”, sendo, no entanto, que dogmaticamente e jurisprudencialmente o concurso de leis se opera mediante a especialidade, a subsidiariedade e consumpção. (Alguns autores, por exemplo Günther Jakobs e Puppe consideram a especialidade como única forma de concurso de leis – cfr. Claus Roxin, ibidem, 1000. Inês Ferreira Leite, na obra citado acrescenta a estas três categorias a “alternatividade”, ibidem, p. 817. “Ocorrendo concurso aparente de crimes (ou concurso de normas), por via da aplicação dos princípios ou critérios de resolução do concurso – especialidade, subsidiariedade, consunção e alternatividade –, o aplicador do Direito, de entre duas ou mais normas em concurso que estejam abrangidas por um dos referidos citérios, deverá escolher apenas uma, a qual será, efectivamente aplicada ao agente, ficando as demais excluídas da resolução do caso”). (Especialidade, deve ser considerada, genericamente, “se existe um preceito penal [que] apresenta todos os elementos de outro e só se distingue deste se ademais contém como mínimo outro ulterior elemento mais especial”, já a subsidiariedade ocorre quando se deva “castigar por um tipo se não intervém outro tipo que prevê uma penalidade mais grave”, do passo que a consumpção “se apresenta nas duas formas de facto tipicamente concomitantes ou acompanhante e de facto posterior “copenado”,) – (Claus Roxin, ibidem, págs. 999, 1003 e 1011 a 1016) “Em todos os casos de concurso de leis produz-se unicamente o castigo pelo delito preferente, de modo que o tipo penal deslocado (“desplazado”) não é mencionado no conteúdo da decisão (“en el tenor del fallo”)”, ocorrendo quatro consequências: “a) se a lei preferente por motivos jurídico-normativos ou processuais, como por exemplo por desistência da tentativa ou por falta de acusação ou querela, não pode ser aplicada e portanto não se pode castigar por ela, por regra geral reaparece a lei “desplazada” e se converte em objecto de punição autónoma”; b) a lei “desplazada” pode ser tida em conta na medição ou determinação da pena na medida em que não se contradigam os princípios gerais desta (proibição da dupla valoração”; c) não se pode impor uma pena por baixo da pena mínima da lei “desplazada”; d) a circunstância de que o autor não pode ser castigado pela lei “desplazada” não impede no caso o castigo por este delito de um cooperador só em delito posterior” – (Claus Roxin, ibidem, 1017.) A forma de compreender e perceber se ocorre uma situação de concurso aparente “pode ser motivada por distintos fenómenos. Pode tratar-se de um estrito problema de interpretação dos tipos incriminadores, fenómeno que alguma doutrina designa por “unidade de lei”, pode tratar-se de um problema de âmbito adjetivo, resolúvel mediante a valoração da prova, questão que é normalmente atribuída às relações de alternatividade entre tipos incriminadores; e pode tratar-se de uma situação em que diversos tipos incriminadores têm uma legítima pretensão concorrente de resolução do caso, embora se tenha de excluir o regime de concurso efetivo, hipótese qualificada por alguns autores como de “concurso aparente impróprio” ou “concurso efetivo aparente” ou “unrechete Realkonkurrenz”. O que se sustenta na presente tese é que a distinção entre estas figuras não pode assentar nas relações lógico-formais entre normas, mas antes em critérios materiais de análise dos factos”. (Inês Ferreira Leite, ibidem, vol. II, p. 296) Na jurisprudência por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 27-05-2010, Proferido no Processo nº 470/09.4PSLSB.L1.1, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar., quando refere que (sic): “A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade ide infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, [[i]] tem no artigo 30º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico. A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal. Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção). O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado). Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei. A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção. Especialmente difícil na sua caracterização é a consunção. Diz-se que há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cfr. v. g. H. H. JESCHECK e THOMAS WEIGEND, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, p. 788 e ss.). A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial. O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, id. est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao critério de bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de 29/06/2006, proc. nº 1942/06-3ª). O crime de detenção de arma proibida, previsto (s) e punido pelos artºs 2º nº 1 al. t), 3º nº 2, al. l), 4º nº 1 e 86, nº 1 al. c) da lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, está construído como crime de perigo abstracto, em que a lei previne o risco de uma lesão que coincide com a própria actividade proibida. Os crimes de perigo abstracto são crimes de mera actividade, em que esta traduz uma perigosidade geral de acção típica para determinados bens jurídicos; o perigo não pertence ao tipo, como no perigo concreto, mas o comportamento correspondente é tipicamente próprio da produção de um perigo concreto (H. H. Jescheck, cit., p. 282-283). Nos crimes de perigo, a realização do tipo basta-se com a mera colocação em perigo de bens jurídicos e pode consistir simplesmente no motivo da proibição. Os comportamentos são tipificados em vista da perigosidade típica para um bem jurídico, sem que se mostre comprovada no caso concreto; há como que uma presunção inelidível de perigo, e por isso dispensa-se a criação de perigo efectivo (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., p. 308-309). Nos crimes de perigo abstracto o perigo constitui o motivo da proibição, em função da perigosidade típica para um bem jurídico ou para uma série de bens jurídicos, independentemente de ser criado um perigo efectivo para o bem jurídico. No crime de detenção de arma proibida, a justificação da tutela penal e a carência de pena estão, assim, ligadas à perigosidade típica para bens jurídico-penalmente tutelados que podem ser afectados pela simples detenção – os valores da ordem, segurança e tranquilidade pública. A justificação e a dimensão valorativa dos bens jurídicos protegidos identificam-se, mais remota ou difusamente, com a protecção de uma pluralidade de bens jurídicos, que a simples posse, ilegítima ou proibida, de um instrumento é susceptível de afectar, fazendo reverter para um campo de risco de afectação (cf., v. g., acórdãos do STJ, de 25/10/2006, proc. 3042/06 e de 14/12/2006, proc. 4344/06). O bem jurídico, ainda numa projecção difusa de uma pluralidade de bens jurídicos e numa dimensão mais ampla, autonomiza-se de cada uma dos concretos bens jurídicos que possam vir a ser individualmente afectados na respectiva titularidade concreta, sendo, por si, autonomamente e ex ante, considerado com relevante para justificar a definição de um crime de perigo. Deste modo, a lesão do bem jurídico de perigo, assim compreendido, coincide logo no momento da detenção da arma proibida, independente da relação, específica e autónoma, de cada um dos valores individualizados que possam vir a ser concretamente afectados em crime posterior de resultado. O crime de roubo, por seu lado, constitui um crime de resultado, que pressupõe a produção de um resultado como consequência da actividade do agente: a subtracção de coisa alheia com constrangimento para bens jurídicos pessoais. O crime de roubo constitui, como é reconhecido, um crime complexo pela interposição de vários elementos que protegem bens jurídicos patrimoniais – na essência é um crime conta a propriedade integrado no Capítulo II («crimes contra a propriedade») do Título II («Dos crimes contra o património»), e bens jurídicos pessoais, por a ofensa à propriedade ser levada a efeito usando violência contra uma pessoas ou com a ameaça dom um perigo iminente para a vida ou para a integridade física. Por isso, a utilização de uma arma, enquanto tal, não faz parte dos elementos do tipo de roubo, nem integra circunstância agravante que, por si, modifique a natureza do crime ou a moldura da pena. A arma constitui, tão apenas, um instrumento material que, a par de outros, pode contribuir para realizar a violência ou a ameaça, e sendo arma de fogo, terá o mesmo efeito instrumental quer seja proibida que de uso que tenha sido objecto de licença. O crime de detenção de arma proibida, como crime de perigo, ficou integrado, autonomamente, logo com a detenção, independentemente do uso da arma que tenha sido feito posteriormente. Os bens jurídicos protegidos são, pois, distintos num e outro dos crimes. A posterior utilização apenas pode constituir um plus, que acresce e adensa, na valoração autónoma no contexto, as condições e as circunstâncias do crime de roubo. Mas nem tal plus, no caso, está considerado com valor autónomo na fundamentação da decisão. Improcede, assim, este fundamento do recurso.” (In www.dgsi.pt) Pontuando concretamente a situação configurada no caso em solução, refere Inês Ferreira Leite, que a relação sugerida entre a imputação de um crime de homicídio (artigo 131º do Código Penal) e o de detenção de arma proibida 86º, nº 1 do Regime Jurídico de Armas e Munições é de concurso efectivo ideal. Para acrescentar, de seguida, que “em alguns destes casos existe unicidade normativo-social do facto e a condenação em concurso efectivo pelo uso da arma na prática do crime corresponde a uma errónea conceção do concurso aparente e a uma dupla valoração (proibida) do desvalor da acção.” (Inês Ferreira Leite, ibidem, vol. II, p. 53). (Refira-se que a Autora utiliza o conceito (complexo e extensivo) de “unicidade normativo-social de sentido” fazendo-a integrar ou depender da verificação dos seguintes critérios: “fenómeno social, teleologia comportamental, identidade narrativa, assimilação pela linguagem e correspondente compreensibilidade jurídica.” (Ibidem, vol. II, p. 239) O critério da resolução do problema do ne bis in idem, refere Inês Ferreira Leite, na obra citada terá sido lidimamente exposto por António Pinto Monteiro, quando escreve no seu “Cláusula Penal e Indemnização” que “será a partir da finalidade das normas sancionatórias em “concurso” que se poderá indagar da possibilidade de cumulação de sanções. Caso as normas sancionatórias visem a satisfação do mesmo interesse ou a obtenção da mesma finalidade, então, não poderá haver, logicamente, cúmulo. Quando, pelo contrário, as normas sancionatórias em concurso procurem dar resposta a distintas necessidades jurídicas, então, a haver cúmulo, será, como este autor explica, um mero “cúmulo aparente”.” Mais adiante, a Autora refere que “a proibição do ne bis in idem material assenta em quatro ordens de exigências: i) identidade do sujeito; ii) identidade normativo-social do facto; iii) identidade funcional da norma de valoração; e iv) identidade funcional da norma sancionatória” (Inês Ferreira Leite, ibidem 425) Embasados nos aportes doutrinais carreados, analisemos (materialmente) a “unicidade normativo-social do facto”. O tribunal deu como adquirido – tendo por base a imputação factual e qualificação jurídica efectuada na acusação – que o arguido “não é titular de licença de uso e porte de arma” e que “conhecia as características da arma de fogo descrita em 13. e sabia que não se encontrava autorizado a detê-la ou a utilizá-la mas ainda assim, quis usar e usou a referida arma nos termos supra descritos 13. a 16.” E que a arma, que sabia deter e possuir sem habilitação e licenciamento legal, foi utilizada, pelo seu detentor (ilegal), para efectuar o disparo que atingiu o corpo da vítima e lhe veio a ocasionar a morte. (“O crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86º do RJAM, apenas se encontra preenchido quando o agente manifeste, exteriorizando, a sua pretensão de manter a arma para si ou, então, de proceder à sua venda, caso em que já estaria em causa o crime de tráfico de arma proibida (art. 87º do RJAM).” (Cfr. Inês Ferreira Leite, ibidem, Vol. II, p. 727) É possível discernir, diferenciar e autonomizar dois segmentos ou “unidades jurídicas de facto”. Um primeiro relativo à posse e detenção de uma arma de fogo que sabia não estar cadastrada e registada (os números de série encontravam-se rasurados (ponto 13 da matéria de facto provada) e para a qual não estava legalmente habilitado; o outro atina com a utilização dessa arma (ilegalmente possuída e detida) para efectuar o disparo com que visou o corpo da vítima e contra o qual efectuou o disparo que lhe viria a provocar as lesões letais. Ocorrem, no caso, duas situações ou unidades jurídicas de facto perfeitamente autonomizáveis e susceptíveis de conferirem uma incriminação, ou ma subsunção a uma norma incriminadora, distinta e autónoma. Tratando-se de situações de facto autonomizáveis – verificando-se, no caso, uma proximidade espácio-temporal tão só no uso e já não relativamente à detenção e posse ilegal, que se provou ser anterior ao momento da sua utilização – e jurídico-penalmente distintas e perfeitamente conformadas a dois tipos incriminadores, configura-se um concurso efectivo de crimes a serem punidos autonomamente e de forma individualizada. (“A jurisprudência vai ainda mais além, dado que considera possível também a unidade natural de acção inclusivamente quando se realizam distintos tipos penais, sempre e quando estejam muito próximos temporal e espacialmente um junto ao outro e sejam abarcados por uma vontade unitária” [tradução do castelhano nossa]) (Claus Roxin, ibidem, p. 956) A agravação decorrente do uso da arma na perpetração ou consumação do crime de homicídio não afasta a punição pela detenção e posse (ilegais) da arma. A agravação da punição cominada no preceito incriminador pela detenção da arma não se destina a sancionar a detenção da arma mas a agravar o desvalor da acção pelo meio utilizado, a arma proibida. Não ocorre, no caso, uma dupla valoração – entre a incriminação pelo crime de detenção de arma proibida e a circunstância de o crime de homicídio sofrer uma agravação na sua moldura legal – dado que a agravação cominada na norma repercute uma censura do sistema penal pela utilização de um meio fatalmente letal e com uma aptidão lesiva muito de capacidade e inserção superior a qualquer outro meio apto a lesionar o corpo de um ser humano. A agravação cominada na norma (avulsa) representa uma adição de censurabilidade ético-social e jurídico-penal que não pode ser absorvida pela censura geral e reprovação institucional-social do dever de manifesto de armas e de obtenção de licença para o seu uso e posse. (“tratando-se de uma situação em que a verificação de uma circunstância qualificativa de carácter geral (ditada por razões de prevenção geral, que têm a ver com a necessidade de reprimir o uso de armas no cometimento de crimes, logo que, não sendo privativa do crime de homicídio, mas transversal a todos os crimes perpetrados nessas condições, aporta um acréscimo à ilicitude da conduta) determina a agravação da pena aplicável ao crime, nada obsta a que a mesma opere, nos termos do número 3 do artigo 86.º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.”- cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11-02-2016, proferido no processo 205/14.7PLLRS.L1.S1, relatado pela Conselheira Isabel São Marcos, e citado no acórdão da 1ª instância. No aresto ora citado propugna-se pela verificação de um concurso efectivo entre o crime de homicídio qualificado e de detenção de arma proibida, “tem vindo este Supremo Tribunal a considerar que existe concurso efectivo entre os crimes de detenção de arma proibida e de homicídio qualificado pelo uso de arma proibida, numa situação como a prefigurada nos autos. E, designadamente (confira-se pontos 23, 24, e 25 da matéria de facto provada), quando, conhecendo as características de arma em causa (uma pistola semiautomática, com o calibre de 7,65 milímetros), e não ignorando que, sendo a mesma proibida, não podia tê-la em seu poder, e que se tratava de um meio muito perigoso, adequado a causar a morte da vítima nas circunstâncias em que com ela efectuou os disparos, e que não dispunha de licença de uso e porte de arma, o arguido não só a detinha como a usou.” [Na nota de rodapé citam-se arestos deste Supremo Tribunal de Justiça, coonestando a tese defendida - acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2013, Processo n.º 137/08.8WLSB.L1.S1, 5ª Secção; de 03.07.2014, Processo n.º 417/12.8TAPTL.S1, 5ª Secção; de 23.04.2015, de 15.01.2015, Processo n.º 92/14.5YFLSB, 5ª Secção; de 23.04.2015, Processo n.º 86/14.0YFLSB, 5ª Secção de que foi relatora a aqui relatora.] Daí que não se configure, no caso, uma consunção da incriminação pela unidade natural de acção consubstanciada na detenção de uma arma detida e possuída ilegalmente e a agravação da circunstância de utilização de um meio particularmente perigoso e de letalidade acrescida para a consumação do crime de homicídio. (cfr. neste sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Janeiro de 2012, proferido no processo nº 306/10.0JAPRT.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral) Desatende-se a existência de uma situação jurídico-legal de concurso aparente de crime e/ou de expansão e violação de uma dupla valoração, indutora de uma situação de ne bis in idem.)” Mais recentemente, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, tem vindo a encarrilhar argumentos que permitem sustentar a tese de uma não violação do princípio da proibição da dupla valoração, de que são exemplos entre outros – que seria ocioso citar – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 2015, proferido no processo nº 2368/12.7JAPRT.P1.S1, ao ditar que (sic) “Como é sabido, o crime de homicídio qualificado previsto no art.º 132.º do CP mais não constitui que uma forma agravada do crime de homicídio simples com previsão no seu art.º 131.º, preceitos que combinam um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa com a denominada técnica dos exemplos-padrão. No dizer de Figueiredo Dias [Comentário Conimbricense do Código Penal, I, págs. 48 e 49.], “a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos relativamente indeterminados: a especial «censurabilidade ou perversidade» do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplificativamente elencados no n.º 2. Elementos estes, assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancial e teleologicamente análogos (…) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador”. (…) O princípio da proibição da dupla valoração ou agravação a propósito do crime de homicídio qualificado tem sido afirmado relativamente aos exemplos-padrão. Qualificado o crime com um deles, isto é, determinada a moldura penal agravada, as respectivas circunstâncias que fazem parte do tipo de crime (tipo de culpa), já não podem ser tomadas em consideração na medida da pena, nisto se traduzindo a proibição da dupla valoração. Por outro lado, no concurso de várias circunstâncias só uma qualificará o tipo, relevando as demais, como agravantes gerais, na medida da pena. [V. Teresa Serra, “Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Almedina, 1992, 103 e ss] Trata-se, aí, de circunstâncias qualificativas, rectius, modificativas agravantes, que concorrem dentro do mesmo tipo. Quanto à circunstância agravativa do n.º 3 do art.º 86.º da referida Lei das Armas (“as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”), no confronto com qualquer das circunstâncias do n.º 2 do art.º 132.º (à excepção da alín. h) quando se refere ao meio particularmente perigoso ou à prática de crime de perigo comum, como podendo integrar o uso de arma), já não estamos perante a concorrência de qualificativas dentro do mesmo tipo. Trata-se de uma circunstância agravante de carácter geral que se não sobrepõe nem choca com as circunstâncias elencadas no n.º 2 do art.º 132.º e, daí, que a sua aplicação esteja fora do alcance daquele princípio da proibição da dupla valoração. O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo fundamental é o que decorre do art.º 131.º e embora a referida alín. h) do n.º 2 do art.º 132.º possa configurar o uso de arma enquanto meio particularmente perigoso ou crime de perigo comum, não dispensa, nunca, ao nível de uma maior culpa, uma especial censurabilidade ou perversidade. Já a agravação da moldura penal em 1/3 do mínimo e do máximo até 25 anos de prisão (n.º 5 do cit. art.º 86.º) encontra o seu fundamento num maior grau de ilicitude e tem sempre lugar desde que o crime, qualquer crime, seja cometido com arma. [Acs. STJ de 31.03.2011, Proc. 361/10.3GBLLE e 18.01.2012, Proc. 306/10.OJAPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.][ A agravação em causa não pode deixar de se dever à menor capacidade de defesa da vítima, funcionando como meio dissuasor do uso e porte de armas. De resto, como salienta Artur Vargues [“Comentário das Leis Penais Extravagantes”, I, org. por Paulo P. Albuquerque e J. Branco, pág. 244.], a agravação especial do n.º 3 do art.º 86.º teve como escopo reprimir a utilização de armas na prática de crimes e dar resposta tida como adequada e proporcional à criminalidade violenta e mais grave. No sentido da agravação da pena do crime de homicídio qualificado pelo n.º 3 do art.º 86.º da cit. Lei das Armas invariavelmente se tem pronunciado o STJ, mesmo oficiosamente, (enquanto questão de direito e após cumprimento do disposto n.º 3 do art.º 424.º do CPP). [Entre muitos outros, v. Acs. de 21.03.2013, Proc. 2024/08.0PAPTM.E1.S1, 18.09.2013, Proc. 110/11.9JAGRD.C1.S1, 26.09.2013, Proc. 641/11.0JDLSB.L1.S1, 16.10.2013, Proc. 455/12.0PCLSB.L1.S1, 03.07.2014, Proc. 417/12.8TAPTL.S1 e 12.03.2015, Proc. 185/13.6GCALQ.L1.S1, in www.dgsi.pt] No caso dos autos, o homicídio foi qualificado em razão da maior censurabilidade/perversidade por a resolução criminosa do arguido se dever a motivo fútil (alín. e) do n.º 2 do art.º 132.º). O uso da arma de fogo (pistola) não faz parte do tipo legal, nem foi a razão de ser da agravação, pelo que a respectiva pena deve ser agravada nos termos do mencionado n.º 3 do art.º 86.º da Lei das Armas. Não se verifica, portanto, a violação do princípio da proibição da dupla valoração ou do ne bis in idem, consagrado no n.º 5 do art.º 29.º da CRP, muito menos o da igualdade plasmado no seu art.º 13.º, cuja violação, de resto, não foi concretizada, inexistindo, portanto, qualquer inconstitucionalidade.” No mesmo carreiro segue o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Outubro de 2013, proferido no processo nº 40/11.4JAAVR.C2.S1 (Relatado pelo Conselheiro Pires da Graça”, ao asseverar que “[r]esulta da leitura atenta do nº 3 do artº 86º que a prática de um crime será sempre agravada se cometida com uma arma, qualquer que seja a sua classe (fogo, branca, química, biológica, radioativa, etc.) desde que tal arma, não faça parte do tipo do crime. O crime de homicídio foi cometido/praticado pelo arguido usando uma arma de fogo sem que a mesma seja elemento do crime p. no artº 131º do CP. A agravação da pena por autoria do crime de homicídio qualificado não se mostra proibida legal e constitucionalmente, como resulta da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente do Ac. do STJ de 18/1/2012, p. 306/10.0JAPRT.P1.S1. 3ª sec.: Não se vislumbra razão legal, ou imperativo constitucional, que proíba uma dupla agravação da pena, desde que a mesma corresponda a uma diversa dimensão da ilicitude, ou da culpa, e não a uma arbitrária violação do princípio non bis in idem. A particularidade do caso vertente surge com a circunstância de, para além das circunstâncias que se inscrevem no artº 132º do C.P., surgir uma outra qualificativa de carácter geral cominada no artº 86º da Lei 5/2006. Existe, assim, uma concorrência de qualificativas. O uso do mesmo revolver não foi tida como circunstância qualificativa que integrasse qualquer das enunciadas no nº 2 do artº 132º nomeadamente nas alíneas e) e/ou j) ou tivesse sido considerada como circunstância atípica que revelasse especial censurabilidade (neste sentido o Ac. do STJ do Exmº Conselheiro Relator de 12/9/2013, proc. 680/11.6GDALM.L1.S1. 3ª sec.). E ainda que o crime de homicídio não tivesse sido considerado qualificado sempre a medida da pena pelo crime de homicídio seria agravada de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo.” A qualificação do crime de homicídio investida no artigo 132º do Código Penal emerge de um incremento adensado da intencionalidade e das circunstâncias atinentes ao comportamento subjectivo e/ou objectivo do agente. São circunstâncias antepostas e circunstancias à acção que inculcam e induzem atitudes de ser e estar do agente perante a vítima, de modo de agir e realizar a acção, do seu planeamento, do estado de relacionamento social-familiar existente entre o agente e a vítima, de satisfação pessoal de instintos e emoções despojadas de sentir e agir humano, ou seja de uma atitude do agente perante o valor da vida e de factores circunstanciais que lhe conferem, pela proximidade e especial relacionamento do agente com a vítima um especial respeito e/ou um distanciamento e alheamento do valor da vida que reverberam um especial desvalor da atitude e uma incapacidade de acolher valores de respeito e asseguramento da vida humana. Instigam, como resulta da representação intelectual-cognitiva que inculcam, uma propensão do individuo perante o significado individual da vida a relevar na aferição da culpabilidade do acto. O agravamento da pena imposto pelo nº 3 do artigo 86º do Regime Jurídico das Armas e Munições [“As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma], configura-se, ou tem de se colimar, como uma medida de política criminal optada pelo legislador e que se traduz numa declarada intenção de restringir, pela punição do uso (indevido e desviado), a posse de armas, significar perante a comunidade a exigência de contenção da sua posse, projectar a ideia de que a posse de armas importa uma responsabilização acrescida porquanto o seu uso indevido propina, desde logo, um agravamento da punição. A uma opção de política, com se alcança do teor do segmento de arma, é desarraigada e independente da tipologia concernente ao crime a que se aplica. Ela aplica-se a todo e qualquer crime em que o agente use uma arma. A intenção do legislador ressalta, assim evidente. Inculcar, pela agravação (imprópria ou indirecta), das molduras penas, o uso de armas e fazer derivar a representação colectiva de que a posse de uma arma implica e impõe uma responsabilidade, individual, acrescida pelo perigo que essa posse, só por isso traduz. Desincentivar a posse de armas ou induzir uma posse responsável e conscienciosa, por estrita exigência de defesa pessoal ou de actividades sociais concernentes (como a actividade venatória). O cotejo e confronto efectuado – necessariamente a rasgos estendidos – entre a função contentora de uma representação (cognitivo-intelectual) da atitude do agente perante a intenção, o modo e a forma da sua concreção, no caso das circunstâncias descritiva que definem, por exemplificação os conceitos de perversidade e especial censurabilidade e, num polo completamente distinto nos seus objectivos e motivação, a função da agravação contida no nº 3 do artigo 86º do Regime Jurídico das Armas e Munições, permite retirar a conclusão de que não existe uma dupla valoração de circunstâncias agravativas do tipo de ilícito contido no artigo 132º do Código Penal. A exasperação da moldura penal do tipo de homicídio qualificado (agravamento em 1/3, pelo uso de uma arma) – em verificação de uma especial censurabilidade e perversidade – ocorre desde que se verifique qualquer das circunstâncias (descritas nos exemplos ou outras (atípicas, por não descritas e contempladas no exemplos expostas), que o julgador venha a considerar, por se poderem reconduzir aos conceitos inscritos no pórtico definidor da qualificação, desde que o crime tenha sido perpetrado e realizado com uma arma. A agravação pela utilização da arma na realização da acção criminosa é um factor exterior e exógeno ao circunstancialismo exemplificativo que integra os conceitos de especial censurabilidade e perversidade impostado no cometimento e realização do ilícito-típico. A utilização de uma arma, na perspectiva politico-criminal que lhe conferimos, ocorre - independentemente do tipo de crime – e como elemento, que embora ligado ao modo de realização do crime, cumpre uma função de sentido e alcance geral-preventivo, isto é, não interfere na densificação da culpabilidade do agente e não bule com a formação e “mensuração” do factor culpa na densificação dos conceitos de especial censurabilidade e perversidade, no caso do tipo de homicídio (qualificado). Não preenchendo a materialidade contida no ilícito-típico, a realização da acção com uma arma, apenas tem a virtualidade de, no plano da punição exasperar a moldura aparcada para o crime em que se subsume a acção típica e não introduzir factores de valoração na condensação intencional posta ou imprimida na preparação e concreção da realização do crime-base, ou seja a supressão da vida de uma pessoa, vale dizer o crime de homicídio suposto na norma do artigo 131º do Código Penal. Não ocorre, em nosso juízo, uma dupla valoração (na aferição da culpabilidade) para efeito da indicação punitiva (sancionatória-penal) que deva ser assumida na imposição concreta de uma pena pelo cometimento de um crime de homicídio em que se verifique a respectiva qualificação por verificação/preenchimento de um dos exemplos inscritos no nº 2 do artigo 132º do Código penal. Desatende-se, pois, a pretensão do arguido, traduzida numa violação do princípio da proibição da dupla valoração. §2.(b).2. – DETERMINAÇÃO/INDIVIDUALIZAÇÃO JUDICIAL DA PENA. A questão da medida concreta que lhe imposta suscita reparos ao recorrente, na medida em que aponta falhas de valoração do comportamento concomitante à realização da acção e posteriormente. Assim, indica o recorrente como factores que deveriam ter induzido uma pena menos grave (i) [o] estado de saúde do arguido e as limitações motoras ao nível dos membros superiores e inferiores, na sequência de um acidente e que levou ao internamento hospital até ao dia 9 de agosto de 2019”; (ii) [o] facto de o arguido ter sido empurrado, aquando da discussão, pela vítima, ficando prostrado no chão, com dificuldade em se levantar, não recebendo ajuda desta”; (iii) [o] arguido encontrava-se a receber acompanhamento psiquiátrico no Hospital de …, por Síndrome Depressivo – Ansioso, com ataque de pânico e com medicação prescrita que tomava”; (iv) [n]o estabelecimento prisional o arguido continua a receber acompanhamento psiquiátrico e passou a ser acompanhado por psicólogo”; (v) [n]o dia 25-06-2020, o arguido foi submetido a uma cirurgia vascular de carácter prioritário”; (vi) [o] arguido tem 60 anos de idade”; (vii) [a] vítima tinha 54 anos de idade aquando dos factos”; (viii) [o] arguido encontrava-se plenamente inserido na sociedade, era sociável e participava nas atividades locais”; (ix) [o] arguido entregou-se voluntariamente às autoridades”; (x) [o] arguido após o cometimento dos factos, tentou por termo sua vida, não conseguindo por circunstâncias alheias àquela vontade”. O tribunal recorrido justificou a medida concreta da pena irrogada ao arguido com a argumentação que a seguir queda transcrita [na parte interessante e adrede á formação (concreta da pena, (sic)]. “(…) Na determinação concreta da pena, tomaremos em consideração todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo do crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente aquelas que estão prescritas no n.º 2 do art. 71º do CP: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. Assim, tendo presente o exposto, importa determinar a pena de prisão do arguido em relação aos crimes que praticou. 2.2.2.2.2. Quanto ao concreto crime de homicídio qualificado agravado, ponderando e considerando que: A pena de prisão tem como limite mínimo 16 anos de prisão e como limite máximo 25 anos de prisão. O bem jurídico protegido pelo crime de homicídio (vida humana) foi afectado em termos definitivos e de forma irreversível. O grau de ilicitude é elevadíssimo, atendendo ao modo de actuação do arguido, ao instrumento utilizado para praticar o facto ilícito e às consequências desse facto. O arguido disparou 3 tiros de caçadeira, que atingiram o corpo da vítima (um deles dirigido ao peito da vítima, junto ao pescoço) – desvalor da acção muito significativo –, provocando-lhe a morte (desvalor de resultado). O dolo é directo (e muito intenso). O grau de culpa – que desempenha o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – é elevadíssimo: o comportamento do arguido, ao nível dos factos praticados, revela uma muito significativa censurabilidade, não tendo qualquer enquadramento possível, que não seja o desrespeito pela mulher e pela sua vida, em termos absolutamente inaceitáveis e censuráveis. Os sentimentos manifestados no cometimento do crime – comportamento socialmente desajustado e absolutamente desconforme com as regras básicas de convivência humana e familiar (já que a vítima era sua mulher desde 1982, portanto, há mais de 37 anos). Os motivos que estiveram na determinação dos crimes estão na incapacidade do arguido de respeitar a mulher com quem vivia e de a aceitar como ser humano autónomo, independente e merecedor de respeito. A necessidade de pôr cobro na sociedade a este tipo de comportamento que se mostra demasiado frequente nos dias que correm, em concreto, ao nível das relações conjugais, familiares e domésticas. As expectativas comunitárias na validade das normas jurídicas violadas são significativamente elevadas (seja pela gravidade do facto ilícito culposo praticado e os seus termos, seja pelo abalo provocado nas expectativas da comunidade na validade da norma violada). Existem razões de prevenção geral muito elevadas a exigirem protecção. São, portanto, elevadíssimas as exigências de prevenção geral (o necessário à tutela das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e o absolutamente imprescindível para assegurar a defesa da ordem jurídica). Sobre a sua situação pessoal, social e profissional, temos que o arguido tem o 4º ano de escolaridade, trabalhando, desde então, em especial como ... na construção civil. O seu percurso profissional, circunscrito a esta atividade, caracterizou-se pela regularidade de hábitos e rotinas de trabalho. Casou aos 22 anos e tem três filhos (os demandantes cíveis nestes autos). Enquanto trabalhava nestes termos, a mulher (vítima nestes autos de homicídio) era doméstica, dedicando-se ainda ao cultivo dos terrenos da família e a criação de animais domésticos, produtos que garantiam a subsistência do agregado constituído. Viviam em casa própria, dedicando-se o arguido, nos seus tempos livres, à caça. À data dos factos, o arguido residia apenas com a vítima. Os três filhos do casal, adultos, têm agregados constituídos e autonomizados. O arguido convivia regularmente com amigos e vizinhos em contexto de trabalho ou encontros, durante os quais não existem referências a comportamentos desadequados por parte do arguido. No estabelecimento prisional assume comportamentos adequados e beneficia das visitas de uma irmã e de alguns amigos. O arguido nasceu em … .04.1960, pelo que tem, actualmente, 60 anos de idade. Tinha 59 anos quando praticou os factos objectos destes autos. O arguido não tem antecedentes criminais. Depois dos factos praticados tem estado preso em prisão preventiva à ordem destes autos. Após a prática dos factos, nenhum facto ou acto foi apurado, nomeadamente em julgamento, que mereça ser qualificado como arrependimento ou (sequer) mudança de comportamento. Não apuramos, apesar do arguido estar preso preventivamente à ordem dos autos, nenhum concreto juízo de censura por parte do arguido relativamente aos factos que praticou. Não identificamos, com excepção do seu bom comportamento prisional, qualquer atitude do arguido posterior ao crime que nos indique que interiorizou o desvalor da sua conduta, seja ao nível da acção, seja do resultado. Mostra-se provado que o arguido necessita de reconhecer e interiorizar o desvalor da conduta criminal praticada, bem como adquirir controlo de impulsos e de agressividade, e estratégias de relacionamento familiar equilibradas. São muito elevadas as exigências de prevenção especial, desde logo, ao nível de socialização e de conformação do arguido com os valores de respeito pela vida humana, com especial relevância da mulher, com quem estava casado, mas também ao nível das necessidades de intimidação e de segurança individual. Assim, ponderando-se todos estes elementos enunciados, julgamos adequada a fixação da pena em 20 anos de prisão. Definida a pena principal de prisão a aplicar ao arguido nestes autos, importa concluir que é legalmente impossível a sua substituição por alguma das penas de substituição previstas no Código Penal.” Ensaiando um bosquejo (sumário) do conceito e fins das penas, poder-se-ia dizer que com a pena, o Estado através do sistema penal (viger numa sociedade de configuração ideológica demoliberais) dispõe-se a rechaçar e reagir ao desrespeito que alguém assume perante um comando legal que contenha uma proibição de fazer, agir ou omitir pretendendo com essa reacção confirmar a inteireza da norma (de proibição) e a sua validade e eficácia societária. Dir-se-á que com a pena o sistema pretende negar a negação consumada pelo agente de um preceito normativo-social válido. (Numa definição impressiva, Jesus-Maria Silva Sánchez, refere que “A pena (estatal) associa-se substancialmente à inflicção pelo Estado de um mal simbólico-comunicativo ao agente responsável de um delito, a quem se reprova juridicamente. Constitui, pois, uma reacção estatal ao delito. A ela só lhe é consubstancial o sofrimento inerente à própria comunicação, que tem lugar em virtude da sua imposição como tal pena incluso sem esta mediante a declaração do injusto culpável responsavelmente cometido” – “Malum passionais. Mitigar el dolor del Derecho Penal”, Atelier, 2018, 113-114. (tradução do castelhano) A pena, na asserção de Claus Roxin, “só resulta legítima quando é preventivamente necessária e, ao mesmo tempo, é justa no sentido de que evita ao autor qualquer carga que vá além da culpabilidade do facto”, (Claus Roxin, “La Teoria del Delito en la Discussión actual”, Editorial Grijley, 2007, p.71.) actuando a culpabilidade como pressuposto fundamentador da pena “posto que nunca pode impor-se uma pena se ela não estiver presente, assim como tão pouco a pena pode ir além da sua medida. No entanto a tarefa da pena é igualmente preventiva, pois ela não deve retribuir mas sim impedir a comissão de delitos (crimes). Em câmbio, a culpabilidade só tem a função de limitar, ema aras da liberdade dos indivíduos, magnitude dentro da qual devem perseguir-se objectivos preventivos. Disto resulta, por política criminal, aquele princípio da dupla limitação que caracteriza a minha sistematização da categoria da responsabilidade: a pena não deve ser imposta nunca sem uma legitimação preventiva, mas tão pouco pode haver pena sem culpabilidade ou mais além da medida desta. A pena de culpabilidade é limitada através do preventivamente indispensável; a prevenção é limitada através do princípio da culpabilidade.” (Claus Roxin, op. loc. cit. ps. 52-53.) (“A praxis de responsabilizar segundo a medida do merecido pode definir-se e legitimar-se num sistema de imputação ética e jurídica que opere debaixo da ideia de liberdade como expressão de respeito ante o autor que se haja servido da sua capacidade para configurar o mundo arbitrariamente de um modo concreto (isto é, de forna contrária ao dever) e não de outro (isto é, conforme ao dever.” – (Michael Pawlik, “Confirmación de la Norma y Equilibrio en la Identidad. Sobre la Legitimación de la Pena Estatal, Editorial Atelier, Barcelona, 2019, p. 57) Na perspectiva funcionalista de Günther Jakobs, “a transgressão da norma constitui em maior ou menor medida uma perturbação da confiança da generalidade na validade da norma. Por isso a segurança existencial necessária no tráfico social deve restabelecer-se mediante a estabilização da norma à custa do autor. A culpabilidade esvazia-se aqui de conteúdo, o qual dependerá de factores externos”. (Eduardo Demétrio Crespo, “Prevención General e Individualización Judicial de la Pena”, Ediciones Universidad Salamanca, 1999, p. 121) “A um autor que actua de determinado modo e que conhece, ou pelo menos devia conhecer, os elementos do seu comportamento, exige-se-lhe (se le imputa) que considere ao seu comportamento como a conformação normativa. Esta imputação tem lugar através da responsabilidade pela própria motivação: se o autor se tivesse motivado predominantemente pelos elementos relevantes para evitar um comportamento, ter-se-ia comportado de outro modo; assim, pois, o comportamento executado patenteia (pone de manifesto) que o autor nesse momento não lhe importava de forma prevalente evitar o comportamento mantido.” (Para uma abordagem mais aprofundada sobre a acepção «social de culpabilidade» veja-se Bernd Schünemann, págs. 98 a 114, “La Culpabilidad: Estado de la Questión”; in “Sobre el Estado de la Teoria del Delito” (Seminário en la Universitat Pompeu Fabra), Claus Roxin, Günther Jakobs, Bernd Schünemann; Wolfang Frish e Michael Köhler; Cuardernos Civitas, 2016.) A pena foi assumida no Estado liberal com uma dupla função, de prevenção de delitos e retribuição por um mal cometido. Num Estado com uma preocupação social e de raiz democrático, o direito penal “deve assegurar a protecção efectiva de todos os membros da sociedade, pelo que há-de tender para a prevenção de delitos (Estado social), entendidos como aqueles comportamentos que os cidadãos entendem danosos para os seus bens jurídicos - “bens” não num sentido naturalista nem ético-individual, mas sim como possibilidades de participação nos sistemas sociais fundamentais –, e na medida em que os mesmos cidadãos considerem graves tais factos (Estado Democrático). Um tal direito penal deve, pois, orientar a função preventiva da pena com arrimo (“arreglo”) aos princípios de exclusiva protecção de bens jurídicos, de proporcionalidade e de culpabilidade.” Para este autor “são dois, pois, os aspectos que deve adoptar a prevenção geral no Direito penal de um Estado social e democrático de Direito: junto ao aspecto intimidatório (também chamada a prevenção geral negativa), deve concorrer o aspecto de uma prevenção geral estabilizadora ou integradora (também denominada prevenção geral ou positiva).” (Santiago Mir Puig, “Estado, Pena e Delito. Função da Pena no Estado Social e Democrático de Direito”, Editorial Bdef, Montevideu e Buenos Aires, pág. 105.) Hassemer afirma que «la función de la pena – afirma – es la prevención general positiva”, que “no opera mediante la intimidación sino que persigue la proteción efectiva de la fiscalización social de la norma. Ello supone dos cosas: por una parte, que la pena ha de estar limitada por la proporcionalidad, – por la retribuición por en hecho; por outra parte, que la misma ha de suponer un intento de resocialización del delincuente, entendida como ayuda que ha de prestársele en la medida de lo posible.” (No mesmo eito pode colher-se lição em Enrique Bacigalupo, in “Justicia Penal y Derechos Fundamentales”, Marcial Pons, 2002, p. 117, quando assevera que “A gravidade da culpabilidade determina o limite máximo da pena, mas não obriga – como na concepção de Kant – à aplicação da pena adequada á culpabilidade. Por debaixo desse limite é possível observar exigências preventivas que, inclusive, podem determinar uma redução da pena adequada á culpabilidade. Dito de outra maneira: a retribuição da culpabilidade, que provém das teorias absolutas, só determina o limite máximo da pena aplicável ao autor, sem excluir a possibilidade de dar cabida às necessidades preventivas, proveniente das teorias relativas, até ao limite fixado pela culpabilidade.”) O ordenamento jurídico-penal português, e com as alterações introduzidas pela revisão do Código Penal em 1995, consagrou uma concepção preventivo-ética da pena, quando se estatuí que “as finalidades da pena (e da medida de segurança) são exclusivamente preventivas, desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto (“conditio sine qua non”) e de limite da pena”. (Cfr. Américo Taipa de Carvalho, “Prevenção, Culpa e Pena – Um concepção preventivo-ética do direito penal”, in Liber Discipulorum, Coimbra Editora, pag.317 e segs.) Para este Professor [Taipa de Carvalho], as penas devem visar, em primeira linha privilegiar a prevenção especial (positiva e negativa), devendo a prevenção geral constituir-se como limite mínimo da justificação e fundamento para a imposição de uma pena ou medida de segurança e a culpa como limite máximo atendendo ao critério da prevenção especial, “o objectivo da pena, enquanto meio de protecção dos bens jurídicos, é a prevenção especial, positiva e negativa (isto é, de recuperação social e/ou de dissuasão). Este é o critério orientador, quer do legislador quer do tribunal”. (Américo Taipa de Carvalho, op. loc. cit.,pag. 327) A ordem jurídico-penal viger, estabelece no art. 71 nº 1 do C.P. que "a determinação da pena dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Resulta de uma chã leitura deste preceito que a culpa (indiciador de um radical pessoal) e a prevenção (que insinua a vertente societária e comunitária para a reprovação do comportamento do agente e a correlata necessidade no asseguramento da confiança (da sociedade) na norma, traduzido na punibilidade de condutas contrárias ao sentido conformador-normativo) constituem os princípios regulativos em que o juiz se deve ancorar no momento em que se lhe exige que fixe um quantum concreto da pena. Mediante o estabelecimento e indicação de critérios, o legislador fornece ao juiz orientações para a formação cognitiva de juízos avaliativos e condensadores dos pressupostos e da fixação de premissas que possibilitam a conformação e determinação das escolhas a realizar perante um concreto responsável em face da realidade factual ressumada pela facticidade adquirida pelo julgamento. Assim na individualização da pena o juiz, assumindo as intencionalidades e as vinculações do sistema jurídico-penal, desempenha uma insubstituível tarefa mediadora, construtiva e constitutiva das reacções penais ajustadas ao caso e convincentes da sua justeza perante a sociedade que se destinam a influenciar. Na determinação concreta da pena caberão todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente: – O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente; – A intensidade do dolo ou negligência; – Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; – As condições pessoais do agente e a sua situação económica; – A conduta anterior ao facto e posterior a este; – A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. (Paragonado com o estabelecido no artigo 71º do nosso ordenamento jurídico-penal, pontua-se no apartado II do § 46 do StGB, que o tribunal deverá na “medición” da pena ponderar as circunstâncias favoráveis e contrárias ao autor. “com este fim se contemplarão particularmente: - os fundamentos da motivação e os fins do autor; - a intencionalidade que se deduz do facto e a vontade com a qual se realizou o facto; - a medida do incumprimento do dever; - o modo de execução e os efeitos inculpatórios do facto; - os antecedentes do autor, a sua situação pessoal e económica, assim como a sua conduta depois do facto, especialmente os seus esforços para reparar os danos, e os seus esforços para acordar uma compensação com o prejudicado.”) A pena contém, na sua impressão conotativa e ontológica, dois vectores axiais (i) a culpa do agente produtor de um resultado contrário a uma proibição legal (comando estipulado pela normação emanada do Estado); e (ii) a prevenção que com a imposição de uma inflicção se pretende alcançar na comunidade em que as normas vigentes imperam e, por outro lado, fazer reflectir o agente da sua contradição cognitiva ao sistema de leis vigente e prevalente na sociedade em que se insere e, eventualmente, impulsionar a respectiva reversão, por forma a conformar a sua pauta de conduta com o conceito sociopolítico prevalente. Num seminário sobre os fins das penas, (Claus Roxin, “Fundamentos Politico-criminales del Derecho Penal” (“La determinación de la pena a la luz y de la teoria de los fines de la pena), Hammarabi, Buenos Aires, págs. 143 a 166) Claus Roxin advoga, acompanhando Hans Scultz, que na determinação da pena se trata de retribuir a culpabilidade (“O princípio – fundamentado segundo opinião generalizada na Constituição – nulla poena sine culpa (princípio da culpabilidade) não significa nesta situação senão que «o suposto de facto e a consequência jurídica devem estar em proporção adequada», quer dizer, a imputação ao autor deve ser necessária, por estar descartada a possibilidade de resolver o conflito sem castigar o autor. Também a medida da culpabilidade se vê limitada pelo necessário. Sobretudo, o conteúdo da culpabilidade não é algo prévio ao Direito, sem consideração às situações sociais.” – Günther Jakobs, op. loc. cit. pág. 588-589.), devendo na operação de determinação aplicar a «teoria da margem de liberdade», que a jurisprudência alemã formulou da forma seguinte: “Não se pode determinar com precisão que pena corresponde à culpabilidade. Existe aqui uma margem de liberdade (Spielraum) limitada no seu grau máximo pela pena adequada (à culpabilidade). O juiz não pode ultrapassar o limite máximo. Não pode, portanto, impor uma pena que na sua magnitude ou natureza seja tão grave que já não se sinta por ela como adequada à culpabilidade, No entanto, o juiz…poderá decidir até donde pode chegar dentro dessa margem de liberdade.” (À teoria da margem da liberdade opõe-se a teoria da «pena exacta», segundo a qual «a la culpabilidad» só pode corresponder una pena exactamente determinada (punktuell). – Clus Roxin, op. loc. cit. P. 146.) De forma definitiva assevera Hans-Heinrich Jescheck que “fundamento da determinação da pena é a culpabilidade, Com esta declaração fundamental reconhece-se expressamente o princípio da culpabilidade e expressa-se que o sentido da pena deve ver-se em todo o caso na retribuição da culpabilidade. Sem embargo, junto a esta declaração, se estabelece no §46 I 2 o dever do juiz ter em conta e todo o acto de determinação da pena os efeitos que podem esperar-se tenha a pena na vida futur do réu na sociedade”. (Autor citado em Tratado de derecho Penal, Volumen Segundo, Bosch, Barcelona, p. 1200) Para Bacigalupo a culpabilidade só logra a sua função de parâmetro delimitador da pena, se for referido à «culpabilidade do facto». “Isto requer excluir das considerações referentes à culpabilidade as que se referem a uma ponderação geral de personalidade como objecto do juízo de reprovação (“juicio de reproche”). Concretamente o juízo de culpabilidade relevante para a individualização da pena, deve excluir como objecto do mesmo referências à conduta anterior ao facto (sobretudo a penas sofridas), a perigosidade, ao carácter do autor, assim como á conduta posterior ao facto (que só pode compensar a culpabilidade do momento da execução do delito.” Noutra perspectiva, o conteúdo de culpabilidade, impõe a “a um autor que actua de determinado modo e que conhece, ou pelo menos devia conhecer, os elementos do seu comportamento, exige-se-lhe (se le imputa) que considere ao seu comportamento como a conformação normativa. Esta imputação tem lugar através da responsabilidade pela própria motivação: se o autor se tivesse motivado predominantemente pelos elementos relevantes para evitar um comportamento, ter-se-ia comportado de outro modo; assim, pois, o comportamento executado patenteia (pone de manifesto) que o autor nesse momento não lhe importava de forma prevalente evitar o comportamento mantido.” (Cfr. Gunther Jakobs, in loc.cit. supra, pag. 13.) Na análise a que procede sobre o Estado, a Pena e o Delito, e escrutinando as distintas doutrinas que se têm vindo a impor no espectro da aplicação das penas Santiago Mir Puig opina que: «O princípio de culpabilidade em sentido amplo, aqui manejado, não deve confundir-se com a exigência de certa proporção entre a pena e a gravidade do delito. Entendida como possibilidade de relacionar um facto com um sujeito e não como possibilidade de converter em demérito subjectivo o facto realizado, a culpabilidade no indica la quantia da gravidade do mal que deve servir de base para a graduação da pena. A referida quantia vem determinada pela gravidade do facto antijurídico do qual culpa o sujeito. A concepção contrária só pode ser admitida por quem aceite que a pena não se impões para prevenir factos lesivos, mas outrossim como retribuição da atitude interna que o facto reflecte no sujeito.- pág. 206. Por um lado a prevenção geral pode manifestar-se pela via da intimidação dos possíveis delinquentes, ou também como prevalecimento ou afirmação do Direito aos olhos da colectividade. No primeiro sentido, a ameaça da pena persegue imbuir de um temor que sirva de freio à possível tentação de delinquir. Dirige-se somente aos eventuais delinquentes. Num segundo sentido, como afirmação do direito, a prevenção geral persegue, mais do que a finalidade negativa de inibição, a internalização positiva na consciência colectiva da reprovação jurídica dos delitos e, por outro lado, a satisfação do sentimento jurídico da comunidade. Dirige-se a toda a sociedade, e não só aos eventuais delinquentes. – pág. 43 Daí, pois, um primeiro limite que a prevenção encontra em si mesma: a gravidade das penas tendentes a evitar delitos não pode negar até ao máximo do que aconselharia a pura intimidação dos eventuais delinquentes, outrossim que deve respeitar o limite detida por certa proporcionalidade com a gravidade social do facto. Por outra parte a exigência de proporcionalidade desprende também aa conveniência de ressaltar o mais grave respeito do menos grave em ordem a frenar em maior grau o mais grave.- pág. 44 Frente ao delinquente ocasional, a prevenção especial exigiria só a advertência que implica a imposição da pena. Para o delinquente no ocasional corrigível, seria precisa a ressocialização mediante a aplicação de um tratamento destinado a obter a sua correcção. Por último, para o delinquente incorrigível a única forma de alcançar a prevenção especial seria inoculá-lo, evitando assim o perigo mediante o seu internamento “asegurativo”. O efeito de advertência se designa às vezes como “intimidação especial”, para expressar que se dirige só ao delinquente e não à colectividade, como a intimidação que persegue a prevenção geral. A ressocialização adopta às vezes modalidades especiais: assim, como tratamento educativo ou como tratamento terapêutico para sujeitos com anomalias mentais. (Cfr. Santiago Mir Puig, in “Estado, Pena y Delito” Editorial B de f, Montevideu – Buenos Aires, 2006 Págs. 43, 44, e 206. Tradução nossa) Do mesmo passo, Santiago Mir Puig faz derivar desta função preventiva uma concepção de pena em que “a pena há-de cumprir (e só está legitimada para cumprir) uma missão política de regulação activa da vida social que assegure o seu funcionamento satisfatório, mediante a protecção dos bens jurídicos dos cidadãos. Isso supõe a necessidade de conferir à pena a função de prevenção dos factos que atentem contra esses bens, e não basear o seu encargo, ou incumbência, numa hipotética necessidade ético-jurídica de não deixar sem resposta, sem retribuição, a infracção da ordem jurídica.” (Santiago Mir Puig, ibidem, pág. 114.) “Partindo da ideia de que a eficácia preventiva da pena pode estar referida aos potenciais delinquentes (prevenção geral) ou aqueles que já hajam delinquido (prevenção especial), e de que a pena pode produzir um efeito preventivo de formas diversas, consideramos que a legitimidade do recurso à mesma há-de vincular-se à sua eficácia preventiva e ao respeito do princípio de proporcionalidade, que (sem prejuízo da eficácia preventiva derivada da sua vigência e da sua importância para estabelecer as penas dos distintos delitos) teria uma função de limite garantístico: a pena é legítima quando, sem rebaixar os limites que derivam do princípio de proporcionalidade, resulta eficaz desde o ponto de vista preventivo; mais concretamente, quando proporciona a máxima eficácia preventiva, atendendo tanto à sua eficácia preventiva geral, como à sua eficácia preventiva especial, e aos distintos sentidos (“cauces”) através dos quais o recurso à pena pode produzir um efeito preventivo (função preventiva limitada pelo princípio da proporcionalidade). Como o resto das teorias preventivas, a proposta pressupõe aa eficácia preventiva da pena. A sua singularidade radica em que faz depender todas as decisões relacionadas com ela (classe e duração da pena que se ameaça com impor, classe e duração da pena imposta e, no concreto caso, forma de execução da pena) do saldo preventivo global das distintas alternativas e do respeito pelo princípio da proporcionalidade. Para que primeiro o legislador, e a seguir o Juiz (e, no caso concreto, a administração penitenciária), adoptem aquelas decisões tendo em conta a sua eficácia preventiva, deverão conhecer a eficácia preventiva das distintas alternativas. A complexidade da conduta humana, e as limitações do próprio ser humano para conhecer os elementos que influem nela, dificultam a aplicação prática daquela proposta, como também dificultam a de qualquer teoria preventiva. No entanto, tais dificuldades não obrigam a abandoná-las. Obrigam a ser prudentes, tentar obter o máximo conhecimento possível sobre a eficácia preventiva da melhoria pena, reconhecer os limites do conhecimento disponível e promover a melhoria do mesmo. E, no caso concreto, também obrigam a reconhecer os limites da capacidade da pena para produzir um efeito preventivo, e a valorar as consequências de intentar incrementá-lo.” (Cfr. Sergi Cardenal Montraveta, “Eficacia Preventiva General Intimidatória de la Pena”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia”, (RECPC 17-18 (2015), pág. 3.) As escoras da pena assentam, na concepção dominante, na culpa e na prevenção, devendo o tribunal, na individualização concreta da pena, ponderar, aquilatar e idear os factores concretos que podem intervir e equivaler os interesses em jogo. Na doutrina estrangeira sugere-se que “na decisão de determinar a pena são relevantes, entre outros, os seguintes elementos da realidade: a culpabilidade do sujeito; os efeitos da pena que são esperáveis que se produzam na sua vida futura em sociedade; seus motivos e fins, a consciência que o facto revela da vida anterior; as suas relações sociais e económicas e o seu comportamento posterior ao delito”. (Winfried Hassemer (Winfried Hassemer, “Fundamentos del Derecho Penal”, Editorial Bosch, Barcelona, 1984, pág. 127). “Fundamento da determinação da pena é a significação do delito para a Ordem jurídica (conteúdo do injusto), e a gravidade da reprovação que se faz ao réu pelo facto cometido (conteúdo de culpabilidade. No entanto estes factores, fundamentais para a determinação da pena, não estão totalmente desvinculados entre si, a culpabilidade jurídico-penal vem referida ao injusto: a sua extensão determina-se pelo conteúdo culpável do injusto do facto. A culpabilidade tem, não obstante, também junto a isto, elementos autónomos que carecem de paralelo no âmbito do injusto (por ex., o grau de capacidade da culpabilidade; a evitabilidade do erro de proibição, autênticos elementos da atitude interna). Tanto o injusto como a culpabilidade entendidos como elementos materiais do delito, são conceitos graduáveis. Isto significa que, entre outras coisas, entidade do dano, a forma de execução do facto e a comoção da paz jurídica determinam o grau de injusto do facto, tanto com a desconsideração, a premeditação, a situação de necessidade, a tentação, a juventude, os transtornos mentais ou o erro devem ser valorados para graduar a culpabilidade.” (Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Volumen Segundo, Bosch Editora, Barcelona, 1981, p. 1207.) (“Na lesão ou colocação em perigo do objecto da acção protegido reside o desvalor do resultado do facto, na forma da sua comissão o desvalor da acção. O desvalor da acção consiste tanto nas modalidades externas do comportamento do autor, com nas circunstâncias que radicam na sua pessoa. Segundo isto, é preciso distinguir entre desvalor da acção (pessoal) referido ao facto e referido ao autor. O desvalor do resultado ou da acção se convertem em injuso do resultado ou da acção, respectivamente, ao ser recolhidos nos tipos penais.” – Hans-Heinrich Jescheck, op. loc. cit. p. 323) (Para uma perspectiva da categoria do que se constitui como injusto e da sua justificação e imputação, veja-se Michael Pawlikemann – Urs Kindhäuser – Javier Wilenmann – Javier Pablo Mañalich, in “La antijuridicidad en el Derecho Penal. Estudios de las Normas Permissivas y la legitima Defensa”, Bdef, Buenos Aires, 2020, ps. 99-176.) Pondera-se, na jurisprudência, que a escolha e determinação da medida, ou para medição, da pena “reger-se-á pelo objectivo e critério da prevenção especial: recuperação social do infractor (prevenção especial positiva), desde que tal objectivo não seja incompatível com a necessidade mínima de dissuasão individual. Ou seja: o “fim” é a reintegração social do infractor, fim este que tem, como limite mínimo, a eventual necessidade de dissuasão do infractor da prática de futuros crimes”. (“A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade)” – (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.02.2007; proferido no processo nº 28/07) Consignada a pena nos preditos moldes, e arredada, por não interessar ao caso em apreço, a figura da “determinação legal da pena, ainda que para a operação de individualização judicial da pena não nos possamos alhear deste conceito, por constituir o limite que o legislador consignou como sendo aquele que protege de forma prevalente e eficaz, e num dado momento histórico, um determinado bem jurídico”, procuraremos indagar quais os critérios e justificações que deverão guiar e lastrar a determinação da medida concreta de uma pena, o que vale por dizer quais serão ou deverão ser os princípios rectores em que poderá ancorar-se uma adequada valoração da conduta de um agente infractora norma protectora de bens jurídicos. (Na procura de directivas e vectores de orientação que ajudem na determinação concreta da pena seguem-se de perto os ensinamentos colhidos em Eduardo Demétrio Crespo, “Prevención General e Individualização judicial da Pena”, Ediciones Universidade Salamanca, bem como dos ensinamentos recolhidos na obra já citada supra de Gunther Jakobs, de Winfried Hassemer, in “Fundamentos del Derecho Penal”, de Claus Roxin, in “Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal” e Anabela Miranda Rodrigues, in “A Determinação da Pena Privativa de Liberdade” e Adriano Teixeira, “Teoria da Aplicação de uma Determinação Judicial da Pena Proporcional ao Fato”, Marcial Pons, 2015.) A culpa serve, na determinação concreta da escolha, um papel meramente limitador da pena, no sentido de que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial. Dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou segurança individuais. «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade da tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas». (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111 e ainda Anabela Rodrigues (- Problemas fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin (2002), “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, 177/208, estudo também publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2 Abril – Junho de 2002, 147/182.) Anabela Rodrigues, bem como Taipa de Carvalho, ao defenderem que o limite mínimo da pena nunca pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima, limite este que coincide com o limite mínimo da moldura penal estabelecida pelo legislador para o respectivo crime em geral, devendo eleger, em cada caso, aquela pena que se lhe afigure mais conveniente, com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto. Tutela dos bens jurídicos não, num sentido retrospectivo, face a um facto já verificado, mas com significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada. Neste sentido, constitui indicador razoável afirmar-se que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção de integração, dando-se assim conteúdo ao exacto princípio da necessidade da pena a que o artigo 18º, n.º 2, da CRP, consagra. (“O princípio da proporcionalidade do art. 18.º da Constituição refere-se à fixação de penalidades e à sua duração em abstracto (moldura penal), prendendo-se a sua fixação em concreto com os princípios da igualdade e da justiça. [Deve na determinação concreta da pena atender-se ao] “grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente); – A intensidade do dolo ou negligência; – Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; – As condições pessoais do agente e a sua situação económica; – A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; – A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade) assim se desenhando uma sub-moldura.” – (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.02.2007). Discorrendo sobre o princípio da proporcionalidade, refere Mata Barranco que, “no momento judicial o âmbito de projecção do princípio da proporcionalidade manifesta-se claramente tanto na fase judicial de concreção da pena legalmente prevista – se se prefere, de determinação judicial da pena – como na individualização em sentido específico. Diz-se inclusivamente que a denominada aritmética penal, que não é senão a completa técnica que o tribunal tem que levar a cabo para determinação da pena que corresponde ao autor, está inspirada no princípio da proporcionalidade. Em primeiro lugar, o Código estabelece determinadas regras vinculadas à determinação judicial da pena em relação, por exemplo, ao grau de execução do delito, à participação, ao erro de proibição, à concorrência de eximentes incompletas, de atenuantes e agravantes ou aspectos concursais, modulando-se a resposta penal com base na diferente gravidade do facto e da culpabilidade do autor nos supostos concretos. (…) Em segundo lugar, ao juiz fica-lhe sempre uma margem de arbítrio, mais ou menos amplo, na determinação quantitativa da pena, ou inclusivamente qualitativa quando o preceito penal contemple penas alternativas, penas de imposição potestativa ou a possibilidade de aplicar substitutos penais que permita um melhor ajuste entre a gravidade do facto – em toda a sua complexidade – e a gravidade da pena, que tem que aplicar – de todo o modo proporcional – atendendo ao conjunto de circunstâncias objectivas e subjectivas do delito cometido, tal e como costumava exigir, por outro lado a própria normativa penal. Aquela primeira função judicial, ainda que próxima a esta de individualização judicial propriamente dita, se entende conceptualmente separável da verdadeira função autónoma individualizadora do juiz, que não procede a uma delegação do legislador, diz-se, mas sim que se apresenta como competência exclusiva da jurisdição enquanto se trata de determinar uma pena em função das peculiaridades de cada caso e de cada autor (…) por isso se qualifica este acto de individualização judicial como de discricionariedade juridicamente vinculada, pois o juiz pode mover-se livremente, em princípio, dentro do marco legal do delito – que quele concreta -, mas orientado por princípios que haverão de extrair-se desde logo das declarações expressas da lei, quando existam, assim como dos fins do Direito penal no seu conjunto, ou ainda dos fins da pena partindo da função e limites do Direito penal.”) (Norberto J. de la Mata Barranco, “El Princípio de Proporcionalidad Penal”, Tirant lo Blanch, “Colección Delitos”, Valência, 2007, 221-223.) Como se alcança do que a doutrina vem ensinando “o conceito de proporcionalidade, o juízo sobre a proporcionalidade de uma norma – não só de uma sanção, mas também de uma norma enquanto ao que prescreve ou proíbe e enquanto á consequência do seu incumprimento – afecta, e deve fazê-lo, tanto à delimitação da tutela que trata de conseguir como ao mecanismo sancionatório que prevê para o lograr e, por isso mesmo, ideia de proporção deve poder permitir restringir tanto a sanção desnecessária ou excessiva como limitar comportamentos susceptíveis dela. (…) O princípio de proporcionalidade penal rechaça, com se disse, o estabelecimento de cominações legais - proporcionalidade em abstracto – e a imposição de consequências jurídicas – proporcionalidade em concreto – que careçam de relação valorativa com o facto cometido, contemplado este no seu significado global. De uma forma mais sintética, exige que as consequências da infracção penal, previstas ou impostas, não sejam mais graves – se é que se pode equiparar a gravidade de umas e outras – à entidade da mesma. (…) mas também – ou justamente por isso – se há-de destacar a necessidade e vincular o conceito de proporção à relação entre a medida imposta e a finalidade pretendida pela norma a aplicar e com os fins, no nosso caso, da pena e do Direito penal; serão estes – tratando de garantir uma convivência na qual se maximize a liberdade de cada um sem detrimento superior da do resto – os que determinam a gravidade do facto a «enjuiciar».” (Norberto J. de la Mata Barranco, ibidem, pág. 289-290. “A exigência de proporção tem umas implicações, em todo o caso, que talvez não captam os conceitos de razoabilidade, racionalidade ou ausência de arbitrariedade, por quanto permite incorporar um conteúdo limitador da actuação estatal que, em princípio, estes não têm que atender. Com ser difusa a ideia de proporção, porque não indica mais que uma correspondência ou correlação de magnitudes, sem dúvida oferece uma base de actuação mais concreta – no âmbito penal – que a estes conceitos e nesse sentido aporta um plus de segurança, relativa, na restrição de liberdades porque, ao menos, remete para determinadas magnitudes ou referências a partir das quais pode efectuar uma ponderação de qual deve ser o grau de intervenção.” – ibidem, p.291) Iterando a vertente da pena adequada à culpabilidade, isto é, consonante com a culpa revelada – máximo inultrapassável –, certo é dever corresponder à sanção que o agente merece, ou seja, deve corresponder ao desvalor social do injusto cometido. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade. O “merecido”, porém, não é algo preciso, resultante de uma concepção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral. (Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.); Cfr. ainda por mais recentes os acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 20.02.2008 e 09.04.2008; proferidos, respectivamente, nos proc.s nºs 07P4724 e 08P1011; disponíveis em www.stj.pt.) A imposição de uma pena depende do estabelecimento/consolidação de um juízo de culpabi-lidade que pressupõe exigências de verificação a) “de um princípio de responsabilidade pelo facto. “Exige um “direito penal do facto” e opõe-se a castigar o carácter ou o modo de ser – directa ou indirectamente. Ainda que o homem contribua para a formação da sua personalidade, esta escapa em boa parte ao seu controle. Deve rechaçar-se a teoria da “culpabilidade pela conduta de vida” ou a “culpabilidade do carácter”. Este princípio [da responsabilidade pelo facto] entronca com o da legalidade e a sua exigência de tipicidade dos delitos: o “mandato” e determinação da lei penal reclama uma descrição diferenciada da cada conduta delitiva”; b) a exigência de imputação objectiva do resultado lesivo a uma conduta do sujeito. Nos delitos de conduta positiva, isso requer a relação de causalidade entre o resultado e a acção do sujeito, mas para além disso são precisas outras condições que exige a moderna teoria de imputação objectiva e que giram em torno da necessidade de criação de um risco tipicamente relevante que se realize no resultado”; c) a exigência do dolo ou culpa (imputação subjectiva). Considerada tradicionalmente a expressão mais clara do princípio de culpabilidade, faz insuficiente a produção de um resultado lesivo ou a realização objectiva de uma conduta nociva para fundar a responsabilidade penal”; d) A necessidade de culpabilidade em sentido estrito, que exige a imputabilidade do sujeito e a ausência de causas de exculpação - também a possibilidade ed conhecimento da antijuridicidade, se esta não se inclui no dolo.” (Santiago Mir Puig, ibidem. “Sobre o Princípio de Culpabilidade como Limite da Pena”, pág. 203.) Ainda que concordemos que a função da pena deva assumir-se como um pendor marcadamente preventiva, não podemos deixar de, na escolha e determinação concreta da pena, considerar o facto conduzido pela vontade de delinquir do agente – desvalor da acção – e o resultado em que a acção desvalorativa se concretizou. A imposição de uma pena que, partindo destes dois parâmetros definidores da conduta ilícita e típica do agente, seja colimada pela culpabilidade do agente impõe como paradigma da pena proporcional ao facto que deve encampar a actividade do julgador na hora de ponderar o quantum penológico a impor. Factor de ponderação inarredável na formação de uma pena justa e arrimada com os valores constitucionalmente consagrados é a proporcionalidade entre o desvalor da acção referido ao conteúdo do bem jurídico contido na norma violada, o desvalor do resultado enquanto atingimento e vulneração histórico-social e concreta de um sentimento socialmente relevante e o retraimento social que se pretende com a imposição da sanção da sanção penal. No ensinamento de Silva Sanchez (Individualización judicial de la Pena”, p.139) “é difícil, na realidade, falar de discricionariedade no âmbito da individualização judicial da pena e que, seguindo a terminologia da doutrina alemã, afinal do que poderá falar-se é de uma “discricionariedade juridicamente vinculada. A maioria da doutrina entende sim possível continuar aludindo a uma certa discricionariedade no exercício da actividade judicial, limitada, submetida a uma conjunto de critérios valorativos, que não permita tomar decisões com base em considerações opostas a princípios cuja transgressão afasta o arbítrio das pautas de racionalidade, mesura e proporcionalidade que lhe devem presidir; sem embargo autor explica, em meu juízo com acerto, que isso já não é uma verdadeira discricionariedade, mas sim autêntica aplicação pura, regrada do Direito, pois não se trata de eleger entre várias possibilidades igualmente correctas, que é o que caracteriza a discricionariedade, mas sim concretar os juízos de valor da lei e conseguir os fins daquela em cada passo. Determinando a pena concreta. (…) Por isso o Tribunal Supremo distinguiu o que a discricionariedade enquanto uso motivado das faculdades de arbítrio não susceptíveis de revisão em apelação, cassação ou amparo – quando se executa correctamente –, da arbitrariedade, definida pela ausência de motivação do uso de tais faculdades, vetada e revisível, diz-se numa diferenciação que não obstante reside somente no facto da motivação da individualização (…).” (Norberto J. de la Mata Barranco, ibidem, pág. 229-230.) Numa recensão louvável da jurisprudência e de uma “desmadejada” doutrina sobre a determinação da pena, respigamos o que a propósito foi escrito no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça datado de 20 de Junho de 2018, no processo 3343/15, já citado. (Incluem-se as notas de rodapé no números apósitos). “O art. 40.º do do CP constitui um repositório da doutrina defendida entre nós que entende que os fins da penas «só podem ter natureza preventiva – seja de prevenção geral, positiva ou negativa, seja de prevenção especial, positiva ou negativa--, não natureza retributiva.» (Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal. Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal sobre a Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2001, pág. 104.) A medida da pena há-se encontrar-se de acordo com a combinação do disposto nos arts. 40.º e 71.º através da conjugação da culpa, da prevenção geral e da prevenção especial, esse “triângulo mágico” de que falava Zift. (Cit. por Anabela Miranda Rodrigues em O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, pág. 148.”( Sobre o historial do art. 71.º do CP, cfr. o cit. Ac. STJ de 29/6/2011, Proc. 21/10.5GACUB.E1.S1, Rel. Raul Borges.) Referindo-se ao relacionamento da culpa e da prevenção, escreve Anabela Miranda Rodrigues em O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 155, que «É essa composição que oferece o artigo 40.º, ao condensar em três proposições fundamentais o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos, de que a culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento, e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena – e levantando, assim, obstáculos definitivos à eventual persistência de correntes jurisprudenciais erradas e funestas»(sublinhado nossos) (Relativamente à culpa, não é dogmaticamente pacífica a sua concepção: para uns, Anabela Miranda Rodrigues, Jorge de Figueiredo Dias, constitui apenas limite da pena e não seu fundamento; para outros, v.g., Maria Fernanda Palma, Direito Penal. Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria da lei penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas, cit., págs. 87 e 108, constitui fundamento da pena. Na jurisprudência deste STJ, considerando a culpa como fundamento e limite da pena, cfr., v.g., Acs. de 13/10/2000, Proc. 200/06.0JAAVR.C1.S1; de 27/4/2011, Proc. 210/08.2JBLSB. L1.S1; de 15/2/2012, Proc. 85/09.4PBPST.L1.S1; de 22/1/2013, Proc. 182/10.3TAVPV.L1.S1; de 15/5/2013, Proc. 154/12.3JDLSB.L1.S1, relatados pelo Cons.º Santos Cabral; Ac. de 31/5/2017, CJACSTJ, XXV, T. II, págs. 208 e ss. Refere-se naquele Ac. de 15/2/2012, Proc. 85/09.4PBPST.L1.S1, que «Nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena, ao invés da preponderância que alguns outorgam à prevenção geral, colocando-a acima da retribuição da culpa pelo delito quando é esta, na realidade, que justifica a intervenção penal. A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente uma finalidade da mesma.») «A norma do artigo 40.º - escreve-se no Ac. STJ de 16/1/2008, Proc. 4565/07, Rel. Henriques Gaspar - condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limite da pena mas não seu fundamento. Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo. O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40º determina, por isso, que os critérios do artigo 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação. O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa. A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa. Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.». (Entendimento replicado no Ac. STJ de 13/1/2011, Proc. 369/09.1JELSB.L1.S1, do mesmo Relator e noutros arestos deste STJ (cfr., v.g., Ac. STJ de 29/6/2011, Proc. 1878/10.5JAPRT.S1, Rel. Raul Borges).” (in www.dgsi.pt) A pena imposta ao arguido contém-se, em nosso aviso, dentro dos parâmetros de composição funcional-preventiva que deve ser atendida e avançada o para sancionamento de alguém que tira a vida a outra com quem convivia há cerca de 37 (trinta e sete) anos, sem motivo maior e/ou atendível – se é possível encontrar motivo, atendível ou não, para tirar a vida a outra pessoa – que uma discussão caseira, pelos vistos, recorrente no seio do casal, há muitos anos. O tribunal, ao contrário do que avança o arguido, tomou em consideração aspectos que ele pretende ver incluído no séquito daqueles que propinariam um decréscimo da pena irrogada. Assim, e com resulta da singela leitura concernente com a justificação da medida da pena, o tribunal levou em consideração o convívio regular “com amigos e vizinhos em contexto de trabalho ou encontros, durante os quais não existem referências a comportamentos desadequados por parte do arguido” e que “no estabelecimento prisional assume comportamentos adequados e beneficia das visitas de uma irmã e de alguns amigos.” Razões aduzidas para reponderação da medida da pena e da sua redução afiguram-se-nos de fraco e incapaz calado para obter um resultado avalizado. Assim não nos parece que obtenha de foros de consideração na aquilatação de uma sanção mais moderada e delida, o facto de o arguido possuir limitações a nível da mobilidade, porquanto não terá sido a falta, ou diminuição da capacidade locomotora, que o impediu de depois da discussão que terá mantido com a vítima se ter dirigido a outra divisão da casa, ter colhido uma espingarda ter voltado ao local onde a discussão decorrera, ter apontado para o corpo da vítima e ter desferido três (3) tiros contra partes do corpo que sabia eram vitais. Poderíamos, ensaiar aqui um comentário jocoso – com respeito pela seriedade do caso – e dizermos que, para formação da resolução de tirar a vida a alguém, a dificuldade de locomoção poderia servir com factor dissuasor, porquanto como teria de demorar mais tempo para percorrer o espaço entre o local onde a discussão ocorreu e o local onde guardava a arma e, consequentemente, para o regresso ao local onde a vítima se encontrava, poderia nesse intervalo de tempo, necessariamente mais longo, pela dificuldade de locomoção, ter usado essa delonga temporal para ponderar e reflectir sobre o acto que pretendia consumar e, correlatamente, induzir um acto de arrependimento. Quanto ao um eventual empurrão, ora alegado, de que terá sido alvo por parte da vítima, não consta da matéria de facto provada, o que torna inviável a sua consideração na compilação de elementos necessários para formar o quadro dos comportamentos actuados e produzidos em que a discussão se desenrolou e desfechou. A matéria de facto adquirida não compota a ocorrência de atitudes hostis por parte da vítima, consubstanciadas no ora aludido empurrão e/ou a consequente queda do arguido ao chão. Nem, outrossim, se espelha na matéria de facto provada que o arguido padecesse, na altura, de mazelas psíquicas que o impedissem de avaliar e aquilatar, com total consciência e sentido de responsabilidade pessoal, a resolução que assumiu de tirar a vida à sua companheira de trinta e sete (37) anos. Como a motivação expõe, com conspícua e proficiente lhaneza, é que o arguido, depois de uma discussão – que, como ressalta do depoimento dos filhos e de pessoas frequentadoras do casal, seria um hábito usual e comum na convivência conjugal, praticada desde há bastante tempo – tomou uma resolução de tirar a vida à vítima – que certamente pela vezeira e habituação da relação defectiva já praticada nem sequer se afastou ou tomou atenção ao comportamento posterior do ofendido na recolha da espingarda e/ou ficar atenta á movimentação do marido para lhe pressentir alguma atitude desusada – que se encontrava junto da porta, presumivelmente numa atitude descuidada, tal a frequência e avezo á atribulação do relacionamento conjugal. O arguido agiu com consciente avaliação psicológica do acto que perpetrou e, provavelmente, em desforço ocasional de uma desavença mais acirrada. A sujeição do arguido a um tratamento cardiovascular não tem a virtualidade de se intrometer na avaliação da postura intencional e culposa do agente, porque, a ter acontecido, ocorreu fora do arco temporal em que a acção desvaliosa se desenrolou. Do mesmo passo, não pode ser aportado como factor de aligeiramento da culpa a apresentação e assumpção da acção praticada perante as autoridades policiais. A apresentação às autoridades competentes para a perseguição e prossecução da justiça penal, não revela arrependimento, mas apenas e tão só, o reconhecimento de um acto que se constitui como crime – portanto passível de perseguição pelo Estado, através dos meios organizados e adestrados para o efeito – e que obteria, mais cedo ou mais tarde, a sua captura e detenção. Não é, neste entendimento, um elemento que possa minorar a responsabilização intencional da acção praticada, nem revelar uma contracção e repeso do acto praticado. Antes uma atitude de autoconvencimento de que a evidência do caso não lhe permitiria escapar a uma acção das autoridades policiais e, quiçá, tentar obter o reconhecimento de um acto constritivo donde lhe pudessem advir proveitos na avaliação do tribunal. Last, but not the least, não recolhe aval a alegação de que tentou pôr termo à vida. A matéria de facto apenas refere a existência de mais um disparo – depois dos três que serviram para tirar a vida á vítima – sem conexão com alguma atitude ou propósito de pôr termo à própria vida. Um atirador experimentado, como se explicita na motivação da decisão de facto, não consegue encontrar espaço no próprio corpo para descarregar um tiro de uma espingarda caçadeira? Dispensamos comentários que o episódio possa ter co-envolvido. Afastados os factores minorantes da medida de pena, operado pelo confronto com a fundamentação encontrada pelo tribunal, não será demais dizer que o motivo desencadeador da acção - discussão conjugal –, o lapso de tempo que decorreu entre a discussão, a colecta da espingarda e o regresso local onde a vítima tinha permanecido (a cozinha) e a concretização final com o desfecho de três (3) disparos em direcção à vítima e com atingimento em partes vitais do corpo induzem uma consistente tomada de resolução para o fim para que se determinou e levou a cabo. O arguido, pela sucessão de actos que compõem o quadro activo e produtor da acção final, revelou ter assumido uma resolução firme e consciente de tirar a vida à sua companheira (de 37 anos) e que não vacilou no momento em que teve que disparar para concretizar a resolução que havia assumido. O quadro factual revela uma personalidade desarraigada e desasada de valorações compatíveis com uma convivência familiar salutar e, concomitante com um ambiente social salubre e de respeito recíproco pela individualidade e modo de ser e estar de cada um, o que torna possível qualificar de forma negativa a sua desviada personalidade e induzir uma especial censurabilidade e perversidade, pela intolerância e incapacidade de contenção dos seus instintos e pulsões primárias. A desafeição e desrespeito pelo valor axial da vida humana constituem um dos aspectos defectivos mais marcantes da personalidade de um ser humano e deve ser sancionado com pena exemplar. Desde logo pela vertente preventiva que conleva uma acção perpetrada num ambiente familiar e depois pela intensidade demonstrada no processo de resolução e determinação para a acção de dar morte à sua companheira. Situando-se a pena (abstracta) entre 16 (dezasseis) e 25 (vinte e cinco) anos, afigura-se-nos que o tribunal de recurso, atentas as circunstâncias em que se produziu a acção delitiva, a intensidade culposa colocada na concreção da acção e o desmerecimento ético-social da acção, a pena de vinte (20) anos é compaginável para um sancionamento ajustado e proporcional do injusto cometido. Desestima-se, neste eito de razoamento, a pretensão de alteração da medida da pena imposta a arguido/recorrente. §2.(b).3. – INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS. O derradeiro tema eleito para solução da pretensão recursiva, atina com petição impressa no acervo conclusivo quanto aos “valores atribuídos a título de indemnização (…) são manifestamente exagerados, essencialmente, no que reporta aos danos não patrimoniais atribuídos a cada herdeiro, sendo que o valor a atribuir deverá ser de 7.500,00€.” Na parte adrede do acórdão recorrido, para justificação da atribuição das respectivas quantias por danos indemnizáveis, argumenta-se que (sic) “2.2.6.3. Dos danos e sua quantificação Quem estiver obrigado a reparar um dano “deve reconstituir a situação que existiria” se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. A obrigação de indemnizar tem como referencial, sem qualquer limitação, os “danos que o lesado não teria sofrido” se não fosse a lesão (art. 563º do CC). Conforme resulta do art. 562º do CC, o sentido e fim da indemnização é a criação da situação em que o lesado estaria presentemente, no momento em que é julgada a acção de responsabilidade, se não tivesse tido lugar o facto lesivo – situação hipotética ou provável, portanto –, e não a reconstituição da situação anterior à lesão51. A reparação dos danos deve efectuar-se, em princípio, mediante a reconstituição natural; mas quando isso não for possível ou não repare integralmente os danos, ou seja, excessivamente onerosa para o devedor, então haverá que proceder à reconstituição por equivalente em dinheiro (art. 566º, n.º 1 do CC). Nesta hipótese, o dano real ou concreto é expresso pecuniariamente, reflectindo-se sobre a situação patrimonial do lesado. Portanto, na fixação da indemnização temos a valoração ou determinação do dano e a liquidação, em dinheiro, do valor do dano estimado ou determinado. O momento da tradução em dinheiro da obrigação de ressarcimento do dano é o da data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal (art. 566º, n.º 2 do CC), que, in casu, coincide com o momento do encerramento da discussão da 1ª instância (art. 663º, n.º 1 do CPC). A liquidação do dano ou a sua tradução em dinheiro deve ser feita na base do valor mais actual possível da moeda para assim se assegurar a reconstituição integral da situação patrimonial da vítima. O dano – que pode ser patrimonial ou não patrimonial, conforme abranja prejuízo susceptível de avaliação patrimonial ou não – compreende o prejuízo causado (dano emergente) e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante) – art. 564º, n.º 1 do CC (perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado 52 ou um aumento do passivo) – para além dos danos futuros – art. 564º, n.º 2 do CC. In casu, estão peticionados para ressarcimentos os seguintes danos: - o dano morte, que os demandantes quantificam em 50.000,00 €; - os danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes de falecer (dano intercalar), que quantificam em 20.000,00 €; - danos patrimoniais, referentes às despesas com o funeral da vítima, que quantificam em 2.350,00 €; e - danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, filhos da vítima, que quantificam em 15.000,00 € para cada um. 2.2.6.3.1. Do dano morte A violação do direito à vida e, portanto, a morte de uma pessoa, constitui de per se um dano não patrimonial que deve ser reparado. A supressão do bem vida causa dano desde logo ao seu titular: este é privado do direito máximo, a própria vida. A lesão do bem vida é o dano máximo e inexcedível: a morte não se limita a lesar bens de personalidade; a morte suprime, por inteiro, a personalidade. A ressarcibilidade do dano não patrimonial constituído pela perda do direito à vida mostra-se prevista no art. 496º, n.º 3 do CC. A indemnização deve ser aferida pelo valor da vida para a vítima enquanto ser. A indemnização deve ser medida pelo seguinte critério: a morte é o prejuízo supremo, envolvendo a desaparição de um ser humano, o qual não fruirá mais dos prazeres dos sentidos, da razão, do movimento, dos sentimentos. Tendemos a achar que, sendo os seres humanos todos iguais, a perda do direito à vida é tendencialmente igual para todos. Referimos tendencialmente igual, na medida em que, estando nós perante um dano não patrimonial da vítima, o critério fundamental de fixação da indemnização é a equidade (art. 496º, nº 3 do CC). Assim, teremos de ter presente na fixação da justiça do caso concreto a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade e mesmo de igualdade, o que nos remeterá para um estudo dos valores fixados pela jurisprudência mais recente. Mas também não podemos deixar de aferir o efectivo valor que a vida tem para vítima, o que devemos aferir do modo como a mesma a tem vivido. Nestes termos, defendemos a fixação de um valor para a valoração do dano morte relativamente objectivo, embora que tendencialmente tenha em conta o que a vida vale para a própria vítima (situamo-nos entre a teoria da objectivação e a da diversidade, que, na nossa apreciação, é o que a nossa jurisprudência segue maioritariamente, pois só assim se explica a variação dos valores que têm vindo a ser fixados ao longo dos temos, sendo que, na mesma época, essa variação existe, embora com limites relativamente próximos uns dos outros). Sobre a titularidade do direito de indemnização, foram objecto de discussão três orientações: uma no sentido de que o direito de indemnização cabe ao de cujus e transmite-se aos herdeiros legais ou testamentários (transmissão por via sucessória); outra no sentido de que o direito transmite-se sucessivamente para as pessoas mencionadas no art. 496º, n.º 2 do CC; e uma outra no sentido de que o direito de indemnização é adquirido directa e originariamente pelas pessoas indicadas no art. 496º, n.º 2 do CC, não havendo lugar à transmissão sucessória. Acompanhamentos aqueles que defendem a orientação de que os danos não patrimoniais sofridos pelo morto nascem, por direito próprio, na titularidade das pessoas designadas no n.º 2 do art. 496º do CC, segundo a ordem e nos termos em que nessa norma legal são chamadas. O direito à indemnização derivado da supressão do direito à vida, deve ser entendido como um direito próprio do familiar do falecido e não como um direito da vítima que, por via sucessória, se comunica aos familiares. Nos termos do n.º 2 do art. 496º do CC, o direito à indemnização por morte da vítima cabe, em conjunto, ao cônjuge (não separado judicialmente de pessoas e bens) e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem. Terem direito à indemnização em conjunto significa que a indemnização cabe, em conjunto, ao cônjuge e aos descendentes da vítima (portanto, os descendentes não são chamados apenas na falta do cônjuge) e, na falta destes, aos pais e outros ascendentes. In casu, em conjunto, apresentam-se para pedir a indemnização em análise os descendentes da falecida, que têm legitimidade conforme referido supra, já que a mesma faleceu por acção do cônjuge, não tendo este direito a reparação pelo dano morte que causou. Numa análise da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, com o qual procuramos dar expressão à preocupação da normalização ou padronização quantitativa da compensação devida pelo dano morte, e, por essa via, aos princípios da igualdade e da unidade do direito e ao valor eminente da previsibilidade da decisão judicial, podemos concluir que o equivalente monetário do dano morte é, actualmente, fixado entre os € 50.000,00 e € 80.000,00. No âmbito de acções dolosas, temos decisões que fixam tal valor já nos 100.000,00 €. Na determinação do quantum compensatório pela perda do direito à vida importa ter em conta a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais, e, na medida do possível, apurar o que é que esse direito valia para a própria vítima do dano, tendo-se, para o efeito, em consideração a sua vontade e alegria de viver e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia. A vida é o bem mais precioso da pessoa e a sua perda arrasta consigo a eliminação de todos os outros direitos de personalidade. Assim, apreciando e individualizando o pedido indemnizatório, importa valorar a vida como bem supremo e base de todos os demais direitos, mas também ter presente que estamos perante uma vítima que faleceu quando tinha 53 anos (quase 54 anos), portanto, com uns bons anos de vida pela frente (isto tendo presente a média de vida da mulher, que se fixa aproximadamente dos 83 anos), inserida familiarmente, com três filhos, sendo uma pessoa que valorizava a sua vida e a vivia nestes termos. Em conformidade, tendo ainda presente a actuação culposa do lesante e o tipo de culpa nos termos supra descritos (dolosa), limitados pelo pedido (art. 609º do CPC), somos a considerar a indemnização peticionada de 50.000,00 €, referente ao dano morte, é absolutamente de deferir integralmente (sem ser possível, aliás, dada a limitação de tal pedido, considerarmos esse valor actualizado por referência à data da presente decisão). Considerando o exposto, não foi possível definir tal valor tendo em linha de conta o critério actualista definido no n.º 2 do art. 566º do CC, ou seja, a avaliação do dano não se reporta à data desta decisão, mas à data da notificação de tal pedido ao arguido. Esse valor caberá, de forma equitativa, ou seja, em partes iguais, aos descendentes de EE, ou seja, aos demandantes nestes autos, o que decidiremos em conformidade. 2.2.6.3.2. Do dano intercalar Os demandantes cíveis peticionam um montante de 20.000,00 € pelo sofrimento da falecida EE. A morte, como já vimos, para além de um dano autónomo em si, pode gerar outros danos não patrimoniais quer na própria vítima, quer nos familiares mais próximo, em especial nos filhos. A compensação por danos não patrimoniais encerra, habitualmente, três vertentes: uma reportada ao sofrimento próprio das pessoas a que se reportam os n.ºs 2 e 3 do art. 496.º, n.º 2 do CC; outra referente ao sofrimento da vítima entre o facto danoso e morte; e uma terceira pela perda do direito à vida em sentido estrito. Nesta decisão já apreciamos esta última vertente enunciada, pelo que, porque tal foi peticionado, importa avaliar a segunda das vertentes referidas no caso sub iudicio. A dor sofrida pela vítima antes de morrer é valorada como um “dano intercalar”, o qual depende do sofrimento e da respectiva duração, da maior ou menor consciência da vítima sobre o seu estado e a aproximação da morte. A morte não é muitas vezes um facto instantâneo e indolor: a vítima pode permanecer agónica e consciente, em sofrimento atroz, durante dias ou semanas ou mesmo meses ou anos. Trata-se notoriamente de um dano não patrimonial grave que deve ser objecto de compensação adequada, o qual só existe caso de prove que a morte não foi instantânea (sem qualquer sofrimento). In casu, estamos perante uma situação em que entre o início da acção do demandado (com o direcionar da caçadeira para a vítima) e a morte de EE decorreu um período de algum tempo. Conscientemente, porém, tal só ocorreu durante um período relativamente curto. Apesar disso, mostra-se provado que: - EE, antes de morrer, devido à acção do arguido, sentiu medo, pânico e horror. - Teve dores horríveis. - Estava, aquando dos disparos, ainda viva, lúcida, consciente. - Foi atingida, com os cartuchos da espingarda, num dos seus membros superiores (braço direito), desfazendo os tecidos vivos que o ampararam, no ombro esquerdo, e (no terceiro disparo) na zona do tórax, ferindo a artéria carótida. - Sentiu desespero, antecipou a própria morte, enquanto se esvaia em sangue, até ter sucumbido. Os danos não patrimoniais são prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado. E porque não atingem o património do lesado, a obrigação de os ressarcir tem mais natureza compensatória do que indemnizatória, sem esquecer, contudo, que não pode deixar de estar presente a vertente sancionatória. O objectivo da reparação dos danos morais, para além de reprovar ou castigar, no plano civilístico, a conduta do agente, é o de proporcionar ao lesado, através do recurso à equidade, uma “compensação ou benefício de ordem material (a única possível), que lhe permite obter prazeres ou distracções – porventura de ordem puramente espiritual – que, de algum modo, atenuem a sua dor: não consistiria num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris”. Para os danos não patrimoniais, o art. 496º, n.º 3 do CC manda fixar o montante da respectiva indemnização equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art. 494º do mesmo Código, ou seja, o grau de culpabilidade dos agentes, a situação económica destes e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e o correspondente sofrimento, não devendo esquecer-se ainda, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência ou as flutuações do valor da moeda. Deverá ter-se ainda em conta que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista. A compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do art. 496º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar. O montante da indemnização – escreve Antunes Varela – deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. É este, como já foi observado por alguns autores, um dos domínios onde mais necessários se tornam o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções com que o julgador deve decidir. E, citando G. Verga, mais escreve: “Embora a determinação dos danos desta natureza - danos não patrimoniais indemnizáveis - e do seu montante dependa do prudente arbítrio do juiz, deve este referir sempre com a necessária precisão o objecto do dano, para evitar que a sua liquidação se converta num acto puramente arbitrário do tribunal”. Segundo Mota Pinto, os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis; não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização. Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um “preço de dor” ou um “preço de sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal. Resulta do exposto que, para a decisão a proferir no que respeita à valoração pecuniária dos danos não patrimoniais, em cumprimento da prescrição legal que manda julgar de harmonia com a equidade, se deverá atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu. Ora, tendo presente a matéria de facto dada como provada e os critérios supra enunciados para a determinação do montante indemnizatório, considerando o tempo relativamente curto durante o qual EE esteve consciente durante a acção do arguido, que começou com o apontar da arma, seguido dos disparos, entendemos ser adequado e equitativo fixar o montante de 10.000,00 €, a título dos danos não patrimoniais (globais), valor este atribuído tendo em linha de conta o critério actualista definido no n.º 2 do art. 566º do CC, ou seja, a avaliação dos danos reporta-se à data desta decisão. Esse valor entra na esfera jurídica da lesada e, consequentemente, transmite-se por via hereditária. Será, por isso, tal valor pago aos descendentes de EE, por serem os seus únicos sucessores (tenha-se presente a indignidade sucessória declarada nesta decisão). A previsão normativa do art. 496º, n.º 3, 2ª parte, do CC, estipula, para o caso de morte, a atendibilidade não só dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima, mas também os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização referidas no n.º 2 da mesma norma. A morte de uma pessoa é susceptível de causar danos às pessoas a quem se mostre ligado por vínculos familiares, desde logo, aos descendentes. Esses danos tanto podem ser não patrimoniais – como por exemplo o sofrimento que experimentam quer com a morte da vítima, quer a dor que sentiram ao presenciar o padecimento, longo e doloroso, suportado pelo próprio morto – como puramente patrimoniais, como, v.g., os lucros cessantes representados pela supressão da capacidade de ganho da vítima e pela perda da fonte de rendimento correspondente de que beneficiariam durante um período de tempo mais ou menos longo. Na situação sub judice, os filhos da vítima mortal por acção do arguido / demandando, pretendem ser indemnizados pelos danos não patrimoniais sofridos como consequência da referida morte. O valor a fixar depende dos danos apurados e variará em função do vínculo jurídico que os ligava à vítima, em função do conteúdo afectivo deste, mas também tendo em consideração o princípio geral de ressarcibilidade dos danos de natureza não patrimonial (previsto no art. 496º, n.º 1 do CC). Assim, a este respeito, analisando a matéria de facto julgada como provada, resulta que: - EE era uma mulher alegre, feliz, extremamente dedicada à família. - Uma mãe carinhosa, preocupada e presente na vida dos seus filhos. - Os demandantes passaram, e ainda passam, momentos extremamente perturbadores. - A brutalidade da morte da mãe causou em todos enorme desgosto e choque emocional. - Nutriam amor e afecto desmedido pela mãe. - Tiveram e tem de lidar com o facto de que a mulher que lhe deu a vida foi morta com três tiros de caçadeira, pelo seu próprio pai. - O que lhes produziu uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio sócio-psíquico-emocional. - Os demandantes têm, ainda hoje, imensa dificuldade em aceitar o sucedido, algo que os irá acompanhar pelo resto das suas vidas. - A vida dos demandantes é marcada por um pesado sentimento de revolta e de infelicidade. - São inúmeras as vezes que acordam a meio da noite assolados pela imaginação daquilo que a sua mãe terá sentido, vivido, pensado. - Sentem a saudade de uma mãe extremosa, das suas palavras amigas, do seu colo. - Ainda choram o luto da sua mãe e acreditam que será muito difícil ultrapassar a dor que sentem. - Sofrem pelo facto de o próprio pai ter morto a mãe. - Tiveram de explicar esta situação aos seus filhos, que terão de viver sempre com este marco. Os danos não patrimoniais – já o referimos supra – são prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado. E porque não atingem o património do lesado, a obrigação de os ressarcir tem mais natureza compensatória do que indemnizatória, sem esquecer, contudo, que não pode deixar de estar presente a vertente sancionatória. O objectivo da reparação dos danos morais, para além de reprovar ou castigar, no plano civilístico, a conduta do agente, é o de proporcionar ao lesado, através do recurso à equidade, uma “compensação ou benefício de ordem material (a única possível), que lhe permite obter prazeres ou distracções – porventura de ordem puramente espiritual – que, de algum modo, atenuem a sua dor: não consistiria num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris”. Assim, importa ter presente, conforme já descrito supra, que o art. 496º, n.º 3 do CC manda fixar o montante da respectiva indemnização equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art. 494º do mesmo Código, ou seja, o grau de culpabilidade dos agentes, a situação económica destes e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e o correspondente sofrimento, não devendo esquecer-se ainda, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência ou as flutuações do valor da moeda. Nestes termos, tendo presente o já exposto a este respeito, importa avaliar os danos morais dos filhos de EE, todos com uma relação muito próxima com a mãe, que sofrerem, com a actuação do arguido, pai dos mesmos, uma enorme perda, que se projectou num enorme sofrimento, nos termos julgado como provado. Ora, tendo presente a matéria de facto dada como provada e os critérios supra enunciados para a determinação do montante indemnizatório, entendemos ser adequado e equitativo atribuir a cada um dos demandantes, enquanto lesados, o montante de 15.000,00 €, a título dos danos não patrimoniais globais, valor este atribuído tendo em linha de conta o critério actualista definido no n.º 2 do art. 566º do CC, ou seja, a avaliação dos danos reporta-se à data desta decisão.” §2.(b).3.a) – PRESSUPOSTOS DA OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR. A obrigação de indemnizar constitui-se como um modo de reparação de prejuízos ou danos que uma acção externa à esfera individual de um sujeito provoca no ambiente existente no momento em que a acção foi desencadeada. Na génese da obrigação de indemnizar induzida, ou fundada, na produção de um evento que altere/modifique ou transforme a realidade existente na esfera (patrimonial ou imaterial) de uma pessoa está a ideia de procurar restabelecer o bem jurídico violado no estado em que se encontrava antes da consumação do evento danoso, e, caso o restabelecimento não seja possível in natura, deverá a reparação ser realizada economicamente, na medida da diferença entre o estado anterior aquele em que o bem jurídico violado ou lesado se encontrava se não tivesse ocorrido a produção do resultado danoso – teoria da diferença (artigo 562.º e 566.º do Código Civil). [“A sanção jurídica da conduta lesiva responde a uma elementar exigência ética e constitui uma verdadeira constante histórica: o autor do dano responde por ele, isto é, acha-se sujeita a responsabilidade. Este vocábulo sugere, inclusivamente antes de qualquer reflexão jurídica, a ideia de que a pessoa está submetida à necessidade de suportar as consequências dos seus actos. E a expressão mais cabal dessa «necessidade» é a obrigação de indemnizar ou reparar os prejuízos causados à vítima.” – Ignacio Sierra Gil de la Cuesta, Tratado de Responsabilidad Civil, Tomo 1, Bosch, 2ª edición, 2008, 14.”] A vulneração de um direito ou de uma disposição legal protectora de interesses alheios, exige um conjunto de pressupostos de que a lei faz depender a obrigação de indemnizar - cfr. Artigo 483.º do Código Civil. A doutrina, como dá nota o Professor Pessoa Jorge, não se mostra unânime quanto à elencagem dos pressupostos de que a lei faz depender a ocorrência ou a verificação da responsabilidade civil por factos ou actos ilícitos. Pensamos, no entanto, colher melhor sufrágio a solução adoptada por Antunes Varela, de que para que se mostrem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil se torna necessário: a) a ocorrência de um facto; b) que esse facto deve ser considerado ilícito; c) que o facto ilícito possa ser imputado a um determinado sujeito; d) que por virtude desse facto ilícito praticado por uma pessoa ocorra um dano, patrimonial ou não patrimonial, na esfera jurídica de outrem; e) e que exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano. (1 Cfr. Pessoa Jorge, Fernando, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil, Almedina, 1995, pág. 53 a 57. Para este autor os pressupostos da responsabilidade civil reduzem-se a dois: acto ilícito e prejuízo reparável. 2 Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 495. 3 “Estos pressupuestos son: em primer lugar, una conduta, bien sea positiva (acción), bien sea de inactividad (omisso). En segundo término, esa conduta, según el criterio de imputación de responsabilidad del Código Civil (distinto es el de alguno de los «regímenes especiales», debe ser subjetivamente atribuible o reprochabale al agente, esto es, ha de ser una actuación caracterizada por la culpabilidad. En tercer lugar, el comportamiento en cuestión tiene que revestir caracteres de antijuridicidad o ilicitud o, dicho de otro modo, injusticia. Además ha de existir un resultado lesivo, esto es, un daño debe mediar una relación de causalidad bastante para que ese daño pueda ser atribuible al autor de la conduta sobre cuya responsabilidad se trata.” - Ignacio Sierra Gil de la Cuesta, Tratado de Responsabilidad Civil, Tomo 1, Bosch, 2ª edición, 2008, 219-220.] Em visualização expandida e explicitada poder-se-ia dizer que os pressupostos da responsabilidade aquiliana, se reconduzem nos sequentes elementos lógico-materiais e de verificação ou produção natural e físico-psicológicos: i) – o facto voluntário, consubstanciado numa conduta comissiva ou omissiva de um agente traduzido, naturalisticamente, numa alteração ou modificação da realidade existente ante; ii) – a ilicitude, traduzida na violação de normas legais ou de direitos (absolutos) consolidados na esfera individual ou colectiva e infractores dessas normas ou direitos; iii) – a culpa, como nexo de imputação ético-jurídico, de feição e natureza censurável ou reprovável, à luz dos valores eticamente prevalentes numa sociedade historicamente situada; iv) – o dano, lesão ou prejuízo de ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica de terceiros; v) – e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Em visualização expandida e explicitada poder-se-ia dizer que os pressupostos da responsabilidade aquiliana, se reconduzem nos sequentes elementos lógico-materiais e de verificação ou produção natural e físico-psicológicos: i) – o facto voluntário, consubstanciado numa conduta comissiva ou omissiva de um agente traduzido, naturalisticamente, numa alteração ou modificação da realidade existente ante; ii) – a ilicitude, traduzida na violação de normas legais ou de direitos (absolutos) consolidados na esfera individual ou colectiva e infractores dessas normas ou direitos; iii) – a culpa, como nexo de imputação ético-jurídico, de feição e natureza censurável ou reprovável, à luz dos valores eticamente prevalentes numa sociedade historicamente situada; iv) – o dano, lesão ou prejuízo de ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica de terceiros; v) – e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Supõe e importa, portanto, a responsabilidade civil, a imposição de medidas reparadoras destinadas a compensar um dano, moral ou patrimonial, ocasionados pela prática por parte de alguém de um uma conduta, ilícita e culposa, susceptível de violar direitos alheios ou disposição legal destinada a proteger interesses de terceiros. A perfeição da instituto da responsabilidade pressupõe a prática de um facto humano e material – comissão por via de acção ou omissão -; que esse facto se revele e planteie como contrário à ordem jurídica; que se exponha como reprovável e censurável, no plano imputação subjectiva a um determinado sujeito; que esse facto seja imputável ao um sujeito determinado; que o resultado produzido por esse facto produza uma modificação, material-objectiva ou moral-subjectiva, na esfera jurídica do sujeito que sofre os efeitos da acção ou da omissão, e que seja possível imputar o facto ao resultado danoso ocasionado. Para que se configure o dever de indemnizar, com base na responsabilidade civil, deverá, portanto, ser possível conexionar a conduta do agente ao dano provocado por essa conduta, ou seja, deve existir um nexo de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e a conduta do agente. Em regra a responsabilidade civil e a obrigação de reparar o dano surge da conduta ilícita do agente que lhe deu causa, ou seja de uma conduta violadora de normas gerais e de direitos de outrem. [Sinde Monteiro, Jorge, in “Responsabilidade Civil”, Revista de Direito e Economia, Ano IV, n.º 2, Julho/Dezembro, 1978, doutrina que “[estamos] em presença de responsabilidade civil por factos ilícitos quando a ordem jurídica coloca como pressuposto da obrigação de reparar um dano causado a outrem a exigência da verificação de um facto ilícito e a possibilidade de afirmação de um nexo de imputação subjectivo do facto ao agente, i. é, que tenha procedido com culpa. Fundamento da responsabilidade é aqui a culpa, ou, se preferirmos, o juízo de reprovação que a conduta do agente suscita, verificando-se uma aproximação entre os juízos de censura moral e do direito”. - pág. 317.] O primeiro dos pressupostos de que a lei faz derivar a obrigação de indemnizar, com base na responsabilidade civil, é a realização de um facto - acção ou conduta humana, que se traduz na modificação de um estado de coisas existente antes da acção – por alguém que está adstrito, por imposição legal ou convencional, a observar determinadas regras de comportamento, e a fazê-lo utilizando cuidados e regras técnicas e de perícia correspondentes á tarefa a realizar. Trata-se, assim, de um acto humano, comissivo ou omissivo - a comissão vem a ser a prática de um acto que se deveria efectivar, e a omissão, a não-observância de um dever de agir ou da prática de certo acto que deveria realizar-se -, de natureza voluntária e que deve, ou pode ser, objectivamente imputável, a uma determinada pessoa. Esse facto, pela sua feição ilícita, ou lícita [Para o autor citado na nota anterior, a responsabilidade por factos lícitos, ocorre “nas hipóteses em que a lei, atendendo ao interesse preponderante de um particular ou da colectividade, permite uma intervenção na esfera jurídica alheia em detrimento de um direito que em principio goza de uma protecção absoluta (impondo correspondentemente ao titular deste um dever de tolerar essa intervenção negando-lhe o direito de defesa que de outro modo lhe é concedido) estabelecendo, todavia, a cargo do titular do direito ou do interesse supra-ordenado a obrigação de reparar os danos sofridos pelo «sacrificado» (exemplo: art. 339.º).”], deve ter actuado e agido por forma a causar na esfera do lesado um prejuízo. Esta lesão de um direito de outrem ou de um interesse particular protegido por disposição legal, quando resultante da acção de um agente lesante, desencadeia a obrigação de indemnizar, a cargo do autor da lesão. O facto do agente, consubstanciado num comportamento ou numa conduta humana, deve assumir um carácter voluntário e poder ser dominável e controlável pela vontade. Revestindo o facto do agente uma atitude positiva denomina-se acção, sendo que revestindo uma atitude negativa se constitui numa omissão. Neste caso, a não prática do facto ou acto que o agente, por imposição de um dever jurídico, estava compelido a praticar, desencadeia a obrigação e indemnizar com base na responsabilidade civil. A culpa pode revestir as modalidades de dolo, ou mera culpa, ou negligência, que são, nas situações de responsabilidade civil, as mais frequentes. A par da negligência, consubstanciada na omissão de um dever de cuidado, que uma atenta consideração da situação poderia e deveria ter prevenido, ocorrem a imprudência ou imperícia, sendo que a primeira ocorrerá quando o agente age por precipitação, por falta de previdência, de atenção no cumprimento de determinado acto, e a imperícia quando o agente acredita estar apto e possuir conhecimentos suficientes pratica acto para o qual não está preparado por falta de conhecimento aptidão capacidade e competência. [Para um esclarecedor e detalhado desenvolvimento sobre os aspectos jurídico-ontológicos que a culpa pode assumir no conspecto da responsabilidade civil: – colpa civile e colpa penale; la colpa per violazione di norme giuridiche; la colpa per violazione di norme di comune prudenza; la diligenza come parametro di determinazione della condotta dovuta e come criterio di responsabiltà.I contenuti della diligenza; la prevedibilità; la colpa comissiva e colpa omissiva; la colpa lieve e la colpa grave – veja-se Laura Mancini, “Responsabilità Civile. La Colpa nella Responsabilità Civile”, Giuffrè Editore, 2015, ps. 25 a 55.] A culpa (subjectiva, também designada “culpa penal”) revela-se e traduz-se numa imputação psicológica feita a uma pessoa e conleva um juízo de censura ético-jurídica dirigida a uma conduta humana portadora, ou a que se agrega, uma vontade livremente determinada e liberta de condicionalismos perturbadores da assumpção de um sentido querido e orientado da vontade individual. O juízo de culpabilidade geradora de responsabilidade civil assume uma feição objectiva, por referida a um padrão normativo eleito pela ordem jurídica, como mediador ou referência de imputação valorativa ético-normativa. A censura opera-se, para este fim, pela referência prudencial ou avisada que todo o individuo deve assumir, na gestão da sua vivência societária, onde o feixe de riscos e de situações passíveis de gerar perigos é constrangedor da assumpção de uma atitude de cautela, ponderação e razoabilidade. A previsão ou prognose de situações potenciadoras de um risco ou de factores exógenos que se perfilam como geradores de perigo devem ser cautelarmente avaliados e prefigurados, intelectivamente, de modo a que o agente assuma perante essa situação concreta um comportamento conducente a evitar a violação de direitos pessoais ou patrimoniais ou regras legais impostas para evitar a consumação de danos na esfera de outrem. [“Para determinar se a acção ou omissão não dolosa, mas realizada com infracção de um dever objectivo de cuidado, que possa ser reprovado ao sujeito, a título de culpa ou negligência, como exige o artigo 1.902, o decisivo não é a previsão objectiva do juiz, mas sim, unicamente, o juízo prévio de que o agente, no uso das suas faculdades, se tivesse podido formar à vista das circunstâncias que configuravam concretamente o caso, de ter observado o cuidado pessoalmente possível para ele …” – Cfr. Ignacio Sierra Gil de la Cuesta, in Tratado de Responsabilidad Civil, Tomo I, Bosch, 2008, Barcelona, p. 222.] À míngua de o juiz poder, numa reconstrução/avaliação a posteriori dos actos submetidos à sua decisão, colocar-se na representação das coisas que sucederam durante o desenvolvimento do próprio comportamento “enjuiciado” na posição do agente, deverá, na avaliação do comportamento, eventualmente culposo ou violador de uma norma legal utilizar um critério comparativo abstracto, qual seja o comportamento de um “homem recto e seguro dos seus actos”, do “homem razoável e prudente”, em definitivo do “bom pai de família” (“sem que isso impeça a atenção às circunstâncias de cada caso enjuizado, que em muito casos incidem poderosamente na valoração da conduta”). [Cfr. Ignacio de la Cuesta, op. loc. cit., p. 223.] Na avaliação de um comportamento violador de regras ou comandos legais deverá ter-se como padrão aferidor um nível de diligência, prudência ou cautela que um indivíduo razoável, ponderado e prevenido colocado numa situação similar assumiria. [“(…) de maneira que o cânone de diligencia deve vir representado pelo que guarda o homem médio, sem dever ser exigível uma diligencia extraordinária. No âmbito da actividade empresarial ou profissional isto traduzir-se-ia na aplicação de um princípio de proporcionalidade, segundo o qual o dever de diligência tem o seu limite ali onde exista uma desproporção apreciável entre o custo da adopção de determinadas medidas de prevenção e probabilidade de que se produza um dano de alcance relevante. Sem embargo, o certo é que neste âmbito, a jurisprudência só reconhece o cânone clássico da «diligência exactíssima». - cfr. Reglero Campos, Fernando, “Tratado de Responsabilidad Civil, Aranzadi, Thomson, 2002] Para além da culpa, torna-se necessário que o facto possa/deva ser imputável ao agente e que possa/deva ser estabelecido um nexo causal, ou a relação de causalidade (adequada), entre o facto e o dano ocorrido. A relação de causalidade constitui-se, assim, como o elo de ligação entre o acto lesivo do agente e o dano ou prejuízo sofrido pela vítima. O conceito de nexo causal, ou relação de causalidade decorre de leis naturais. Apura-se pela conexão objectiva e subjectiva que é possível estabelecer entre a conduta do agente e o dano. O nexo de causalidade é um pressuposto da responsabilidade civil que consiste na interacção causa/efeito, de ligação positiva entre a lesão e o dano, através da previsibilidade deste em face daquele, a ponto de poder afirmar-se que o lesado não teria sofrido tal dano se não fosse a lesão (art. 563º do Código Civil). De acordo com o preceituado no art. 563º do Código Civil a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, com que se consagra a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, proposta por Ennecerus-Lehman, segundo a qual a condição deixará de ser causa do dano sempre que ela seja de todo indiferente para a produção do mesmo, e só se tenha tornado condição dele em virtude de outras circunstâncias, sendo pois inadequada à sua produção. À luz desta teoria, não serão ressarcíveis todos e quaisquer danos que sobrevenham ao facto causador do resultado danoso, mas tão só os que ele tenha realmente ocasionado, ou seja, aqueles cuja ocorrência com ele esteja numa relação de adequação causal. Por outras palavras, dir-se-á que o juízo de adequação causal tem que assentar numa relação intrínseca entre o facto e o dano, de modo que este decorra como consequência normal e típica daquele, ou seja, que corresponda a uma decorrência adequada do mesmo. Preceitua o art. 563.º do Código Civil que «a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão». A formulação normativa prefigura algum grau de equivocidade, na medida em que parece fazer ressaltar, uma assumpção da teoria da equivalência das condições, ou teoria da conditio sine qua non, segundo a qual seriam indemnizáveis todos os prejuízos que não se teriam verificado se não fosse o acto ilícito – a indemnização existiria em relação a todos os danos causalmente provocados pelo facto gerador da obrigação de indemnizar –, ainda que inculcando a ideia, ou impressivamente se conduza no sentido, de que só serão indemnizáveis aqueles danos que, numa relação de probabilidade entre o facto ilícito e o resultado danoso, não teriam ocorrido se o facto lesivo não tivesse ocorrido. A interpretação histórica, v. g. os trabalhos preparatórios do Código Civil, inculcam, ou asseveram a convicção lógico-racional, de o legislador quis e adoptou a teoria da causalidade adequada. [Cfr. Vaz Serra, em Boletim do Ministério da Justiça n.º 84, página 284, e n.º 100, página 127.] Neste eito interpretativo e teleológico, tanto a doutrina, como a jurisprudência, tem vindo entender que este art. 563.º pretendeu consagrar a teoria da causalidade adequada. [Cfr. – Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6.ª edição, páginas 870-871; Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3.ª edição, página 369; Rui Alarcão, Direito das Obrigações, 1983, página 281; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição, páginas 521-522; e Jorge Ribeiro Faria, Direito das Obrigações, volume I, página 505.] Com este perfil teleológico e lógico-dedutivo, um condicionalismo abstracto, desarreigado e despegado da realidade e substrato material actuante, não poderá tornar-se ou devir causa de um resultado danoso, quando, «segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequada para este dano». [Cfr. – Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6.ª edição, páginas 861, nota 2.] À luz desta assumpção da teoria do facto ou acção causante, o nexo de causalidade entre o facto e o dano pode assumir uma feição indirecta, isto é, tornar possível a subsistência de um nexo de causalidade quando o facto ilícito não produz ele mesmo o dano, mas é causa adequada de outro facto que o produz, na medida em que este facto posterior tiver sido especialmente favorecido por aquele primeiro facto ou seja provável segundo o curso normal dos acontecimentos. [cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de28-11-94, proferidos no recurso n.º 87187, publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano III, tomo III, página 74, e no Boletim do Ministério da Justiça n.º 450, página 403. A doutrina nacional também se tem pronunciado neste sentido, como pode ver-se em – Vaz Serra, em Boletim do Ministério da Justiça n.º 84, página 41; – Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, páginas 352, 353 e 357; – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 2.ª edição, página 503; – Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6.ª edição, página 868; – Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição, página 520; – Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, 1983, página 286; e Jorge Ribeiro Faria, Direito das Obrigações, volume I, página 507.] A verificação da existência de nexo de causalidade é matéria que escapa à sindicância deste Supremo Tribunal de Justiça, se perspectivada na sua feição naturalística. [1 cfr. a este propósito o douto acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11-01-2011, in www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas, em que se escreveu: “O juízo de causalidade numa perspectiva meramente naturalística de apuramento da relação causa-efeito, insere-se no plano puramente factual insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e com as ressalvas dos artigos 729.º, n.º 1 e 722.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. 10) Assente esse nexo naturalístico, pode o Supremo Tribunal de Justiça verificar da existência de nexo de causalidade, que se prende com a interpretação e aplicação do artigo 563.º do Código Civil. 11) O artigo 563.º do Código Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias. 12) De acordo com essa doutrina, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis.” 2 Veja-se, ainda, com proveito o aresto deste Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Janeiro de 2016, relatado ela Conselheira Maria da Graça Trigo, em que se escreveu: “O juízo de causalidade é tanto um juízo de facto como de direito. Não cabe a este Supremo Tribunal sindicar o juízo de facto feito pela Relação, mas apenas pronunciar-se acerca do respeito pelo critério normativo da causalidade (cfr., a respeito da responsabilidade por actos médicos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2013, proc. 6297/06.5TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt; em geral, ver, por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Julho de 2010, proc. nº 2164/06.OTVPRT.P1, de 6 de Maio de 2010, proc. nº 11/2002.P1.S1, e de 15 de Novembro de 2007, proc. nº 07B2998, todos em www.dgsi.pt). (…) Reafirme-se que o juízo positivo de relação causal no plano fáctico não pode ser reapreciado pelo Supremo. Dá-se como assente que, durante a cirurgia, foi causada a lesão na medula da A., ainda que não esteja dado como provado qual foi a conduta concreta que a causou e, portanto, quem foi o autor da mesma lesão. Mas, por definição, sabe-se que foi um ou mais dos agentes que intervieram na cirurgia. No plano do juízo normativo de causalidade, que compete a este Supremo Tribunal, há que ter em conta que os RR. alegam não ter sido feita prova do nexo causal entre a cirurgia e os danos sofridos pela A., designadamente por não bastar, para o efeito, utilizar o critério da causalidade adequada na sua formulação negativa. Recorrendo-se à teoria da causalidade adequada, aceite pela jurisprudência deste Tribunal (cfr., por exemplo, os acórdãos de 25 de Novembro de 2010, proc. nº 896/06.2TBPVR.P1.S1, de 15 de Novembro de 2007, cit., e de 1 de Julho de 2010, cit., todos em www.dgsi.pt) na interpretação do art. 563º do CC, “É necessário, portanto, não só que o facto tenha sido, em concreto, condição ‘sina qua non’ do dano, mas também que constitua, em abstracto, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção” (Almeida Costa. Direito das Obrigações. 2009, pág. 763). 3 Ou ainda, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 01-07-2003, relatado pelo Conselheiro Azevedo Ramos. “(…)“Nexo de causalidade: A teoria da causalidade adequada, recebida no art. 563.º do C.C., comporta dois momentos. Num primeiro momento, um nexo naturalístico, consistente na existência de um facto condicionante de um dano, para que haja reparação desse dano sofrido. Ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, impõe-se um segundo momento, um nexo de adequação, isto é, que o facto concreto apurado seja, em abstracto e em geral, apropriado para provar o dano. Enquanto o nexo naturalístico constitui matéria de facto, cujo apuramento incumbe às instâncias, já o nexo de adequação envolve matéria de direito, de que é lícito ao Supremo conhecer,” 4 No mesmo sentido da jurisprudência portuguesa segue a jurisprudência do mais alto Tribunal espanhol, como o atesta a sentença do Tribunal Supremo, de 24 de Maio de 2004, citada por Fernando Reglero Campos, pág 727-728, onde se faz a destrinça entre o aspecto puramente fáctico e a dimensão jurídica que engolfa a questão do nexo de causalidade. Refere esta sentença que: “o juízo de causalidade “jurídica” se visualiza em duas sequências, a primeira das quais faz referência à causalidade material ou física, que se apresenta no processo como um problema eminentemente fáctico, e, por ende, como thema probandi, alheia aos preceitos substantivos como os artigos 1902 y 1903 do CC que servem de fundamento de cassação “casacional” motivado, pelo que somente mediante denúncia de erro na valoração probatória na forma adequada cabe uma verificação deste recurso. A segunda sequência – esta sim controlável em sede de cassação – faz referência ao juízo sobre a adequação ou eficiência da causa física ou material para gerar o nexo com o resultado danoso, cuja indemnização se pretende na demanda.”] Na verdade, se abordada no plano meramente naturalístico, o nexo de causalidade inclui matéria de direito probatório cuja sindicância escapa a este Supremo Tribunal, na afirmação do que vem disposto nos artigos 774.º e 682.º, n.º 2, ambos do Código Processo Civil. A ausência de prova quanto a este pressuposto e não a indagação de se “(…) o facto concreto apurado seja, em abstracto e em geral, apropriado para provar o dano”, como se escreveu no douto acórdão de 01-07-2003, não cabe dentro dos poderes de reapreciação deste Supremo Tribunal, pelo ao repristiná-lo neste sede importa o seu desmerecimento. Numa inovadora e aliciante perspectiva da categoria jurídica do nexo de causalidade – crismado de nexo de imputação ou nexo de ilicitude – Ana Mafalda Castanheira Neves, refere que o lesado tem de provar “a existência de uma tessitura que, uma vez desenhada, justifique a assimilação do seu âmbito de relevância pelo âmbito de relevância do sistema. Isto é, tem de provar a edificação de uma esfera de risco e a existência de um evento lesivo. O juízo acerca da pertença deste aquela esfera traduzir-se-á numa dimensão normativa da realização judicativo-decisória do direito que convocará o sentido último da pessoalidade e um ideia de risco lido à luz daquela. Pelo que, em última instância, ficamos libertos das dificuldades que tradicionalmente agrilhoam o decidente e o levam a procurar soluções que vão desde as presunções de causalidade, o alívio do ónus da prova dos caos de dolo e situações especialmente perigosas, as presunções prima facie, a regra id quo plerumque accidit, a regra res ipsa loquitur, o alívio das exigências em termos de probabilidades, o recurso a categorias como a perda de chance.” [Cfr. Miranda Barbosa, Ana Mafalda, in “Responsabilidade Civil Extracontratual – Novas Perspectivas em Matéria de Nexo de Causalidade” Princípia Editora, Cascais, 2014, pgs. 196.] Seja numa perspectiva de assimilação/assumpção do nexo de causalidade como imputação objectiva o estabelecimento do nexo de causalidade fundamentadora da responsabilidade, por banda do responsável de uma conduta que, por ser ético-axiologicamente censurável e reprovável, radica na imputação, objectiva e subjectiva, da acção viária do sujeito obrigado ao pagamento de uma indemnização. Vale dizer, que, neste caso, o nexo que tem de ser averiguado, determinado e estabelecido é entre uma conduta que está legalmente vedada ao sujeito que assume a responsabilidade de conduzir um veículo na via pública e a concreta produção de um evento lesivo, que não fora a desatenção e o sentido violador das normas de cuidado, prudência e sentido de diligência, não teria sucedido. ([Cfr. Miranda Barbosa, Ana Mafalda, in op. loc. cit., pgs. 33 e sgs.]. Constitui jurisprudência e doutrina assente que a lei – cfr. artigo 563.º do Código Civil – consagrou a teoria da causalidade adequada, segundo a qual, “para que um dano possa ser imputado, causalmente ao agente, o único que se exige é que o nexo causal não haja sido interrompido pela interferência de outra serie causal alheia à anterior.” – [cfr. Fernando Reglero Campos, in op. loc. cit. pág. 733. Na formulação de Ignacio Sierra Gil de la Cuesta, in “Tratado de Responsabilidad Civil”, Tomo I, Bosch, Barcelona, 2008, pag. 415. 2 “(…) nem todos os acontecimentos que precedem um dano (sendo, por assim dizer, as causas da sua produção) têm a mesma relevância. O dano tem de se associar aquele antecedente que, segundo o curso normal dos acontecimentos, tenha sido a sua causa directa e imediata. Todos os demais são periféricos e, portanto, irrelevantes para efeitos de atribuição da responsabilidade. Por isso, uma pessoa responde pelo dano produzido só no caso de que a sua conduta culposa tenha tido esse carácter de causa adequada ou causa normalmente geradora do resultado.” Segundo este tratadista ocorre uma tendência doutrinal de matizar esta doutrina, privilegiando uma imputação subjectiva ou uma imputação objectiva. De acordo com esta última doutrina, constituem-se critérios excludentes da imputação objectiva: 1.º - o risco geral da vida; 2.º - a proibição de regresso (segundo o qual não deve imputar-se objectivamente a quem pôs em marcha um curso normal que conduz a um resultado danoso, quando neste intervém, supervenientemente, a conduta dolosa ou gravemente imprudente de um terceiro; 3.º - o critério da provocação; 4.º - o fim da protecção da norma (não podem ser objectivamente imputados à conduta do autor aqueles resultados danosos que caiam fora do âmbito da finalidade da protecção da norma sobre a qual pretenda fundamentar-se a responsabilidade do demandado; 5.º - o critério denominado do incremento do risco ou da conduta alternativa (não pode imputar-se uma determinada conduta um concreto evento danoso, se, suprimida idealmente aquela conduta, o evento danoso na sua configuração totalmente concreta se tivesse produzido também, com segurança ou probabilidade razoável em certeza, e se a conduta não incrementou o risco de que se haja produzido o evento danoso); 6.º - as supostas competências da vitima (se na configuração concreta de um contacto social, o controle da situação corresponde à vitima, é a ela a quem devam imputar-se as consequências lesivas e não ao comportamento do autor imediato. “Assim, no nexo de causalidade entre o facto e o dano, a ligação é feita, em último termo, mediante um nexo de adequação do resultado danoso à conduta, nexo de que este Supremo pode conhecer, por ser questão de direito. (Ac. S.T.J. de 11-5-2000, Bol. 497-350; Ac. S.T.J. de 30-11-2000, Col. Ac. S.T.J., VIII, 3º, 150; Ac. S.T.J. de 21-6-2001, Col. Ac. S.T.J., IX, 2º, 127; Ac. S.T.J. de 15-1-2002, Col. Ac. S.T.J., X, 1º, 36)” – Cfr. Ac. do STJ de 01-07-2003, relatado pelo Conselheiro Azevedo Ramos. Escreveu-se, a propósito da formulação negativa da teoria da causalidade adequada, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2012, in www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Hélder Roque, que: “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado, provavelmente, não teria sofrido se não fosse a lesão, de acordo com a doutrina da causalidade adequada, na sua vertente negativa, consagrada pelo artigo 563º, do CC, segundo a qual um facto é causal de um dano quando é um de entre as várias condições sem as quais aquele se não teria produzido. É que nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito estão incluídos na responsabilidade do agente, mas apenas os que resultam do facto constitutivo da responsabilidade, na medida em que se exige entre o facto e o dano indemnizável um nexo mais apertado do que a simples sucessão cronológica - cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 429 e 641. Para que possa reclamar-se o ressarcimento de certo dano, é necessário, mas não suficiente, que o acto seja condição dele, porquanto se exige, igualmente, que o mesmo, provavelmente, não teria acontecido se não fosse a lesão, o que reconduz a questão da causalidade a uma questão de probabilidade, sendo, então, causa adequada aquela que, agravando o risco de produção do prejuízo, o torna mais provável – cfr. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, 409 -, e não aquela que, de acordo com a natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para o produzir, mas que só aconteceu devido a uma circunstância extraordinária – cfr. Vaz Serra, Obrigação de Indemnização, BMJ nº 84, nº 5, 29.”] Não basta que ocorra um dano, é preciso que esta lesão passe a existir a partir do acto ou acção de um agente que tenha tido a intenção de lesar um direito ou interesse, pessoal ou real/patrimonial de outrem, para que surja o dever de reparação. É imprescindível o estabelecimento da entre o acto omissivo ou comissivo do agente e o dano de tal forma que o acto do agente seja considerado como causa do dano. Para que alguém fique constituído na obrigação de indemnizar é, pois, mister que tenha preenchido o condicionalismo, objectivo e subjectivo, que se deixou apontado. A jurisprudência dominante vai no sentido de que a imputação de um facto a um agente deve conter-se num plano de objectividade e, em nosso juízo, é a que deve ser assumida e acatada, por ser a que melhor se adequa, em nosso juízo, à doutrina da imputação (objectiva). [cfr. Miranda Barbosa, Ana Mafalda, in “Responsabilidade Civil Extracontratual – Novas Perspectivas em Matéria de Nexo de Causalidade” Princípia Editora, Cascais, 2014, pgs. 23 a 26. Quanto à necessidade de distinção entre imputação objectiva e relação causal (numa perspectiva jurídico-penal), veja-se Fernando Reglero Campos, in “Tratado de Responsabilidad Civil”, Tomo I, Parte General, Thomson-Arandazi, 2008, Cizur Menor (Navarra), pags. 730 e 731. de uma conduta a um agente. 2 Numa perspectiva mais actualista, Fernando Reglero Santos, in op. loc. cit. pags. 721 a 780, refere que para que uma conduta se possa imputar, ou ser causal de um evento danoso, “é suficiente que o prejuízo se haja produzido dentro de um determinado âmbito, o da aplicação da norma especial, para que seja imputável ao sujeito por ela designado, ou ainda que o tenha sido no seio de uma determinada actividade para que a imputação possa ser dirigida contra quem resulte ser o seu titular.” “A determinação de se uma conduta ou actividade se integra na etiologia do facto danoso não constitui tanto um fenómeno que possa ser ubicado dentro de certos critérios axiomáticos ou jurídico-dogmáticos, enquanto uma questão de direito que deva ser resolvida pelo juiz atendendo mais do que a elementos empíricos a critérios puramente subjectivos dirigidos, no caso concreto, à consecução de um resultado justo e equitativo.” (tradução nossa).] A lei consagra um direito de indemnização, autónomo, pela supressão (biológica) do bem jurídico constitucionalmente reconhecido que é vida de uma pessoa, mais concretamente, quando essa ablação (da vida) surge, não por razões da própria natureza humana, da ordem natural da vida, mas por uma acção, natural ou humana, que ocorre de forma inopinada no curso normal da vida de um individuo. [O dano da morte é não patrimonial (…). Segundo a formulação negativa (…) estão incluídas nesta categoria todos aqueles que não atingem bens materiais do sujeito passivo ou que, de qualquer modo, não alteram a sua natureza patrimonial. De entre os danos não patrimoniais são de destacar os resultantes de ofensas aos direitos de personalidade, das quais resultam normalmente sofrimentos físicos e morais (dor, emoção, vergonha, perturbação psíquica, etc.)” – Diogo Leite Campos, A Indemnização pelo Dano de Morte, Boletim da Faculdade de Coimbra, Vol. I, Coimbra 1974, 251] O assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Março de 1971, [[6]] resolveu de forma definitiva a questão que se debatia até aí sobre que tipo de dano a atribuir em caso de morte. (“I. A perda do direito à vida, por morte ocorrida em acidente de viação, é, em si mesma, passível de reparação pecuniária, sendo a obrigação pela acção ou omissão e que a morte é consequência. II. – O direito a essa reparação integra-se no património da vítima e, coma morte desta, mantêm-se e transmite-se.” – BMJ nº 205, pág. 150. [[6] A partir do mencionado assento ficou estabelecido que os danos (não patrimoniais) indemnizáveis eram: o dano da perda de vida; o dano sofrido pelos familiares da vítima; e o dano sofrido pelo lesado antes de morrer. 2 O acórdão dá nota de que ocorria uma oposição entre o decidido no assento citado e o acórdão de 12 de Fevereiro de 1969, que havia merecido anotação desfavorável do Professor Vaz Serra, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 103º, pág. 172] Após essa definição jurisprudencial, mostra-se unanimemente aceite que o dano de morte se constitui como um dano autonomamente indemnizável. [Cfr. Diogo Leite Campos, A indemnização do Dano da Morte, Almedina, Coimbra, 1980, pág. 24; A Indemnização pelo Dano de Morte, Boletim da Faculdade de Coimbra, Vol. I, Coimbra 1974, maxime págs. 261 a 297. “A defesa da personalidade jurídica exige uma apertada tutela do direito à vida. Esta tutela acarreta a obrigação de indemnizar pela sua lesão. O respectivo direito deverá ser, na ordem natural das coisas, adquirido pelo próprio lesado. E porque não mesmo depois da morte? É mais um caso em que a protecção a um direito de personalidade se prolonga para depois da morte, sem o que aquela perderia parte da sua consistência prática. Ficamos, pois, com dois instrumentos técnico-jurídicos de compreensão do fenómeno de aquisição pelo «de cujus» do direito à indemnização pela própria morte e respectiva transmissão «mortis causa».” – cfr. págs. 296-297.] Ainda que não seja objecto de dissidio argumentativo no recurso em apreciação, por razões didácticas abordar-se-á a questão do direito ao dano de morte enquanto dano que surge na esfera pessoal do decesso, transmitindo-se aos herdeiros, ou se é atribuído iure proprio aos herdeiros. “Esta questão foi, de há muito, e nem sempre do forma unânime, objecto de muito e aprofundado tratamento por parte da doutrina e da jurisprudência (v. Antunes Varela “Das Obrigações em Geral – 10ª edição – páginas 608 a 616) sendo interessante, dentro deste processo de tomada de decisão, referir que o reconhecimento da perda da vida como direito não patrimonial autónomo – indemnização pela supressão do bem vida - foi pela primeira vez efectuado na jurisprudência deste STJ pelo acórdão de 17/3/1971 (tomado em Plenário de Secções, nos termos do artigo 728º nº 3 CPC, na redacção então vigente, uma vez que por anterior acórdão – de 12/2/1969 – se perfilhou a tese de que a supressão do bem da vida não constitui dano cuja reparação se transmita aos herdeiros da vitima), defendendo-se ali que a perda do direito à vida é, em si mesma passível do indemnização e que o direito à reparação pecuniária se integra no património da vitima transmitindo-se mortis causa aos seus sucessores. A doutrina subjacente ao acórdão reconhece o direito à vida como um direito inato que respeita ao indivíduo pelo simples facto de ter personalidade e centrando o momento da violação do direito no início da acção vitimante (à semelhança do que ocorre no domínio do direito penal) faz incorporar o direito à indemnização pelo dano na esfera jurídica da própria vítima. Numa ligeira análise, que aqui afloramos por meras razões de curiosidade intelectual, a tese do acórdão parece, no quadro específico de protecção, pelo direito privado, do direito à vida aproximar-se das teses relativas à determinação dogmática da função de imperativo de tutela e da proibição da insuficiência do direito privado na tutela dos direitos fundamentais. Na tese dos recorrentes a garantia de protecção do Fundo abrangerá (também) a indemnização pelo dano morte da vítima, seu filho, uma vez que para efeitos indemnizatórios esse dano se traduz ou tem a natureza de um direito próprio (que radica na sua esfera jurídica por força do disposto no artigo 496º nº 2 CC) e não a natureza de um direito que lhes tenha advindo por serem herdeiros da vítima segundo a lei sucessória. A posição defendida pelos recorrentes encontra, numa primeira leitura e análise e conforme a apresentam, sustentação nos acórdãos deste STJ de 7/10/2003 (relator Conselheiro Afonso Correia – www.dgsi.pt) e de 10/2/1998 (CJ/STJ, 1998, 1º - 65) e de 18/9/2012 (relator Conselheiro Azevedo Ramos – www.dgsi.pt), nos quais se refere, acompanhando-se, entre outras, a posição defendida pelo Professor Antunes Varela, que a reparação do dano morte (ou supressão da vida) é tratada na nossa lei civil como um caso especial de indemnização atribuindo, nesta situação, os artigos 495º e 496º nº 2 CC um direito próprio à indemnização, abstraindo-se, assim (acrescenta) do recurso às regras sucessórias. Com todo o respeito por todas as opiniões em contrário, entendemos que as teses que na doutrina e na jurisprudência lêem o disposto no artigo 496º nº 2 no sentido de se consagrar, às pessoas ali indicadas, o direito à indemnização por supressão do direito à vida como um direito próprio e originário dessas mesmas pessoas se baseiam (reforçamos que no que exclusivamente respeita à indemnização por supressão do direito à vida e fundamentalmente na parte em que qualificam esse direito à indemnização como um direito originário das pessoas indicadas nessa disposição legal) numa interpretação demasiado restritiva do que ali se estatui com um fundamento que admitimos esteja suportado numa injustificada sobrevalorização do argumento literal, esquecendo possivelmente que ao tempo da entrada em vigor do Código ainda se não colocava (pelo menos na nossa jurisprudência) a questão da indemnização pela supressão do bem vida como dano não patrimonial autónomo, sendo desta realidade eloquente exemplo as posições contraditórias reflectidas nos acórdãos deste STJ, de 12 de Fevereiro de 1969 e de 17 de Março de 1971, e a discussão doutrinária gerada a partir das anotações do Professor Vaz Serra a esses dois acórdãos, publicadas nas RLJ nºs 103 e 105º. Não havendo hoje dúvidas que a violação por acto ilícito do direito à vida, entendida como privação desse direito gera um dano não patrimonial autónomo indemnizável, entendemos porém que tal direito nasce na esfera jurídica da própria vitima no preciso momento em que é praticado o acto ou verificada a omissão que tem como resultado a morte, venha esta a ocorrer imediatamente ou em momento cronologicamente posterior, não nos merecendo, neste preciso aspecto acordo a posição que já acima referimos, manifestada no voto de vencido do Conselheiro Arala Chaves (a cuja memória prestamos homenagem) ao acórdão deste STJ, de Março de 1971; com efeito ocorrendo a morte sempre e necessariamente num momento temporal distinto e posterior ao acto ou omissão causal (tal como ocorre no domínio do direito penal a sanção civil (indemnização por facto ilícito) castiga o acto causal servindo o resultado/consequência como elemento decisivo para a fixação do quantum indemnizatório) existe sempre um momento temporal – por ínfimo que seja – em que o direito à indemnização por violação do (seu) direito à vida incorporou a sua esfera jurídica. Sendo o direito à vida um direito inato na medida em que respeita ao individuo pelo simples facto de ele ter personalidade tal direito permanece sempre na esfera do próprio, razão esta que reforça a nossa posição no sentido que a violação desse direito fundamental, a supressão do direito à vida, ocorre na esfera jurídica do lesado transmitindo-se mortis causa o direito à indemnização. Como refere Galvão Telles, Direito das Sucessões, Lisboa, 1973, páginas 86/87, se um direito surge no momento da morte, no primeiro momento da inexistência de personalidade também nasce no ultimo momento de existência dessa personalidade, podendo portanto ser adquirido por quem falece. Acrescenta aquele ilustre Professor que para alguém adquirir um direito inter vivos não é necessário que sobreviva ao facto determinante da aquisição, bastando que exista quando este se dá. Diferente da tese de Galvão Telles, que acompanhamos na linha do que fica acima referido, mas conduzindo ao mesmo resultado prático, é a tese defendida por Diogo Leite de Campos (A Indemnização do Dano Morte – Coimbra, 1980) que, parecendo em nossa opinião ignorar a existência de momentos temporais distintos, defende a construção de uma teoria de aquisição do direito post mortem como ainda uma manifestação da personalidade jurídica do de cujus. Conduz tudo o que deixamos referido a que concluamos, na linha aliás da jurisprudência que fez vencimento no acórdão deste STJ de 17 de Março de 1971, que produzindo-se o dano na esfera jurídica da vítima (na esfera inata e intransmissível do seu direito à vida), o direito à indemnização pela supressão do direito à vida enquanto dano não patrimonial autónomo radica originariamente na esfera jurídica dessa mesma vítima. Colocado, assim, este primeiro aspecto da questão e concluindo em conformidade que o dano resultante ou consequente da supressão do direito à vitima e o consequente direito à indemnização (artigo 483º CC) integram originariamente a esfera jurídica do lesado, perguntar-se-á como se compatibiliza esta mesma conclusão com o disposto no artigo 496º nº 2. Com todo o respeito, reforçamos, pelas posições que vêm sendo assumidas em contrário na doutrina e na jurisprudência, entendemos que não existe qualquer espécie de incompatibilidade entre a posição subjacente à conclusão a que chegamos e o conteúdo daquele mencionado normativo. Sem entrarmos na questão controversa de saber se a transmissão (mortis causa) do direito ali prevista se opera por via sucessória ou por aquisição directa e originária das pessoas indicadas naquele nº 2 (esta questão e a sua solução não cabe no âmbito do recurso) consideramos claro que a razão de ser a justificação do ponto de vista teleológico do disposto naquela norma se limita ao estabelecimento de um regime de transmissão do direito à compensação por danos não patrimoniais e respectivo exercício, não encontrando qualquer suporte uma interpretação no sentido de que às pessoas ali mencionadas é ali conferido um direito passível de ser considerado originário (no sentido de ter nascido originariamente na sua esfera jurídica), sendo mesmo e em contrário de se sublinhar que se situa ali o momento da aquisição do direito (morte da vitima) e se refere que tal direito cabe em conjunto ás pessoas ali mencionadas e na falta destas às pessoas que ali seguidamente se mencionam, mostrando clara esta formulação que não há nessas pessoas um direito originário mas sim um direito adquirido por morte da vitima, ou seja mortis causa. Tendo por certo, na linha do que deixamos referido, que os AA enquanto pais da vitima, que era simultaneamente proprietário da viatura interveniente no acidente e incumpridor da obrigação legal de segurar, apenas poderiam obter a condenação do Fundo no pagamento da indemnização correspondente aos danos, no caso não patrimoniais, pessoalmente sofridos com a morte do filho (só relativamente a estes danos têm real e efectiva qualidade de terceiros) e assim necessariamente terá que ser afastada a possibilidade de reclamarem indemnização pelos danos sofridos na esfera jurídica da vitima como é o caso da indemnização pelo dano não patrimonial autónomo supressão da vida. No caso presente estamos perante uma situação em que apenas é possível o que no direito francês se designa por action personnele des victimes par ricochet na qual as vítimas, que o são em razão de uma proximidade familiar com o de cujus, exigem os seus prejuízos pessoais resultantes da morte (préjudices personneles induits par le décès).” [Cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Setembro de 2013, relatado pelo Conselheiro Mário Mendes e disponível em www.dgsi.pt.] A propósito, discorreu-se no acórdão proferido no processo n.º 585/05.0TASTR.E1.S1, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, e em que interviemos como adjunto que (sic): “(...) O legislador não fornece uma definição de danos não patrimoniais, mas indica os requisitos de ressarcibilidade deste tipo de dano, regula a legitimidade no caso de morte e os específicos critérios de avaliação do dano. Como refere Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, II volume, Indemnização dos Danos Corporais, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Edições Almedina, SA, Fevereiro, 2007, pronunciando-se sobre a indemnização do dano-morte e dos danos morais dos familiares:“Pondo de lado a velha polémica acerca da ressarcibilidade autónoma do dano-morte, mais concretamente, sobre a legitimação para a atribuição de uma indemnização correspondente à perda da vida, extrai-se do art. 496 o reconhecimento de que, em casos de morte, é reconhecido às categorias de familiares aí referidos, e pela ordem indicada, direito de indemnização envolvendo duas parcelas autónomas: - A indemnização pela perda da vida, como bem absoluto que, apesar de irrecuperável, deve ser compensado; - E a indemnização pelos danos morais que a morte de alguém é susceptível de provocar naqueles familiares”. Em nota de rodapé acrescenta: “Sem prejuízo ainda do direito de indemnização por danos morais suportados em vida pelo falecido (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil-Parte Geral, tomo III, pág. 139”. Afirma, de seguida: “Em qualquer dos casos não se encontram na lei positiva parâmetros objectivos para a sua quantificação, tendo o legislador remetido para os tribunais essa tarefa, com recurso às regras da equidade”. Em matéria de responsabilidade civil extra-contratual, a regra geral é a de que a indemnização cabe apenas ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado pela violação de disposição legal destinada a protegê-lo - artigo 483.º do Código Civil. Em princípio, titular do direito a indemnização é apenas o sujeito directa ou imediatamente lesado pelos danos resultantes da violação, o titular dos bens imediatamente afectados pelo facto danoso. O terceiro, que só reflexa ou indirectamente seja prejudicado com a violação do direito do lesado directo, está, em princípio, fora do círculo dos titulares do direito à indemnização. Excepcionalmente, a indemnização, no que se reporta aos danos patrimoniais, pode caber também (no caso de lesão corporal), ou apenas (no caso de morte) a terceiros, e no que tange a danos não patrimoniais, no caso de morte da vítima, apenas a terceiros, sendo o artigo 495.º, sob a epígrafe “Indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal”, n.º 3, regulando a “indemnização do dano da perda de alimentos”, para utilizar expressão do Professor Vaz Serra, e o artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, justamente, esses casos excepcionais. Como decorre do artigo 496.º a indemnização pelo dano morte é concedida conjuntamente e de forma sucessiva aos grupos de familiares ali indicados Há quem extraia da norma uma situação de litisconsórcio necessário activo, identificando outros uma regra de direito material que não impede uma actuação ut singuli. Dano da perda da vida Tem-se entendido doutrinária e jurisprudencialmente, maxime, após o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Março de 1971, processo n.º 33.142, tirado em reunião conjunta das então três Secções deste Supremo Tribunal, nos termos do n.º 3 do artigo 728.º do Código de Processo Civil, com 14 votos, incluindo 5 vencidos, constituindo o que o Professor João de Castro Mendes apelidava de “precedente persuasivo”, publicado no BMJ n.º 205, págs. 150 a 164, comentado na Revista dos Tribunais, Ano 90 (1972), n.º 1872, págs. 274 a 279 e na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 105.º (1972-1973), n.º 3469, págs. 53 a 63, aqui seguida, a págs. 63/4, de anotação concordante com a solução, por parte de Vaz Serra, “não obstante os cinco votos de vencido”, que, em caso de morte, do artigo 496.º, n.º s 2 e 3, do Código Civil, resultam três danos não patrimoniais indemnizáveis: - O dano pela perda do direito à vida; - O dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte; - O dano sofrido pela vítima antes de morrer, variando este em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima estava consciente ou em coma, se teve dores ou não, e qual a sua intensidade, se teve ou não consciência de que ia morrer. Passou assim a ser reconhecido na jurisprudência que o dano não patrimonial da perda da vida, em sentido estrito, isto é, a própria perda da vida em si mesma considerada, é autonomamente indemnizável (independentemente dos outros danos não patrimoniais que a vítima tenha padecido). No acórdão de 17 de Março de 1971 aceitou-se que a perda do direito à vida (na espécie, por morte ocorrida em acidente de viação), é, em si mesma, passível de reparação pecuniária e que o direito a essa reparação se integra no património da vítima e que por morte desta mantém-se e transmite-se aos seus herdeiros. Aí se pondera que “Não é a morte, em si, como resultado, que gera a obrigação; é, na fórmula do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, a acção ou omissão que virá ater como consequência a morte, através de todo o processo que a ela conduz, desde que essa acção ou omissão seja reconhecida como ilícita”. Contra, maxime, o acórdão de 12 de Fevereiro de 1969, proferido no processo n.º 32.873, publicado no BMJ n.º 184, pág. 156, cujo relator apôs um dos cinco votos de vencido naquele acórdão de 1971, de acordo com o qual o artigo 496.º não fundamenta o direito à indemnização no facto da supressão da vida, mas no sofrimento sofrido pelos titulares do direito à indemnização. O acórdão perfilhou a tese de que, em face do artigo 496.º, a «supressão do bem da vida» não conta como um dano cuja reparação se transmita aos herdeiros. O acórdão foi igualmente publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 103.º (1970-1971), n.º 3416, págs. 166 a 171, seguido de comentário desfavorável de Vaz Serra, a págs. 172 a 176. Ponto comum nos dois acórdãos é que, por força da conjugação do artigo 495.º, n.º 3 e do artigo 496.º, n.ºs 2 e 3, ambos aceitam, que, no caso de lesão ou agressão mortal, o agente é obrigado a indemnizar não só o dano patrimonial sofrido pelas pessoas com direito a exigir alimentos ao lesado ou por aquelas a quem este, de facto, os prestava em cumprimento de uma obrigação natural, mas também os danos não patrimoniais que tenham sofrido quer a própria vítima da lesão ou agressão, quer o seu cônjuge ou parentes mais próximos. A diferença está em que o acórdão de 1971 entende que a perda da vida, em si mesma considerada, constitui um dano cuja reparação confere aos herdeiros, por transmissão mortis causa, um direito a indemnização. Abordando as teses em confronto, Antunes Varela considerava que nenhuma das argumentações se mostrava convincente e nenhuma das soluções propostas se podia considerar inteiramente exacta (Das obrigações em geral, Almedina, volume I, 10.ª edição, 2000, pág.610). Conquanto o acórdão de 17 de Março de 1971 não fosse um Assento, veio provocar uma relativa uniformização das decisões sobre esta matéria. E assim, no mesmo sentido, pronunciaram-se os acórdãos de 7-03-1972, processo n.º 63.876, BMJ n.º 215, pág. 218; de 9-05-1972, processo n.º 63.896, BMJ n.º 217, pág. 86; de 22-12-1972, BMJ n.º 222, pág. 392 (pronunciando-se em caso de morte imediata não prevista no acórdão de 17-03-1971); de 16-03-1973, processo n.º 64.462, BMJ n.º 225, pág. 216 e anotado favoravelmente por Vaz Serra na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 107.º, págs. 137 a 143 (Este acórdão subscreve a tese de que a lesão do direito à vida obriga o responsável a indemnizar os danos a ela inerentes, integrando-se a reparação no património da vítima e transmitindo-se com a morte desta imediata ou não); de 16-01-1974, processo n.º 34090, in BMJ n.º 233, pág. 55 (neste caso versando crime de homicídio previsto e punido pelo artigo 59.º, alínea b), 2.ª, do Código da Estrada de 1954); de 23-01-1974, processo n.º 34.092, BMJ n.º 233, pág. 82 (como no anterior); de 16-04-1974, BMJ n.º 236, pág. 138; de 07-03-1975, BMJ n.º 245, pág. 486; de 15-12-1976, BMJ n.º 262, pág. 150 (onde se afirma: “A lesão do direito à vida é indemnizável, mesmo quando a morte seja imediata. Embora o direito à vida se extinga com a morte, não sendo transmissível como direito de personalidade que é, isso não impede que se transmita a indemnização pela ilícita supressão da vida”); de 17-05-1978, processo n.º 67045, in BMJ n.º 277, pág. 253 (citando os acórdãos de 23-01-1974 e de 15-12-1976, afirma que a perda do direito à vida por morte ocorrida em acidente de viação, é, em si mesma, passível de reparação pecuniária, transmitindo-se essa reparação aos sucessores da vítima) e de 15-01-1980, BMJ n.º 293, pág. 285. Com uma diferença quanto aos destinatários/beneficiários da compensação, pronunciou-se o acórdão de 13 de Novembro de 1974, publicado no BMJ n.º 241, pág. 204, em que se afirma que a perda do direito à vida é passível de reparação pecuniária, sendo a obrigação gerada pela acção ou omissão de que a morte resultou e que o direito a essa reparação transmite-se, com a morte da vítima, não aos seus herdeiros em geral, mas às pessoas indicadas no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil. Este acórdão foi publicado e anotado na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 109.º, Maio de 1976, n.º 3562, págs. 36 a 45, por Adriano Vaz Serra, que diz concordar com a primeira proposição, concordante com a do acórdão de 17-3-1971, e no mais termina, afirmando (após mudança expressa na Revista de Legislação e Jurisprudência Ano 107.º, pág. 143) que “o problema da transmissão do crédito de indemnização deve ser resolvido segundo a regra geral do artigo 2024.º do Código Civil, isto é, no sentido de tal crédito se transmitir aos herdeiros da vítima”. De igual forma se pronunciou o acórdão de 7-03-1975, proferido no processo n.º 65507, no BMJ n.º 245, pág. 486. A questão da titularidade activa do direito a indemnização do dano de perda de vida Aquisição por transmissão mortis causa Aquisição originária – direito próprio A este propósito destacam-se duas posições, defendendo uma a titularidade encabeçada na pessoa da vítima transmitida por via sucessória [aqui se distinguindo entre quem defenda que a transmissão sucessória opera para os herdeiros da vítima, entendendo outros que a transmissão do direito se faz para as pessoas mencionadas no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil] e outra, a configuração de um direito originário, nascido ex novo, na esfera jurídica das pessoas referidas no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, através, pois, de uma aquisição directa e originária. Vejamos as posições da doutrina. Defendendo a transmissão mortis causa para os herdeiros, desde logo Adriano Vaz Serra nas anotações supra referidas na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 103.º (págs. 172/6), Ano 105.º (págs. 63/4) e Ano 109.º (págs. 36/45) e já antes na mesma Revista, Ano 98.º, págs. 74 e 84, em anotação ao acórdão de 17-07-1964, e em Requisitos da responsabilidade civil, BMJ n.º 92, págs. 37 a 136, nota 79, na pág. 87 [Cfr. ainda BMJ n.º 83, pág. 106 e n.º 101, pág. 138]. Na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 105.º, pág. 63, começa por afirmar parecer-lhe exacta a observação, feita no acórdão, de que o direito à vida se extingue com a morte e de que, como direito da personalidade, não é transmissível, mas é transmissível o direito de indemnização do dano de supressão da vida. A págs. 64, refere: “O direito de indemnização dos danos não patrimoniais causados à vítima transmite-se, por morte desta, aos seus sucessores, que são os indicados no n.º 2 do artigo 496.º, os quais têm, assim, direito de indemnização desses danos (direito a eles transmitido) e direito de indemnização dos seus próprios danos”. (Sublinhado nosso). Acrescentava: “O que pode ser duvidoso é se, também no caso de morte imediata, instantânea, da vítima, esta adquire direito de indemnização e se, portanto, há um direito de indemnização dela que se transmita aos seus sucessores. Mas, na hipótese do acórdão, não foi esse o caso, conforme nele se refere”. [No que toca à definição dos beneficiários, houve uma alteração quanto às pessoas chamadas a suceder ao direito de indemnização referente à perda do direito à vida, o que, como se referiu, aconteceu com a anotação na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 107.º, pág. 140, pronunciando-se agora o Professor no sentido de essas pessoas serem os herdeiros, em geral, da vítima (art. 2024.º do Código Civil), e não apenas as indicadas no n.º 2 do artigo 496.º. Dessa alteração dá conta o acórdão de 13-11-1974, o que é “confirmado” pelo mesmo Professor na acima aludida anotação a este acórdão, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 109.º, págs. 44-5]. A Revista dos Tribunais, Ano 90 (1972), n.º 1872, págs. 274 a 279, em anotação ao acórdão de 17-3-1971, expressou concordância com a posição de Vaz Serra, maxime, a págs. 279, concluindo igualmente que, no caso de morte instantânea, a sucessão dos herdeiros da vítima do acidente de viação não foi aceita pelo novo Código. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões-Noções fundamentais, 4.ª edição, Coimbra Editora, Lda. 1980, ao abordar a “Transmissibilidade do direito de indemnização”, a págs. 75-6 [pág. 75 na edição de 1978], defende que, tais direitos de indemnização cabem primeiramente ao de cujus e depois transmitem-se sucessoriamente para os seus herdeiros legais ou testamentários. Isto porque, não obstante tratarem-se de direitos que surgem no momento da morte, eles nascem no último momento de existência da personalidade jurídica, verificando-se assim as condições necessárias para que se constitua a favor do lesado o direito à indemnização, podendo, por isso, ser adquirido por quem falece, ingressando na sua esfera jurídica. Defende o Autor que mesmo na hipótese extrema de morte imediata a vítima chega a adquirir direito a indemnização por danos não patrimoniais, direito que se transmite aos seus herdeiros. António Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1.ª edição 1980, Reimpressão, 1986, 2.º volume, págs. 291/2, pondera: “Em rigor, a morte duma pessoa pode causar desgosto a um número indeterminado de pessoas. O Código sentiu, então, a necessidade de delimitar, precisamente, quem sofreu danos, para efeitos de direito, sob pena de se perder qualquer indemnização útil, esvaída num sem fim de prejudicados. A tal delimitação procede o n.º 2 do artigo 496.º, que refere, em conjunto, o cônjuge não separado, os filhos e outros descendentes e, na falta deles, os pais e outros descentes [sic, em vez de ascendentes] surgindo, finalmente, os irmãos ou sobrinhos que os representem”. (…) A págs. 292/3, refere: “Nos termos gerais do fenómeno sucessório, as indemnizações a que tais danos dêem lugar transmitem-se aos sucessores do morto que podem coincidir ou não, com as pessoas referidas no n.º 2 do artigo 496.º. Quando haja coincidência, essas pessoas acumularão indemnizações: directamente, pelos danos por elas sofridos e a título de sucessão, pelos danos suportados pelo morto”. A págs. 293/4, face à questão de saber se, entre os danos sentidos pelo morto que se transmitem aos sucessores, na óptica da indemnização, se compreende a própria morte, conclui que a morte duma pessoa é, para esta, um dano que pode dar lugar a imputação. O destino da indemnização é, depois, questão de Direito das Sucessões. E acrescenta, de seguida: “A solução encontrada para o dano-morte, no último aspecto focado, é a que nos parece mais adequada, face aos problemas em causa, para além da sua justeza técnica. Efectivamente, o artigo 496.º, n.º 2, visa, apenas, delimitar os beneficiários iure proprio, de determinadas indemnizações por morte de pessoa próxima. É, contudo, um mapa rígido, que escapa, inclusive, à própria vontade do morto, o qual, por testamento, por exemplo, poderá querer indicar o beneficiário da indemnização pela sua morte. A consagração de uma indemnização ao próprio morto permite reforçar o dispositivo do artigo 496.º, n.º 2, tornando-o mais maleável e permitindo à vítima, nos esquemas do Direito das Sucessões, beneficiar quem entender”. O Autor repete estes pontos de vista em Tratado de Direito Civil, VIII, Direito das Obrigações, Almedina, 2014 (Reimpressão da 1.ª edição do Tomo III da Parte II de 2010), seguindo, a págs. 518 a 521, o texto com pequenas alterações de escrita, mas mantendo a referência a “e outros descendentes” a seguir a pais, em vez de “e outros ascendentes” – págs. 292 e 519 – pese embora a “Advertência” de fls. 5. Em suma, o Autor segue a orientação da transmissão da indemnização pelo dano da supressão do direito à vida do próprio lesado que segue, depois, por via hereditária, como clarifica a págs. 523, referindo depois pressões sobre os julgadores, o que constitui afirmação, com o devido respeito, descabida porquanto estas indemnizações não são equacionadas apenas em acidentes de viação, mas igualmente em crimes dolosos, sem intervenção de seguradoras (cfr. pág. 524). Dario Martins de Almeida (citado no acórdão de 17-03-1971), Manual de Acidentes de Viação, Livraria Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 1980, toma posição, a págs. 165/6, no sentido de que em caso de morte da vítima, têm direito a indemnização, por dano não patrimonial, resultante da lesão do direito à vida (e pelo dano não patrimonial sofrido pela própria vítima, quando caso disso), os sucessores jure hereditário (artigos 496.º, n.º 3 e 2014.º e 2025.º). Esta posição vai sendo repetida, como na pág. 168, onde se refere que para além da dor moral porventura sofrida pela própria vítima há o “dano não patrimonial emergente da lesão do seu direito à vida”. “A compensação pecuniária para estes danos não patrimoniais reveste-se de natureza patrimonial e transfere-se aos herdeiros da vítima”. Reconhecendo que o direito à vida é um direito pessoal inerente à personalidade, e como tal, obviamente, não transmissível, avança para a perspectiva de que coisa diferente é a violação ou lesão desse direito e a indemnização que venha a corresponder-lhe, a qual se reveste de natureza patrimonial, afastando a visão naturalística ou materialista da personalidade e do tempo more geométrico, numa escala de mais ou menos minutos ou segundos após a morte, defendendo que a aquisição do direito é automática. Seguindo-se à própria violação do direito, acabando por coincidir com ela, tal como a correspondente obrigação de indemnização está logo envolvida na consumação do facto danoso que é a perda daquele direito. Em Os danos causados pela morte e a sua indemnização, na obra colectiva Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume III, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 2007, págs. 133 a 137, abordando o dano da morte propriamente dito, para o falecido, afirma que para além de dever ser indemnizado, pode ser indemnizado. O titular do direito pode adquiri-lo em dois momentos: ou antes da sua morte, como indemnização de um dano futuro; ou, depois, da sua morte, em virtude do prolongamento da sua personalidade para diversos efeitos, um dos quais será este. Manuel de Oliveira Matos no Código da Estrada Anotado, 3.ª edição actualizada e ampliada, Livraria Almedina-Coimbra, 1979, págs. 371 a 375, versou o tema, ao comentar o artigo 496.º do Código Civil, maxime, na rubrica “Danos morais por morte. Legitimidade”, citando a págs. 373, do acórdão de 17-03-1971 a seguinte passagem: “Embora o direito à vida se extinga com a morte, não sendo transmissível como direito de personalidade que é, isso não impede que se transmita a indemnização pela ilícita supressão da vida”. E acrescenta, na pág. 373, penúltimo parágrafo, o seguinte trecho: “No entanto, Antunes Varela (Obrigações, 2. ª ed., I, pág. 148) entende que a perda do direito à vida não é passível de reparação pecuniária”, o que é repudiado pelo Autor citado, considerando uma imputação infundada, na pág. 614, nota 2, em Das Obrigações em geral, 2000. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª edição revista e actualizada, Almedina, Abril de 2008, em nota de rodapé, na pág. 602, afirma propender para a solução dada pelo acórdão de 17-03-1971, em contraponto com a constante do acórdão de 12-02-1969, ou seja, ser a perda da vida em si mesma passível de reparação pecuniária, como dano não patrimonial autónomo (o chamado dano da morte), transmitindo-se o respectivo direito de indemnização aos sucessores da vítima. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume I, 14.ª edição 2017, Almedina págs. 332 a 335 (na 8.ª edição, págs. 342/3), aderindo à tese da indemnizabilidade do dano morte, afirma: “A perda da vida constitui assim claramente um dano autónomo, cujo direito à indemnização se transmite aos herdeiros da vítima, com fundamento no art. 2014.º, e de acordo com as classes de sucessíveis referidas no art. 2133.º. Esta posição parece, aliás, hoje indiscutível, em face do que dispõe o art. 3.º, n.º 2, do D.L. 291/2007, de 21 de Agosto, para efeitos do qual “a morte integra o conceito de dano corporal”, referindo ainda o art. 2.º a) da Portaria 377/2008, de 26 de Maio, a violação do direito à vida entre os danos indemnizáveis em caso de morte, para além dos danos morais dela decorrentes”. E mais à frente – págs. 334/5 – “o dano-morte em sentido próprio gera um direito à indemnização que se transmite aos herdeiros da vítima. O art. 496.º, n.ºs 2 e 3, refere-se, por isso, a uma outra situação: aos danos não patrimoniais sofridos por outras pessoas, em consequência da morte da vítima”. No mesmo sentido Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, 2.ª edição, Lisboa, 2001, págs. 71 e segs. Considerando aquisição de direito próprio. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 3.ª edição, 1980, aborda o tema de págs. 503 a 511 [na 10.ª edição, Almedina, 2000, págs. 608 a 613], retirando da leitura do artigo 496.º, quer isoladamente considerada, quer analisada à luz dos respectivos trabalhos preparatórios duas conclusões importantíssimas, como explicita a págs. 507/8 [613]: “A primeira é que nenhum direito de indemnização se atribui, por via sucessória, aos herdeiros da vítima, como sucessores mortis causa pelos danos morais correspondentes à perda da vida, quando a morte da pessoa atingida tenha sido consequência imediata da lesão. A segunda é que, no caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem do disposto no n.º 2 do artigo 496.”. E mais à frente, na pág. 511 [págs. 616/7], refere: “Nos danos transmissíveis por via hereditária poderão ser incluídas as despesas feitas com o tratamento do agredido, bem como as dores físicas ou morais que a agressão lhe tenha causado; mas não o dano específico da perda da vida, desde que se não confundam os planos distintos em que actuam, no domínio da responsabilidade, o direito criminal e o direito civil. O facto de se atribuir como direito próprio às pessoas discriminadas no n.º 2 do artigo 496.º a faculdade de exigir a reparação por um dano relativo a um bem pertencente a outra pessoa nada tem de anómalo. Basta referir o que ocorre com a titularidade da indemnização pelos danos relativos a direitos de personalidade, tendo já falecido o titular destes (cfr. o art. 71.º). Também neste caso o direito à indemnização é conferido a pessoas diferentes do titular dos bens da personalidade atingidos; e é atribuído por direito próprio, visto se tratar de ofensas póstumas”. Deste Autor pode ver-se a anotação ao acórdão do STJ de 25-5-1985, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 123.º (1990-1991), n.ºs 3795-6-7-8, págs. 189 a 192, 251 a 256 e 278 a 281 (perda de feto). Pires de Lima e Antunes Varela no Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Lda., 1987, pág. 500, referem no ponto 4, que o direito cabe não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares, por direito próprio e nos termos e segundo a ordem do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil. No mesmo sentido José de Oliveira Ascensão, Direito das Sucessões, 1967, pág. 29 e 5.ª edição, 2000, págs. 243 e ss.. Pereira Coelho, Direito das Sucessões, II, Coimbra, 1974, abordando o “dano da privação da vida”, pág. 65, dizia: “o direito de indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima não se transmite iure hereditario às pessoas mencionadas no art. 496, n.º 2, mas pertence-lhes iure proprio como lhes pertence iure proprio o direito de indemnização dos danos não patrimoniais que a morte da vítima pessoalmente lhes causou. É este o modo como hoje nos inclinamos a ler a lei”. Da mesma forma na edição de 1992, (Composição e impressão João Abrantes, Taveiro, Coimbra), pág. 174, e enunciando interesse prático dessa interpretação na pág. 176 (se os familiares referidos no art.º 496.º n.º 2 adquirem iure proprio o direito de indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima, a respectiva indemnização não fará parte da herança e, portanto, não será responsável pelos encargos hereditários segundo o princípio geral do art. 2071.º), e mais à frente, a pág. 180, afirma: “O direito de indemnização do dano da privação da vida não chegou a existir, efectivamente, no património da vítima e esta não o transmite à sua morte; a lei, porém, atribui esse direito iure proprio aos familiares mencionados no art. 496.º, n.º 2, permitindo, no art. 496.º, n.º 3, 2.ª parte, que no pedido de indemnização formulado por esses familiares sejam atendidos os danos não patrimoniais sofridos pela vítima – em que se compreende o “dano da morte” –, ao lado dos danos por eles próprios pessoalmente sofridos”. Rabindranath Capelo de Sousa, em Lições de Direito das Sucessões, I, Coimbra Editora, Limitada, 1978/1980, págs. 276 a 288 [págs. 298 a 304 na 3.ª edição], versando a aquisição do direito de indemnização pelo dano da morte do «de cujus», traça a ideia de que o artigo 496.º, na sua versão definitiva, teve a intenção de afastar a natureza hereditária do direito à reparação pela perda da vida da vítima da lesão, e que a indemnização dos danos não patrimoniais por morte da vítima é de qualificar como um direito próprio e originário, que nasce na titularidade dos familiares designados por lei naquele n.º 2 do artigo 496.º (preceito integrado em capítulo de responsabilidade civil e não em direito sucessório), sendo o direito de indemnização atribuído directamente a tais pessoas, especialmente ligadas à vida do falecido, não respondendo pelos encargos da herança. Nuno Espinosa Gomes da Silva, Direito das sucessões, Lisboa, 1978, pág. 82, afirmando embora não ter o assunto suficientemente amadurecido, de maneira a pronunciar-se com um mínimo de convicção, adianta: “Assim, o n.º 2 do artigo teria a finalidade de marcar que, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe (é a própria expressão da lei) ao cônjuge e parentes, iure proprio, não se verificando qualquer transmissão hereditária”. Delfim Maya de Lucena, Danos não patrimoniais, com o subtítulo Danos não patrimoniais - O Dano da morte, Interpretação do artigo 496.º do Código Civil, em escrito de 14 de Novembro de 1980, com o qual o Autor se apresentou a concurso para Assistente Estagiário da Faculdade de Direito de Lisboa, conforme Nota Prévia de pág. 9 e pág. 72, publicado pela Livraria Almedina-Coimbra, 1985, ponto 7.3, pág. 66, inclina-se “a considerar que o direito à indemnização pelo «dano morte» é atribuído, ex-novo, às pessoas (familiares da vítima), mencionadas no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil”, expondo de seguida as várias razões que alicerçam esta posição. E mais à frente, indicando o sistema que julga estar consagrado no artigo 496.º do Código Civil, a págs. 69/70, afirma: “No n.º 2, ao afirmar-se que o direito à indemnização «por morte da vítima» cabe, em conjunto, a determinados familiares, está-se a declarar a indemnizabilidade autónoma do «dano-morte», pois só quanto a este é lógico afastar o normal regime sucessório e indicar um conjunto de pessoas com direito à indemnização, dado que, não sendo já possível atribuí-lo ao morto, não seria viável a sua transmissão «mortis causa» e, à míngua de titular, não podendo o direito ser accionado, frustrar-se-ia a intenção da lei de não deixar impune, de um ponto de vista patrimonial, a enorme lesão causada pelo autor da conduta ilícita, violadora do mais sagrado dos direitos: o direito à vida”. Maria Manuel Veloso, Danos não patrimoniais, na obra colectiva Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume III, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, Limitada, 2007, págs. 495 a 559, versando a legitimidade para pedir a compensação dos danos não patrimoniais por morte da vítima, expende a págs. 523/4: “De acordo com uma jurisprudência consolidada, os titulares do direito de indemnização em caso de morte da vítima (imediata) têm direito a obter compensação pelo sofrimento que padeceram, pelo sofrimento causado à vítima antes de morrer e pelo próprio dano da perda de vida. A escolha dos titulares atendeu não à ordem de sucessão, mas aos vínculos de afeição que se supõe existirem entre familiares. Fala-se a este propósito de uma presunção dos afectos, correspondendo a seriação dos titulares a uma “ordem decrescente de proximidade comunitária e afectiva”, na fórmula bene trovata de Capelo de Sousa”. Interpretação da expressão «em conjunto» do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil Em causa está a questão de saber se tal expressão tem um significado adjectivo, exigindo a figura do litisconsórcio necessário activo, ou não, isto é, se o preceito impossibilita a demandante de deduzir pedido de indemnização por danos não patrimoniais baseado no dano morte, isoladamente, desacompanhada do marido da mãe, ou ainda, independentemente da solução a dar ao problema, se não se estará face a caso de declaração de titularidade única quanto a tal direito por parte da demandante, por impossibilidade de exercício do direito por parte do arguido demandado. Seguiremos de perto o acórdão acórdão de 16-12-2010, no processo n.º 231/09.8JAFAR.E1. S1, proferido em caso de uxoricídio, em que a demandante era filha da falecida e do autor do homicídio qualificado. Em anotação ao acórdão de 14 de Julho de 1965, publicado no BMJ n.º 149, pág. 185, estando então em apreciação a norma do artigo 56.º, n.º 1, parte 3, último período, do Código da Estrada de 1954, o Professor Vaz Serra, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 99.º, pág. 56, dizia: «Quando a lei diz que o direito de indemnização pertence, «em conjunto», ao cônjuge e aos filhos, não quer dizer que a indemnização seja uma só, mas apenas que tanto o cônjuge como os filhos têm direito a indemnização, sem que aquele exclua estes ou estes excluam aquele». De acordo com o acórdão de 12 de Outubro de 1966, processo n.º 32 182, in BMJ n.º 160, pág. 182, versando caso de homicídio, p. e p. pelo artigo 59.º, última parte, do Código da Estrada de 1954, “A transmissão conjunta ao cônjuge e aos filhos do direito à indemnização estabelecida na parte final do n.º 1 do artigo 56.º do Código da Estrada (de 1954), significa que o cônjuge e os filhos têm igual direito a ser indemnizados, ao passo que as demais pessoas aí referidas têm um direito sucessivo, mas, no caso de economias separadas, cada um deve ser indemnizado de harmonia com os danos materiais e morais efectivamente sofridos. Interpretando a expressão em conjunto, constante então do último período do n.º 1 do citado artigo 56.º do Código da Estrada, após afirmar que o fim e o espírito do preceito não era que a indemnização devesse ser dividida em partes iguais pela viúva e pelos filhos, explicitava tal acórdão: “O que se pretende dizer é que o cônjuge e os filhos têm igual direito a ser indemnizados, ao passo que as demais pessoas que podem receber indemnização têm um direito sucessivo, em que as primeiras preterem as seguintes, e assim sucessivamente. Bem se compreende a regra que pretende colocar no mesmo grau o cônjuge e os filhos. Mas isso não implica que, no caso de economias separadas, as indemnizações não sejam divididas de acordo com os danos ou prejuízos efectivos. O que a lei pretende dizer é apenas que o pedido do cônjuge sobrevivo não afasta o direito dos filhos, e, inversamente, o pedido feito por estes não prejudica o do cônjuge. Isto, e mais nada!”. E concluía: “Por isso, se só a viúva sofreu, averiguadamente, prejuízos ou danos materiais e o filho, por viver em economia separada, só teve de suportar os danos morais resultantes da morte do pai, é manifesto que as indemnizações não podem ser iguais”. No dizer do acórdão de 12 de Fevereiro de 1971, proferido no processo n.º 63.321, publicado no BMJ n.º 204, pág. 149, e Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 105, págs. 37 a 42, versando caso de acidente simultaneamente de viação e de trabalho, em acção com processo especial ao abrigo do artigo 68.º do Código da Estrada de 1954, “A locução «em conjunto» significa apenas que o cônjuge sobrevivo e os filhos participam simultaneamente na titularidade do direito, ao passo que as demais pessoas que podem receber a indemnização têm um direito sucessivo em que as primeiras preterem as segundas, e assim sucessivamente. Isto é, o cônjuge e os filhos têm igual direito a ser ressarcidos, enquanto os mais têm um direito sucessivo”. E citando o acórdão de 12-10-1966, acrescenta “Mas, em certos casos, o quantum indemnizatório é dividido de acordo com os danos efectivos”. O Professor Adriano Vaz Serra, comentando a solução deste acórdão na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 105.º, n.º 3468, págs. 42/8, disse estar certo o afirmado. E adiantou então, na pág. 43: “O artigo 496.º, n.º 2, quando reconhece direito de indemnização, por danos não patrimoniais, ao cônjuge e aos descendentes, em conjunto, quer naturalmente dizer que, havendo cônjuge e descendentes, todos têm direito de indemnização, não sendo, portanto, o direito daquele excluído pelo destes, e vice-versa. Assim, desde que ao cônjuge e aos descendentes tenham sido causados danos não patrimoniais, e estes, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496.º, n.º 1), o responsável é obrigado a reparar tais danos, tanto os causados ao cônjuge como os causados aos descendentes. O dano de cada um dos titulares do direito à indemnização deve ser apreciado independentemente do dos outros, não podendo, por isso, considerar-se aceitável que só no caso de economias separadas cada um deva ser indemnizado de harmonia com os danos não patrimoniais efectivamente sofridos”. Manuel de Oliveira Matos, no Código da Estrada Anotado, 3.ª edição actualizada e ampliada, Livraria Almedina-Coimbra, 1979, pág. 373, refere: “A expressão «em conjunto», tal como na legislação anterior, não estabelece qualquer forma de parcelamento da indemnização, significando apenas que o cônjuge sobrevivo e os filhos participam simultaneamente na titularidade do direito, «ou têm igual direito a ser indemnizados, ao passo que as demais pessoas que podem receber a indemnização têm um direito sucessivo em que as primeiras preterem as segundas, e assim sucessivamente» (STJ, 12-10-66, BMJ, 160-188; 12-7-77, BMJ 269-123). Pires de Lima e Antunes Varela no Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Lda., 1987, pág. 501 referem: “7. O facto de a lei afirmar (no n.º 2) que a indemnização cabe, em conjunto, ao cônjuge e aos descendentes da vítima não significa que o tribunal não deva discriminar a parte que concretamente cabe a cada um dos beneficiários, de acordo com os danos por eles sofridos. Terem direito à indemnização em conjunto significa apenas que os descendentes não são chamados só na falta do cônjuge, como sucede com os beneficiários do 2.º e 3.º grupos indicados no n.º 2, para as quais vigora o princípio do chamamento sucessivo”. A Jurisprudência tem entendido, seguindo a orientação de Antunes Varela, expressa em Das Obrigações em geral, volume I, 6.ª edição, pág. 585 (e 9.ª edição, 1998, págs. 630 a 639) e na RLJ, Ano 123.º, pág. 191, e de Capelo de Sousa, em Lições de Direito das Sucessões, volume I, 3.ª edição, págs. 298 a 304, e a ideia de que o artigo 496.º, na sua versão definitiva, teve a intenção de afastar a natureza hereditária do direito à reparação pela perda da vida da vítima da lesão, que a indemnização dos danos não patrimoniais por morte da vítima é de qualificar como um direito próprio e originário, que nasce na titularidade dos familiares designados por lei naquele n.º 2 do artigo 496.º. Segundo o acórdão de 24-04-1997, recurso n.º 156/97, Secção Criminal, in CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 186, em caso de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal; o direito a indemnização pelo dano não patrimonial sofrido pela vítima com a perda da sua vida não se transmite por via sucessória, mas por direito próprio, como titulares originários do direito a indemnização, citando Antunes Varela na RLJ, Ano 123.º, pág. 191 e R. Capelo de Sousa em Lições de Direito das Sucessões, vol. I, pág. 287, em suma afirma a natureza originária e não por via sucessória do direito à indemnização pelo dano morte da vítima. A tese da aquisição iure proprio é acolhida, i. a., nos acórdãos do STJ de 07-10-2003, revista n.º 2692/03 da 6.ª Secção; de 21-01-2003, revista n.º 3671/02, da 1.ª Secção; de 16-06-2005, revista n.º 1612/05, da 7.ª Secção; de 24-05-2007, revista n.º 1359/07, da 7.ª Secção; de 29-01-2008, revista n.º 07B4397, da 2.ª Secção (Trata-se de um caso especial de indemnização, nos termos do artigo 496.º, n.º 2, do C. Civil, atribuindo-se a determinadas pessoas um direito próprio a serem reparadas e abstraindo-se de quaisquer regras sucessórias, revestindo aquela norma natureza excecional); de 5-02-2009, processo n.º 4093/08; de 17-12-2009, revista n.º 77/06.5TBAND.C1.S1, da 1.ª Secção (o direito à indemnização por supressão do direito à vida deve ser entendido como um direito próprio dos familiares do falecido e não como um direito da vítima que se transmite por via sucessória); de 22-06-2010, revista n.º 3013/05.2TBFAF.G1.S1, da 1.ª Secção (o direito à indemnização por morte da vítima consagrado no n.º 2 do artigo 496.º do CC cabe originariamente às pessoas nele indicadas, por direito próprio; desaparecido, pela produção do dano-morte, o sujeito do direito de personalidade violado, a quem pelos princípios gerais da responsabilidade civil caberia o direito à indemnização, a lei elege como titulares originários desta certos terceiros em atenção às suas relações familiares com a vítima, deferindo esse direito a indemnização «em termos hierarquizados, a grupos de pessoas, em conjunto, mas não simultânea ou indistintamente a todas as pessoas nelas indicada»); de 18-09-2012, revista n.º 973/09.8TBVIS.C1.S1, da 6.ª Secção (defende que “o problema da reparação, em caso de morte, é tratado como um caso especial de indemnização, nos arts. 495.º e 496.º, n.º 2, do CC, respectivamente, para os danos patrimoniais e não patrimoniais, atribuindo-se a determinadas pessoas um direito próprio de serem indemnizadas e abstraindo-se de quaisquer regras sucessórias). Extrai-se do acórdão de 30-04-2015, revista n.º 1380/13.3T2AVR.C1.S1, CJSTJ 2015, tomo 1, págs. 190/2 e Sumários Abril 2015, pág. 51, apud Código Civil Anotado, de Abílio Neto, Janeiro de 2016, 19.ª edição reelaborada, Ediforum, pág. 545: “No caso de morte da vítima a titularidade do direito à indemnização por dano não patrimonial pela perda da vida é atribuída ex lege aos familiares referidos no artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, afastando a lei a aplicabilidade do regime sucessório que decorreria de se considerar que o direito à indemnização pelo dano moral se integrou com a morte na esfera jurídica do de cujus.” Afastando-se da posição do acórdão de 24-09-2013, da 1.ª Secção, que considera que o direito de indemnização por danos não patrimoniais radica na esfera jurídica da vítima, seguindo a lição de Antunes Varela e a posição do acórdão de 18-09-2012, da 6.ª Secção, que igualmente cita, refere no ponto 15: “A lei, no artigo 496.º/2 do Código Civil, no que respeita ao dano morte ou dano de perda de vida, atribuindo-o aos familiares, exclui-o do regime sucessório, pois, não fora tal atribuição ex lege, sempre seria de contar que a morte origina um dano – porventura o maior que cada um de nós pode sofrer – que é o da extinção da própria vida”. E no ponto 16, adianta: “Resultando da essência das coisas que o ressarcimento do dano morte será necessariamente atribuído a terceiros, o que para a lei importou foi determinar quem da indemnização pode beneficiar e quem não pode. Daí o critério fixado no artigo 496.º/2 do Código Civil que, no que toca a esse dano, delimita os titulares”. O acórdão considerou que a indemnização pelos danos morais devia ser atribuída na totalidade à autora, progenitora do jovem de 19 anos, incluindo a parcela respeitante à perda do direito à vida, nada atribuindo ao pai, que abandonou o filho e foi inibido de exercer o poder paternal. No acórdão de 14-10-2016, no processo n.º 160/12.8GAPNI.C1.S1, da 3.ª Secção, estava em causa a interpretação do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, nomeadamente quanto a saber se o direito indemnizatório previsto neste artigo, decorrente da perda do direito à vida e dos danos não patrimoniais sofridos em consequência de tal perda, deve ser entendido como direta e originariamente adquirido pelas pessoas indicadas naquele n.º 2. No caso estava em apreciação pedido de indemnização por parte dos pais por perda da vida do filho e por dano desgosto, havendo cônjuge sobreviva. Pondera que “tendo até em conta o disposto no art. 9.º, n.º 3 do C. Civil, temos por certo que o legislador não só teve a intenção clara de afastar a natureza hereditária do direito a indemnização pela perda do direito à vida da vítima, como quis designar directamente, como titulares, por direito próprio, desse direito de indemnização os familiares da vítima taxativamente enunciados no n.º 2 do citado art. 496.º e segundo a ordem nele estabelecida, ou seja, distribuídos por três grupos hierarquizados: em primeiro lugar, o cônjuge e os descendentes; na falta destes, os pais ou outros ascendentes; por fim os irmãos ou sobrinhos com direito de representação”. Podemos, assim, concluir, com toda a segurança, que, havendo, no caso dos autos, cônjuge sobrevivo (no caso a recorrida/demandante civil, …), a quem cabe, na precedência legal, por aquisição originária, própria e directa, o direito à totalidade da indemnização pela perda da vida do seu marido, não podem os recorrentes, na qualidade de pais da vítima, reclamar esse direito, porquanto, de harmonia com o estabelecido no art. 496.º, n º 2 do C. Civil, estão os mesmos incluídos na segunda ordem de titularidade do direito. E o mesmo vale dizer quanto à reclamada atribuição de indemnização por danos não patrimoniais (desgosto profundo) sofridos directamente pelos recorrentes, na qualidade de pais da vítima, em consequência da perda do filho”. Consideram o direito a indemnização pelo dano-morte como transmissível iure hereditario os seguintes acórdãos. O acórdão de 24 de Setembro de 2013, proferido na revista n.º 294/07.0TBETZ.E2.S1, da 1.ª Secção, in CJSTJ 2013, tomo 3, pág. 55, afasta a possibilidade de os pais da vítima em acidente de viação reclamarem indemnização pelos danos sofridos na esfera jurídica da vítima seu filho, falecido no estado de solteiro, na vertente de indemnização pelo dano não patrimonial autónomo supressão da vida, os quais defendiam tratar-se de um direito próprio. Demarcando-se da jurisprudência maioritária, acompanhando a posição de Galvão Telles (se um direito surge no momento da morte, no primeiro momento da inexistência de personalidade também nasce no último momento de existência dessa personalidade, podendo portanto ser adquirido por quem falece) e a tese de Diogo Leite de Campos, (na medida em que defende a construção de uma teoria de aquisição do direito post mortem como ainda uma manifestação da personalidade jurídica do de cujus), convocando Einstein na Teoria da Gravidade Geral e a fixação pelo investigador da Universidade de Stanford, Francis Everitt, do menor dos intervalos de tempo no miliarcosegundo (correspondente ao tempo que se demora para percorrer uma distância equivalente à espessura de um cabelo), entende que o direito a tal indemnização nasce na esfera jurídica da própria vítima no preciso momento em que é praticado o acto ou verificada a omissão que tem como resultado a morte, venha esta a ocorrer imediatamente ou em momento cronologicamente anterior posterior, afastando-se da posição de Arala Chaves no acórdão de 17-03-1971 (considerando, em voto de vencido, “inadmissível” a tese consagrada por maioria no acórdão no sentido de “reconhecer o nascimento do direito com o facto jurídico de que deriva, para o pretenso titular, a incapacidade para o adquirir”). Conclui na linha da jurisprudência que fez vencimento no acórdão de 17 de Março de 1971, que produzindo-se o dano na esfera jurídica da vítima (na esfera inata e intransmissível do seu direito à vida), o direito à indemnização pela supressão do direito à vida enquanto dano não patrimonial autónomo radica originariamente na esfera jurídica dessa mesma vítima. No caso, a vítima havia incumprido a obrigação de segurar imposta pela sua qualidade de proprietário do veículo causador do acidente, não beneficiando da normal garantia assegurada pelo Fundo de Garantia Automóvel (FGA), e daí que os pais não pudessem exigir do FGA qualquer indemnização por danos patrimoniais ou não patrimoniais sofridos na esfera jurídica da vítima, indemnização a que teriam direito por eventual direito por transmissão mortis causa, podendo ter direito a indemnização pelos danos próprios sofridos enquanto terceiros, pessoalmente sofridos com a morte do filho (dano por ricochete), sendo afastada a possibilidade de reclamarem indemnização pelos danos sofridos na esfera jurídica do vítima, como é o caso da indemnização pelo dano não patrimonial autónomo supressão da vida. No acórdão de 23 de Março de 1995, recurso n.º 44.009, Secção Criminal, in CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 230, na ausência de cônjuge sobrevivo, descendentes e ascendentes do falecido, estavam presentes irmão e sobrinhos por direito de representação, defende claramente a tese da concepção da indemnização como direito próprio, originário, directamente atribuído ao cônjuge e aos parentes mais próximos, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima. No mesmo sentido, e do mesmo relator, o acórdão de 15 de Abril de 1997, Revista n.º 208/97 - 1.ª Secção, BMJ n.º 466, pág. 450 e CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 42, em acção proposta contra o Estado por acidente nas águas da praia de Salvaterra de Magos, que vitimou o filho do demandante, intervindo mais tarde a Mãe. “Por morte da vítima o direito à indemnização por danos não patrimoniais não envolve um problema de legitimidade ou de litisconsórcio necessário e assim é de deferir o requerido incidente de intervenção principal espontânea. No acórdão discute-se se a expressão “em conjunto” tem um sentido adjectivo (exigindo a figura do litisconsórcio necessário activo) ou não. Começa por reportar o acórdão de 12-2-1971, BMJ n.º 204, pág. 149, anotado favoravelmente por Vaz Serra na RLJ 105/42-8, onde se pode ler: «Peticionar a indemnização pelo dano da morte pode ser feita por qualquer um dos titulares do direito. (Pág. 43, 2.ª coluna, in fine). Questão diversa desta (que tem natureza processual) é a da sua valoração (esta sim de natureza substantiva) e esta depende de prova. p 44. A expressão “em conjunto” tem o sentido de afastar as regras sucessórias e estabelecer norma específica, dizendo que se procede a uma atribuição e a uma repartição conjunta. Não há litisconsórcio necessário nem conveniente (C.P.Civil/28). A esta mesma conclusão se deve chegar se se adoptar a tese de Vaz Serra (que considerava que o art. 496.º n.º 2 C. Civil afastou a regra do art. 2024 C. Civil)”. O que o artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil diz, e pela doutrina e jurisprudência é atendido, é que há chamados sucessivos, preterindo o cônjuge sobrevivo e os filhos os outros parentes. A interpretação da expressão em conjunto não pode ser a de que a mesma quis ter um significado adjectivo, processual (…) mas apenas um substantivo e esse vem indicado no n.º 7 da anotação ao artigo 496.º do Código civil Anotado, de A. Varela e P. Lima I, pág. 501. O dano de cada um dos titulares do direito à indemnização deve ser apreciado independentemente do dos outros. Há direito a ser atribuída indemnização. Importa estimá-la, valorá-la, mas isso nada tem que ver com a interpretação da expressão “em conjunto” nem com a figura do litisconsórcio necessário (p. 44, 2.ª coluna). No mesmo sentido, e ainda do mesmo relator, partindo igualmente da tese do direito próprio e originário à indemnização por parte das pessoas indicadas no preceito, pronunciaram-se os acórdãos de 11-11-1997, proferido no processo n.º 716/97, e de 16-05-2000, na revista n.º 392/00 – a expressão «em conjunto» do artigo 496.º, n.º 2, do CC, não tem significado adjectivo, processual - não há litisconsórcio necessário nem conveniente. O acórdão de 14 de Outubro de 1997, recurso n.º 225 – 2.ª Secção, in CJSTJ 1997, tomo 3, págs. 61-65, versando acidente de viação mortal, na sequência de colisão não culposa de veículos, afastando no caso o direito a indemnização do consorte marital, quanto a alimentos, na vertente que ora importa (necessidade ou não de habilitação), afirma: «Não obstante se não encontrarem na acção todas as pessoas com direito a indemnização a que alude o artigo 496.º, n.º 2, do CC, tal não obsta a que o Tribunal fixe, desde logo, a quota indemnizatória dos presentes». «É que, apesar da lei, no artigo 496.º, n.º 2, usar a expressão “em conjunto”, tal não quer dizer que “o tribunal não deva descriminar a parte que concretamente cabe a cada um dos beneficiários, de acordo com os danos sofridos”, já que “terem direito à indemnização em conjunto” significa que os descendentes não são chamados só na falta do cônjuge, como sucede com os beneficiários do 2.º e 3.º grupos indicados no mesmo n.º 2 para os quais vigora o princípio do chamamento sucessivo (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, 1, 4.ª edição, 1987, pág. 501)». E no acórdão de 16 de Março de 1999, processo n.º 22/99, da 2.ª Secção, in BMJ n.º 485, pág. 386, versando caso em que estava em discussão saber se o neto do sinistrado falecido tem legitimidade ad causam para peticionar indemnização por danos não patrimoniais, tendo o avô deixado cônjuge e filhos, a quem competiria a exercitação prioritária desse direito, afirma-se: “O direito à indemnização caberá em conjunto, não ao cônjuge, aos filhos «e» outros descendentes, mas sim ao cônjuge e aos filhos e também (ou) a outros descendentes que eventualmente hajam sucedido a algum desses filhos pré - falecidos por direito de representação”. O acórdão de 16 de Janeiro de 2002, proferido no processo n.º 3011/01, da 3.ª Secção, in CJSTJ 2002, tomo 1, págs. 165/6, em caso de homicídio qualificado, apreciando a legitimidade da demandante, neta da vítima, relativamente ao segmento da indemnização pelos danos não patrimoniais produzidos à vítima antes de ocorrer a morte desta, que foi negada na 1.ª instância, com fundamento na preterição de litisconsórcio necessário/legal activo, resultante de ter deduzido o pedido desacompanhada do outro sucessor da vítima, irmão da demandante, começa por afirmar: “Segundo a doutrina e a jurisprudência hoje dominantes, toda a indemnização por danos morais prevista no artigo 496.º, n.º 2, do CC, cabe, não aos herdeiros da vítima, por via sucessória, mas, por direito próprio, em conjunto, aos familiares aí indicados. E cabe-lhes em conjunto, na expressão desse preceito. Também conforme entendimento uniforme, que perfilhamos, essa expressão não significa a exigência legal de um litisconsórcio necessário activo para o peticionamento da indemnização por aqueles danos. Tem apenas o sentido de que, relativamente à primeira linha de beneficiários - cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e filhos e outros descendentes - todos são chamados conjuntamente, sem aplicação do princípio do chamamento sucessivo, a vigorar só relativamente aos beneficiários do 2.º e 3.º grupos. Não havendo um limite legal do quantitativo indemnizatório global e sendo possível a individualizada determinação da indemnização a que tem direito cada um dos beneficiários (com recurso à disposição do n.º 3 do art. 496.º do CC), a decisão que conheça só da parte da indemnização que cabe à beneficiária peticionante produzirá o seu efeito útil normal, porque regulará definitivamente a situação entre peticionante e peticionada, verificando-se, pois, uma situação de litisconsórcio voluntário”, concluindo pela não verificação da declarada ilegitimidade da peticionante, não sendo caso de absolvição da instância, mas antes de conhecer do pedido. O acórdão de 17-12-2016, processo n.º 366/13.2TNLSB.L1.S1, da 2.ª Secção, dizendo prevalecer na jurisprudência deste Supremo Tribunal a tese que nega o litisconsórcio necessário activo (Acs. de 15-04-97 na CJSTJ tomo II, pág. 42, de 23-3-95, na CJSTJ, tomo I, pág. 230 e de 16-01-2002), afirma: “O preceituado no n.º 2 do art. 496.º do CC não representa uma situação de litisconsórcio necessário activo, antes constitui uma norma que atribui a indemnização, de forma escalonada, a um conjunto de interessados, de acordo com o grau de parentesco considerado relevante. Abstraindo da natureza jurídica da indemnização pela perda da vida, como direito próprio da vítima que se transmite para os familiares identificados ou como direito que se constitui directamente na esfera dos familiares em consequência da morte, o legislador assumiu naquele preceito, de forma autónoma e fora do quadro do direito sucessório, uma determinada regra atributiva e distributiva da indemnização. Ora, tal não colide com a possibilidade de ser reclamada por cada um dos sujeitos a quota-parte da indemnização que lhe caiba, matéria que se integra no mérito da pretensão e que não colide com a legitimidade activa. (…) Com esta clarificação, para além de não estarmos perante uma situação de preterição de litisconsórcio necessário activo, o facto de o A. peticionar a indemnização pelo direito à vida do seu pai sem estar acompanhado da mulher da vítima e mãe do A. não se reconduz a uma situação de ilegitimidade processual, antes a uma questão de mérito que será decidida oportunamente consoante as regras do art. 496.º do CC” Noutra perspectiva, segundo o acórdão de 9-05-1996, recurso cível n.º 88.357, in CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 58, e BMJ n.º 457, pág. 275, versando caso de morte em acidente de viação, refere-se a direito próprio, na titularidade das pessoas indicadas no artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil e que não é uma questão de legitimidade processual saber quem são os titulares do direito de receber a indemnização por danos não patrimoniais, por morte da vítima. Em sentido adverso, pronunciando-se diferentemente destas posições, podem ver-se dois acórdãos das Secções Criminais: Acórdão de 23-10-1997, processo n.º 715/96 - 3. ª Secção, cujo sumário é: «O art. 496.º, n.º 2, do CC, ao referir que o direito a indemnização é atribuído, em conjunto, a determinadas categorias de pessoas, tem desde sempre sido interpretado no sentido de que esse “em conjunto”, corresponde a uma exigência de um litisconsórcio necessário, por ser isso o que o art.º 28, do CPC, determina. Tal expressão utilizada pela lei, não quer assim referir-se à existência de uma obrigação conjunta, mas sim a uma situação em que os direitos dos diversos interessados têm de ser exercidos “em conjunto”, isto é, por todos simultaneamente, o que é a característica das obrigações solidárias». No mesmo registo, o acórdão de 05-02-2009, proferido no processo n.º 3181/08, da 5.ª Secção, em caso de transporte de passageiro na caixa de carga de veículo de mercadorias, onde se afirma que «Conforme é jurisprudência pacífica, a expressão «em conjunto» do n.º 2 do artigo 496.º do CC significa que os herdeiros participam simultaneamente na titularidade do direito, pelo que devem propor a acção em litisconsórcio necessário activo». O dano de morte constitui-se, pois, como um direito autónomo que se transmite por via sucessória aos herdeiros da vítima. Ainda que se nos afigurem com pertinência algumas das objecções que se mostram levantadas numa tese de mestrado 1 a propósito da tese de que o dano de morte não pode ser configurado como um dano autónomo e não seja descartável e desprezível a argumentação aí adiantada para conferir o dano de morte de iure proprio aos familiares da vítima, o facto é que, por razões que não caberão numa decisão judicial, mantemos a posição de que o dano de morte se constitui como um dano indemnizável autonomamente e que se radica na esfera do de cujus transmitindo-se por via sucessória aos herdeiros referidos no nº 2 do artigo 496º do Código Civil. 2 [1 Cfr. Andreia Marisa Rodrigues, Análise jurisprudencial da Reparação do Dano de Morte – Impacto do Regime da Proposta Razoável de Indemnização, Abril de 2014 (Sob a orientação da ora Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo). 2 Cfr. no sentido de que se trata de um direito iure proprio, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão de 16-06-2005, proferido no Processo nº 1612/05, relatado pelo Conselheiro Neves Ribeiro “o direito à indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima, antes de falecer, e o dano decorrente da sua perda do direito à vida, ambos em consequência de acidente de viação, cabe, em conjunto, e pela precedência indicada no art. 496,2 do CC, às pessoas que, também nesta disposição, se mencionam. Mas não se trata de um direito sucessório relativo a danos provocados por lesão da personalidade do falecido, não revestindo um chamamento à titularidade das suas relações jurídicas patrimoniais, e consequente devolução dos bens que lhe pertenciam, segundo o art. 2024º do CC, não havendo assim, por conseguinte, lugar à repartição da indemnização, como se uma herança se tratasse”; e o acórdão deste mesmo Tribunal de 24-05-2007, Processo nº 1359/07, relatado pelo Conselheiro Alberto Sobrinho, em que se doutrina que: “a indemnização pela perda do direito à vida cabe, não aos herdeiros da vítima por via sucessória, mas aos familiares referidos e segundo a ordem estabelecida no n.º 2 do art. 496º do CC, por direito próprio. Ao lado do dano morte e dele diferente, há o dano sofrido pela própria vítima no período que mediou entre o momento do acidente e a sua morte; o dano vivido pela vítima antes da sua morte é passível de indemnização, estando englobado nos danos não patrimoniais sofridos pela vítima a que se refere o n.º 3 do mencionado art. 496º; estes danos nascem ainda na titularidade da vítima; mas, como expressivamente refere a lei, também o direito compensatório por estes danos cabe a certas pessoas ligadas por relações familiares ao falecido; há aqui uma transmissão de direitos daquela personalidade falecida, mas não um chamamento à titularidade dos bens patrimoniais que lhe pertenciam, segundo as regras da sucessão; quis-se chamar essas pessoas, por direito próprio, a receberem a indemnização pelos danos não patrimoniais causados à vítima de lesão mortal e que a ela seria devida se viva fosse. Do teor literal do n.º 2 do art. 496º do CC, decorre que esse direito de indemnização cabe, em simultaneidade, ao cônjuge e aos filhos e, representativamente, a outros descendentes que hajam sucedido a algum filho pré-falecido (…).”] Na aferição do quantum a atribuir pelo dano de morte deve atender-se, na esteira do sumariado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Dezembro de 2009, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça, que (sic): “II - A indemnização deve ter carácter geral e actual, abarcar todos os danos, patrimoniais e não patrimoniais, mas quanto a estes apenas os que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito e, quanto àqueles, incluem-se os presentes e futuros, mas quanto aos futuros só os previsíveis (arts. 562.º a 564.º e 569.º do CC). III - A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor – art. 566.º, n.ºs 1 e 2, do CC. IV - Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. V - A Portaria 377/2008, de 26-05, contém «critérios para os procedimentos de proposta razoável, em particular quanto à valorização do dano corporal» (cf. o respectivo preâmbulo). Tem um âmbito institucional específico de aplicação, extrajudicial, e, por outro lado, pela sua natureza, não revoga nem derroga lei ou decreto-lei, situando-se em hierarquia inferior, pelo que o critério legal necessário e fundamental, em termos judiciais, é o definido pelo CC. VI - Na indemnização pelo dano não patrimonial o pretium doloris deve ser fixado por recurso a critérios de equidade, de modo a proporcionar ao lesado momentos de prazer que, de algum modo, contribuam para atenuar a dor sofrida – Ac. deste STJ de 07-11-2006, Proc. n.º 3349/06 - 1.ª. VII - Equidade não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim um critério para a correcção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto. VIII - Para que o dano não patrimonial mereça a tutela do direito tem de ser grave, devendo essa gravidade avaliar-se por critérios objectivos e não de harmonia com percepções subjectivas ou da sensibilidade danosa particularmente sentida pelo lesado, de forma a concluir-se que a gravidade do dano justifica, de harmonia com o direito, a concessão de indemnização compensatória. IX - Estando em causa a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais, necessariamente com apelo a um julgamento segundo a equidade, o tribunal de recurso deve limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, «as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida» – cf. Ac. do STJ de 17-06-2004, Proc. n.º 2364/04 - 5.ª. X - À míngua de outro critério legal, na determinação do quantum compensatório pela perda do direito à vida importa ter em linha de conta, por um lado, a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais. E, por outro, conforme os casos, a vontade e a alegria de viver da vítima, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, designadamente a sua situação profissional e socioeconómica. XI - A indemnização devida pelo dano morte é transmissível, bem como, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais, que cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem – art. 496.º, n.º 2, do CC –, sendo ainda indemnizáveis, por direito próprio, os danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas referidas no preceito, familiares da vítima, decorrentes do sofrimento e desgosto que essa morte lhes causou (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7.ª ed., pág. 604 e ss.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., pág. 500; Pereira Coelho, Direito das Sucessões, e Ac. do STJ de 17-03-1971, BMJ 205.º/150; Leite de Campos, A Indemnização do Dano da Morte, Boletim da Faculdade de Direito, vol. 50, pág. 247; e Galvão Telles, Direito das Sucessões, pág. 88 e ss.).” [Disponível em www.dgsi.pt] Têm, pelos argumentos expendidos e cm base na factualidade adquirida, os herdeiros da vítima – filhos – direito a ser indemnizados pelo dano de morte. O dano não patrimonial reporta-se à depreciação e abatimento das condições psicológicas e subjectivas da pessoa humana, por virtude de factores externos susceptíveis de afectar um estado subjectivo liberto de constrangimentos, preocupações e alterações das condições de vida que normalmente o afectado conduz. Representa, assim, uma ofensa objectiva de bens que repercutem uma mazela no conspecto subjectivo da pessoa afectada, traduzindo-se em estados de sofrimentos, de natureza espiritual e/ou física. Esta incidência negativa e malsã na vivência e estabilidade psíquica e/ou física do ser humano, não sendo mensurável no plano patrimonial, deve, na medida em que afecta a personalidade do individuo, na sua dimensão espiritual e/ou física, ser passível de indemnização pecuniária. Não para reparar um dano quantificável, mas compensar ou satisfazer em bens materiais males infligidos pela acção imputável ao lesante. Esta satisfação, não possui, pois, a dimensão de uma verdadeira indemnização, no sentido de um equivalente do dano, ou seja, um montante que deva ser quantificado, por equivalente aquele que haja sido o prejuízo (quantificado) pelo lesado. Vale por dizer, pelo equivalente a um valor que reponha as coisas no estado anterior à lesão. Pretende-se, outrossim, como já se deixou dito supra, atribuir ao lesado uma compensação pelas alterações da estabilidade emocional, psicológica e espiritual do lesado. Constitui jurisprudência firme e doutrina inconcussa que apenas são passiveis de ressarcimento ou compensação os aleijões morais ou espirituais-sentimentais que pela sua relevância, pertinência e repercussão na vida do lesado se tornem, espelhem e projectem num estado de ânimo depreciativo de um viver salutar e conforme a um padrão de vida ausente de compressão e angústia intelectual. [Cfr. por todos Antunes Varela, Das obrigações em Geral, Coimbra, 1989, Vol. I, ps. 572-578. “A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em conta as circunstâncias do caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.” (p. 576). 2 (“Os danos não patrimoniais podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral, provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, podendo concretizar-se, por exemplo, em dores físicas, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais, vexames, sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má imagem perante outrem, estados de angústia, etc.... A avaliação da sua gravidade tem de aferir-se segundo um padrão objectivo, e não á luz de factores subjectivos (A. VARELA, “Obrigações em Geral”, I, 9ª ed., 628), sendo, nessa linha, orientação consolidada na jurisprudência, “com algum apoio na lei”, que as simples contrariedades ou incómodos apresentam “um nível de gravidade objectiva insuficiente para os efeitos do n.º 1 do art. 496º” (ac. STJ, 11/5/98, Proc. 98A1262 ITIJ).] Como vem sendo entendido, dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excepcional”, mas também aquele que “sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação” – ac. de 5/6/79, CJ IV-3-892.” [Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Maio de 2007, relatado pelo Conselheiro Alves Velho, no Processo nº 07ª1187. Vejam-se ainda a título meramente exemplificativo os acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 04-03-2004, relatado pelo Conselheiro Moitinho de Almeida e de 9-10-2004, relatado pelo Conselheiro Nuno Cameira, no Processo 2897/2004.] Na atribuição da indemnização, deverá atender-se à gravidade dos efeitos da acção desvalorativa do lesante, pois só a afectação grave e desproporcionada do estado emocional, psicológico e /ou físico do lesado é passível de obter um grau de valoração ético-jurídica reconhecida pela ordem jurídica e por ela tutelada e protegida. No montante a atribuir, o tribunal deverá usar de critérios de equidade, como factores de ponderação e de equação socialmente relevantes, fazendo intervir os elementos ético-socialmente censuráveis e reprováveis inerentes ao desvalor das acções lesivas. Haverá, assim, que atender, na atribuição do quantitativo pecuniário compensatório ao grau de culpabilidade do lesante, ao modo como a acção lesiva foi consumada e/ou reiterada, aos efeitos e consequências que essa acção provocou no lesado e nas perturbações/alterações que provocaram na vivência e nos estados psicológicos, emotivos e/ou físico do lesado. Os danos morais ou não patrimoniais, insusceptíveis de avaliação pecuniária, visam proporcionar ao lesado uma compensação que lhe proporcione algumas satisfações decorrentes da utilização de uma soma pecuniária (compensatória) [Segundo Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, 9ª ed., Vol. I, pág. 630, tal indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.]. A obrigação de indemnização neste âmbito decorre do disposto no art. 496.º, nº 1 do Código Civil que estabelece que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, e o critério da sua fixação é a equidade (nº 3, do mesmo artigo, devendo ser “proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida” [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. I, pág. 501.]. Como escreveu Vaz Serra, “a satisfação ou compensação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, visto não ser um equivalente do dano, um valor que reponha as coisas no estado anterior à lesão, tratando-se antes de atribuir ao lesado uma satisfação ou compensação do dano, que não é susceptível de equivalente. É, assim, razoável, que no seu cálculo, se tenham em atenção, além da natureza e intensidade do dano causado, as outras circunstâncias do caso concreto que a equidade aconselhe sejam tomadas em consideração e, em especial, a situação patrimonial das partes e o grau de culpa do lesante” [Na RLJ, Ano 113º, pág. 104.]. Tal compensação deverá, então, ser significativa e não meramente simbólica. A prática deste Supremo Tribunal vem cada vez mais acentuando a ideia de que está ultrapassada a época das indemnizações simbólicas ou miserabilistas para compensar danos não patrimoniais. Importa, no entanto, vincar que indemnização significativa não quer dizer indemnização arbitrária. O juiz deve procurar um justo grau de “compensação”. Tem vindo a ser advogado em diversos arestos deste Supremo Tribunal que a intervenção deste alto Tribunal só deverá ocorrer quando os montantes fixados se revelem em notória colisão com os critérios jurisprudenciais que vêm sendo adoptados. Como se afirma no Acórdão deste Supremo de 7/10/10, Proc. nº 457/07.9TCGMR.G1.S1, disponível no IGFEJ, “Assentando o cálculo da indemnização destinada a compensar o lesado por danos não patrimoniais essencialmente num juízo de equidade, ao Supremo não compete a determinação exacta do valor a arbitrar, já que a aplicação da equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se move o referido juízo equitativo a formular pelas instâncias face à individualidade do caso concreto «sub juditio” [Cfr. no mesmo sentido, os Acs. de 5/11/09, Proc. nº nº 381-2002-S1, 16/12/10, Proc. nº 270/06.0TBLSD.P1.S, e de 20/10/11, Proc. nº 428/07.5TBFAF.G1. S1, no IGFEJ.]. Ainda, como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 17/04/12, Proc. nº 4797/07.9TVLSB.L2.S1, disponível no IGFEJ, “(...) não podem ser postergados, como critério de valoração, os referidos valores de igualdade de tratamento e de segurança jurídica, transpondo, na medida do possível, os indicadores fornecidos pelas situações mais próximas conhecidas. É, de resto, a este nível que colhe justificação a intervenção do STJ, como Tribunal de revista, pois que como já se escreveu nos acórdãos de 28/10/2010 e de 05/11/2009 (proc. 272/06.7TBMTR.P1.S1 e 381-2009.S1), respectivamente, “quando o cálculo da indemnização haja assentado decisivamente em juízos de equidade, ao Supremo não compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar em função da ponderação das circunstâncias concretas do caso, - já que a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», - mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação da individualidade do caso concreto «sub juditio»”, sendo que esse “juízo de equidade das instâncias, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos - deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade“. Escrutinados os pressupostos em que embasa a obrigação de indemnizar e os titulares do direito à indemnização pelo dano de morte e danos não patrimoniais, assoma a urgência de os quadrar cm a factualidade adquirida e verificar se, com a acção ilícita e culposa que levou a cabo, o arguido se constituiu na obrigação de indemnizar aqueles que reclamam o direito correspondente. Seguimos a orientação jurisprudencial que propugna pela não intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no escrutínio/sindicância dos concretos factos que balizaram o critério de equidade interveniente na fixação do quantum indemnizatur, nos casos em que o tribunal, como é corrente nas situações de indemnizações por danos não patrimoniais. [A propósito da aplicação/recurso a critérios e juízos de equidade, vem sendo seguido, pela jurisprudência que reputamos mais ciente, torne-se ciente o que foi escrito no acórdão deste supremo Tribunal de Justiça de 13.09.2012, pº1026/07.9TBVFX.L1.S1, in www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, “(..) não poderá deixar de ter-se em consideração que tal «juízo de equidade» o juízo de equidade das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma “questão de direito”, pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial, dos critérios que, generalizadamente, vêm sendo adoptados, abalando, em consequência, a segurança da aplicação do direito, decorrente da adopção de critérios jurisprudenciais, minimamente, uniformizados, e, em última análise o princípio da igualdade”, mantendo e prosseguindo que já havia doutrinado em aresto datado de 28-10-2010, em que se escreveu: “[Quando] o cálculo da indemnização haja assentado decisivamente em juízos de equidade, ao Supremo não compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar em função da ponderação das circunstâncias concretas do caso, - já que a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», - mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação da individualidade do caso concreto «sub juditio». 3. O apelo a juízos equitativos para obter uma exacta e precisa quantificação de danos patrimoniais resultantes da inutilização ou privação de um bem material – consentido pelo art. 566º, nº3, do CC – desempenha uma função meramente complementar e acessória, representando um instrumento para suprir possíveis insuficiências probatórias relativamente a um dano, inquestionavelmente sofrido pelo lesado, mas relativamente indeterminado quanto ao seu exacto montante - pressupondo que o «núcleo essencial» do dano está suficientemente concretizado e processualmente demonstrado e quantificado, não devendo o juízo equitativo representar um verdadeiro e arbitrário «salto no desconhecido», dado perante matéria factual de contornos manifestamente insuficientes e indeterminados.] Vale por dizer que, para ponderação e aferição dos critérios e factores de avaliação do dano sofrido pelo lesado, são as instâncias, em primeira linha, de acordo com os elementos de prova colhidos em audiência de julgamento, quem determina o montante a atribuir. Só se o Supremo Tribunal vier a verificar que o modo e os vectores intelectivos de indicação do exercício racional que conduziu aos valores pecuniários atribuídos se mostram desajustados e desviados das regras de experiência comum e de razoamento prevalentemente maioritário será possível sindicar a decisão. Assoalhada a forma de indemnizar, importará apurar se no acórdão recorrido conferiu desviado e desabusado uso aos princípios de equidade. A ponderação dos factores psicológicos (pessoais) e factuais em que a decisão se embasou para a atribuição dos quantitativos atribuídos quadram-se dentro de critérios razoáveis e devidamente estribados. O sentimento de perda de uma mãe, de forma violenta e brutal – para colmo por acção voluntária e incruenta do pai – situa-se num plano de dor extrema e profunda, que deve ser compensada com um quantitativo que não podendo assumir, natural, pessoal e humanamente, uma feição reintegradora, não pode deixar de conferir um resguardo material do sentimento de supressão e falta do ente perdido. Do mesmo passo o quantitativo pela perda do direito à vida se situa em valor compatível com o que vem sendo atribuído. Talvez um pouco abaixo do que vem sendo a pauta deste Supremo que se tem colimado por um valor entre os 60.000,00 e os 80.000,00. O tribunal recorrido não abalroou os limites e os critérios de razoabilidade que em situações similares se têm por prudentes e compatíveis com as regras da equidade, pelo que se devem manter.
§3. - DECISÃO Na defluência do que foi argumentado, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em: - Negar provimento ao recurso; - Condenar o recorrente nas custas, ficando a taxa de justiça em 3Uc´s. Lisboa, 25 de Novembro de 2020 Gabriel Martim Catarino (Relator) Manuel Augusto de Matos (Declaração nos termos do artigo 15º-A da Lei nº 2072020, de 1 de Maio: O acórdão tem a concordância do Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Adjunto, Dr. Manuel Augusto de Matos, não assinando, por o julgamento, em conferência, haver sido realizado por meios de comunicação à distância.) |