Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
657/13.2JAPRT.P1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CONCURSO DE CRIMES
CRIME CONTINUADO
IN DUBIO PRO REO
NE BIS IN IDEM
DUPLA CONFORME
MEDIDA DA PENA
CRIME DE VIOLAÇÃO AGRAVADO
PENA ÚNICA
DECISÃO SUMÁRIA
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / FORMAS DO CRIME - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA DA MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS / ADMISSIBILIDADE DO RECURSO.
Doutrina:
- Eduardo Correia, Direito Criminal, II, Almedina, 1993, reimpressão, 209, 211.
- Figueiredo Dias, «Crime Preterintencional, causalidade adequada e questão-de-facto», R.D.E.S., ano XVII (1970), 34 (separata); Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 421; Direito Penal — Parte Geral, t. I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2007, 11/ § 55, 43/ § 37, § 47, § 44 e §45; Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, (235).
- Lobo Moutinho, Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, UCP, 2005, 620, nota 1854.
- Maria da Conceição Valdágua, «As alterações ao Código Penal de 1995, relativas ao crime continuado. Propostas no anteprojecto de revisão do Código Penal», R.P.C.C., 2006, 538.
- Roxin, Derecho Penal. Parte General, t. II, Civitas, 2014, § 33 (256 e ss).
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 399.º, 400.º, N.º 1, AL. F), 414.º, N.º3, 417.º, N.º 6, AL. B), 420.º, N.º 1, AL. A), E N.º 2, 432.º, N.º 1, ALS. B) E C) E 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 30.º, N.ºS 2 E 3, 40.º, 71.º, N.ºS 1 E 2, 77.º, N.ºS 1 E 2, 79.º, 119.º, N.º 2, AL. B), 164.º, N.º 1, AL. A), 177.º, N.º 1, AL. A).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 29.º, N.º1, 32.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 02.07.2003, PROC. N.º 03P2146, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 29.11.2012, PROC. N.º 862/11.6TAPFR.S1.
-DE 22-01-2013, PROC. N.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1 - 3.ª SECÇÃO; DE 06-02-2013, PROC. N.º 593/09.7TBBGC.P1.S1 - 3.ª SECÇÃO; DE 29-05-2013, PROC. N.º 344/11.6JALRA.E1.S1 - 3.ª SECÇÃO.
-DE 17.09.2014, NO PROCESSO N.º 67/12.9JAPDL.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT , DE 24.09.2014, PROCESSO N.º 53/12.9JBLSB.L1.S1, IN SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS — CRIMINAL: ANO DE 2014, IN WWW.STJ.PT ; DE 14.03.2013, NO PROC. N.º 294/10.3JAPRT.P1.S2, E DE 08.0.2014, PROC. N.º 7/10.0TELSB.L1.S1, AMBOS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 17.09.2014, PROC. N.º 595/12.6TASLV.E1.S1, DE 22.04.2015, PROC. N.º 45/13.0JASTB.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 11.06.2015, PROC. N.º 401/13.4JAPRT.P1.S1, DE 15.10.2015, PROC. N.º 294/11.6GAVVD.G4.S1, DE 26.11.2015, PROC. N.º 1519/12.6PHLRS.L1.S1, DE 17.12.2015, PROC. N.º 520/13.7PCRGR.L1.S1, DE 27.01.2016, PROC. N.º 2837/09.6GBABF.E1.S1, DE 17.03.2016, PROC. N.º 514/10.4PBAVR.S1; DE 21.08.2015, PROC. N.º 1727/13.2JAPRT.P1.S1.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.ºS 649/2009, 186/2013, 269/2014, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :

I. Pretendeu-se alargar os poderes do juiz relator, dando-lhe possibilidade de apreciar o objeto de recurso e sobre ele deliberar quando o considerasse manifestamente improcedente. No entanto, apenas pode proferir uma decisão sumária nos casos em que entenda que deve rejeitar o recurso por manifestamente improcedente. Ou seja, a limitação existente resulta apenas de se poder considerar ou não, numa apreciação sumária, a interposição de recurso como passível de rejeição (cf. art. 417.º, n.º 6, al. b), do CPP), nomeadamente, quando for manifesta a improcedência do recurso (cf. art. 420.º, n.º 1, al. a), do CPP); e só nestes casos, isto é, só sendo manifesta a improcedência, é que se poderá cumprir o disposto no art. 420.º, n.º 2, do CPP, pois só assim é possível apenas “especificar sumariamente os fundamentos da decisão”;

II. tendo em conta a decisão sumária proferida nos presentes autos, não se trata de todo de uma apreciação sumária do recurso interposto, isto é, não se trata de uma decisão que tenha apenas “especifica[do] sumariamente os fundamentos da decisão”; na verdade, a decisão sumária procedeu a muito mais do que um simples juízo perfunctório sobre o recurso interposto, tratando-se de um verdadeiro acórdão.

III. o não cumprimento dos dispositivos supra referidos, não estando expressamente previsto como nulidade, constitui uma irregularidade, que deve ser arguida no prazo estabelecido; tendo este prazo sido há muito ultrapassado.

IV. O arguido vem condenado pela prática de 11 crimes de violação com penas de prisão efetiva que oscilam entre 5 anos e 6 meses e 6 anos. Sabendo que houve confirmação integral do acórdão de 1.ª instância pelo Tribunal da Relação do Porto, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

V. O arguido recorre ainda da medida da pena única aplicada ao concurso de crimes de violação em que vem condenado. Sendo esta de 13 anos de prisão efetiva, nos termos dos arts. 399.º, 432.º, n.º 1, al. c) e 434.º, todos do CPP, é admissível o recurso; havendo recurso da pena única, apenas se poderá apreciar esta se, em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, concluirmos estarem verificados os pressupostos da sua aplicação, isto é, quando possamos concluir estarmos perante uma situação de concurso efetivo de crimes.

VI. O crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, é caracterizado por uma “realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”; porém, esta figura criada pelo legislador não deve, nos termos do n.º 3 do mesmo dispositivo, abarcar “os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”.

VII. O crime continuado não é mais do que “um concurso de crimes efectivo no quadro da unidade criminosa, de uma “unidade criminosa” normativamente (legalmente) construída” (Figueiredo Dias), considerando-se que estamos perante situações em que há uma “diminuição da culpa, em nome de uma exigibilidade sensivelmente diminuída” (Figueiredo Dias). Trata-se, pois, de situações em que ocorre ou um dolo conjunto ou continuado, ou onde se verifica uma pluralidade de resoluções criminosas, todavia legalmente unificadas de modo a construir uma unidade criminosa.

VIII. Tem sido considerado que a figura do crime continuado privilegia injustamente os agentes de um crime continuado, relativamente aos que praticam um concurso efetivo de crimes, e desde logo tendo em conta o efeito de caso jugado que abarca todos os atos integrados na continuação ainda que não tenham feito parte do objeto do processo. Mas produz igualmente prejuízos para o condenado não só porque pode conduzir a um exame superficial dos factos praticados, como prolonga no tempo o início do prazo de prescrição do procedimento criminal, dado que esta apenas inicia com o último facto praticado (cf. art. 119.º, n.º 2, al. b), do CP).

IX. Tratando-se no presente caso de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como é o bem jurídico da liberdade sexual protegido pelo crime de violação, logo por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, não podemos concluir estarmos perante um caso subsumível à figura do crime continuado. Trata-se sim de uma sucessão de crimes.

X. É com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”. A jurisprudência, seguindo as pisadas da jurisprudência alemã que construiu o crime continuado por dificuldade de prova, acaba por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando que há uma unidade de resolução (que abarca todas as resoluções parcelares que ocorrem aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), mas em que, à medida que se prolonga no tempo, produz uma agravação da culpa do agente.

XI. Porém, a caracterização do crime como prolongado depende de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de violação, ainda que este seja repetidos inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos consubstanciadores da violação ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos constituem sucessivamente atos diferentes e autónomos crimes de violação.

XII. Ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração ou da sua prática habitual, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta, sem que a lei tenha procedido a essa unificação, constitui uma clara violação do princípio constitucional da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto no art. 164.º, do CP.

XIII. Estaremos perante um crime de violação sempre que se ofenda o bem jurídico da liberdade sexual, sempre que o novo ato constitua um novo constrangimento da vítima, sempre que se a vítima tenha sido novamente obrigada, novamente ameaçada, constrangida, violentada.

XIV. Enquanto se mantiver a legislação que temos cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura.

XV. Estando provados os diversos atos individuais que integram o crime de violação agravada, deverá o arguido ser punido segundo as regras do concurso de crimes, e em matéria de determinação da pena segundo o estabelecido no art. 77.º, do CP.

XVI. Constituindo o princípio in dubio pro reo um princípio em matéria de prova, a análise da sua violação (ou não) constitui matéria de direito ou questão de direito enquanto juízo de valor ou ato de avaliação da violação (ou não) daquele princípio, portanto no âmbito de competência deste tribunal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


I

Relatório


1. No Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este (Penafiel — Inst. Central — Secção Criminal — J3), o arguido AA foi condenado:

- a) pela prática, entre Fevereiro de 2008 e Junho de 2008, de um crime de violação, previsto e punido nos arts. 164º, nº 1, al. a), do e 177º, nº1, al. a), ambos do Código Penal (CP), na pena de 6 (seis) anos de prisão;

-  b) pela prática, entre o ano de 2008 (após a prática do crime referido em a)) e final de 2012, de dois crimes de violação, previsto e punido nos arts. 164º, nº 1, al. a), do e 177º, nº1, al. a), ambos do CP, precedidos de coação sexual, na pena de 6 (seis) anos de prisão, por cada um;

- c) pela prática, entre o ano de 2008  (após a prática do crime referido em a) e final de 2012,  de sete crimes de violação, previsto e punido nos arts. 164º, nº 1, al. a), do e 177º, nº1, al. a), ambos do CP, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um;

- d) pela prática, em 11 de Fevereiro de 2013,  de um crime de violação, previsto e punido nos arts. 164º, nº 1, al. a), do e 177º, nº1, al. a), ambos do CP, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- e, em cúmulo jurídico da penas parcelares aplicadas, na pena única de 13 (treze) anos de prisão.

Foi ainda julgado procedente, por totalmente provado, o pedido de indemnização civil, e condenado o arguido ao pagamento da quantia de €50.00,00 (cinquenta mil euros) à assistente/demandante, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, desde a respetiva notificação até efetivo e integral pagamento.

2. Inconformado com a decisão proferida, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por decisão sumária de 02.07.2015, rejeitou a interposição do recurso por “manifestamente improcedente”.

3. Desta decisão o arguido reclamou para a conferência que, por acórdão de 30.09.2015, julgou “improcedente a reclamação”.

4. Vem agora o arguido AA interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e apresentando as seguintes conclusões:

«1. O tribunal a quo fez questão de mencionar que não segue a Jurisprudência que “no âmbito dos crimes sexuais, tem considerado que o facto de ocorrer uma pluralidade do cometimento de tais ilícitos, como sucede quando os mesmos se prolongam no tempo com a mesma vítima e tal advenha de uma relação de proximidade, muitas vezes existe uma única resolução criminosa que acaba por dominar a acção unitária”, enumerando algumas decisões do STJ e da Relação do Porto.

2. O Tribunal a quo entende que não há circunstâncias exógenas que atenuem a culpa do agente.

3. Ocorre que tal, não corresponde à verdade, porquanto o reclamante é um individuo que é primário, ou seja, nunca antes fora condenado por qualquer ilícito criminal, tendo sido obrigado a emigrar para sustentar a família, (exceptuando a queixosa, que adquiriu a sua independência económica aos 17 anos), sendo que este arguido se encontra completamente inserido na sociedade, contando ainda com o apoio da esposa, filha mais nova e restantes familiares.

4. Salientamos ainda que inicialmente não houve acusação por banda do Ministério Público, porque este entendeu não existir indícios suficientes da prática de qualquer crime.

5. Não se compreende que o facto de o Recorrente passar tanto tempo fora do país, tenha servido para agravar a sua suposta conduta, porque não serve para questionar por que razão a queixosa nunca apresentou queixa nesses largos períodos?

6. Aliás, o facto de a queixosa, não depender do pai, e ter deixado a situação, alegadamente prolongar-se no tempo, tendo inclusive não oferecido qualquer tipo de resistência, não mereceu qualquer reparo por parte do Tribunal Recorrido, nem pelo Venerando Desembargador Relator.

7. Ora, a ocorrer uma só resolução criminosa sempre estaríamos em face do cometimento de um único crime, ainda que através de várias acções.

8. Somente em casos de pluralidade de resoluções poderá pôr-se a questão do crime continuado.

9. Importante será, então, averiguar se ocorreram, ou não, circunstâncias exógenas que facilitaram a “recaída” do agente e, em consequência, determinem uma diminuição considerável da culpa.

10. ”Pelo que o pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” (Prof. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso, p. 205 e ss.; Direito Criminal II, p. 209).

11.  Ou seja, o crime continuado apresenta-se como um “fracasso psíquico” do agente, sempre homogéneo, perante a mesma situação de facto, suposto porém que o agente não revele uma personalidade que se deixe facilmente sucumbir perante situações externas favoráveis e que, por essa fragilidade, facilmente não supere o grau de inibição relativamente a comportamentos que preenchem um tipo legal de crime (cfr., Hans Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, trad. da 5ª edição, 2002, pág. 771-772).

12. EDUARDO CORREIA in Teoria do Concurso em Direito Criminal, Colecção Teses, Almedina, 207 – “aquilo que na continuação criminosa arrasta o agente para a reiteração é precisamente o facto de, com a primeira conduta, se amolecerem e relaxarem as reações morais ou jurídicas que o frenavam e inibiam” (…) 246:” quando um delinquente se encontra de novo ante uma determinada situação, que, convidando à realização de um certo crime, já uma vez foi por ele aproveitada com êxito, há-de, sem dúvida, sentir-se fortemente solicitado a reiterar a sua conduta criminosa, e só muito dificilmente se manterá no caminho direito”.

13. Ora, o padrão de actuação do Arguido era, segundo o que referiu a queixosa, sempre o mesmo.

14.  O facto de a queixosa não oferecer resistência, nunca apresentar queixa às autoridades, nem aos próprios familiares, não ter saído de casa (apesar de ter condições para isso), e nunca ter contado ao namorado facilitou muito, como é lógico, a alegada resolução para actos posteriores.

15.  Não podemos ainda esquecer que o Recorrente tem 1.63m (três centímetros de diferença para a recorrida), e não é especialmente forte.

16.  Toda esta conjugação de factores ocorreu durante um determinado lapso temporal, apurado pelo Tribunal, mas em alguns aspectos, não concretizado.

17. Todos estes factores, de modo a facilitar a continuação da alegada atividade criminosa, diminuindo consideravelmente a culpa do agente,

18.  Elenca Eduardo Correia (Direito Criminal, II, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1971, Pág. 203 e ss.), como situações exteriores típicas da unidade criminosa, da continuação, sem esgotar o domínio dessa continuação, e sendo sempre a “diminuição considerável da culpa”, como ideia fundamental, as seguintes:

19.  a) assim, desde logo, a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos

20. b) a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;

21.  c) a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa;

22.  d) a circunstância, de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa”.

23.  Sendo que, a conexão espacial e temporal das actividades continuadas, não assume papel de especial relevo, apenas podendo ter interesse quando puder afastar a conexão interior da ligação factual entre os diversos actos (derivando esta de a motivação de cada facto estar ligado à dos outros).

24. Decisivo é, pelo contrário, que as diversas actividades preencham o mesmo tipo legal de crime, ou pelo menos, diversos tipos legais de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, este será o limite de toda a construção”. In www.dgsi.pt. Acórdão do STJ de 20/10/2010.

25.  Como na decisão recorrida não foi ponderado que os actos praticados surgem num curto lapso de tempo (apesar de não conseguir apurar das datas) e que configuram uma interrupção no percurso de vida do arguido em que ressalta uma relação familiar estável e harmoniosa.

26. Além do facto, de ter pautado a sua vida ao longo destes anos dentro dos parâmetros estabelecidos pela sociedade.

27.  Os critérios de escolha e determinação da medida da pena não foram devidamente ponderados pelo Tribunal recorrido, violando consequentemente o art.º. 71º. do C. Penal.

28.  Se “ a prevenção geral e a especial devem figurar conjuntamente como fins das penas”;

29.  Se “havendo conflito entre elas, terá ele de ser resolvido com preferência da prevenção especial, pois a primazia da prevenção geral pode frustrar o fim preventivo especial, enquanto a preferência pela prevenção especial não exclui os efeitos da prevenção geral” (Roxin);

30.  Se o “aumento da severidade das penas, como controlo do crime, é ineficaz e, como castigo pode revelar-se injusto”, (Elena Larrauari);

31. Se o drama da prevenção geral positiva é o de “chegada a hora da escolha da pena e da fixação da sua medida concreta, ela não se distingue da prevenção geral intimidatória”, confundindo-se com uma “satisfação das expectativas comunitárias” com a preocupação de dar resposta, pela dureza das penas à insegurança (real ou sentida);

32.  Se esta confusão “tende a funcionar mais como um instrumento de uma política (administrativa) de segurança do que de uma política criminal de justiça”;

33.  Se “a prevenção geral, sempre que estejam em causa segmentos da criminalidade que suscitam sentimentos de particular rejeição, tenderá necessariamente a constituir uma justificação complacente do endurecimento das penas e da submissão do direito penal às exigências da segurança interna”…

34. O Tribunal a quo não ponderou, devidamente, as condições sócio-económicas do recorrente.

35.  Nem levou em devida conta, para a determinação da medida da pena, facto de ter uma filha menor e o consequente forte laço afectivo.

36. Que o arguido “dispõe de condições familiares e profissionais favoráveis ao seu processo de ressocialização, cujo sucesso estará condicionado sobretudo a manutenção da motivação que evidencia para concretizar da sua vida pró-social

37. “O processo de socialização de AA decorreu no seio de uma família monoparental, devido ao falecimento do progenitor, vitima de um acidente de viação, quando contava o arguido 6 a 7 anos de idade.

O ambiente familiar sempre foi harmonioso, coeso, promovendo laços de vinculação seguros e gratificantes.

A mãe, pessoa avaliada com bastante dinâmica, sempre garantiu a satisfação das necessidades básicas ao grupo de 7 filhos, através da realização de trabalhos agrícolas, nos quais os filhos foram sendo precocemente envolvidos. Por essa razão, o investimento escolar não foi valorizado, sendo que o arguido terá segundo a irmã frequentado o segundo ciclo, não completado contudo a escolaridade obrigatória.

AA, mantém uma relação de casamento com a mãe da ofendida desde há 23 anos, que segundo a progenitora sempre decorreu de forma gratificante, designadamente em termos afectivos e com vivencia de uma sexualidade activa.

Nos últimos 4 anos, o arguido esteve dois anos em Espanha e os dois últimos em França. Desde que está em França passou a vir a casa inicialmente mensalmente e mais recentemente de dois meses, aproximadamente.

O presente processo teve elevado impacto na dinâmica familiar, sobretudo com grande desgaste emocional sobre o cônjuge, a qual refere que pensa obsessivamente nos factos, não dorme e sente-se sempre angustiada. Segundo esta, nunca se apercebeu de quaisquer comportamentos desadequados no relacionamento entre o arguido e a filha. A filha começou a namorar aos dezasseis anos de idade, e o namorado, com quem vive em união de facto desde Abril de 2013, era pessoa que frequentava a casa e gozava da simpatia de todos, designadamente do arguido.

No meio social os elementos da rede de vizinhança não tecem comentários face aos factos, embora se mostrem surpresos, pois, aparentemente o arguido apresentava-se-lhes como uma pessoa ajustada aos diferentes níveis. Não são visíveis sentimentos de hostilidade ou rejeição, aguardando que a justiça apure a verdade.

A família do arguido demonstra sentimentos de vergonha, embora continuem a relacionar-se com ele, evitam falar-lhe da situação, e ocultam o processo da progenitora.” 

38. Estas circunstâncias, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do recorrente,  a ocupação laboral que evidencia, a estabilidade familiar que demonstra(ou), se tivessem sido devidamente ponderadas e analisadas, com o devido respeito o dizemos, tornam o recorrente apto a uma fácil recuperação, retomando uma vida normal, regendo a sua conduta por valores condizentes com a lei, tornando-se uma cidadão útil, o que vai ao encontro dos seus desejos.

39. Considerando tais elementos e dado a conduta do arguido se afigurar subsumível ao tipo legal de crime previsto no artgº. 164º., nº. 1 e 177.º, n.º 1, al.a) ambos do C.P, o qual prevê uma pena de quatro a trezes anos e 4 meses de prisão, reputamos como adequada e suficiente a pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de violação praticado entre Janeiro de 2008 e Junho de 2008;

- 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes de violação;

- 4 (quatro) anos de prisão, por cada um dos demais crimes de violação.

40. Considerando que o limite máximo e o limite mínimo pela mais elevada das penas parcelares concretamente aplicadas, e, com limite mínimo uma pena de 4 anos de prisão.

41. Quanto à personalidade do arguido tendo presente os factos e o respectivo contexto há que concluir que o ilícito, não revela a existência de uma tendência criminosa, sendo certo que foi um acto isolado na sua vida.

Pelo que em face do exposto nos termos descritos, deveria ter sido aplicada ao arguido uma pena única muito inferior àquela que foi erradamente aplicada.

42.  Assim se decidindo, permitir-se-ia ao recorrente, a curto prazo, abraçar uma nova vida, inserindo-se novamente na sociedade, prosseguindo com a sua predisposição para o trabalho, sendo que o aqui arguido sempre trabalhou ao longo da sua vida, sendo que este é o único sustento do seu agregado familiar, tentando evitar, deste modo, a quebra da sua inserção na comunidade – para não debilitar ou mesmo quebrar os laços que ainda subsistem-, concedendo-lhe a possibilidade de não se afastar, por muito tempo dos hábitos de trabalho.

43. Assim se decidindo, permitir-se-ia à recorrente, a curto prazo, abraçar uma nova vida, inserindo-se novamente na sociedade, prosseguindo com a sua predisposição para o trabalho, que resultou provada na sentença recorrida, tentando evitar, deste modo, a quebra da sua inserção na comunidade para não debilitar ou mesmo quebrar os laços que ainda subsistem-, concedendo-lhe a possibilidade de não se afastar, por muito tempo dos hábitos de trabalho.

44. Considerando o exposto, subsumido nas disposições conjugadas dos Art.ºs 40º. e 71º. do C. Penal, constata-se que a pena aplicada não respeitou os critérios da sua determinação, pelo que o Mmo. Tribunal a quo violou as aludidas normas.

Sem prescindir ainda,

45. Os pressupostos de que depende a suspensão da execução da pena estão, pois, verificados.

46. O pressuposto de ordem formal exige que a pena aplicada não exceda cinco anos, o que, de facto se verificou.

47. O pressuposto de ordem material: medida autêntica de tratamento bem definido com sentido pedagógico e educativo.

48. No caso em apreço, julga-se possível formular um juízo favorável ao referido arguido no tocante às exigências de prevenção de futuras delinquências e de promoção da sua recuperação, pelo que a proceder as considerações antecedentes deve ser suspensa a execução da pena aplicada sob pena de ao assim, não decidir, se violar o disposto no artgº. 50º., nº. 1 do C. Penal, por deficiente  interpretação do mesmo.

49. O Tribunal a quo, à luz do princípio da investigação, não podia subtrair os factos por si recolhidos em julgamento, à dúvida razoável e, consequentemente, observar o princípio in dubio pro reo, decorrente do princípio constitucional da presunção de inocência – artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, doravante, C.R.P.

50. Ora, uma vez que estão cumpridos todos os requisitos para julgar a factualidade constante da Acusação como Crime Continuado, entendemos nós, que vem o Arguido acusado 11 vezes pelo mesmo crime. Tal situação é Inconstitucional, uma vez que, “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.»

5. O Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, concluindo:

«a) Que não deve ser admitido o RECURSO interposto pelo arguido AA relativamente aos crimes e às penas parcelares, em todos os casos, inferiores a 8 anos de prisão, por essas decisões serem, nessa parte, irrecorríveis para o STJ (artº 414º nº 2 do CPP);

b) E que deve ser confirmada a pena única de 13 [anos] anos de prisão aplicada, em cúmulo jurídico, ao mesmo arguido, negando-se, nessa parte em que a decisão é recorrível, provimento ao recurso.»

6. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-Geral-Adjunta, usando a faculdade prevista no n.º 1 do art. 416.º do CPP, veio salientar que o arguido «recorreu do acórdão que deveria ter apreciado o recurso que havia interposto e não que “formalmente” indeferiu a sua reclamação por decisão sumária pois conforme a lei prevê para esta decisão ser mantida deveria ter sido apreciada o recurso e não manter apenas porque foi transcrita a fundamentação porque “nada mais se suscitar referir, por absolutamente desnecessária e por forma a evitar a repetição da fundamentação aduzida”.»

E considerou que «decisão sumária com a abrangência que atingiu poderia ser um acórdão obtido em conferência pois apreciou e decidiu quer a matéria de facto nomeadamente sobre as declarações da assistente e testemunhas quer sobre as questões de direito, designadamente sobre o crime continuado mas já não sobre a eventual pena única, o que poderia constituir uma nulidade ocorrida nesta decisão sumária.

Todas estas questões assim apreciadas ultrapassaram a simples “decisão sumária”, pois o n.º 2 do art. 420.º estabelece para o caso de rejeição do recurso “… a decisão limita-se a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão”

Referiu ainda, relativamente à medida das penas parcelares, que: «Independente de já não poderem ser, eventualmente, susceptíveis de recurso porque qualquer das penas parcelares é inferior a 8 anos de prisão, da matéria de facto relativa aos 7 crimes de violação, cometidos tão imprecisamente entre 2008 (após o 1º crime) e final de 2012 poderia ter suscitada não o crime continuado, mas o crime de violação de trato sucessivo, até porque da fundamentação da matéria de facto resulta que apenas as declarações das Assistente que não poderão ter o valor correspondente às da vítima/demandante civil, (arts. 145.º e 127.º do CPP) são a base da imprecisão da data das ocorrências dos factos.» E concluindo neste ponto: «Esta eventual questão de direito que poderia ter beneficiado o arguido, poderá ser relevante para a medida da pena única.»

Por fim, e no que concerne à medida da concreta pena única, considerou:

«Na pena única que foi aplicada ao arguido AA na 1ª instância, uma vez que no tribunal da relação houve omissão, foi apreciado foi considerado exclusivamente que o “ilícito global revela a existência de uma tendência criminosa” e por isso foi fixada em 13 anos de prisão que foi encontrada entre os 6 anos e os 25 anos de prisão.

3.2.1 - Parece-nos que deverá ser feita uma apreciação global dos factos que originaram os crimes, as circunstâncias em que se verificam, a personalidade actual do arguido (no momento em que foi julgado) que serão relevantes para determinar a pena única que deve ser aplicada ao arguido/recorrente AA.

Os crimes terão sido cometidos entre 2008 e Fevereiro de 2013 o que se pode considerar crimes ocorrido por um período extenso, embora o arguido tivesse passado a maior parte do tempo em Espanha e em França a trabalhar.

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está, pois, ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.

Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos), deve ser ponderado o modo como a personalidade se projeta nos factos ou e por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente (Ac. do STJ de 6/10/2010, p. 107/08.6GTBRG.S1, 3ª sec.).

3.2.2 - O arguido tem agora 46 anos de idade e para apurar a medida da pena única ter-se-á de considerar que além de ser primário, a personalidade até agora revelada não demostra ser consideravelmente desviante, tendo levado a vida a trabalhar em países da comunidade europeia e sem ter demostrado que tem tendência criminosa, ao contrário do que foi concluído pela 1ª instância até porque tem outra filha mais nova (na data do julgamento 2014, tinha 17 anos de idade), com a qual não se imiscuiu.

É certo que não esteve em julgamento, mas ao contrário do que foi considerado no tribunal da relação foi devidamente autorizado a seu pedido para não perder o emprego, tendo sido julgado como se estivesse presente (cfr. fls. 259 e 266).

3.3 - Parece-nos que a personalidade do arguido que também resulta do relatório social não se projecta nos factos e reconduz a uma pluriocasionalidade avaliando-se assim a gravidade da ilicitude global, o que se poderia/deveria também concluir dos crimes de trato sucessivo, se assim se pudessem ter considerado os 7 crimes de violação.

Se também se atender aos factos que o arguido/recorrente tentou demostrar e a conexão entre os crimes segundo nos parece a pena única poderia ser fixada próxima dos 8 anos de prisão.

Assim e se não forem conhecidas oficiosamente outras questões, o recurso do arguido AA poderá obter parcial provimento quanto à pena única que lhe foi aplicada.»

7. Notificado deste parecer, de harmonia com o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.

 8. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.


II

Fundamentação


A. Matéria de facto provada:

1. Matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância (fls. 293-297):
«1. A assistente nascida a ... é filha do arguido;
2. O arguido trabalha na construção civil, tendo exercido tal profissão até Junho de 2012 em Espanha, e após tal data, em França;
3. A assistente residiu até Abril de 2013, com a mãe, BB, a irmã, CC, actualmente com 18 anos de idade, e o arguido, na casa de morada de família em....;
4. E vive actualmente em união de facto com DD, com quem encetou uma relação de namoro quando tinha 16 anos.
5. O arguido quando a assistente iniciou o referido relacionamento de namoro, começou a manifestar curiosidade relativamente à sua vida sexual, verbalizando pretender manter com ela relações sexuais, o que a mesma sempre negou;
6. E de forma reiterada abordava a assistente, dirigindo-lhe as seguintes expressões: “Já que fazes com o EE, também podes fazer comigo, não tem mal nenhum”.
7. No referido contexto, em data não concretamente apurada, mas situada entre Fevereiro de 2008 e Junho de 2008, Domingo de manhã, quando a mãe tinha ido à missa e a irmã à catequese, contava a assistente 17 anos de idade, o arguido entrou no seu quarto, enquanto ela dormia e fechou a porta à chave;
8. Seguidamente, deitou-se em cima da assistente, e disse “quero fazer!”.
9. A assistente apercebendo-se que o arguido tinha intenção de ter relações sexuais consigo, começou a chorar e, ao mesmo tempo tentou afastá-lo para sair do quarto dizendo que não queria.
10. Perante a recusa da assistente, de imediato, o arguido deitou-se em cima dela,  imobilizou-a colocando um dos braços por cima, com o outro tirou-lhe a parte de baixo da roupa e, fazendo uso da força física, introduziu o pénis erecto na sua vagina, levando a efeito movimentos de penetração por alguns minutos;
11. Durante o acto sexual descrito, a assistente chorava pedindo-lhe que parasse, dizendo “pára pai”;
12. Ao que o arguido ripostava: “Não me chames pai” “se pode ser com o EE, também pode ser comigo, é a mesma coisa”, “Se não me deixares, alguém há-de sofrer!”.
13. No final do acto sexual enunciado, o arguido disse à assistente, em tom sério: “se contares a alguém vai ser bem pior”.
14. A assistente, em consequência, fragilizada e com medo do arguido, não contou o sucedido.
 15.O arguido aproveitando-se dos factos supra descritos, do ascendente que tinha sobre a assistente e bem assim do temor que esta lhe votava, posteriormente, em pelo menos, nove ocasiões, que tiveram lugar em dia e hora não concretamente apurados, mas seguramente entre o ano de 2008 (depois dos factos descritos em 7. a 13.) e o final do ano de 2012, quando regressou do trabalho no estrangeiro, de fim-de-semana ou de férias, agarrou a filha e assistente pelos braços, imobilizando-a contra a parede ou obrigando-a a ajoelhar-se no sofá de costas para si, colocando-a em situação de inferioridade;
16. Após o que lhe despiu a parte de baixo da roupa e, por trás introduziu-lhe o pénis erecto na vagina, fazendo movimentos de penetração, apalpando-lhe, por vezes, os seios;
17. No mesmo circunstancialismo, para impedir que a assistente gritasse, e em número de vezes também não concretamente apuradas, tapava-lhe a boca;
18. E numa das ocasiões deu-lhe uma bofetada na face.
19. O arguido ejaculava habitualmente no interior da vagina da assistente e não usava contraceptivo.
20. Os actos referidos de 15 a 18 ocorreram na sala da casa que arguido e assistente habitavam, divisão por aquele escolhida por aí, através da janela, ter o controlo de quem se aproximava da habitação.
21. O arguido, para além dos actos descritos, no apontado período temporal e circunstâncias, por número de vezes não concretamente apuradas, exibiu o pénis perante a assistente e incitou-a à prática de sexo oral dizendo “chupa-me”, ao que esta nunca acedeu;
22. E em duas ocasiões, distintas, ocorridas no período temporal e circunstâncias, referidos de 15. a 18., por meio da força e constrangimento exercidos e descritos agarrando-a pelos braços e, em momento prévio à introdução do pénis na vagina da assistente, passou a sua boca e língua pela vulva desta.
23. No dia 18 de Fevereiro de 2013, Segunda-Feira de Carnaval, cerca das 07h30, encontrando-se a assistente a tomar o pequeno-almoço para sair para o trabalho, o arguido entrou na cozinha, agarrou-a com força por um braço e arrastou-a até à sala junto à janela;
24. De imediato, empurrou a assistente contra as costas do sofá, imobilizando-a, desceu a parte de baixo da roupa que esta vestia e, por trás da assistente, em pé, introduziu-lhe o pénis erecto na vagina, fazendo movimentos de penetração por alguns minutos, ejaculando no seu interior.
25.Em todos os supra expostos actos, o arguido fazendo uso da sua força física, valendo‑se da ascendência que tinha sobre a assistente e do temor e constrangimento emocional que lhe causava levou-a, contra vontade, à prática de cópula e sofrer o toque nos seus seios e vulva, bem sabendo que a mesma não queria e que lhe pedia insistentemente para parar, e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
26. E actuou em todas as situações descritas de forma livre, deliberada e consciente.
**
27.O arguido aquando da prática dos factos descritos actuou sob a ameaça de fazer mal à irmã e mãe.
28. Em consequência da actuação do arguido, a assistente sentiu ansiedade e receio, quer pela sua integridade física, quer pela segurança da sua irmã e mãe;
29. Desgosto, amargura, humilhação, culpa e vergonha;
30. Tende até hoje a isolar-se, apresentando dificuldade em expressar sentimentos;
31. E revela baixa auto-estima;
32. A assistente engravidou e receando que a gravidez pudesse ser resultado da actuação do arguido, tomou a decisão de a interromper, o que veio a suceder em Abril de 2013.
33. Analisado o produto biológico resultante da mencionada interrupção da gravidez resultou, com uma probabilidade de 99.999999%, ser o namorado e actual companheiro da assistente, o pai.
34. Do relatório social do arguido decorre:
O processo de socialização de AA decorreu no seio duma família monoparental, devido ao falecimento do progenitor, vítima de um acidente de viação, quando contava o arguido aproximadamente 6 a 7 anos de idade.
O ambiente familiar sempre foi harmonioso, coeso, promovendo laços de vinculação seguros e gratificantes
A mãe, pessoa avaliada como bastante dinâmica, sempre garantiu a satisfação das necessidades básicas ao grupo de 7 filhos, através da realização de trabalhos agrícolas, nos quais os filhos foram sendo precocemente envolvidos. Por essa razão, o investimento escolar não foi valorizado, sendo que o arguido terá segundo a irmã frequentado o segundo ciclo, não completando contudo a escolaridade obrigatória.
AA mantém uma relação de casamento com a mãe da ofendida desde há 23 anos, que segundo a progenitora sempre decorreu de forma gratificante, designadamente em termos afectivos e com vivência de uma sexualidade activa.
Nos 4 últimos anos, o arguido esteve dois anos em Espanha e os dois últimos em França. Desde que está em França passou a vir a casa inicialmente mensalmente e mais recentemente de dois em dois meses, aproximadamente.
O presente processo teve elevado impacto na dinâmica familiar, sobretudo com grande desgaste emocional sobre o cônjuge, a qual refere que pensa obsessivamente nos factos, não dorme e sente-se sempre angustiada. Segundo esta, nunca se apercebeu de quaisquer comportamentos desadequados no relacionamento entre o arguido e a filha. A filha começou a namorar aos dezasseis anos de idade, e o namorado, com quem vive em união de facto desde Abril de 2013, era pessoa que frequentava a casa e gozava da simpatia de todos, designadamente do arguido.
No meio social os elementos da rede de vizinhança não tecem comentários face aos factos, embora se mostrem surpresos, pois, aparentemente o arguido apresentava-se-lhes como uma pessoa ajustada aos diferentes níveis. Não são visíveis sentimentos de hostilidade ou rejeição, aguardando que a justiça apure a verdade.
A família do arguido demonstra sentimentos de vergonha, embora continuem a relacionar-se com ele, evitam falar-lhe da situação, e ocultam o processo da progenitora.
35. Nada consta no certificado de registo criminal do arguido.
36. Por decisão proferida em 28 de Janeiro de 2008, no âmbito do proc. n.º 2/06.3GBMCN, o arguido foi absolvido da prática na pessoa da assistente de quatro crimes de abuso sexual.»

            B. Matéria de direito

1. A partir das conclusões apresentadas aquando da interposição do recurso pelo arguido AA, verificamos que são 3 os pontos a analisar:

a) sobre a qualificação jurídica dos factos praticados: crime continuado?

b) medida das penas aplicadas a cada um dos crimes por que vem acusado, e medida da pena única aplicada; aplicação de uma pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão;

c) violação do princípio in dubio pro reo e violação do princípio do ne bis in idem.

2. Antes de procedermos à análise dos aspetos invocados pelo arguido, cumpre analisar o ponto salientado pela Senhora Procuradora Geral Adjunta quanto à decisão sumária que, por causa da sua extensão, não corresponde ao disposto no art. 420.º, n.º 2, do CPP, dado que não constitui uma decisão que se tenha limitado a “identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e as especificar sumariamente os fundamentos da decisão.”

Na verdade, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto tendo expressamente contestado a matéria de facto (com transcrições longas da prova produzida em audiência de discussão e julgamento), e invocando diversos vícios. Tal como refere o acórdão agora recorrido, as questões suscitadas eram as seguintes: erros de julgamento, valoração de depoimentos indiretos, violação do princípio in dubio pro reo, extinção do direito de queixa, qualificação jurídica dos factos como crime continuado, medida da pena e aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, nulidade do acórdão por falta de fundamentação quanto ao pedido de indemnização civil, não verificação dos pressupostos de aplicação desta indemnização, e violação de princípios constitucionais como o princípio da presunção de inocência, o princípio da culpa, e o princípio da “socialidade/solidariedade ou do fair trail [leia-se «trial»]” (cf. fls. 711 e 711/verso). Daqui facilmente se percebe que se tratava de uma vasta matéria a analisar. E esta foi decidida por decisão sumária (a 02.07.2015, cfr. fls. 632 e ss) tendo-se concluído que o recurso era “manifestamente improcedente”.

É desta decisão sumária que o arguido reclama para a conferência, cujo acórdão agora recorrido — após transcrição em cerca de 9 páginas, a fls. 711/verso a 716, quando a decisão sumária era de 44 páginas: fls. 632 a 653/verso —, apenas se limita a concluir:

«Perante o que foi dito, a renovada tese do arguido não só não tem aderência, como até choca com a realidade vertida no processo.

Donde e, do que vem de ser transcrito, por nada mais se suscitar referir, por absolutamente desnecessário e por forma a evitar a repetição da fundamentação aduzida, remetendo-se para a, cremos que, exaustiva e acabada constante da decisão reclamanda, conclui-se, reafirmando-se e mantendo-se a posição aí assumida.

Está pois, perante o exposto, a presente reclamação votada ao insucesso.”

Ao que se seguiu o dispositivo: “Nestes termos e com os fundamentos mencionados, acordam os Juízes que compõem este Tribunal, em julgar improcedente a reclamação para a conferência, apresentada pelo arguido AA.”

Ora, se é certo que até à reforma de 2007 (decorrente da Lei n.º 48/2007, de 20.08) o âmbito de atuação do juiz relator, em sede de recurso, era bastante limitado “não [tendo] quaisquer poderes decisórios sobre questões que, directa ou indirectamente, se prendem com o objecto do recurso” (ac. do STJ, de 02.07.2003, proc. n.º 03P2146, Relator: Cons. Antunes Grancho, in www.dgsi.pt), com a reforma operada em 2007 pretendeu-se alargar esta competência.

Assim, a proposta de lei n.º 109/X entendeu:

Competirá ao relator convidar a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas pelo recorrente, decidir se deve manter-se o efeito atribuído ao recurso e se há lugar à renovação da prova e apreciar o recurso quando este deva ser rejeitado, exista causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade e a questão a decidir já tenha sido apreciada antes de modo uniforme e reiterado (...).Com esta repartição de competências racionaliza-se o funcionamento dos tribunais superiores, promovendo-se uma maior intervenção dos juízes que os compõem a título singular.” (in http://app.parlamento.pt ).

Pretendeu-se, pois, alargar os poderes do juiz relator dando-lhe possibilidade de apreciar o objeto de recurso e sobre ele deliberar quando o considerasse manifestamente improcedente. No entanto, apenas pode proferir uma decisão sumária nos casos em que entenda que deve rejeitar o recurso por manifestamente improcedente. Ou seja, a limitação existente resulta apenas de se poder considerar ou não, numa apreciação sumária, a interposição de recurso como passível de rejeição (cf. art. 417.º, n.º 6, al. b), do CPP), nomeadamente, quando for manifesta a improcedência do recurso (cf. art. 420.º, n.º 1, al. a), do CPP); e só nestes casos, isto é, só sendo manifesta a improcedência, é que se poderá cumprir o disposto no art. 420.º, n.º 2, do CPP, pois só assim é possível apenas “especificar sumariamente os fundamentos da decisão”.

Ora, tendo em conta a decisão sumária proferida nos presentes autos, não se trata de todo de uma apreciação sumária do recurso interposto, isto é, não se trata de uma decisão que tenha apenas “especifica[do] sumariamente os fundamentos da decisão”; na verdade, a decisão sumária procedeu a muito mais do que um simples juízo perfunctório sobre o recurso interposto, tratando-se de um verdadeiro acórdão. Mas, o não cumprimento dos dispositivos supra referidos determina a nulidade da decisão sumária e consequentemente a nulidade do acórdão agora recorrido? Sabendo que as nulidades têm que estar expressamente previstas na lei, e dado que nada se refere a este propósito, não podemos considerar estar perante uma invalidade daquelas duas decisões. Assim sendo, tudo indica estarmos apenas perante uma irregularidade. E, tratando-se de irregularidade, esta deveria ter sido invocada pelo arguido. E nem mesmo a Senhora Procuradora-Geral Adjunta agora a invoca expressamente, dado que, a ser possível invocá-la, há muito que o prazo admissível foi ultrapassado. Ora, não tendo havido qualquer alegação de irregularidade, não cabe a este Tribunal dela conhecer.

3.  O arguido vem condenado pela prática de 11 crimes de violação com penas de prisão efetiva que oscilam entre 5 anos e 6 meses e 6 anos. Sabendo que houve confirmação integral do acórdão de 1.ª instância pelo Tribunal da Relação do Porto, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Isto é, havendo dupla conforme, tudo o respeitante aos crimes parcelares analisados individualmente não pode ser objeto de apreciação por este Tribunal. É a limitação decorrente da legislação em vigor, e que tem sido entendida como conforme a Constituição, dado que o Tribunal Constitucional tem, de forma persistente, considerado que o direito fundamental ao recurso, consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP, é assegurado com o duplo grau de jurisdição, ou via única de recurso (assim, entre outros, acórdãos do Tribunal Constitucional  n.ºs 649/2009, 186/2013, 269/2014, in www.tribunalconstitucional.pt).

Ora, apesar de o recurso interposto ter sido admitido, sem quaisquer restrições, por parte do tribunal a quo, esta decisão não vincula este Supremo Tribunal, conforme decorre do disposto no n.º 3 do art. 414.º do CPP.

Assim sendo, e considerando o exposto, fica prejudicada a análise das penas parcelares aplicadas a cada um dos crimes de violação agravada em que o arguido vem condenado, por irrecorribilidade do acórdão, nos termos dos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f), ambos do CPP, pelo que improcede o recurso nesta parte.

4. O arguido recorre ainda da medida da pena única aplicada ao concurso de crimes de violação em que vem condenado. Sendo esta de 13 anos de prisão efetiva nos termos dos arts. 399.º, 432.º, n.º 1, al. c) e 434.º, todos do CPP, é admissível o recurso.

Ou seja, o arguido considera que a pena única não é a adequada, embora chegue a esta conclusão por considerar que deveria ter sido condenado num crime continuado de violação. Assim considerando, e partindo apenas do alegado pelo recorrente, então, a pena deveria ter sido determinada com base no disposto no art. 79.º, do CP e não, como ocorreu, com base no art. 77.º, do CP.

Ora, havendo recurso da pena única, apenas se poderá apreciar esta se os pressupostos da sua aplicação estiverem verificados, ou seja, desde que se conclua que houve concurso de crimes. Tal como temos afirmado em diversos acórdãos, nos casos de concurso de crimes, a determinação da pena única conjunta tem que obedecer, atento o princípio da legalidade criminal, aos critérios específicos determinados no art. 77.º do Código Penal —  ou seja, em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, a pena única apenas pode ser aplicada caso estejam verificados os seus pressupostos de aplicação, isto é, caso estejamos perante uma situação de concurso efetivo de crimes (assim, expressamente, em acórdão de 11.06.2015, proc. n.º 401/13.4JAPRT.P1.S1, de 15.10.2015, proc. n.º 294/11.6GAVVD.G4.S1, de 26.11.2015, proc. n.º 1519/12.6PHLRS.L1.S1, de 17.12.2015,  proc. n.º 520/13.7PCRGR.L1.S1, de 27.01.2016, proc. n.º 2837/09.6GBABF.E1.S1, de 17.03.2016, proc. n.º 514/10.4PBAVR.S1, em todos foi Relatora e seu Adjunto os subscritores deste acórdão; mas também, por exemplo, no acórdão de 21.08.2015, proc. n.º 1727/13.2JAPRT.P1.S1, relatora: Cons. Isabel São Marcos, com o mesmo juiz conselheiro adjunto destes autos).

 Não se trata, além disto, de jurisprudência nova neste Supremo Tribunal.

Na verdade, há já jurisprudência que tem conhecido do crime continuado mesmo em casos em que os crimes individualmente considerados foram punidos com pena de prisão inferior a 8 anos e em que houve dupla conforme — assim, por exemplo, o acórdão de 17.09.2014, no processo n.º 67/12.9JAPDL.L1.S1 (in www.dgsi.pt),  e o acórdão de 24.09.2014, no processo n.º 53/12.9JBLSB.L1.S1 (in  Sumários de Acórdãos — Criminal: ano de 2014, in www.stj.pt), ambos do relator Cons. Santos Cabral (Mas outros há que podemos referir onde foi conhecido o crime continuado ainda que estivesse em causa o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP; por exemplo, ac. de 14.03.2013, no proc. n.º 294/10.3JAPRT.P1.S2, e ac. de 08.0.2014, proc. n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, ambos do relator: Cons. Armindo Monteiro (in www.dgsi.pt).).

Pelo que, antes de analisarmos a pena única aplicada, teremos que verificar se os pressupostos da sua aplicação, a existência de um concurso de crimes, se encontram preenchidos, ou se, pelo contrário e como pretende o recorrente, apenas se deveria ter entendido estarmos perante um único crime.

4.1.  O arguido vem condenado, em concurso de crimes, pela prática de 11 crimes de violação agravada, nos termos dos arts. 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP. Considera, porém, que há circunstâncias exógenas que atenuam a culpa do agente, pelo que deveria ter sido entendido não estarmos perante um concurso de crimes, mas sim perante a prática de um único crime, um crime continuado, pelo que a pena devia “rondar os 5 anos de prisão” e “deveria o Tribunal pugnar pela suspensão da execução da pena de prisão” (fls. 731).

Mas, desde já se esclarece que consideramos não estarem os pressupostos do crime continuado preenchidos, considerando que o arguido foi corretamente punido pelo concurso efetivo de crimes.

4.1.1. O crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, é caracterizado por uma “realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”; porém, esta figura criada pelo legislador não deve, nos termos do n.º 3 do mesmo dispositivo, abarcar “os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”.

Na verdade, o crime continuado integra uma situação que revela uma “gravidade diminuída” (Eduardo Correia) relativamente aos casos de concurso de crimes, pois apesar de abarcar “actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime — ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente  protegem o mesmo bem jurídico —, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções criminosas (...), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente” (Eduardo Correia, Direito Criminal, II, Almedina, 1993, reimpressão, p. 209). E deve desde já salientar-se que mesmo no crime continuado há uma pluralidade de resoluções criminosas que, todavia, são normativamente aglutinadas numa só. Esta junção ocorre porque se entende que a situação exterior “facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” (idem).

Mas, já Eduardo Correia afirmava: “Sem esquecer que de o mesmo bem jurídico se não pode falar quando se esteja perante tipos legais que protejam bens iminentemente pessoais; caso em que, havendo um preenchimento plúrimo de um tipo legal desta natureza, estará excluída toda a possibilidade de se falar em continuação criminosa” (idem, p. 211). Situações que deverão então ser subsumidas á figura do concurso efetivo de crimes.

Na verdade, o crime continuado não é mais do que “um concurso de crimes efectivo no quadro da unidade criminosa, de uma “unidade criminosa” normativamente (legalmente) construída” (Figueiredo Dias, Direito PenalParte Geral, t. I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2007, 43/ § 37), considerando-se que estamos perante situações em que há uma “diminuição da culpa, em nome de uma exigibilidade sensivelmente diminuída” (idem, 43/ § 47).Trata-se, pois, de situações em que ocorre ou um dolo conjunto ou continuado,  ou onde se verifica uma pluralidade de resoluções criminosas (cf. também neste sentido, Figueiredo Dias, ob. cit., 43/ § 44 e 45), todavia legalmente unificadas de modo a construir uma unidade criminosa.

Mas, não podemos deixar de referir que a figura do crime continuado, que entre nós tem consagração legal, teve origem jurisprudencial (no séc. XIX, na Alemanha), mas acabou por ser rejeitada pela jurisprudência e pela doutrina (cf., Roxin, Derecho Penal. Parte General, t. II, Civitas, 2014, § 33, nm. 256 e ss). E esta posição crítica também aparece na doutrina portuguesa — “não pode esquecer-se que figura do crime continuado, na medida em que dispensa o Tribunal de determinar o número exacto de actos singulares abrangidos pela continuação criminosa e bem assim de aplicar uma pena a cada um desses actos (...) frequentemente estimula uma falta de rigor na averiguação, comprovação e valoração jurídico-penal dos factos relevantes para o respectivo processo.” (Maria da Conceição Valdágua, As alterações ao Código Penal de 1995, relativas ao crime continuado. Propostas no anteprojecto de revisão do Código Penal, RPCC, 2006, p. 538).

Na verdade, tem sido considerado que a figura do crime continuado privilegia injustamente os agentes de um crime continuado, relativamente aos que praticam um concurso efetivo de crimes, e desde logo tendo em conta o efeito de caso jugado que abarca todos os atos integrados na continuação ainda que não tenham feito parte do objeto do processo (Roxin, ob. e loc citado). Mas produz igualmente prejuízos para o condenado, não só porque pode conduzir a um exame superficial dos factos praticados, como prolonga no tempo o início do prazo de prescrição do procedimento criminal, dado que esta apenas inicia com o último facto praticado (cf. art. 119.º, n.º 2, al. b), do CP).

Ora, tratando-se no presente caso de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como é o bem jurídico da liberdade sexual protegido pelo crime de violação, logo por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, não podemos concluir estarmos perante um caso subsumível à figura do crime continuado. Trata-se sim de uma sucessão de crimes praticados ao longo de um período longo— entre fevereiro de 2008 e final de 2012 e em fevereiro de 2013.

4.1.2. Mas é com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”.

Isto é, partindo da ideia que, quando ocorre uma execução repetida ao longo de um período de tempo se torna “arbitrária qualquer contagem”, tem considerado que estamos perante “crimes prolongados, protelados. protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime — apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime — tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido”. E nestes “crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta”.

Para que este “crime prolongado ou de trato sucessivo” exista, exige a jurisprudência “uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução»” —  “deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma” (transcrições do acórdão do STJ, de 29.11.2012, proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1, relator: Cons. Santos Carvalho).

Ou seja, a jurisprudência, seguindo as pisadas da jurisprudência alemã que construiu o crime continuado por dificuldade de prova, acaba por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando que há uma unidade de resolução (que abarca todas as resoluções parcelares que ocorrem aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), mas em que, à medida que se prolonga no tempo, produz uma agravação da culpa do agente.

É esta conduta prolongada, protraída, no tempo que levou à sua designação como crime prolongado, embora a caracterização do crime como prolongado dependa de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de violação, ainda que este seja repetidos inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos consubstanciadores da violação ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos constituem novo crime de violação.

E a ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, uma punição em sede de concurso de crimes.

Até porque a designação de “trato sucessivo” constitui uma designação com um significado juridicamente muito preciso e decorrente do Código de Registo Predial (cf. art. 34.º) pretendendo-se documentar o trato, a traditio da coisa, sucessivamente; ora, num crime sexual não há traditio.

E crime exaurido ou consumido dá a ideia de que logo no primeiro ato se consuma, tornando irrelevantes os atos sucessivos. Ora, o exaurimento do crime assume importância em todos aqueles casos em que, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento. Mas a prática de um crime sexual seguida da de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos atos.

Porém, o que se pretendeu — tal como se afirma no voto de vencido do Cons. Manuel Braz ao acórdão supracitado,  e seguindo Lobo Moutinho (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, UCP, 2005, p. 620, nota 1854) —, foi acentuar a reiteração da conduta criminosa — o “crime de trato sucessivo” assim caracterizado corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” (Figueiredo Dias, ob. cit. supra, 11/ § 55).

No entanto, o entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art. 29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na legislação.

E nenhum crime sexual é previsto na legislação como crime habitual (é exemplo de um crime habitual expressamente previsto no CP o crime de lenocínio).

Unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade. Na verdade, ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto no art. 164.º, do CP.

Em parte alguma o tipo legal de crime de violação permite que se possa entender apenas como uma única violação a conduta violadora exercida repetidamente ao longo de diversos dias em momentos temporalmente distintos.

Poder-se-á ainda assim perguntar: e se for uma violação de manhã e outra à noite, ainda assim estamos perante duas violações?

Estaremos sempre perante um crime de violação sempre que se ofenda o bem jurídico da liberdade sexual, sempre que o novo ato constitua um novo constrangimento da vítima, sempre que se a vítima tenha sido novamente obrigada, novamente ameaçada, constrangida, violentada.

Alguma vez a jurisprudência veio dizer que uma facada de manhã e uma facada à tarde constituía o mesmo crime de violação da integridade física? Ou que uma facada hoje e outro amanhã, e outra na semana passada... se tratava de um mesmo crime de "trato sucessivo"(??), prolongado, exaurido, considerando que o agente tinha tido uma “unidade resolutiva”?

A jurisprudência ao subsumir num único comportamento global baseado numa “unidade resolutiva” as diversas ações integradoras, cada uma individualmente, de um crime de violação viola claramente o tipo legal de crime, unificando num único crime, aquilo que consubstancia a prática de diversos crimes.

Porém, casos há em que não é possível apurar o número exato de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos atos de violação, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados?

Tantos quantos se consiga averiguar.

De outra forma estaremos também aqui a dispensar a investigação de determinar o número exato de atos singulares que foram praticados, abrindo mão do necessário rigor na investigação, e impedindo a valoração jurídico-penal de cada facto relevante praticado pelo arguido. Pode sempre argumentar-se com a necessidade de encontrar uma solução que permita ultrapassar a dificuldade de prova do exato número de factos ilícitos praticados. Consideramos, no entanto, que se trata apenas de uma situação de direito a constituir, dado que não está previsto na lei, pelo que qualquer solução que nesta não esteja prevista não cumpre o princípio nuclear em matéria de direito penal — o princípio da legalidade.

Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura (em sentido idêntico, Roxin, Derecho Penal. Parte General, t. II, Civitas, 2014, §33, nm. 269).

Além disto, pode sempre dizer-se, tal como a jurisprudência alemã argumenta contra a figura do crime continuado (sem expressão legal no Código Penal alemão), que a unificação das várias condutas numa análise global prejudica o arguido — «Ainda que cada facto individual deva ser constatado e provado, a circunstância de as numerosas realizações dos crimes ficarem “fundidas” em um facto total e sem que se imponham penas individuais para cada um deles, conduz frequentemente apenas a um exame superficial dos factos. “(...) [T]em induzido também em não poucas ocasiões a “comprovações” demasiado globais, que têm impedido um exame da realização do tipo e do grau de culpa pelo tribunal de revista, dando lugar a consideráveis restrições das possibilidades de defesa do acusado e têm suscitado a preocupação de que o juiz se deixou levar por uma impressão de conjunto, confusa nos seus limites, e não pela convicção da realização do tipo em cada caso concreto” (BGHSt 40, 147)” (Roxin, ob. cit., § 33/ nm. 260).

Acompanhamos, pois, de perto o que já este Supremo Tribunal disse. Assim:

- acórdão de 17.09.2014, proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1 (Relator: Cons. Pires da Graça):
«Não há aqui qualquer dúvida, é abertamente referida a pluralidade de crimes como pressuposto da aplicação do crime de trato sucessivo (…).
Na impossível transposição das citadas regras psicológicas e de senso comum, assume-se abertamente a existência de pluralidade de infracções, tal como no crime continuado, mas dispensando o também dificilmente verificável requisito da diminuição da culpa, chega-se à mesma conclusão: unidade criminosa, benefício alegadamente temperado com a graduação mais intensa da pena, nos moldes já expostos e que são, ultimamente, invariáveis, isto é, as penas são idênticas às equivalentes ao crime único.
 Em suma, onde se verificam vários crimes ficciona-se que apenas houve um.
Mas como a lei, insofismavelmente, contrapõe ao crime continuado a punição por cada crime perpetrado, no campo para que evoluiu a figura do crime de trato sucessivo (da consideração, em concreto, de aparente unidade de resolução e para o tornar em sucedâneo do agora inutilizável crime continuado) este surge como solução claramente “contra legem” e por isso de rejeitar liminarmente.
 Em casos como o que nos ocupa, poderemos falar sem sobressalto de resoluções criminosas idênticas. Mas isso não equivale à sua unificação. De cada vez que se impôs à sua enteada teve, para o que nos ocupa, de tomar uma daquelas resoluções, tal como o agente que decide esfaquear outrem em dias distintos, assaltar determinada pessoa em várias ocasiões ou violar certo indivíduo em diversas alturas.
 São exemplos pacíficos de pluralidade de resolução, a que equivale a pluralidade de infracções e que no essencial não divergem dos casos de abuso sexual de crianças prolongado no tempo sem que se saiba o número exacto de ocasiões.
Se as razões do recurso à unificação criminosa, porventura, radicam na desproporcionalidade das punições segundo os critérios legais vigentes, para quem assim entenda, mais não há do que desaplicá-los, por inconstitucionalidade fundada na violação do princípio da proporcionalidade.
 Mais uma vez, a figura do trato sucessivo não tem, em boas contas e salvo o devido respeito por diversa opinião, qualquer utilidade.
No campo das categorias abstractas de crimes a conclusão é idêntica, pois, invariavelmente acaba por surgir como equivalente a categorias já existentes, em nada adiantando à dogmática penal. Pelo contrário, só irá servir para confundir conceitos.
 Assim, de nada adianta equipará-la à noção de crime permanente, já existente (ou crime duradouro – por todos Prof. Figueiredo Dias, em Direito Penal, parte geral, tomo I, Coimbra Editora, pág. 295 e seguintes) e que curiosamente até se contrapõe a crime instantâneo (de que o abuso sexual de criança constitui exemplo claro).
 Menos ainda a crime de empreendimento, pois estes caracterizam-se pela equiparação típica entre tentativa e consumação.
 Sequer com crime exaurido, já que este se caracteriza pela circunstância de que “o primeiro passo dado pelo agente na senda do «iter criminis» já constitui o preenchimento do tipo”, segundo o Ac. do STJ de 9.10.2003 (Procº 03P2851).
 Conclui-se portanto pela total irrelevância da figura do crime de trato sucessivo e pela mesma crítica da comunidade à indevida utilização da figura do crime continuado em casos de abuso sexual de crianças.» (in www. dgsi.pt)

- acórdão de 22.04.2015, proc. n.º 45/13.0JASTB.L1.S1, Relator: Cons. Sousa Fonte:
« Discordamos da qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo.
Não desconhecemos que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012, Pº nº 862/11.6TAPFR.S1, citado no acórdão recorrido, tirado com o voto de vencido do primitivo Relator, num caso em que o aí Arguido foi condenado, na 1ª Instância, pela autoria, em concurso real, de diversos crimes de natureza sexual, decidiu que se estava aí perante crimes de trato sucessivo. (…)
Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.
Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989)».» (in www.dgsi.pt).
Assim sendo, estando provados os diversos atos individuais que integram o crime de violação agravada, deverá o arguido ser punido segundo as regras do concurso de crimes, e em matéria de determinação da pena segundo o estabelecido no art. 77.º, do CP.
Analisaremos infra a pena única aplicada (dado que, como vimos, a decisão é irrecorrível em matéria das penas aplicadas a cada um dos crimes de violação agravada em que o arguido foi condenado), não sem antes ponderar sobre a violação do princípio in dubio pro reo e do princípio ne bis in idem alegado pelo recorrente.
4.2.1. Segundo o princípio do ne bis in idem entende-se que o arguido não pode ser julgado duas vezes pelo mesmo facto. O recorrente entende que as condutas por que vem condenado deveriam ter sido unificadas numa única, e por isto entende que aquele princípio foi violado. Porém, como vimos, não só não é possível subsumir as condutas praticadas à figura do crime continuado, como pretende, por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, como não está previsto na lei o impropriamente designado “crime de trato sucessivo”, pelo que qualquer unificação das diversas condutas praticadas subsumíveis ao crime de violação agravada constitui uma violação do princípio da legalidade, previsto no art. 29.º, n.º 1, da CRP. Acresce que o arguido não vem condenado várias vezes pelo mesmo facto, mas sim vem condenado pelos diversos factos ilícitos e típicos que praticou sem que se verifique qualquer violação do princípio invocado.
4.2.2.  No que respeita à invocada violação do princípio in dubio pro reo por, segundo o recorrente, não se poder “subtrair os factos por si recolhidos em julgamento à dúvida razoável” (conclusão 49), também não se nos afigura qualquer violação.
Começando por referir que, embora constituindo o princípio in dubio pro reo um princípio em matéria de prova, a análise da sua violação (ou não) constitui matéria de direito (assim, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, nm. 235), ou questão de direito enquanto juízo de valor ou ato de avaliação da violação (ou não) daquele princípio (Figueiredo Dias, Crime Preterintencional, causalidade adequada e questão-de-facto, RDES, ano XVII (1970), p. 34 da separata), portanto no âmbito de competência deste tribunal. E assim tem sido entendido por este tribunal:
- “O princípio in dubio pro reo, que nada tem a ver com as dúvidas suscitadas ao nível da interpretação das leis, é um princípio geral de direito processual penal, corolário do princípio da presunção da inocência do arguido, com tradução no n.º 2 do art. 32.º da CRP, constituindo a sua violação uma questão de direito, muito embora se assuma como princípio de prova, conformando um daqueles princípios passível de revista.” [ac. de 22-01-2013, Proc. n.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1 - 3.ª Secção, Armindo Monteiro (relator)];
- “O princípio in dubio pro reo é princípio geral do processo penal decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido. Como tal, assume a natureza de uma questão de direito de que o STJ deve conhecer quando da globalidade do próprio texto da decisão resultar que o tribunal, apesar da hesitação sobre a prova de determinado facto, decidiu em sentido desfavorável ao arguido.” [ac. de 06-02-2013, Proc. n.º 593/09.7TBBGC.P1.S1 - 3.ª Secção, Sousa Fonte (relator)];
- “O STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.” [ac. de 29-05-2013, Proc. n.º 344/11.6JALRA.E1.S1 - 3.ª Secção, Santos Cabral (relator)].
Assim sendo, a análise da violação deste princípio constitui matéria de direito no âmbito de cognição deste tribunal.
Ora, compulsada a decisão do tribunal de 1.ª instância nunca se verifica, a partir do ali relatado, nomeadamente quanto à fundamentação da matéria de facto (cf. acórdão de 1.ª instância a fls. 293 e ss, em particular, fls. 297 a 303), qualquer dúvida quanto aos factos provados.
O tribunal baseou-se nas declarações da assistente que prestou depoimento “de forma coerente e credível, descreveu os factos que consigo se passaram, de forma que ao tribunal se afigurou absolutamente consentânea com a realidade, não só pela forma como os descreveu, mas também pela sua postura ao longo do relato efectuado, denotando estar ainda hoje profundamente abalada pelo sucedido”, considerando que estas se mostravam corroboradas por outros depoimentos. Referiu ainda o Tribunal que:
- “No que se reporta aos factos relatados pela assistente ..., destaca-se a sinceridade, consistência e realismo das suas declarações, ainda que confrangedoras e naturalmente emocionadas, na narração das investidas sexuais perpetrados pelo arguido, seu pai, de molde absolutamente convincente e denunciador de um duro e difícil início de vida adulta.
- “Mais circunstanciou, sempre em moldes absolutamente críveis, a escolha do local...
- “A humilhação, vergonha, sentimentos de culpa e desgosto sentidos pela assistente ressaltam amplamente evidenciados pelo seu discurso emocionado e angustiado, olhar magoado e postura constrangida.”
- “As declarações da assistente redundam ainda suportadas, reitera-se, pelo depoimento da testemunha (...) e (...) que (...) são peremptórias ao afirmar estarem plenamente convencidas da veracidade dos factos apresentados por ... .”

- “A testemunha (...) de forma elucidativa, segura e consistente...”

- “A testemunha (...), de modo esclarecedor e alicerçado...”
- “Mais afirmou, de forma sincera e segura...”
- “Mais importa salientar que o depoimento da mulher do arguido e mãe da assistente, a testemunha ..., ao insistir que nunca sentiu ou se apercebeu do que quer que fosse, em nada beliscou a convicção do tribunal no que concerne ao relato da assistente. Aliás a sua postura acabrunhada, a imagem desta globalmente revelada, quer pelo seu discurso tímido, submisso e repetitivo, quer até pela forma como se apresentou vestida, pouco consentâneos com a idade (40 anos como se extrai da certidão de nascimento da filha, data em que contava 17) e comunidade em que está inserida, ainda que por comparação com os padrões normais de referência (já evidenciados), ao invés de fundar qualquer dúvida, suportam o ambiente familiar retrógrado e assente no temor pelo arguido, propiciador de factos como os dos autos e da sua ocultação.
- “Assim, da conjugação da prova produzida, resulta, de forma absolutamente segura, que o arguido praticou, pelo menos, os actos referidos na factualidade provada na pessoa da sua filha e assistente FF.”
De tudo isto, e não tendo este Tribunal poderes de cognição em matéria de facto, mas apenas em matéria de direito, apenas lhe cabe apreciar se resulta da decisão alguma dúvida que tenha sido decidida contra o arguido.
Ora, do exposto não pode este tribunal concluir que tenha havido violação do princípio in dubio pro reo, dado que da decisão recorrida não resulta qualquer dúvida sobre os factos provados. Assim improcedendo nesta parte o recurso interposto.

4.3.1. Por fim, cumpre analisar a medida da pena única aplicada, tendo em conta que o arguido foi condenado, em 11 crimes de violação agravada, com as seguintes penas de prisão efetiva: em três dos crimes foi-lhe aplicada uma pena de 6 anos de prisão, e em oito dos crimes uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão. O recorrente entende que deveria ter “uma pena única muito inferior àquela que foi erradamente aplicada” (conclusão 41) de modo a permitir a sua substituição pela pena de suspensão da execução da pena de prisão (conclusão 45 a 48).

A determinação de cada pena parcelar, realizada em função da culpa e das exigências da prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes das lesões ocorridas, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade humana do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever‑se-ão ter em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenha tido em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

Mas, a determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP.

Nos casos de concurso de crimes, a determinação da pena única conjunta tem que obedecer (para além daqueles critérios gerais) aos critérios específicos determinados no art. 77.º do Código Penal. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem, todavia, exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1 do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder-se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique"(Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 421). Na avaliação da personalidade, ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).

São estes os critérios legais estabelecidos para a determinação da pena e, em particular, para a determinação da pena única conjunta.

Nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP, a pena única conjunta, a aplicar a um caso de concurso crimes, é determinada a partir de uma moldura que tem como limite mínimo “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, e como limite máximo “a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Pelo que as penas concretas aplicadas a cada crime constituem os elementos a partir das quais se determina aquela moldura; e não será a partir das penas únicas (que se tenham aplicado em cada um dos processos) que se constrói da moldura do concurso de crimes.

Nestes termos, a moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar ao arguido tem como limite mínimo 6 (seis) anos de prisão (a penas concreta mais elevada) e como limite máximo 25 (vinte e cinco) anos de prisão (dado que a soma das penas, 62 anos, ultrapassa o limite legal permitido, nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP).

Tendo em conta a gravidade do ilícito global e a personalidade do arguido, cumpre analisar criticamente a pena única que lhe foi atribuída.

Será no âmbito daquela moldura penal e de acordo com a personalidade do agente, procedendo a uma análise global dos factos e tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial, que deverá ser determinada a pena única conjunta a aplicar ao recorrente AA.

Tendo em conta a matéria de facto provada, verifica-se que o arguido, delinquente primário, praticou os factos de que vem acusado durante um período largo de tempo (entre fevereiro de 2008 e final de 2012 e em fevereiro de 2013). Os factos largamente lesivos para a vítima, dada a sua persistência, demonstram uma personalidade com tendência para sucessivamente repetir a prática dos factos, assim demonstrando uma clara indiferença pelos interesses individuais da vítima. Ou seja, os factos revelam uma personalidade com tendência para a prática destes crimes, não se mostrando que se tenha tratado de uma prática meramente ocasional. Porém, deve salientar-se a relação duradoura de casamento (cerca de 23 anos), bem como a forma gratificante como este tem permanecido. O arguido está inserido profissionalmente. Acresce uma boa inserção comunitária sem que esta mostre sentimentos de hostilidade ou rejeição.

Porém, não se poderão olvidar as fortes exigências de prevenção geral e de prevenção especial. Na verdade, a comunidade atual em que estamos inseridos, longe dos velhos tempos em que algumas destas práticas se inseriam em ritos iniciáticos, exige cada vez mais a proteção dos bens jurídicos em causa, considerando que estes apenas ficam assegurados com a aplicação de uma pena efetiva. E quanto maior é o número de crimes praticados mais intensas se tornam estas exigências. Acrescem ainda as exigências de prevenção especial, que no caso se afiguram fortes dado que dos factos provados não se vislumbram elementos indicadores de uma prognose favorável quanto à socialização do recorrente. Tudo a permitir concluir que, embora se entenda que pena única se deveria situar abaixo de metade da moldura, ou seja, inferior a cerca de 15 anos e meio, considera-se que a pena em que vem condenado — de 13 (treze) anos de prisão — se mostra adequada e suficiente atentas as exigências de prevenção.

4.3.2. Tendo em conta a pena única conjunta de 13 (treze) anos de prisão, fica prejudicada a análise da possibilidade de aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão atento, desde logo, o requisito formal de a pena aplicada ser de medida superior a 5 anos (cf. art. 50.º, n.º 1, do CP).

5. Do exposto pode concluir-se que:

a) Pretendeu-se alargar os poderes do juiz relator, dando-lhe possibilidade de apreciar o objeto de recurso e sobre ele deliberar quando o considerasse manifestamente improcedente. No entanto, apenas pode proferir uma decisão sumária nos casos em que entenda que deve rejeitar o recurso por manifestamente improcedente. Ou seja, a limitação existente resulta apenas de se poder considerar ou não, numa apreciação sumária, a interposição de recurso como passível de rejeição (cf. art. 417.º, n.º 6, al. b), do CPP), nomeadamente, quando for manifesta a improcedência do recurso (cf. art. 420.º, n.º 1, al. a), do CPP); e só nestes casos, isto é, só sendo manifesta a improcedência, é que se poderá cumprir o disposto no art. 420.º, n.º 2, do CPP, pois só assim é possível apenas “especificar sumariamente os fundamentos da decisão”;

b) tendo em conta a decisão sumária proferida nos presentes autos, não se trata de todo de uma apreciação sumária do recurso interposto, isto é, não se trata de uma decisão que tenha apenas “especifica[do] sumariamente os fundamentos da decisão”; na verdade, a decisão sumária procedeu a muito mais do que um simples juízo perfunctório sobre o recurso interposto, tratando-se de um verdadeiro acórdão.

c) o não cumprimento dos dispositivos supra referidos, não estando expressamente previsto como nulidade, constitui uma irregularidade, que deve ser arguida no prazo estabelecido; tendo este prazo sido há muito ultrapassado.

d) O arguido vem condenado pela prática de 11 crimes de violação com penas de prisão efetiva que oscilam entre 5 anos e 6 meses e 6 anos. Sabendo que houve confirmação integral do acórdão de 1.ª instância pelo Tribunal da Relação do Porto, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

e)  O arguido recorre ainda da medida da pena única aplicada ao concurso de crimes de violação em que vem condenado. Sendo esta de 13 anos de prisão efetiva, nos termos dos arts. 399.º, 432.º, n.º 1, al. c) e 434.º, todos do CPP, é admissível o recurso; havendo recurso da pena única, apenas se poderá apreciar esta se, em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, concluirmos estarem verificados os pressupostos da sua aplicação, isto é, quando possamos concluir estarmos perante uma situação de concurso efetivo de crimes.

f) O crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, é caracterizado por uma “realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”; porém, esta figura criada pelo legislador não deve, nos termos do n.º 3 do mesmo dispositivo, abarcar “os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”.

g) O crime continuado não é mais do que “um concurso de crimes efectivo no quadro da unidade criminosa, de uma “unidade criminosa” normativamente (legalmente) construída” (Figueiredo Dias), considerando-se que estamos perante situações em que há uma “diminuição da culpa, em nome de uma exigibilidade sensivelmente diminuída” (Figueiredo Dias). Trata‑se, pois, de situações em que ocorre ou um dolo conjunto ou continuado, ou onde se verifica uma pluralidade de resoluções criminosas, todavia legalmente unificadas de modo a construir uma unidade criminosa.

h) Tem sido considerado que a figura do crime continuado privilegia injustamente os agentes de um crime continuado, relativamente aos que praticam um concurso efetivo de crimes, e desde logo tendo em conta o efeito de caso jugado que abarca todos os atos integrados na continuação ainda que não tenham feito parte do objeto do processo. Mas produz igualmente prejuízos para o condenado não só porque pode conduzir a um exame superficial dos factos praticados, como prolonga no tempo o início do prazo de prescrição do procedimento criminal, dado que esta apenas inicia com o último facto praticado (cf. art. 119.º, n.º 2, al. b), do CP).

i) Tratando-se no presente caso de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como é o bem jurídico da liberdade sexual protegido pelo crime de violação, logo por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, não podemos concluir estarmos perante um caso subsumível à figura do crime continuado. Trata-se sim de uma sucessão de crimes.

j) É com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”. A jurisprudência, seguindo as pisadas da jurisprudência alemã que construiu o crime continuado por dificuldade de prova, acaba por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando que há uma unidade de resolução (que abarca todas as resoluções parcelares que ocorrem aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), mas em que, à medida que se prolonga no tempo, produz uma agravação da culpa do agente.

l) Porém, a caracterização do crime como prolongado depende de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de violação, ainda que este seja repetidos inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos consubstanciadores da violação ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos constituem sucessivamente atos diferentes e autónomos crimes de violação.

m) Ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração ou da sua prática habitual, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta, sem que a lei tenha procedido a essa unificação, constitui uma clara violação do princípio constitucional da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto no art. 164.º, do CP.

n) Estaremos perante um crime de violação sempre que se ofenda o bem jurídico da liberdade sexual, sempre que o novo ato constitua um novo constrangimento da vítima, sempre que se a vítima tenha sido novamente obrigada, novamente ameaçada, constrangida, violentada.

o) Enquanto se mantiver a legislação que temos cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura.

p) Estando provados os diversos atos individuais que integram o crime de violação agravada, deverá o arguido ser punido segundo as regras do concurso de crimes, e em matéria de determinação da pena segundo o estabelecido no art. 77.º, do CP.

p) Constituindo o princípio in dubio pro reo um princípio em matéria de prova, a análise da sua violação (ou não) constitui matéria de direito ou questão de direito enquanto juízo de valor ou ato de avaliação da violação (ou não) daquele princípio, portanto no âmbito de competência deste tribunal.


III

Conclusão


            Nos termos acima expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo integralmente a decisão recorrida.

            Nos termos do art. 513.º, n.º 1, do CPP, condena-se no pagamento de taxa de justiça em 8 UC’s.

Supremo Tribunal de Justiça, 21 de abril de 2016

Os Juízes Conselheiros,

                       

 (Helena Moniz)                              

  (Nuno Gomes da Silva)