Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2310/24.2T8GDM-A.P1-A.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO
DECISÕES CONTRADITÓRIAS
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
IDENTIDADE DE FACTOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
REJEIÇÃO
RECLAMAÇÃO
MUNICÍPIO
EXPROPRIAÇÃO
DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA
INDEFERIMENTO
Apenso:
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDO A RECLAMAÇÃO
Sumário :

I-Conforme estipula o art.º 66.º n.º 5 do Código das Expropriações “sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação que fixa o valor da indemnização devida.”

II-Será admissível recurso de revista, nos termos do disposto no art.º 629.º 2 d) do Código de Processo Civil, posto que o acórdão recorrido esteja em contradição com o denominado acórdão fundamento, sendo pressupostos necessários para tanto, que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão fundamental de direito e que as situações de facto subjacentes a cada um dos acórdãos, sejam semelhantes.

III- Não se verifica contradição entre o acórdão fundamento que decidiu sobre os efeitos da declaração de nulidade proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo de determinada Declaração de Utilidade Pública, em determinada expropriação, e o acórdão recorrido em que não existiu qualquer declaração de nulidade da Declaração de Utilidade Pública, mas apenas uma rectificação da mesma.

Decisão Texto Integral: I-RELATÓRIO

MUNICÍPIO DE GONDOMAR, Entidade Expropriante, sendo Expropriadas AA e BB, não se conformando com a decisão de não admitir o recurso por si interposto, apresentou RECLAMAÇÃO, nos termos do disposto no art.º 643.º, formulando as seguintes conclusões:

a)O despachorecorrido não admitiu o recurso interposto pelo Município de Gondomar com fundamento na alegada falta dos pressupostos legais do artigo 629.º, n.º 1 do CPC, por considerar que o valor da causa seria inferior à alçada do tribunal recorrido (30.000,00 €).

b) Tal entendimento incorre em erro, porquanto o valor da causa deve corresponder à utilidade económica imediata do pedido, nos termos do artigo 296.º, n.º 1 do CPC.

c) A justa indemnização fixada na arbitragem, que constitui o objeto da ação, ascende a 250.625,84 €, conforme reconhecido no despacho proferido em primeira instância (ref.ª CITIUS .......29), o que excede largamente a alçada do Tribunal da Relação.

d) O valor de 24.637,85 € indicado no requerimento de interposição do recurso corresponde unicamente ao valor da sucumbência, relevante apenas para efeitos de custas, nos termos do artigo 12.º, n.º 2 do RCP, e não para efeitos de determinação do valor da causa.

e) Assim e entendendo-se, que pelo facto de nenhuma das partes ter recorrido da decisão arbitral não existem elementos para fixar o valor da causa, ao abrigo do disposto no artigo 38.º do Código das Expropriações, ter-se-ia então que fixar o valor da causa segundo os critérios do CPC, recaindo sobre o valor indemnizatório fixado, ou seja, 250.625,84 €.

f) Ou, se assim não se entendesse, então, deveria o recurso ser admitido por imperativo constitucional emergente do artigo 20.º da Lei fundamental, no sentido de que, quando não esteja definido o valor da ação, sempre que processualmente se verifique a impossibilidade de tal vira acontecer, deve ser admitido orecurso, afim de perfectibilizar o acesso ao direito.

g)Quanto ao segundo fundamento do despacho recorrido — alegada ausência de contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento — este é igualmente improcedente.

h) A questão da nulidade da Declaração de Utilidade Pública (DUP)por identificação errada da parcela expropriada foi efetivamente abordada e considerada nos presentes autos.

i) O acórdão recorrido reconhece que a DUP inicial identificava erradamente o artigo matricial (...09 em vez de ...62), oque se traduz numa situação de impossibilidade legal de expropriação, determinando a nulidade da DUP (cfr. artigo 162.º, n.º 1, e 161.º, n.º 2, al. c) do CPA).

j) Embora o acórdão recorrido não refira expressamente a consequência legal pela falta deste elemento essencial da DUP que serviu de base ao processo n.º 777/22.2T8GDM, isso não que dizer que se possa manter este vazio legal, pois o Tribunal é obrigado a retirar todas as consequências jurídicas da matéria de facto que dá como assente.

k) No caso, a consequência da DUP não identificar corretamente elementos essenciais do Registo predial determina a sua nulidade.

l) Esta mesma questão é também tratada no acórdão fundamento, que analisa os efeitos jurídicos de uma DUP declarada nula, existindo, portanto, identidade da questão fundamental de direito.

m) Resulta, assim, demonstrada a admissibilidade do recurso quer pelo valor da causa, quer pela verificação da contradição de acórdãos sobre a mesma questão de direito.

Termos que que se requer a V. Exa. se digne dar provimento à presente reclamação e, por via disso, proferir a decisão de admissão do recurso.

*

Os Recorridos/ Expropriados pronunciaram-se no sentido da improcedência da reclamação.

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É o seguinte o teor da decisão reclamada que não admitiu o recurso:

“Veio a Recorrida, entidade expropriante, vencida no recurso de apelação, interpor recurso para o STJ do Acórdão desta Relação, reconduzindo-se à existência de jurisprudência contraditória, nomeadamente, a que decorre do acórdão fundamento que correu termos no Supremo Tribunal de Justiça, com o n.º 579/21.3T8PVZ-A.P1.S1, de 12/12/2023, entretanto junta certidão respectiva, oportunamente protestada.

Aduz a recorrente que a contradição detetada emerge da diferente interpretação relativamente à questão de que os efeitos de uma Declaração de Utilidade Pública (DUP) declarada nula no âmbito de um processo de expropriação, se podem projetar noutro processo ou procedimento expropriativo, conforme decorre do acórdão recorrido (de forma errada no entendimento do recorrente), entendimento este que viola o disposto no artigo 162.º n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo.

Isto posto, resulta da douta decisão tomada pelo Juízo Cível de Gondomar, Juiz 3, no âmbito do processo n.º 777/22.2T8GDM, que a Declaração de Utilidade Pública (DUP) proferida a 25 de fevereiro de 2019 e publicada no Diário da República 2.ª série, n.º 88, de 8 de maio de 2019, foi declarada nula e, por via disso, em tal despacho, foi indeferida a adjudicação da propriedade da parcela n.º 14 ao ora recorrente Município de Gondomar, parcela esta que é exatamente a mesma objeto dos presentes autos.

Neste sentido é clara a passagem daquela decisão na qual se refere que, “Só através da individualização clara dos bens sujeitos a expropriação, poderão determinar-se inequivocamente os efeitos jurídicos do ato declarativo. Nesta linha, o ato declarativo que não identifique os imóveis a expropriar ou que remete para planta que não permita a sua determinação legível terá um objeto ininteligível sendo, por isso, nulo. Por outro lado, o objeto da expropriação tem de ser possível e legal. Nesta linha, serão nulos os atos declarativos de expropriação de bens que não existem (impossibilidade física) ou que não sejam legalmente expropriáveis (impossibilidade legal)”.

No caso daqueles autos (processo n.º 777/22.2T8GDM), a parcela a expropriar estava identificada como fazendo parte do artigo ...09 Rústico e não como fazendo parte do artigo ...62 Rústico como efetivamente o é, o que determinou a nulidade da DUP pela razão da parcela, conforme foi identificada, não ser legalmente expropriável (impossibilidade legal).

Tal factualidade motivou o Recorrente Município de Gondomar a requerer nova DUP, que foi proferida em 27 de abril de 2023 e publicada no Diário da República II série n.º 112 de 12 de junho de 2023, onde a parcela a expropriar já se encontrava corretamente identificada sendo, assim e agora, legalmente expropriável.

Nos termos do artigo 162.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo (CPA) na versão da Lei n.º 72/2020, de 16/11 em vigor à data em que foi declarada a nulidade da DUP de 2022, “o ato nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade”.

Deste modo, é evidente que a DUP proferida a 25 de fevereiro de 2019 e publicada no Diário da República 2.ª série, n.º 88, de 8 de maio de 2019, tendo sido declarada nula, nunca produziu quaisquer efeitos jurídicos desde a sua origem, dado o efeito retroativo da nulidade.

Continua pugnando que a declaração de nulidade da DUP implica a total ausência de efeitos jurídicos desse ato, conforme referido no acórdão fundamento, “nos casos de nulidade (…) são os próprios fundamentos do sistema que são postos em crise por esse ‘vício absoluto.’ A atribuição de quaisquer efeitos jurídicos, mesmo que colaterais, a um ato nulo constituiria uma distorção intolerável da estrutura normativa do Estado de Direito.” Consequentemente, a renovação de um ato nulo, ainda que despida do vício formal que motivou a sua anulação, exige sempre a prática de um novo ato administrativo e, tal renovação, não pode, de modo algum, assentar no aproveitamento — mesmo parcial — do ato declarado nulo, o qual, conforme supra referido, é desprovido de efeitos jurídicos desde a sua origem.

E ainda que, mesmo que se entenda que o novo ato praticado pela Administração, em substituição do ato nulo, possa ter efeitos retroativos, tais efeitos são sempre imputáveis ao novo ato, e não ao ato anteriormente anulado. Ainda que se possa utilizar a expressão “renovação” do ato nulo, essa terminologia traduz a prática de um novo ato, com conteúdo semelhante ao anterior, mas juridicamente distinto e autónomo em relação ao que foi anulado.

Descendo aos autos, é claro que o Tribunal a quo, para decidir como decidiu, em condenar o recorrente no pagamento do valor de 24.637,85 €, correspondente ao valor dos juros calculados à taxa legal respeitante às obrigações civis, sobre a indemnização arbitrada no valor de € 250.635,84, contados desde o 31.º dia após à prolação da decisão arbitral, em 30-1-2022, até à entrada da petição nos presentes autos em 15-7-2024, teve que considerar que a DUP proferida a 25 de fevereiro de 2019 e publicada no Diário da República 2.ª série, n.º 88, de 8 de maio de 2019 produziu efeitos apesar de ter sido considerada nula.

Ora, tal posição assumida no acórdão recorrido viola de forma clara o disposto no artigo 162.º do CPA, pois atribuiu efeitos jurídicos a um ato administrativo nulo, designadamente e no que aos presentes autos interessa, atribuiu efeitos de contagem de um prazo para determinar o atraso de remessa do processo ao tribunal.

Repare-se que, no âmbito dos presentes autos, por si só, ou seja, tendo em conta apenas a DUP proferida em 27 de abril de 2023 e publicada no Diário da República II série n.º 112 de 12 de junho de 2023, não existe qualquer atraso do recorrente na remessa dos autos ao Tribunal.

Para concluir como concluiu o acórdão recorrido, o Tribunal a quo teve que atribuir efeitos à DUP anteriormente proferida (DUP proferida a 25 de fevereiro de 2019 e publicada no Diário da República 2.ª série, n.º 88, de 8 de maio de 2019), não obstante sabendo o Tribunal que tal ato foi declarado nulo.

Opôs-se a Recorrida à admissão mesma do Recurso, pugnando não só que inexiste qualquer contradição entre o invocado acórdão fundamento e o acórdão recorrido, como, por outro lado, nem sequer se está perante a mesma questão fundamental de direito, mas antes perante diversas questões de direito ajuizadas nos diferentes acórdãos. Na pronúncia/resposta, aduz a Recorrida que, no acórdão fundamento, se decidiu sobre os efeitos da declaração de nulidade de Declaração de Utilidade Pública pelo Supremo Tribunal Administrativo em determinada expropriação provida de nova DUP, questão que nem sequer foi conhecida (nem podia) no douto acórdão recorrido.

Sempre inexistente decisão de declaração de nulidade da primeira DUP, proferida no processo 777/22.2T8GDM, pelo 3.º Juízo Cível de Gondomar, questão, de resto que não foi nunca invocada nos autos, sequer em recurso, com o que o recorrente pretende introduzir no recurso questão nova.

Sempre a DUP de 2023 foi proferida no âmbito da proposta de “retificação da resolução de expropriar e da declaração de utilidade publica de expropriação” de 2019, com aproveitamento dos actos praticados ao abrigo da primeira DUP (2019) que foi aprovada, como se vê a fls 22 dos autos.

*

Sequer necessário afrontar a questão, suscitada pela Recorrida, da verificação liminar ou perfunctória do pressuposto legal convocado para a admissibilidade da revista excepcional apresentada/deduzida1.

A inadmissibilidade da revista normal afecta desde logo a interposição da revista excepcional que pressupõe a verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade. Pelo que sequer a revista excepcional é admissível. Neste sentido e entre muitos outros, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2020 (relator Raimundo Queiróz), proferido no processo nº 2255/17.2T8FAR.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt; vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2020 (relator Lima Gonçalves), proferido no processo nº 1433/13.8TMLSB-H.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 2020 (relatora Catarina Serra), proferido no processo nº 709/09.6TBSSB.E1-A.S1, publicado in www.dgsi.pt; vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Julho de 2020 (relator Tomé Gomes), proferido no processo nº 1534/15.8T8AGD-B.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 2020 (relator Fernando Samões), proferido no processo nº 32/18.2T8AGD-A.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 2020 (relator Acácio das Neves), proferido no processo nº 1319/14.9T8CBR-B.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt).

Pretende a recorrente interpor recurso do acórdão proferido neste Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do disposto no art. 672º, nº 1, c) do Código de Processo Civil.

Aí se prevêem os casos em que excepcionalmente se admite recurso de revista nas situações da denominada “dupla conforme”, situação desde logo descaracterizada.

Com efeito, nos termos do art. 671º, nº 3, do Código de Processo Civil, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância. Porém, a norma do nº 1 do art. 672º do Código de Processo Civil “atenua os efeitos da regra geral”, introduzindo excepções “justificadas pela necessidade de tutelar interesses de ordem social ou jurídica ligados à melhor aplicação do direito ou à segurança e estabilidade na interpretação normativa”.

A revista excepcional está, pois, prevista para os casos em que o único óbice à recorribilidade da decisão é a existência de “dupla conforme”, verificando-se “os pressupostos gerais de acesso ao terceiro grau de jurisdição”.

“Ou seja, a invocação de algum dos fundamentos excecionais do art.º 672.º, n.º 1, está limitada aos casos em que, sendo admissível, em tese, recurso de revista do acórdão da Relação previsto no n.º 1 do art. 671.º, esse recurso se defronta com um único impedimento que decorre da dupla conformidade desenhada pelo n.º 3” (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 443, 445 e 446).

Assim, o recurso de revista excepcional depende também “da verificação dos pressupostos do recurso de revista “normal”, designadamente os que respeitam à natureza ou conteúdo da decisão”, “ao valor do processo ou da sucumbência” “ou à legitimidade” (ob. e aut. cits., pág. 456).

Recebido o requerimento de interposição de recurso, cabe ao relator, no Tribunal da Relação, proceder “a uma primeira apreciação dos aspetos gerais referidos no art.º 641.º, devendo rejeitar o recurso se acaso verificar a falta dos pressupostos gerais em torno da tempestividade, da legitimidade ou da recorribilidade, em face dos arts. 629.º, n.º 1, e 671.º, n.ºs 1 e 3, se faltarem as alegações ou se nestas tiverem sido omitidas as respetivas conclusões” (ob. e aut. cits., pág. 458).

Feita esta apreciação no caso, verifica-se que o recurso não é admissível atento o valor do recurso/causa, como desde logo indicado pela Recorrente.

Efectivamente, nos termos do art. 629º, nº 1, do Código de Processo Civil, o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.

A alçada do tribunal de que se recorre, no caso o Tribunal da Relação, é de € 30.000,00, conforme disposto no art. 44º, nº 1, da L.O.S.J., pelo que manifestamente o valor da causa é inferior à alçada respectiva.

Daí que, e uma vez que não estamos perante qualquer das situações previstas no nº 2 do art.º 629º do Código de Processo Civil (até porque se estivéssemos não seria necessário convocar a revista excepcional, já que seria admissível a revista “normal”), não seja admissível o recurso ora interposto pela recorrente.

Pelo que, não se admite o recurso interposto.”

*

Por decisão singular, datada de 18-06-2025, foi a reclamação julgada improcedente e confirmado o despacho que não admitiu o recurso de revista.

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Inconformado com esta decisão, vem o MUNICÍPIO DE GONDOMAR deduzir a presente reclamação para a conferência, concluindo:

a)A decisão singular proferida ao abrigo do artigo 652.º, n.º 1 do CPC indeferiu a reclamação apresentada nos termos do artigo 643.º do mesmo diploma, mantendo o despacho que não admitiu o recurso de revista interposto pelo Município de Gondomar.

b)Tal decisão assentou exclusivamente na alegada inexistência de contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, ignorando que o acórdão recorrido reconhece expressamente que a Declaração de Utilidade Pública (DUP) inicial identificava erradamente a parcela a expropriar.

c)A errada identificação da parcela configura uma nulidade do ato administrativo, nos termos dos artigos 161.º, n.º 2, alínea c), e 162.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, pelo que o tribunal não pode ignorar essa consequência jurídica, mesmo que a nulidade não tenha sido expressamente declarada.

d)O quadro factual subjacente ao acórdão recorrido é idêntico ao do acórdão fundamento (STJ, 12.12.2023, proc. 579/21.3T8PVZ-A.P1.S1), sendo idêntica a questão jurídica fundamental: os efeitos jurídicos de uma DUP nula e a sua inadmissibilidade para fundamentar atos subsequentes.

e)A coexistência de duas DUP sobre a mesma parcela — a de 2019 e a de 2023- constitui violação dos princípios da legalidade e da boa administração (cfr. artigos 3.º e 5.º do CPA), sendo juridicamente inadmissível por não se encontrar prevista no Código das Expropriações (ou em qualquer outro diploma).

f) Ao evitar pronunciar-se sobre a validade da DUP, o tribunal escusa-se a conhecer da questão fundamental da presente lide e que se encontra implícita desde que o tribunal de primeira instância decidiu pela não adjudicação da parcela n.º 14 (no âmbito do processo n.º 777/22.2T8GDM).

g) A não retirada de todas as consequências jurídicas da nulidade da DUP por parte do tribunal, traduz-se numa violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

h) Por conseguinte, a decisão singular enferma de erro de julgamento quanto à verificação da identidade da questão fundamental de direito e deve ser substituída por decisão que admita o recurso de revista, por verificada a contradição relevante exigida pelo artigo 629.º, n.º 2, alínea d) do CPC.

Termos em que se requer que seja revogada a decisão singular e substituída por outra que admita o recurso de revista, por verificada a contradição relevante exigida pelo artigo 629.º, n.º 2, alínea d) do CPC.

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Os Reclamados pronunciaram-se pela improcedência da reclamação e consequente confirmação da decisão singular que não admitiu o recurso de revista.

II-OS FACTOS

Para um melhor enquadramento da questão em análise, importa considerar o quadro fáctico em que nos movemos que é o seguinte, constante do acórdão recorrido:

1-Nos autos de expropriação a que respeitam estes outros foi proferido despacho de adjudicação da parcela expropriada, no qual se fixou o valor da indemnização arbitrada.

2-Na sequência de requerimento dos Expropriados, foi proferido pela 1.ª instância o despacho do teor seguinte:

«Quanto aos juros de mora peticionados, o prazo de 30 dias que as expropriadas entendem ter sido incumprido, previsto no artigo 51.º, n.º 1, do Cód. das Expropriações, diz respeito ao prazo que a entidade expropriante dispõe para remeter o processo a Tribunal, após recebimento da decisão arbitral.

Independentemente do desfecho que veio a ter, com o indeferimento da adjudicação da propriedade da parcela, o processo de expropriação foi remetido a Tribunal, pela primeira vez, ainda em Março de 2022, vindo a correr os seus termos sob o n.º 777/22.2 T8GDM.

Como tal, não só as expropriadas não podem calcular os juros de mora da forma constante do requerimento que antecede, como os juros de mora a que tenham eventualmente direito hão de ser pagos no processo onde esse atraso se pode ter verificado, ou seja, no proc. n.º 777/22.2 T8GDM.

Pelo exposto, indefere-se o requerido quanto à notificação do expropriante para pagamento de juros moratórios, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, do Cód. das Expropriações

3-Inconformadas com este despacho, os Expropriados interpuseram recurso para o Tribunal da Relação que julgou o recurso procedente revogando a decisão recorrida, decidindo «assistir às expropriadas recorrentes o direito ao recebimento de juros calculados à taxa legal respeitante às obrigações civis, sobre a indemnização arbitrada no valor de € 250.635,84, contados desde o 31.º dia após à prolação da decisão arbitral, em 30-1-2022, até à entrada da petição nos presentes autos em 15-7-2024».

4-A presente expropriação tem por objecto a parcela designada pelo n.º 30, com a área de 6.806,18m2, destinada à construção do percurso da Via Nordeste –... à Rua 2 – Rio Tinto.

5-A DUP foi inicialmente publicada no DR n.º 88 – II série, de 8 de maio de 2019, fazendo-se corresponder à parcela a expropriar (que é perfeitamente identificada em planta anexa) o artigo predial rústico ...09, da freguesia de Rio Tinto.

6-Correu termos anteriormente no J3 deste Tribunal o Proc. n.º 777/22.2T8GDM, visando a expropriação da mesmíssima parcela n.º 30, com a mesma área, localização e finalidade.

7-A v.a.p.r.m. teve lugar a 21 de junho de 2019.

8-Dela apresentaram reclamação os expropriados, reportando-se à errada identificação matricial do imóvel.

9-O auto de posse administrativa da parcela de terreno expropriada foi lavrado a 26 de setembro de 2019.

10-A 01.10.2019 foi enviado aos expropriados cópia daquele auto e do comprovativo de depósito autónomo da quantia prevista no relatório de avaliação prévia.

11-A arbitragem foi realizada a 30 de janeiro de 2022

12-Naqueles autos de expropriação apurou-se que a parcela a expropriar era, afinal, parte do prédio descrito na CRP sob o n.º 2406, a que correspondia o artigo matricial ...62, da freguesia de Rio Tinto.

13-Com base nessa “discrepância entre o artigo matricial constante da DUP e aquele relativamente ao qual a entidade expropriante pretende que seja proferido despacho de adjudicação”, o Tribunal, no aludido Proc. n.º 777/22.2T8GDM, indeferiu o requerido quanto à adjudicação da propriedade da parcela nos termos requeridos, por despacho de 26.04.2022.

14-Foi promovida a rectificação da DUP, o que sucedeu em Assembleia Municipal de 28/4/2023, a qual foi aprovada por maioria.

15-A DUP rectificada foi publicada no DR n.º 112 – II série, de 12 de junho de 2023. Nela se faz referência à descrição predial ...06 de Rio Tinto e inscrição matricial ...62, da mesma freguesia, mantendo a parcela a mesma área e localização na planta anexa.

16-Sendo este processo dotado dos mesmos elementos (designadamente, a mesma vistoria ad perpetuam rei memoriam e o mesmo acórdão arbitral) remetido a Tribunal, em 15.07.2024, dando origem a estes autos.

III-O DIREITO

A questão que importa apreciar nesta reclamação consiste, pois, em analisar se é admissível o recurso interposto para este Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação que fixou o valor devido pela Entidade Expropriante, aos Expropriados, a título de juros.

Considerando que o recurso se insere no âmbito de um processo de expropriação, importa considerar, antes de mais, o disposto no art.º 66.º n.º5 do Código das Expropriações segundo o qual sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação que fixa o valor da indemnização devida.”

É o caso do acórdão recorrido. O acórdão aprecia apenas a obrigação de pagamento do montante devido a título de juros, a calcular sobre o montante indemnizatório total, não devendo deixar de entender-se abrangido pela previsão do disposto no art.º 66.º n.º 5 do CE.

Por conseguinte, face ao que dispõe o referido artigo 66.º n.º5 do Código das Expropriações, o presente recurso de revista só será admissível se integrar alguma das circunstâncias em que o recurso é sempre admissível, o que nos remete para o elenco de casos previsto no art.º 629.º n.º2 do Código de Processo Civil.

Nos termos do disposto na alínea d) do art.º 629.º n.º 2, que é a alínea que importa para o caso em análise, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso do acórdão da relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal (…)”.

É certo que o Recorrente vem indicar como acórdão fundamento um acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça. Contudo, “embora o preceito em termos formais, apenas postule uma contradição consumada entre o acórdão recorrido e um outro acórdão da Relação, por maioria de razão deve ser admitida a revista especial quando tal divergência se manifestar entre o acórdão da Relação de que se pretende recorrer e um acórdão do STJ que tenha incidido sobre a mesma questão essencial de direito, à semelhança do que prescreve o art.º 672.º, n.º1 c), relativamente à revista excepcional(…)”2.

Não constituindo, assim, obstáculo à aplicabilidade do art.º 629.º n.º 2 d) do CPC, o facto de o acórdão fundamento ter sido proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, importa averiguar se a decisão recorrida se encontra em contradição com o acórdão fundamento, proferido pelo STJ em 12-12-2023, no Processo 579/21.3T8PVZ-A-P1.S1.

Na verdade, a alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil exige que o acórdão recorrido esteja em contradição com o denominado acórdão fundamento; que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; e que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito.3

Interpretando esta norma, o STJ tem exigido, de forma constante, que a contradição seja frontal, não bastando uma oposição implícita ou pressuposta4 e que a questão, sobre a qual a contradição recai, seja uma questão fundamental ou essencial para a decisão do caso 5.

A contradição ou oposição de julgados há-de determinar-se atendendo a dois elementos: a semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança entre os resultados da interpretação e/ou da integração das disposições legais relevantes em face das situações de facto consideradas.6

Ora, como resulta do confronto entre as situações de facto subjacentes a cada um dos acórdãos, as mesmas são distintas.

Desde logo, no acórdão fundamento, decidiu-se sobre os efeitos da declaração de nulidade proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo de determinada Declaração de Utilidade Pública, em determinada expropriação.

Por sua vez, nos presentes autos, nunca existiu declaração de nulidade da declaração de utilidade pública. Conforme resulta dos factos: “15-A DUP rectificada foi publicada no DR n.º 112 – II série, de 12 de Junho de 2023. Nela se faz referência à descrição predial ...06 de Rio Tinto e inscrição matricial ...62, da mesma freguesia, mantendo a parcela a mesma área e localização na planta anexa.

16-Sendo este processo dotado dos mesmos elementos (designadamente, a mesma vistoria ad perpetuam rei memoriam e o mesmo acórdão arbitral) remetido a Tribunal, em 15.07.2024, dando origem a estes autos.”

Como é por demais evidente, a total dissemelhança das situações de facto subjacentes ao acórdão recorrido, por um lado e ao acórdão fundamento, por outro, impõe a conclusão de que os dois acórdãos não se pronunciaram em termos contraditórios sobre a mesma questão de direito.

Assim sendo, por falta da verificação dos pressupostos exigidos pelo disposto no art.º 629.º n.º 2 d) do CPC, segue-se a inadmissibilidade do recurso de revista para o STJ, tal como foi decidido pelo Tribunal da Relação, embora com argumentação diferente.

III-DECISÃO

Em face do exposto, acordamos, em conferência, em indeferir a reclamação, confirmando o despacho que não admitiu o recurso de revista.

Custas pelo Reclamante.

Lisboa, 2 de outubro de 2025

Maria de Deus Correia (Relatora)

Rui Machado e Moura

Nuno Pinto Oliveira

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1. Neste plano outrossim, inexiste qualquer contradição entre a decisão agora impugnada e outro Acórdão da Relação ou do STJ, sobre a mesma questão fundamental de direito, a partir já do Acórdão convocado e entretanto junto, como dos invocados no recurso mesmo. Assim é que, como é mister concluir-se, em nenhuma delas se afronta a questão fundamental de direito da qual se conheceu, mesmo por não ter sido declarada ou suscitada a questão da nulidade da DUP rectificada; com o que não verificado ou caracterizado o pressuposto legal de admissibilidade do recurso. Assim é que a oposição relevante tem de incidir sobre a mesma questão de direito fundamental e deve revelar-se directa nas decisões em equação, que não subentendida ou meramente teórica, irrelevando a argumentação acessória. A oposição só é significativa quando se reconduza ao cerne das decisões em confronto, à ratio decidendi, pelo que, desde logo, as decisões em conflito hão-de ter subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas.

  Não se afronta em qualquer das decisões convocada e citadas já a mesma questão jurídica que se decidiu nestes autos. Donde, não resulta a contradição frontal de decisões que é pressuposto do recurso interposto.

  Inadmissível pois no enquadramento alegado.

2. Seguindo o entendimento de António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7.ª edição, p.74.

3. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-02-2015, Processo 9088/05.7TBMTS.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt

4. Acórdão do STJ02-05-2019- Processo 1650/06.7TBLLE.E2.S1, disponível em www.dgsi.pt

5. Vide, a título exemplificativo, o Acórdão do STJ de 02-05-2019- Processo 1650/06.7TBLLE, já mencionado.

6. Vide Acórdão do STJ de 15-05-2025, Processo 6659/10.3TBVNG-F.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt