Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
644/12.8TBCTX.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA POR DOCUMENTOS PARTICULARES
PROVA PERICIAL
DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANOS FUTUROS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
JUROS
ATUALIZAÇÃO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DA RÉ. CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA DO AUTOR
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. — A diminuição ou perda parcial da capacidade para o trabalho deve qualificar-se como um dano patrimonial.

II. — Como dano patrimonial, deve ser avaliada em concreto, atendendo em particular ao rendimento mensal médio do lesado.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. — RELATÓRIO

  1. AA propôs acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.

 2. A Ré Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A., contestou, pugnando pela improcedência parcial da acção.

3. O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção parcialmente procedente.

4. O dispositivo da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância é do seguinte teor:

a) [Condena-se] a R. a pagar ao A. a quantia de € 176 579,54 (cento e setenta e seis mil quinhentos e setenta e nove euros e cinquenta e quatro cêntimos), a título de indemnização por perdas salariais, acrescida de juros, à taxa legal em cada momento vigente, desde ... .2.2012 até integral pagamento.

b) [Condena-se] a a R. apagar ao A. a quantia de € 2 977,64 (dois mil novecentos e setenta e sete euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de indemnização por despesas, acrescida de juros, à taxa legal em cada momento vigente, desde ... .2.2012 até integral pagamento.

c) [Condena-se] a R. a pagar ao A. a quantia de € 800 000 (oitocentos mil euros), a título de indemnização por danos futuros, acrescida de juros, à taxa legal em cada momento vigente, desde ...2.2012 até integral pagamento.

d) [Condena-se] a R. a pagar ao A. a quantia de €100 000 (cem mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal em cada momento vigente, desde apresente data até integral pagamento.

e) [Condena-se] a R. a suportar os custos que o A. venha a ler com os medicamentos dos foros psiquiátrico e neurológico e acompanhamento neuropsicológico de que necessita, quantia essa acrescida de juros desde a citação.

f) [Absolve-se] a R. do mais peticionado.

5. Inconformados, Autor e Ré interpuseram recurso de apelação.

 6. O Tribunal da Relação de … julgou totalmente improcedente o recurso interposto pelo Autor e parcialmente procedente o recurso interposto pela Ré.

7. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor:

Pelo exposto, acordam as juízas desta ...ª Secção do Tribunal de Relação de … em julgar:

a) a apelação interposta por AA improcedente;

b) a apelação interposta por "Lusitânia - Companha de Seguros, SA" parcialmente procedente e, em consequência:

1.º — revogar a al. c) do dispositivo da sentença recorrida, condenando-se a apelante "Lusitânia - Companha de Seguros, SA" a pagar ao apelado AA a quantia de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros), a título de indemnização por dano biológico, acrescida de juros, à taxa legal em cada momento vigente, desde a decisão até integral pagamento;

2.º — confirmar, no mais, a decisão recorrida.

 8. Inconformados, Autor e Ré interpuseram recurso de revista.

9. O Autor AA finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

1. O Acórdão Recorrido julgou improcedente a apelação interposta pelo Recorrente e parcialmente procedente a apelação interposta pela Recorrida, revogando a alínea c) do dispositivo da Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância e, em consequência, determinando a condenação da ora Recorrida no pagamento da quantia de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) ao Recorrente, a título de indemnização por dano biológico, acrescida de juros à taxa legal em cada momento vigente, desde a decisão até integral pagamento.

2. Somente cumprindo evidenciar que, no presente caso, não existe dupla conforme entre o Acórdão Recorrido e a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância já que o Acórdão de que ora se recorre não confirmou na integra a decisão proferida por este último tribunal, tendo reduzido o montante indemnizatório arbitrado a título de dano futuro, tendo empregue fundamentação totalmente diferente da sufragada pelo Tribunal de Primeira Instância, considerando, designadamente, não haver lugar à atribuição de uma indemnização pelos danos patrimoniais futuros, mas apenas tão-só pelo dano biológico e que no computo desta indemnização não deveria ser considerado o vencimento anual do lesado.

3.  Nessa medida, o presente recurso deve ser admitido ao abrigo do disposto nos artigos 629.º, n.º 1, 671.º, n.ºs 1 e 674.º, n.º 1, alínea a) do CPC, como recurso ordinário.

4. Caso assim não entenda – nomeadamente por se considerar que no presente caso há dupla conforme - sempre deverá o presente recurso ser admitido como revista excecional, ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, a) e b) do CPC, o que desde já se requer a título subsidiário para todos os efeitos legais.

5. Com efeito, e no que se refere ao requisito previsto na alínea a) do n.º 1 artigo 672.º do CPC (questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito), não se suscitam quaisquer dúvidas de que a questão da classificação do dano biológico como dano patrimonial futuro se coloca com elevada frequência, originando decisões totalmente díspares e profundamente desajustas do contexto socioeconómico atual do país, resultantes da aplicação do critério da equidade.

6. Já quanto ao requisito da alínea b) do referido dispositivo legal (interesse de particular relevância social) também se deve dar por verificado no presente caso, uma vez que os temas em causa assumem contornos particularmente sensíveis e gravosos, considerando o exagerado número de sinistros em Portugal e as inerentes querelas e litígios judiciais despoletados.

DA RETIFICAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO

7.  O Recorrente apresentou, a 5 de março de 2020, o requerimento com a ref. CITIUS .... para retificação do Acórdão Recorrido, designadamente do disposto na alínea c) da decisão de que ora se recorre que fixou a indemnização sub judice em termos atualizados.

8. Na eventualidade de o douto Tribunal a quo indeferir a retificação requerida – o que não se concede e apenas por mera cautela no patrocínio – deve o Recorrente, em consonância com o preceituado no artigo 614.º, n.º 2 do CPC, referir que o Tribunal Recorrido não especificou a qual das decisões (a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo ou a Sentença dada pelo Tribunal de Primeira Instância) se deve reportar a contagem do tempo para efeitos de contabilização de juros de mora.

9. Considerando que a indemnização arbitrada pelo Tribunal de Tribunal de Primeira Instância não foi calculada em termos atualizados, é convicção do Recorrente que resulta implicitamente da decisão proferida pelo Tribunal a quo que a data de início da contagem dos juros é a data de notificação da Sentença de Primeira Instância.

10. Conforme vem sendo o Supremo Tribunal de Justiça, o disposto no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, de 27 de junho implica que os juros se contabilizem desde a data da Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância – e não desde o respetivo trânsito em julgado.

11. Nessa medida, e uma vez a decisão proferida se pode prestar a interpretações ambíguas, caso o douto Tribunal a quo indefira o pedid de retificação supra exposto, deve o Venerando Tribunal ad quem proceder a tal retificação, no sentido de esclarecer que a contagem do tempo para efeitos de contabilização de juros de mora sobre o montante de indemnização arbitrado a título de dano biológico se inicia com a notificação da Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

DO MÉRITO DO RECURSO

A) DA ERRADA APRECIAÇÃO DA PROVA PELO VENERANDO TRIBUNAL A QUO: EM ESPECIAL OS ATESTADOS DE BAIXA MÉDICA EMITIDOS EM NOME DO RECORRENTE

12. Nos termos do disposto no artigo 364.º, n.º 2 do Código Civil, o documento escrito legalmente exigido para fazer prova da declaração apenas pode ser substituído por confissão expressa (judicial ou extrajudicial).

13. Nessa medida, os atestados de baixa médica e o parecer elaborado pelo Serviço de Verificação de Incapacidade Permanente, que foram emitidos por uma entidade pública, deveriam ter sido relevados pelo douto Tribunal a quo como os elementos probatórios base” para fazer prova dos factos supra referidos.

14. Com efeito, crê Recorrente que o Tribunal a quo não atentou corretamente a estes documentos, que demonstram que os períodos de incapacidade temporária para o trabalho se prolongaram até 25 de fevereiro de 2015, ou seja, por 1692 dias. (cfr. Documento n.º 56 da Petição Inicial, Documentos n.ºs 1 e 2 do Requerimento de 11.2.2014 e Documento n.º 37 do Requerimento apresentado a 16.2.2015) e, designadamente, no parecer elaborado pelo Serviço de Verificação de Incapacidade Permanente quando o Recorrente ultrapassou o limite máximo de dias abrangidos pela baixa médica (1095 dias), que entendeu renovar seus atestados de incapacidade temporária para o trabalho (cfr. Documento n.º 57 do Requerimento de 11.2.2014).

15. Face ao exposto, incorreu, pois, o Tribunal a quo em erro de julgamento ao considerar como provada a matéria constante dos Factos Provados n.ºs 48 e 49, pelo que se requer que seja a alterada a sua redação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 624.º, n.º 3 do CPC, passando a constar dos mesmos que:

— FACTO PROVADO N.º 48: Em consequência das lesões sofridas o A. registou um período de 1692 dias de défice funcional temporário parcial;

— FACTO PROVADO N.º 48: Em consequência das lesões sofridas o A. registou um período de 1712 dias de repercussão temporária na atividade profissional.

16. Nessa medida, deve a indemnização fixada a título de perdas salariais, ser calculada em função do período de 1712 dias em que o Recorrente se encontrou em casa, pelo que se requer que a indemnização em causa seja fixada no montante de € 327.728,60 (trezentos e vinte e sete mil setecentos e vinte e oito euros e sessenta cêntimos).

B) DOS DANOS PATRIMONIAIS SOFRIDOS PELO RECORRENTE

17. Em primeiro lugar, e contrariamente ao decidido pelo Tribunal da Relação de …, a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, na envolvência do que vem sendo apelidado de dano biológico”, determina consequências negativas a nível da sua atividade geral, designadamente no desempenho da sua atividade profissional.

18. Conforme é entendimento do Venerando Tribunal ad quem a incapacidade permanente é suscetível de afetar e diminuir a potencialidade de ganho, por via da perda ou diminuição da remuneração ou da implicação para o lesado de um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho (cfr. Acórdãos proferidos a 06.03.2006 e 25.05.2006).

19. Por outro lado, já decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, o dano futuro representa uma das modalidades possíveis de dano biológico, restringindo-se a perda da capacidade de ganho em função da atividade profissional que, previsivelmente, o lesado poderia desenvolver e de que ficou privado em virtude da incapacidade de eu ficou portador, devendo, por isso, ser ressarcido autonomamente.

20. Em segundo lugar, a indemnização arbitrada a título de dano futuro deve ser fixada independentemente do grau de incapacidade de que o lesado tenha ficado portador, não devendo distinguir-se os casos em que o lesado ficou portador de lesões totalmente incapacitantes para o exercício da sua atividade profissional habitual ou que apenas impõem esforços acrescidos no seu desempenho.

21. Com efeito, a boa Jurisprudência ensina que ainda que a incapacidade profissional permanente não se traduza em perda salarial efetiva, o dano patrimonial futuro subsiste em razão da perda da sua potencialidade de atingir o máximo de produtividade possível no máximo da sua capacidade de trabalho, traduzido numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das atividades humanas em geral e maior penosidade das laborais.

22. Em terceiro lugar, crê o Recorrente que no computo da supra referida indemnização deve ser considerado o vencimento anual auferido pelo lesado à data do sinistro.

23. Neste sentido já se pronunciou este Venerando Tribunal, tendo inclusivamente decidido que, mesmo que o lesado não sofra uma real diminuição da capacidade de ganho porque não se encontrava empregado à data do acidente, a indemnização por danos futuros deve assentar no salário correspondente à sua categoria profissional e não no salário mínimo nacional (cfr. Acórdãos proferidos a 10.02.2003, 26.01.2012, 09.07.2015, 16.03.2017 e 25.05.2017).

24. Por último, o recurso à equidade para fixação da indemnização devida em virtude do dano futuro deve ser utilizado com o intuito de suprir possíveis insuficiências probatórias relativamente a um determinado dano inquestionavelmente sofrido pelo lesado, mas relativamente indeterminado quanto ao seu exato montante, representando, assim, uma função meramente complementar ou acessória na determinação do quantum indemnizatório.

25. Nessa medida, em consonância com o preceituado no disposto no artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil, tal dano deverá ser calculado, em primeira linha, em função da aplicação das fórmulas matemáticas sobejamente conhecidas.

26. Embora o recurso à equidade pressuponha um juízo de comparação com outros casos decididos, deve sempre ter base o caso concreto, por respeito ao princípio da igualdade (cfr. artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa).

27. Os casos citados pelo douto Tribunal a quo não são comparáveis com a situação do lesado ora Recorrente porquanto (i) a profissão que o Recorrente desempenhava à data do sinistro (empresário do ramo da construção civil – cfr Facto Provado n.º 53) era de caráter predominantemente técnico, exigindo especial preparação profissional para o seu exercício (ao invés do grosso das profissões dos lesados nessas situações - trolha”, construtor civil, mecânico, pedreiro, barbeiro etc) e (ii) o Recorrente auferia em média mensalmente cerca de € 5.372,60 (cinco mil euros e trezentos e setenta e dois euros e sessenta cêntimos) líquidos” (cfr. Facto Provado n.º 54), um valor bastante superior em comparação com a esmagadora maioria das decisões, nas quais os lesado auferiam, em média, remunerações anuais no valor de cerca de € 1.000,00 (mil euros).

28. Neste contexto, recorde-se que o Tribunal de Primeira Instância julgou provado que 45) O A. não voltou a trabalhar após o acidente; 46) Em consequência das lesões sofridas e sequelas de que é portador o A. apresenta um défice funcional fixável em 40 pontos; 51) As sequelas de que o A. ficou portador demandam esforços acrescidos para o exercício da sua atividade profissional habitual”.

29. Recorde-se, ainda, que resultaram provadas dos autos as diversas lesões sofridas, designadamente o traumatismo crânio-encefálico com concussão e coma, focos de contusão bilaterais, os traumatismos cervical, torácico e dos membros superior e inferior esquerdos e várias fraturas (cfr. Facto Provado n.º 15).

30. De igual modo, resultou, ainda, provado que tais lesões e traumatismos, em especial o traumatismo crânio-encefálico, deixaram, de forma permanente, no Recorrente, diversas sequelas como epilepsia pós-traumática, insónias, falta de equilíbrio, alterações de humor e da memória (disrupção emocional), dificuldades de concentração e organização mental e no discurso (cfr. Factos Provados n.ºs 31, 36, 52 e 60).

31. Conforme resultou do depoimento de ambos os Médicos-Peritos que realizaram as perícias constantes dos autos, tais sequelas causam no Recorrente dificuldade de analisar, planificar, e resolver problemas e dificultam a tomada de decisões e a execução das mesmas, o que compromete efetivamente o exercício da sua atividade profissional.

32. Face ao exposto, em consonância com o que supra se expôs, designadamente no capítulo A. supra, resulta que o Recorrente tem direito a receber uma indemnização de valor não inferior a € 1.031.539,20 (um milhão trinta e um mil quinhentos e trinta e nove euros e vinte cêntimos).

C) DOS JUROS ARBITRADOS PELO TRIBUNAL RECORRIDO

33. Sem prejuízo do que infra se expôs em relação ao pedido de retificação do Acórdão Recorrido, crê o Recorrente que os juros de mora se devem contabilizar desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

34. A atualização da indemnização, nos termos propugnados pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º nº 4/2002, de 9 de maio de 2002, só é admissível caso contenha expressamente a discriminação do valor que está a ser atualizado, o momento a partir do qual tal atualização é feita e a indicação da(s) respetiva(s) taxa(s) atualizadora(s), referências essas que não constam do Acórdão Recorrido, pelo que não poderá deixar de se entender que a indemnização não foi atualizada.

35. Caso assim não se entenda, no que não se concede, os juros deverão ser contabilizados desde a data de prolação do Sentença de Primeira Instância, tal como já decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 20.11.2014.

36. Em face do exposto, deve a alínea c) do Acórdão Recorrido ser revogada, devendo, em consequência, ser substituída por outra que determine que o Recorrente tem direito a uma indemnização em virtude pelos danos patrimoniais futuros, e fixe o montante indemnizatório em valor não inferior a € 1.031.539,20 (um milhão trinta e um mil quinhentos e trinta e nove euros e vinte cêntimos), ao qual acrescerão os juros que se vençam desde a data da citação até efetivo e integral pagamento e, subsidiariamente, os juros que se vençam desde a data da prolação da Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO,

A) Deverá ser revogada a decisão proferida e substituída por outra que proceda à alteração do Acórdão Recorrido quanto à matéria de facto nos termos pugnados pelo Recorrente nos pontos 12 a 16 das Conclusões das presentes Alegações de Revista;

B) Deverá o presente Recurso ser julgado integralmente procedente, devendo, em consequência, ser revogada a alínea c) do Acórdão Recorrido, e substituída por outra que que determine que o Recorrente tem direito a uma indemnização em virtude pelos danos patrimoniais futuros no montante não inferior a € 1.031.539,20 (um milhão trinta e um mil quinhentos e trinta e nove euros e vinte cêntimos), ao qual acrescerão os juros que se vençam desde a data da citação até efetivo e integral pagamento ou, subsidiariamente, os juros que se vençam desde a data da prolação da Sentença Recorrida.

Pois só assim se fará a acostumada Justiça!

  10. A Ré Lusitânia — Companhia de Seguros, S.A., contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

11. A Ré Lusitânia — Companhia de Seguros, S.A., finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido a fls.... o qual, revogando parcialmente a douta sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, revogou a alínea c. do dispositivo da sentença recorrida, condenando a apelante Lusitânia Companhia de Seguros S.A. a pagar ao apelado AA a quantia de €350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) (trezentos e cinquenta mil euros), a título de indemnização por dano biológico, acrescida de juros, à taxa legal em cada momento vigente desde a decisão até integral pagamento.

2. Quanto à ora Recorrente, quando a Veneranda Relação, apesar de ter reduzido a indemnização fixada pelo Tribunal de Primeira instância, a título de dano patrimonial futuro”, de €800.000,00 (oitocentos mil euros) para €350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) adoptou fundamentação essencialmente diferente no que respeita aos critérios seguidos para fixar essa indemnização, sendo, como tal, o recurso de revista admissível (art. 671.º, n.º 3, do CPC) - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.º 773/07.0TBALR.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt

3. Ora, a Recorrente não se poderá (de todo) conformar com o critério seguido na fixação da referida indemnização, nem com o quantum indemnizatório a que chegou a Veneranda Relação, por considerar que o mesmo se mostra desfasado do que vem sido o entendimento da nossa doutrina e jurisprudência, sendo manifestamente excessivo face ao dano a ressarcir, criando mesmo uma situação de enriquecimento injustificado do lesado.

4. As questões que se submetem a douta sindicância deste Venerando Tribunal e que constitui o objecto do presente recurso de revista, contende com a categorização do dano e o respetivo quantum indemnizatório fixado pelo Tribunal da Relação ao A/lesado (€350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros)), a título de dano biológico, na vertente autónoma incluindo os danos patrimoniais futuros, decorrente do défice funcional de integridade físico psíquica de que o mesmo ficou portador, em virtude das lesões e sequelas causadas no acidente de viação em apreço nos autos.

5. Não concorda a Recorrente com o enquadramento do dano biológico autónomo e na vertente patrimonial, porquanto se estamos perante uma lesão da integridade psicofísica da pessoa e sendo a saúde de um valor imaterial, a sua lesão, só poderá configurar um dano não patrimonial.

6. Inexiste um consenso sobre a categoria em que deve ser inserido e, consequentemente, ressarcido, o dano biológico.

7. Existem, três correntes essenciais no que tange categorização do dano biológico. Parte da jurisprudência configura o dano biológico como dano patrimonial, muitas vezes reconduzido ao dano patrimonial futuro; outra parte admite que pode ser indemnizado como dano patrimonial ou compensado como dano não patrimonial, segundo uma análise casuística; e uma terceira posição, o dano biológico é um dano base ou dano-evento que deve ser ressarcido autonomamente.

8. Ora, o dano biológico, é difícil de enquadrar na classificação dogmática de danos, mas, não obstante, é indemnizável em si, pela violação da integridade física e psíquica do ser humano que o sofre, ficando, a partir de então, limitado no seu todo, pelo que poderá assumir ou um cariz mais patrimonial [enquanto dano patrimonial futuro], quando limitar a capacidade de ganho, ou se configurar apenas na sua vertente não patrimonial por somente” afectar a integridade do indivíduo.

9. Pelo que, considerando que nos presentes autos o défice funcional de que sofre o A. não se traduz, inequivocamente, em perda da sua capacidade de ganho, no entendimento da Recorrente o dano biológico deverá ser avaliada na sua vertente não patrimonial.

10. Avaliação essa a efectuar, necessariamente, em função da equidade nos termos referidos pelo artigo 496.º, n.ºs e 4 do Código Civil, mas tedo ainda em consideração, conforme a jurisprudência, os parâmetros previstos na sobredita Portaria n.º 377/2008, mais precisamente, respectivo Anexo IV.

11. Ora, no caso dos autos, o Recorrido passou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 40 pontos, decorrente de lesões compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual, sem que daí haja resultado, todavia, imediata e directamente, uma efectiva diminuição do nível de rendimentos profissionais auferidos na actividade laboral que habitualmente vinha exercendo.

12. Por não se repercutir directamente na esfera patrimonial do lesado mas antes na sua saúde o Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é um dano não patrimonial que deve ser compensado, conforme dispõe o artº 496 do C.Civil, desde que tenha gravidade suficiente para merecer a tutela do direito.

13. A compensação a atribuir, pelo dano biológico, quando não interfere com a capacidade de ganho do lesado, não tem de ter uma relação directa com a sua actividade profissional, pelo que o ponto de partida para o cálculo da indemnização pelo Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica deve ser o mesmo para todos, em obediência ao princípio da igualdade.

14. O Tribunal da Relação depois de correr as várias orientações jurisprudenciais integrou o dano biológico como dano real ou dano evento e por isso deve ser autonomamente indemnizado. Concluindo afinal fixar uma indemnização a título de dano biológico incluindo os danos patrimoniais futuros, isto é, na vertente patrimonial por conta dos esforços acrescidos.

15. De facto, nos casos em que não há imediata perda de capacidade de ganho, não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efectiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.

16. Desconhece-se in casu e nada se provou nesse sentido, que limitações/esforços suplementares concretos importam o acréscimo de esforço para o exercício da sua profissão, para serem valorados da forma como foram por parte do Tribunal.

17. O Acórdão que ora se recorre elenca diversas decisões jurisprudenciais que comparando com o caso dos presentes autos atribuiu indemnizações (bem) inferiores à arbitrada pela Veneranda Relação.

18. Ora, sem prejuízo do Acórdão recorrido aparentemente ter recorrido ao método comparativo com outras decisões semelhantes de tribunais superiores para a fixação do valor da indemnização a verdade é que atribuiu uma indemnização muito superior aos casos análogos e acima identificados.

19. Assim como nos casos de morte em que a reparação do dano morte é hoje inquestionável na jurisprudência, situando-se, em regra e com algumas, raras, oscilações, entre os € 50.000,00 e € 80.000,00, consoante a idade da vítima

20. O princípio da indemnização do Dano Biológico, está para um lesado que ficou com sequelas, valoráveis de acordo com a Tabela de Incapacidades em Direito Civil, como a indemnização do Direito à Vida está para uma vítima mortal.

21. A Vida é o bem mais precioso, sendo que, na procura do valor da compensação devida pela mesma não podem deixar de ser tidas em conta as circunstâncias específicas de cada vítima, como a idade, a saúde, a vontade de viver, a situação familiar, a realização profissional, etc.

22. Tendo em vista a necessidade de uniformização de critérios, que é uma decorrência do princípio da igualdade, não pode deixar de ter-se como referência o que vem sendo decidido pelos tribunais em casos comparáveis.

23. Razão pela qual, o Supremo Tribunal de Justiça vem atribuindo indemnizações pela perda do direito à vida que, na maioria dos casos, são coincidentes.

24. Pelo que, urge obter-se, igualmente uma justiça não apenas com base na equidade, mas também com base na igualdade no que diz respeito às indemnizações fixadas aos lesados de acidentes de viação em consequência dos quais tenham ficado portadores de sequelas, mas que tais sequelas não têm nem no presente, nem no futuro qualquer impacto patrimonial.

25. De facto, o valor indemnizatório encontrado pela Veneranda Relação não foi, no entendimento da Recorrente, justo e equitativo, devendo o mesmo ser alvo de correção, com base na equidade.

26. Assim, a indemnização arbitrada a título dano biológico, é manifestamente excessiva, associado a uma IPG de 40 pontos, sem perda aquisitiva.

27. Devem os Tribunais tomar em atenção outras decisões proferidas em casos que ofereçam pontos de contacto com os casos decidendos, de forma a promover, dentro dos limites da justiça distributiva e do imperativo da equidade, a segurança jurídica decorrente da aproximação das decisões proferidas na jurisprudência.

28. De facto, é entendimento da Recorrente que o valor arbitrado não se harmoniza com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, são seguidos em situações análogas ou equiparáveis.

29. Acórdão do S.T.J. de 26/1/2012 (relator João Bernardo - Revista n.º 220/2001.L1.S1 – 2ª Secção) para uma incapacidade de 40%, sinistrado com 28 anos, rendimento de €6.181,70 ao ano, indemnização de €80.000,00; Acórdão do S.T.J. de 6/7/2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira - Revista n.º 344/12.9TBBAO.P1.S1 – 7ª Secção) para uma incapacidade de 87%, sinistrado com 44 anos, indemnização de €150.000,00. Acórdão do S.T.J. de 16/3/2017 (relatora Maria da Graça Trigo - Revista n.º 294/07.8TBPCV.C1.S1 – 2ª Secção) para uma incapacidade de 41%, sinistrado com 19 anos, indemnização de €250.000,00. Acórdão do S.T.J. de 15/2/2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira -Revista n.º 118/13.0TBSTR.E1.S1 – 7ª Secção) para uma incapacidade de 27%, sinistrado com 21 anos, desempregado, indemnização de €108.000,00.

30. A indemnização fixada pela Veneranda Relação encontra-se para casos bem mais graves do que aquele que estamos aqui a apreciar como por exemplo: no Ac. Tribunal da Relação do Porto, no processo 0432139

31. Na verdade, a admitir-se a atribuição de uma indemnização nos moldes em que o fez o Tribunal da Relação estar-se-á a transformar a atribuição de uma compensação numa forma de enriquecimento do lesado, em clara violação do que vem disposto no artigo 566.º/3 do CC, extravasando em larga medida os juízos de equidade por que se devem nortear os tribunais na fixação deste tipo de indemnizações.

32. Pelo exposto, deve a decisão proferida na douta sentença recorrida a título de indemnização pelos alegados danos patrimoniais futuros deve ser revogada e substituída por decisão que quantifique o dano biológica para compensação do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de que o A ficou a padecer em montante não superior a 110.000,00 (cento e dez mil euros) o que desde já se alega e requer para os devidos e legais efeitos.

33. Considera a ora Recorrente que, a manter-se o teor e conteúdo do Acórdão recorrido violou o Acórdão as normas legais previstas nos artigos 483.º, 494.º, 496.º, 506.º, 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do Código Civil.

Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão proferido e, em consequência, ser substituído por outro, que quantifique o dano biológico para compensação do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de que o A ficou a padecer, em montante não superior a 110.000,00 (cento e dez mil euros) o que desde já se alega e requer para os devidos e legais efeitos, só assim se fazendo JUSTIÇA!

 12. O Autor AA contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

 13. Em conferência, o Tribunal da Relação de … indeferiu o requerimento de rectificação apresentado pelo Autor AA.

14. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir in casu são as seguintes:

   I. — se o acórdão recorrido incorreu em erro na apreciação da prova (como pretende o Recorrente AA);

  II. — se a indemnização pelo dano biológico deve aumentar ser aumentada — até atingir 1031539,20 (como pretende o Recorrente AA) — ou deve ser reduzida — até atingir 110000 euros (como pretende a Recorrente Lusitânia — Companhia de Seguros, SA; 

  III. — se os juros relativos à indemnização pelo dano biológico se vencem a partir da citação da Ré Lusitânia — Companhia de Seguros, SA. (como pretende o Recorrente AA) ou a partir da decisão.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

 15. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:

1) No dia .../07/2010, por volta da IH 30M, o A., conduzindo o motociclo de matrícula 46-..-.. e levando capacete colocado, circulava na variante à Estrada Nacional n.° …, sentido … - ….

2) Na mesma ocasião BB conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 75-..-.. na Rua do ..., sentido ...-....

3) Então, no cruzamento de ..., concelho de ..., ao deparar-se com um sinal Stop, o condutor do veículo de matrícula 75-..-.. não parou e não cedeu a prioridade, antes tendo prosseguido a marcha, tendo embatido no A., na via em que este circulava, pese embora os esforços envidados pelo A. para travar a marcha e evitar a colisão.

4) Na data referida em 1) o A. era sócio gerente da sociedade "..., Lda." (NIPC .........), com objecto social "construção civil, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim”.

5) Na data referida em 1) o A. era sócio gerente da sociedade "..., Lda." (NIPC: ………), com objecto social "Comércio e aluguer de máquinas e outros equipamentos para construção civil, com ou sem operador”.

6) Na data referida em 1), o A. era sócio gerente da sociedade "... - Gestão Imobiliária, Lda.", (NIPC: ………), com objecto social "Compra e venda de móveis e imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; execução de obras da construção civil; administração de propriedades; execução de obras da construção civil; importação e exportação de automóveis; materiais de construção, adornos, objectos de arte e decoração, máquinas mecânicas, eléctricas e electrónicas; motores; realização de peritagens e avaliações; execução e administração de transportes de cargas e descargas e armazenamento de mercadorias; comércio de representações; realização de vendas judiciais e extrajudiciais e de leilões.

7) Na data referida em 1) o condutor do veículo de matrícula 75-..-.. tinha a responsabilidade civil por danos causados a terceiros por acidentes de viação com aquela viatura transferida para a R., através da apólice n° ........

8) A R. assumiu a responsabilidade decorrente do sinistro.

9) Na data referida em 1), o A. era administrador da sociedade "... -Sociedade Promotora e Urbanizadora de Turismo…, S. A., (NIPC: ………), com objecto social "Gestão e promoção imobiliária através de, designadamente, aquisição de imóveis para revenda, elaboração de projectos imobiliários, construção e arrendamento de imóveis e o exercício de outras actividades acessória e afins”.

10) A R. foi interpelada para pagamento pelo A. em 3.2.2012.

11) O A. nasceu a .. de .. de 1977.

12) Na sequência do embate o A. ficou em estado de inconsciência.

13) Tendo no local do acidente sido sedado e sujeito a ventilação pela equipa médica que lhe prestou os primeiros socorros.

14) Subsequentemente o A. foi conduzido de ambulância para a urgência do Hospital de ..., em …, onde permaneceu internado na Unidade de Urgência Médica (UUM) entre 9.7.2010 e 22.7.2010.

15) Em consequência do sinistro o A. sofreu traumatismo crânio-encefálico com concussão cerebral e coma, focos de contusão frontais bilaterais, traumatismo torácico com traços de fractura no manúbrio esternal, próxima da articulação esterno-clavicular homolateral, e nos dois primeiros arcos costais esquerdos e derrame pleural à direita, traumatismo do membro superior esquerdo com fractura diafasária do cúbito e fractura-luxação da base do 5o metacarpo, traumatismo do membro inferior esquerdo, derrame pleural discreto bilateral e pneumotórax à direita.

16) Durante o internamento na UUM o A. esteve sob efeito de sedativos e de diversa terapêutica medicamentosa.

17) No dia 10.7.2010 o A. foi sujeito a uma intervenção cirúrgica, com anestesia geral, ao braço esquerdo, com osteossíntese do com placa e parafusos de fractura diafasária do cúbito e fixação com fios de Kirshner (entretanto removidos) de fiactura-luxação da base do 5° metaeárpico à esquerda.

18) Durante vários dos primeiros dias de internamento na UUM o A. apresentou um estado febril e parâmetros inflamatórios graves.

19) O pneumotórax foi drenado, tendo o respectivo dreno sido retirado a 13.7.2010.

20) Quando recobrou a consciência o A. era incapaz de reconhecer as pessoas, entre as quais o seu filho, ou de se recordar de momentos passados.

21) Após acordar do coma o A. tinha discurso confuso.

22) Durante o internamento hospitalar, por força do estado em que se encontrava, o A. tentou algumas vezes remover os tubos e drenos que lhe foram colocados.

23) Durante o internamento hospitalar o A. foi amarrado.

24) Em 22.7.2010 o A. foi transferido para o serviço de cirurgia onde ficou internado até à sua alta hospitalar no dia 28.7.2010.

25) Aquando da alta hospitalar foi recomendado que o A. mantivesse vigilância a tempo inteiro no domicílio.

26) Após a alta hospitalar o A. foi seguido em consulta de ortopedia, cirurgia, neurocirurgia, neurologia e neuropsicologia.

27) Após a alta hospitalar o A. sujeitou-se a vários exames, entre os quais ressonância magnética crânio-encefálica, TC crânio encefálica, electroencefalograma e exame neuropsicológico, composto por uma anamnese e provas para despistagem de alterações, focais ou difusas, da actividade nervosa complexa, orientação, atenção/concentração, memória, cálculo, praxias, gnosias, actividade pré-frontal e processos calosos, da esfera comportamental e emocional.

28) Alguns dos exames referidos em 27) foram realizados na ....

29) Após a alta hospitalar o A. careceu de vigilância constante e do cuidado e apoio de terceiros para a realização das actividades da vida diária, como fazer a higiene, vestir-se, alimentar-se ou satisfazer as suas necessidades fisiológicas, tendo para tanto sido acompanhado por CC, sua companheira.

30) Quando regressou a casa o A. não reconheceu nem a habitação, nem o filho.

31) O A. manteve discurso lentificado, incoerente e confuso durante largo tempo após a alta, manifestando também dificuldades de concentração e organização mental.

32) Em razão do sinistro o A. tem uma cicatriz de ferida operatória, de tipo quelóide, na região peitoral esquerda, retráctil, grosseiramente ovalada com 3 cm por 1,5 cm, originada pelo dreno e cicatriz na região infra malar direita, grosseiramente horizontal, linear com 2cm; cicatriz com vestígios de sutura na face posterior do terço distai do antebraço esquerdo, vertical, com liem de comprimento; cicatriz com vestígio ténue de sutura no punho esquerdo, bordo cubital, com 1 cm; cicatriz de ferida contusa, ovóide, com 4cm por 2cm com maior eixo horizontal; e cicatriz de ferida contusa, anfractuosa medindo 1 cm de comprimento depois de rectificada.

33) Em razão do sinistro o A. apresenta discreta diminuição da força nos movimentos de elevação e abdução do membro superior esquerdo, bem como na força de preensão da mão.

34) O A. teve dores em razão das lesões sofridas.

35) O A. sente forte pressão na cabeça devido ao traumatismo craneo-encefálico que sofreu.

36) Em consequência das lesões sofridas o A. tem insónias, alterações constantes e repentinas de humor, alterações da memória, episódios de falta de equilíbrio e cansaço fácil.

37) Antes do acidente o A. praticava surf e futebol e era atleta de competição de veículos motorizados.

38) Em razão das lesões sofridas e sequelas de que ficou portador o A. deixou de realizar as actividades referidas em 37).

39) As circunstâncias acima referidas provocaram no A. tristeza, sofrimento, angústia e perda de vontade de viver, trazendo-lhe dependência, insegurança e pessimismo.

40) Após o sinistro o A. recorreu a acompanhamento neuropsicológico.

41) Em razão das lesões que sofreu e sequelas que lhe advieram o A. teve e tem de recorrer a medicação.

42) Em consequência do sinistro, no período de convalescença, o A. teve um sofrimento físico e psíquico avaliável num grau 5 de 7.

43) Em consequência do sinistro o A. apresenta sequelas que lhe determinam um dano estético avaliável num grau 2 de 7.

44) Em razão das lesões sofridas e das sequelas de que ficou portador o A. apresenta um prejuízo de afimiação pessoal, ao nível da repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, avaliável num grau 3 de 7.

45) O A. não voltou a trabalhar após o acidente.

46) Em consequência das lesões sofridas e sequelas de que é portador o A. apresenta um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 40 pontos.

47) Em razão das lesões sofridas o A. teve 20 dias de défice funcional temporário total.

48) Em consequência das lesões sofridas o A. teve um período de 966 dias de défice funcional temporário parcial.

49) Em consequência das lesões sofridas o A. registou um período de 986 dias de repercussão temporária na actividade profissional.

50) A data de consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo A. é fixável em 21.3.2013.

51) As sequelas de que o A. ficou portador demandam esforços acrescidos para o exercício da sua actividade profissional habitual.

52) As sequelas de que o A. ficou portador implicam o recurso permanente a medicamentos do foro psiquiátrico/neurológico para o A. ultrapassar as dificuldades funcionais da vida diária, bem como o recurso a acompanhamento neuropsicológico.

53) A data do sinistro o A. era profissionalmente activo, sendo gerente e administrador de várias empresas que se dedicam à construção civil e à compra e venda e revenda de imóveis.

54) Nos seis primeiros meses do ano de 2010 o A. auferiu em média mensalmente cerca de 5 372,60 líquidos.

55) Em razão do acidente o A. entrou em baixa clínica.

56) Até ... ..4.2012, em razão do tratamento e acompanhamento das lesões que sofreu e das sequelas de que é portador o A. despendeu € 128,80 junto do Centro Hospitalar de … e € 7,10 no Hospital ....

57) Até ...4.2012, em razão do tratamento e acompanhamento das lesões que sofreu e das sequelas de que é portador o A. despendeu € 31,95 com consultas no Centro de Saúde.

58) Até ...4.2012, em razão do tratamento e acompanhamento das lesões que sofreu e das sequelas de que é portador, o A. despendeu ainda € 80 com consulta de neurologia, € 80 com consulta de neuropsicologia e € 90 em consultas de psicoterapia.

59) Pelas mesmas razões, até 27.4.2012, com deslocações para tratamentos, exames e consultas o A. realizou cerca de 2 085 Km, despendendo valor não concretamente apurado.

60) Em consequência das lesões cerebrais que sofreu sobreveio ao A. epilepsia pós-traumática tardia, manifestada em crises epilépticas atónicas.

61) No período de 29.6.2013 a 10.1.2014, em razão do tratamento e acompanhamento das lesões que sofreu e das sequelas de que é portador, o A. realizou despesas com medicamentos no valor de € 93,44. 62) Em 24.5.2012 o A. despendeu € 383 com exames de natureza oftalmológica.

63) Entre 10.4.2013 c 2.9.2013 o A. despendeu € 753,10 com consultas a que recorreu em razão das lesões e sequelas que lhe advieram do sinistro.

64) Entre 23.10.2012 e 2.9.2013 o A. despendeu € 390,10 com consultas a que recorreu em razão das lesões e sequelas que lhe advieram do sinistro.

65) Em 27.3.2013 o A. despendeu € 70 numa consulta de oftalmologia.

66) Em 10.4.2013, 21.5.2013, 2.8.2013, 18.10.2013 e 25.10.2013 o A. deslocou-se ao Centro Hospitalar ..., a cerca de 20Km da sua casa, para consultas relacionadas com o tratamento e acompanhamento das lesões que sofreu e das sequelas de que é portador.

67) Pelas mesmas razões, entre 27.4.2012 e 11.2.2014 o A. fez 3 deslocações para realização de exames de electrocardiograma e ecografia, a não menos de cerca de lOKm da sua residência.

68) Entre 30.1.2014 e 26.12.2014 o A. despendeu € 74,31 em medicamentos, em razão do tratamento das sequelas de que é portador.

69) Entre 5.9.2014 e 9.1.2015 o A. despendeu € 180,50 em consultas de otorrinolaringologia e neurocirurgia, motivadas pelas sequelas de que é portador.

70) Entre 19.11.2014 e 28.1.2015 o A. despendeu € 123 em ressonâncias magnéticas e em 9.1.2015 € 7,04 com um R-x ao joelho, realizadas por força das sequelas de que é portador.

 16. Em contrapartida, o acórdão recorrido deu como não provados os factos seguintes:

71) Que o A. tenha estado internado na UUM até 24.7.2010.

72) Que em razão do sinistro o A. tenha sofrido traumatismo cervical e fractura do ombro esquerdo.

73) Que o coma do A. tenha sido profundo e perdurado por 12 dias.

74) Que durante os primeiros dias de internamento o A. tenha tido a parte esquerda do corpo, braço e perna totalmente imobilizados.

75) Que o A. tenha tido amnésia durante 14 dias em virtude de ter estado em coma.

76) Que os exames referidos em 27) tenham sido dolorosos e passíveis de deixar sequelas.

77) Que muitos meses após o acidente, como consequência do mesmo, o A. tenha apresentado lesão nos tendões do ombro esquerdo e diversas hérnias nas costas.

78) Que em razão das lesões sofridas o A. não feche completamente a mão esquerda e que sinta dor intensa quando tenta fazer esse movimento.

79) Que o A. não faça a oposição do Io dedo a partir do 3 o dedo da mão esquerda.

80) Que o A. sinta dores provocadas pela prótese referida em 17) e que em razão desse facto tenha de se submeter a cirurgia com vista à respectiva remoção.

81) Que o A. tenha uma acentuada diminuição de força muscular ao nível do ombro esquerdo.

82) Que o A tenha atrofia do obro direito, particularmente na sua face anterior.

83) Que o A. não efectue correctamente o movimento de rotação interna à direita do ombro esquerdo.

84) Que o A. tenha o movimento de lateralidade à direita do pescoço, bem como a excursão posterior do mesmo segmento comprometidos.

85) Que o A. sofra de uma limitação nas amplitudes máximas dos movimentos de rotação externa, interna, abdução e elevação do membro superior esquerdo.

86) Que o A. tenha uma diferença de 1 cm no perímetro das penas, sendo a perna esquerda mais curta que a direita.

87) Que o A. tenha uma diferença de 1 cm no perímetro dos braços, sendo o braço esquerdo mais estreito que o direito.

88) Que a cicatriz referida em 32) implique o A. se submeta a uma cirurgia estética.

89) Que em razão do traumatismo crânio encefálico que teve o A. venha sofrendo de graves problemas oculares, tendo por isso perdido parte importante da visão.

90) Que o A. ainda tenha dores em razão das lesões sofridas.

91) Que o A. tenha fortes dores na parte inferior das costas em razão das lesões que lhe advieram do sinistro.

92) Que o A. sinta fortes e constantes dores no antebraço esquerdo, que se agudizam aquando das alterações climáticas.

93) Que o A. tenha dificuldade em movimentar o ombro esquerdo.

94) Que o A. tenha fobia do excesso de velocidade,

95) Que em razão das lesões sofridas o A. tenham alteração do paladar.

96) Que após o acidente apenas em Janeiro de 2011 o A. tenha logrado retomar uma actividade sexual satisfatória, uma vez que em razão das lesões sofridas tinha falta de apetite sexual e incapacidade de erecção peniana.

97) Que após o sinistro, durante cerca de um ano, o A. tenha recorrido a acompanhamento psicológico.

98) Que o dano estético do A. seja avaliável num grau 4 de 7.

99) Que o A. apresente um dano de afirmação pessoal fixável num grau 5 de 7.

100) Que em consequência das lesões sofridas e sequelas de que é portador o A. apresenta um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 42 pontos.

101) Que o A. tenha tido uma incapacidade geral total por um período de 30 dias.

102) Que o A. tenha tido uma incapacidade temporária geral parcial por um período de 240 dias.

103) Que o A. tenha tido incapacidade temporária profissional total por um período de 332 dias.

104) Que à data do sinistro o A. auferisse mensalmente, pelo menos, € 6 998,44.

105) Que no período de Julho de 2010 a Julho de 2012 o A. tenha deixado de auferir a título de rendimentos do trabalho, pelo menos, € 167 962,56.

106) Que a consolidação das lesões sofridas pelo A. tenha ocorrido 18 meses após o sinistro.

107) Que em razão das sequelas de que ficou portador o A. tenha ficado impossibilitado de exercer a sua profissão e de auferir os correspondentes proventos.

108) Que o A. tenha despendido € 22,45 em consultas no Centro de Saúde.

109) Que em razão das sequelas do sinistro e das lesões que sofreu o A. tenha despendido € 50 com tratamentos médico-dentários.

110) Que com a deslocação para realizar o tratamento referido em 109) o A. tenha feito 140 Km, despendendo € 84.

111) Que o A. tenha perdido 50% da sua visão.

112) Que após 27.4.2012 a situação clínica do A. tivesse sofrido agravamento, designadamente com o aumento das lesões que sofreu nas costas e agravamento das lesões ortopédicas do ombro e membro superior esquerdos.

113) Que entre 27.4.2012 e 11.2.2014 tenha sido diagnosticados ao A. novos focos de contusão.

114) Que o A. tenha ficado afectado de um grau de incapacidade permanente de 50 pontos.

115) Que no período de 24.5.2012 a 4.12.2013 o A. tenha despendido € 1 049 com custo de exames de natureza oftalmológica, neurocirúrgica, neurológica e ortopédica.

116) Que entre 27.4.2012 e 11.2.2014 o A. tenha feito 4 deslocações ao Hospital ….., situado a 25Km da sua residência.

117) Que entre 27.4.2012 e 11.2.2014 o A. tenha feito 14 deslocações ao Hospital …… a cerca de 16 Km da sua residência.

118) Que entre 27.4.2012 e 11.2.2014 o A. tenha feito 9 deslocações ao CH…...

119) Que entre 27.4.2012 e 11.2.2014 o A. tenha feito 2 deslocações à …… Diagnóstico e Terapêutica, a cerca de 24 Km da sua residência.

120) Que em razão das lesões sofridas o A. apresente lesão de slap - desinserção antero superior da longa porção bicípite na glenóide.

121) Que o A. tenha dores insuportáveis em razão da lesão dita em 120), sendo por isso obrigado à toma de medicação e necessário submeter-se a nova cirurgia e fisioterapia.

122) Que em consequência do sinistro o A. apresente rinorraquia/perda de líquido cefalorraquidiano pelo nariz, causada por fractura do osso etmóide.

123) Que a perda de líquido encefálico pelo nariz de que o A. padece seja devida a lesão nos seios perinasais e implique risco acrescido de o mesmo vir a sofrer de infecções a nível do cérebro.

124) Que em consequência do sinistro o A. apresente perturbações de pânico e ansiedade.

125) Que exista indicação para o A. ser submetido a nova cirurgia crânio-encefálica.

126) Que em consequência do sinistro o A. tenha sofrido fractura da parte frontal da cabeça, laringe e traqueia.

127) Que em razão das lesões que lhe advieram o A. tenha estado de baixa clínica após 21.3.2013.

128) Que as lesões que o A. apresenta no ombro impliquem nova cirurgia, imobilização do membro e fisioterapia.

O DIREITO

17. A primeira questão suscitada pelo Recorrente consiste em determinar se o acórdão recorrido incorreu em erro na apreciação da prova.

 18. O Autor AA alega o seguinte:

12. Nos termos do disposto no artigo 364.º, n.º 2 do Código Civil, o documento escrito legalmente exigido para fazer prova da declaração apenas pode ser substituído por confissão expressa (judicial ou extrajudicial).

13. Nessa medida, os atestados de baixa médica e o parecer elaborado pelo Serviço de Verificação de Incapacidade Permanente, que foram emitidos por uma entidade pública, deveriam ter sido relevados pelo douto Tribunal a quo como os elementos probatórios “base” para fazer prova dos factos supra referidos.

14. Com efeito, crê Recorrente que o Tribunal a quo não atentou corretamente a estes documentos, que demonstram que os períodos de incapacidade temporária para o trabalho se prolongaram até 25 de fevereiro de 2015, ou seja, por 1692 dias. (cfr. Documento n.º 56 da Petição Inicial, Documentos n.ºs 1 e 2 do Requerimento de ...2.2014 e Documento n.º 37 do Requerimento apresentado a 16.2.2015) e, designadamente, no parecer elaborado pelo Serviço de Verificação de Incapacidade Permanente quando o Recorrente ultrapassou o limite máximo de dias abrangidos pela baixa médica (1095 dias), que entendeu renovar seus atestados de incapacidade temporária para o trabalho (cfr. Documento n.º 57 do Requerimento de 11.2.2014).

15. Face ao exposto, incorreu, pois, o Tribunal a quo em erro de julgamento ao considerar como provada a matéria constante dos Factos Provados n.ºs 48 e 49, pelo que se requer que seja a alterada a sua redação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 624.º, n.º 3 do CPC, passando a constar dos mesmos que:

— FACTO PROVADO N.º 48: “Em consequência das lesões sofridas o A. registou um período de 1692 dias de défice funcional temporário parcial;

— FACTO PROVADO N.º 48: “Em consequência das lesões sofridas o A. registou um período de 1712 dias de repercussão temporária na atividade profissional.

16. Nessa medida, deve a indemnização fixada a título de perdas salariais, ser calculada em função do período de 1712 dias em que o Recorrente se encontrou em casa, pelo que se requer que a indemnização em causa seja fixada no montante de € 327.728,60 (trezentos e vinte e sete mil setecentos e vinte e oito euros e sessenta cêntimos).

 19. A questão foi suscitada em sede de alegações de recurso de apelação.

 20. O Tribunal da Relação pronunciou-se sobre a questão nos seguintes termos:

“… examinando conjugada e criticamente os documentos juntos aos autos, os depoimentos das testemunhas e dos peritos médicos inquiridos na audiência final e todos os relatórios periciais (e respectivos esclarecimentos e rectificações) juntos aos autos, tal como determina o art. 662° do Cód. Proc. Civil, chega-se à conclusão idêntica do tribunal a quo quanto à concreta factualidade ora em referência.

Os elementos probatórios produzidos quanto a estas concretas questões centram-se essencialmente no relatório pericial elaborado pelo perito DD em 24 de Fevereiro de 2016, completado pelos esclarecimentos pelo mesmo prestados na audiência final de 23/11/2016, e nos documentos invocados pelo apelante: atestados de baixa médica que consubstanciam os Documentos n° 56 e 57 juntos com a Petição Inicial; Documento n° 1 do Requerimento de 11/02/2014; e Documento n° 37 do Requerimento apresentado em 16/02/2015.

Pese embora haja divergências entre o cálculo do número de dias de défice funcional temporário parcial e de repercussão temporária na actividade profissional constante do relatório pericial elaborado pelo perito DD em 24 de Fevereiro de 2016 e o cálculo que resulta da indicação de tais dias nos documentos acima invocados, face aos esclarecimentos prestados por aquele perito ao tribunal na audiência final do dia 23/11/2016 sobre o modo como procedeu àquele cálculo e os motivos pelos quais se desviou, em tal cálculo, do exarado nos aludidos documentos, cremos na correcção e assertividade do cálculo constante no relatório pericial em apreço.

… no seu (longo) depoimento ao tribunal no dia 23/11/2016, o perito DD confirmou, também na concreta matéria ora em apreço, o teor das suas conclusões, explicitou a metodologia por si seguida para chegar às mesmas, bem como, o porquê de não ter tomado em consideração o exarado nos mencionados documentos, tudo, num depoimento claro, coerente, firme, esclarecedor, isento e convincente, de forma a não deixar dúvidas sobre a correcção da contagem dos referidos dias.

o apelante não invocou nenhuma razão objectiva, nenhum fundamento válido e sólido, para serem valorados os referidos documentos em detrimento do relatório e do depoimento do perito DD, como fez o tribunal a quo. É certo que o apelante não concorda com a convicção do tribunal quanto à primazia da valoração probatória desta prova pericial relativamente àquela prova documental, mas não carreou para os autos prova que imponha decisão diversa, não sendo aqui despiciendo relembrar que os meios probatórios ora em referência (prova pericial e prova documental) estão ambos sujeitos à livre apreciação do julgador, como acima se aduziu.

Pelo exposto, temos de entender como prevalente a prova pericial resultante do referido relatório pericial elaborado pelo perito DD, sendo que, conjugando a mesma com os esclarecimentos prestados por aquele e com as regras de experiência comum, se tem de concluir, como fez o tribunal recorrido, pelos factos dados como provados nos n°s 48. e 49. como aí constam, improcedendo, nesta parte, a pretensão do apelante”.

 21. Ora o art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

22. Como se escreve, p. ex., nos acórdãos de 14 de Dezembro de 2016 — proferido no processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1 —, de 12 de Julho de 2018  — proferido no processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1 — e de 12 de Fevereiro de 2019 — proferido no processo n.º 882/14.9TJVNF-H.G1.A1 —,

“… o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil), estando-lhe interdito sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador. Só relativamente à designada prova vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige certa espécie de prova para a demonstração do facto ou fixa a força de determinado meio de prova, poderá exercer os seus poderes de controlo em sede de recurso de revista” [1].

“… está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer de eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos da designada prova vinculada ou tarifada, ou seja quando está em causa um erro de direito (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, nº 2)” [2].

23. Em consequência, o Supremo Tribunal de Justiça não pode pronunciar-se sobre a primeira questão suscitada pelo Autor, agora Recorrente, AA.

 24. Excluída a primeira questão, deverá apreciar-se a segunda e a terceira.

 25. A segunda questão consiste em determinar se a indemnização pelo dano biológico deve aumentar-se — até atingir 1031539,20 (como pretende o Recorrente AA) — ou reduzir-se — até atingir 110000 euros (como pretende a Recorrente Lusitânia — Companhia de Seguros, SA.

 26. O Tribunal da 1.ª instância atribuiu ao Autor AA uma indemnização de 800 000 euros a título de dano biológico e o Tribunal da Relação reduziu a indemnização atribuída pelo Tribunal de 1.ª instância para 350000 euros.

  27. Fundamentou a decisão nos seguintes termos:

a fixação de um montante indemnizatório por danos não patrimoniais e, em concreto, pelo dano biológico, não pode atender unicamente a esta Tabela, antes sendo necessário atender às circunstâncias do caso concreto, ponderando-as para obter resultados de acordo com a equidade.

… o caso dos autos assume…  particularidades, já que o dano biológico sofrido pelo apelado, naquela vertente de dano base ou dano-evento, tem relação directa com a sua actividade profissional, reflectindo-se em todas as vertentes da sua vida (demandando ‘esforços acrescidos’). Ou seja, o dano biológico em causa assume-se como permanente, interferindo em todos os aspectos da vida do apelado, a nível pessoal e no exercício da sua actividade profissional, como resulta dos factos provados, devendo ser valorado nessa medida.

… a atribuição de indemnização seguindo o critério da equidade (cfr. supra citados preceitos legais), tem variado, essencialmente, em função da idade do lesado aquando da lesão; do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica; e da potencialidade de aumento de ganho em profissão ou actividade económica alternativa, aferidas, em regra, pelas suas qualificações.

De um modo mais abrangente, também se afirma que a lei aponta como critério determinante a equidade… , sendo que deverão ser relevados vários factores no valor a fixar, nomeadamente, a perda da capacidade de ganho, que é um dano futuro, o salário, a idade, o grau de incapacidade, o tempo provável de vida activa laboral e a esperança de vida, a par das possibilidades de progressão da carreira, entre outros factores, como o progresso tecnológico, a política fiscal e de emprego, as regras de legislação previdencial, a expectativa de vida laboral, assim como a longevidade […].

No caso dos autos, de acordo com os referidos critérios, verifica-se que o apelado, à data do acidente, tinha 32 anos de idade, e, em consequência das lesões sofridas

apresenta discreta diminuição da força nos movimentos de elevação e abdução do membro superior esquerdo, bem como na força de preensão da mão;

sente forte pressão na cabeça devido ao traumatismo craneo-encefálico que sofreu;

— tem insónias, alterações constantes e repentinas de humor, alterações da memória, episódios de falta de equilíbrio e cansaço fácil;

— deixou de praticar surf e futebol e de ser atleta de competição de veículos motorizados, como até então;

— tem de recorrer a medicação;

— apresenta um prejuízo de afirmação pessoal, ao nível da repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, avaliável num grau 3 de 7;

— apresenta um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 40 pontos;

— padece de epilepsia pós-traumática tardia, manifestada em crises epilépticas atónicas.

As sequelas de que o apelado ficou portador demandam esforços acrescidos para o exercício da sua actividade profissional habitual e implicam o recurso permanente a medicamentos do foro psiquiátrico/neurológico para ultrapassar as dificuldades funcionais da vida diária, bem como o recurso a acompanhamento neuropsicológico.

Não ficou provado que tivesse ocorrido diminuição efectiva no rendimento proveniente do seu trabalho por força do défice funcional permanente de que o apelado passou a padecer em consequência do acidente dos autos. … este facto não afasta o direito à indemnização pelo dano patrimonial futuro considerado, porquanto o apelado ficou efectiva e objectivamente afectado na sua capacidade de trabalho por um défice funcional permanente, que, sem dúvida, condicionará a sua vida profissional e as suas opções de trabalho no futuro, devendo toda a incapacidade funcional parcial permanente provocada por facto ilícito culposo ser sempre objecto de indemnização independentemente de haver ou não uma redução no salário auferido de facto pelo lesado - […]

… nas situações como a dos autos, em que não ocorre uma perda efectiva de ganho, mas o lesado tem fazer um maior esforço para obter o mesmo rendimento, considera-se que, no cálculo da indemnização, não deve ser valorado o vencimento anual do lesado. O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho (se for o caso pode ter lugar a indemnização pelo dano patrimonial reflexo que dele decorre), antes determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as actividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para todos os lesados independentemente da profissão que exercem e do montante auferido, sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano. […]

o aludido juízo de equidade não pode ser entendido como arbitrariedade por parte de quem julga, mas como a procura da mais justa das soluções para o caso concreto. Porém, pese embora a referência às ‘demais circunstâncias do caso’ (cfr. citados arts. 494° e art. 496, n° 3, 1.ª parte, ambos do Cód. Civil) e a própria ideia de "equidade" (cfr. art. 496°, n° 3, Ia parte, do Cód. Civil) impliquem sempre um exame de cada caso em termos individualizantes, é também de cotejar sempre o caso que se aprecia com outros de semelhante gravidade anteriormente decididos pelos tribunais (até por força do espírito que preside ao disposto no n° 3 do art. 8° do Cód. Civil) — como é o entendimento corrente, que se perfilha.

… porquanto importa aferir da adequação e justeza da indemnização arbitrada no caso concreto no confronto com os valores que a jurisprudência vem fixando, em situações factuais similares ou próximas, convoca-se, a título de exemplo, as seguintes decisões (estando todos os Acórdãos mencionados acessíveis em www.dgsi.pt):

Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 25/05/2017, Maria da Graça Trigo, para uma incapacidade de 25%, sinistrado com 41 anos, indemnização de € 170.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 15/02/2017, Fernanda Isabel Pereira, para uma incapacidade de 27%, sinistrado com 21 anos, indemnização de € 108.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 11/02/2016, João Trindade, para uma incapacidade de 32 pontos, sinistrado com 26 anos, indemnização de € 140.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 19/09/2019, Maria do Rosário Morgado, para uma incapacidade de 32 pontos, sinistrado com 45 anos, indemnização de € 200.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 09/07/2015, Pires da Rosa, para uma incapacidade de 36 pontos, sinistrado com 58 anos, indemnização de € 100.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 26/01/2012, João Bernardo, para uma incapacidade de 40%, sinistrado com 28 anos, indemnização de € 80.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 21/01/2016, Tavares de Paiva, para uma incapacidade de 40,35 pontos, sinistrado com 21 anos, indemnização de € 136.500,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 16/03/2017, Maria da Graça Trigo, para uma incapacidade de 41 pontos, sinistrado com 19 anos, indemnização de € 250.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 29/01/2019, Pedro Lima Gonçalves, para uma incapacidade de 44 pontos, sinistrada com 24 anos, indemnização de € 95.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 07/03/2017, José Raínho, para uma incapacidade de 45 pontos, sinistrado com 24 anos, indemnização de € 190.000,00;

—Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 19/06/2019, Catarina Serra, para uma incapacidade de 65 pontos, sinistrada com 45 anos, indemnização de € 195.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 17/11/2015, Gabriel Catarino, para uma incapacidade de 65 pontos, sinistrada com 20 anos, indemnização de € 400.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 12/12/2017, Roque Nogueira, para uma incapacidade de 70 pontos, sinistrada com 31 anos, indemnização de € 238.879,10

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 23/10/2018, Henrique Araújo, para uma incapacidade de 72 pontos, sinistrado com 54 anos, indemnização de € 350.000,00

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 12/03/2015, Maria Clara Sottomayor, para uma incapacidade de 73 pontos, sinistrada com 20 anos, indemnização de € 280.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 06/07/2017, Fernanda Isabel Pereira, para uma incapacidade de 87%, sinistrado com 44 anos, indemnização de € 150.000,00;

— Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 10/09/2019, José Raínho, para uma incapacidade de 100 pontos, sinistrado com 7 anos, indemnização de € 450.000,00.

Perante o descrito enquadramento factual, legal, doutrinal e jurisprudencial, e aqui destacando:

— que as sequelas de que o apelado ficou portador em consequência do acidente dos autos, exigem esforços acrescidos para o exercício da sua actividade profissional habitual;

que o apelado tem um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de quarenta pontos;

— que o apelado tinha 32 anos à data do acidente;

— a sua esperança de vida (actualmente, cerca de 78 anos para homens, como é consabido); e,

os valores fixados em casos similares (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça acima citados a título exemplificativo);

Entendemos que a indemnização a título de dano biológico (incluindo os "danos patrimoniais futuros" referidos na ai. b) do dispositivo da sentença recorrida) deverá ser fixada no valor actualizado de € 350.000,00”.

 28. O Autor alega, em síntese, que a avaliação do dano biológico deve ser feita em concreto, em função das circunstâncias de cada caso e de cada lesado; que a avaliação deve atender às consequências patrimoniais da sua concreta e individual diminuição da capacidade de ganho do lesado e que as consequências patrimoniais da concreta e individual diminuição da capacidade de ganho do lesado dependem do vencimento anual à data do acidente (conclusões 25.ª a 32.ª).

29. A Ré alega, em síntese, que, desde que não haja perda efectiva da capacidade de ganho, a avaliação do dano biológico deve ser feita em abstracto, de forma tendencialmente igual para todas as pessoas. — Em qualquer caso, a indemnização do dano biológico, decorrente da lesão do direito à saúde, não poderia ser superior à indemnização do dano da morte, decorrente da lesão do direito à vida.

 30. O dano do Autor, agora Recorrente, AA concretizou-se na afectação da sua integridade física e psíquica — e o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, constantemente, que “a afectação da integridade físico-psíquica (que tem vindo a ser denominada ‘dano biológico’) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial” [3], ou que “o dano biológico ou dano existencial compreende ou ‘contém’ os tradicionais danos patrimoniais futuros e os danos não patrimoniais”, ainda que neles não se esgote [4] [5].

 31. Os factos provados sob os n.ºs 35, 36, 46, 51, 52 e 60 são os seguintes:

35) O A. sente forte pressão na cabeça devido ao traumatismo craneo-encefálico que sofreu.

36) Em consequência das lesões sofridas o A. tem insónias, alterações constantes e repentinas de humor, alterações da memória, episódios de falta de equilíbrio e cansaço fácil.

46) Em consequência das lesões sofridas e sequelas de que é portador o A. apresenta um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 40 pontos.

51) As sequelas de que o A. ficou portador demandam esforços acrescidos para o exercício da sua actividade profissional habitual.

52) As sequelas de que o A. ficou portador implicam o recurso permanente a medicamentos do foro psiquiátrico/neurológico para o A. ultrapassar as dificuldades funcionais da vida diária, bem como o recurso a acompanhamento neuropsicológico.

60) Em consequência das lesões cerebrais que sofreu sobreveio ao A. epilepsia pós-traumática tardia, manifestada em crises epilépticas atónicas.

  32. Ora, ainda que o facto provado sob o n.º 51 considere tão-só as dificuldades ou esforços acrescidos, o conjunto dos factos provados, de que constam alterações da memória e crises epilépticas, é suficiente para que se conclua que há algo mais que um aumento da dificuldade, do esforço ou da penosidade do trabalho — para que se conclua que há uma diminuição, ou uma perda parcial, da capacidade de trabalho.

  33. Enquanto o aumento da dificuldade, do esforço ou da penosidade, “sem reflexo na diminuição efectiva do trabalho”, teria, tão-só, efeitos de natureza não patrimonial [6], a diminuição, ou a perda parcial, da capacidade de trabalho “terá efeitos de natureza patrimonial, ao atingir a possibilidade de progressão na profissão ou de mudança de profissão” [7].

 34. Como se diz na sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância,

“… a incapacidade de que o demandante ficou portador, não o tendo incapacitado para o desempenho da actividade profissional de empresário que tinha antes do acidente, implicam esforços suplementares no seu desenvolvimento.

Os quais têm de ser devidamente sopesados em termos de repercussão provável nas suas chances profissionais futuras, uma vez que, pela natureza das tarefas desenvolvidas por um empresário, designadamente com um modelo de negócio… centrado na sua pessoa, na sua capacidade de realização e iniciativa, sagacidade e competências relacionais e sociais, se crê notório que as sequelas que presentemente afectam o A. têm necessário impacto na forma e eficiência como pode prosseguir a sua actividade.

 E portanto naturais custos inerentes à maior demora e dificuldade no desenvolvimento da actividade, mas também frustração de ganhos resultantes das importantes alterações que as sequelas neurológicas que apresenta implicam no seu comportamento e capacidades, como sejam alterações constantes e repentinas de humor, alterações da memória, insegurança e cansaço fácil.

Com evidente impacto no núcleo essencial das aptidões necessárias ao cabal desempenho das funções próprias de um empresário”.

 35. Estando em causa o aspecto, a dimensão ou a vertente patrimonial do dano biológico, deve aplicar-se os princípios gerais dos arts. 562.º e ss. do Código Civil — e entre os princípios gerais está o princípio da avaliação em concreto dos danos patrimoniais [8].

  36. O Autor tem razão ao sustentar que a avaliação do dano biológico, no seu aspecto, na sua dimensão ou na sua vertente patrimonial. deve ser feita em concreto, em função das circunstâncias de cada caso e de cada lesado.

  37. Em contrapartida, a Ré não tem razão nem ao sustentar que a avaliação do dano biológico, na sua vertente patrimonial, deve ser feita em abstraco, de forma tendencialmente igual para todas as pessoas, nem em que a indemnização do dano biológico, decorrente da lesão do direito à saúde, não poderá ser superior à indemnização do dano da morte, decorrente da lesão do direito à vida.

  38. Entre a compensação dos danos não patrimoniais, como o dano da morte, e a indemnização dos danos patrimoniais não há nenhuma regra legal, doutrinal ou jurisprudencial que determine a que a primeira seja superior à segunda — e, dentro da compensação dos danos não patrimoniais, a regra é a de que a compensação do dano da morte é em geral inferior à compensação de danos não patrimoniais excepcionalmente graves [9].

  39. O problema está em que a avaliação em concreto dos danos patrimoniais, desde que futuros, é de grande complexidade”:

“… obriga a uma previsão dificilmente fundamentável em termos objectivos sobre danos que, naturalmente, se destinam a compensar perdas patrimoniais apenas futuramente concretizadas e, consequentemente, apenas futuramente quantificáveis” [10].

 40. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que o aplicador do direito deverá começar por avaliar os danos patrimoniais futuros através de critérios objectivos — como fórmulas matemáticas, cálculos financeiros ou tabelas [11]. — e, depois de avaliados os danos patrimiais futuros atráves de critérios objectivos, deverá corrigir os resultados, através do recurso à equidade:

 “… o valor estático alcançado através da automática aplicação de tal tabela ‘objectiva»’ […] terá de ser temperado através do recurso à equidade — que naturalmente desempenha um papel corrector e de adequação do montante indemnizatório às circunstâncias específicas e à justiça do caso concreto, permitindo ainda a ponderação de variantes dinâmicas que escapam, em absoluto, ao referido cálculo objectivo: evolução provável na situação profissional do lesado, aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível e melhoria expectável das condições de vida, inflação provável ao longo do extensíssimo período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização” [12].

  41. A regra é a de que a correcção dos resultados através do recurso à equidade concretiza-se no aumento da indemnização que decorreria da aplicação estrita dos critérios objectivos, como as fórmulas matemáticas ou as tabelas.

  42. O resultado dos critérios objectivos corresponderia a um referencial mínimo [13], em termos tais que se constatou que, “na medida em que o critério último, obrigatório e decisivo, é a equidade, tem… a jurisprudência fixado, quase sem excepção, valores indemnizatórios excedentes aos que resultariam da simples e ‘automática’ aplicação desses referentes” [14].

     Em desvio à regra, o Tribunal da 1.ª instância e o Tribunal da Relação concordaram em fixar uma indemnização inferior àquela que decorreria da aplicação das fórmulas e das tabelas — e o desvio compreende-se, atendendo a que o Autor era administrador de empresas na área da construção civil e da compra e venda de imóveis; a que o seu rendimento nos seis primeiros meses do ano de 2010 foi elevado — 5 372,60 euros líquidos —; e a que, considerado a instabilidade do mercado, era pouco provável que o seu rendimento continuasse a ser tão elevado nos meses e, sobretudo, nos anos subsequentes.

 43. Independentemente de estarem em causa danos patrimoniais ou não patrimoniais, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o controlo, designadamente em sede de recurso de revista, da fixação equitativa da indemnização [15] deve averiguar-se, tão-só, se estavam preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade [16]; se foram considerados as categorias ou os tipos de danos cuja relevância é admitida e reconhecida; se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram considerados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser considerados; e se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram respeitados os limites que, de acordo com a legislação e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados.

 44. Está em causa fazer com que o juízo equitativo se conforme com os princípios da igualdade e da proporcionalidade — e que, conformando-se com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, conduza a uma decisão razoável [17].

  45. O acórdão recorrido, ao avaliar em abstracto, de forma (tendencialmente) igual para todas as pessoas, o dano patrimonial futuro, não considerou da forma mais exacta os critérios que deveria ter considerado — a indemnização do dano biológico deve atender às consequências patrimoniais da sua concreta e individual diminuição da capacidade de ganho do lesado e que as consequências patrimoniais da concreta e individual diminuição da capacidade de ganho do lesado dependem do seu vencimento.

  46. Face ao rendimento do lesado, aos factores relevantes para a correcção dos resultados da aplicação das fórmulas matemáticas e às indemnizações fixadas, para casos comparáveis, pelo Supremo Tribunal de Justiça — elencadas no acórdão recorrido —, entendemos que deve fixar-se a indemnização do dano biológico, na sua vertente patrimonial, em 500 000 euros.

 47. A terceira questão consiste em determinar se os juros relativos à indemnização pelo dano biológico se vencem a partir da citação da Ré Lusitânia — Companhia de Seguros, SA., ou a partir da decisão.

 48. O Autor AA alega o seguinte:

33. Sem prejuízo do que infra se expôs em relação ao pedido de retificação do Acórdão Recorrido, crê o Recorrente que os juros de mora se devem contabilizar desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

34. A atualização da indemnização, nos termos propugnados pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º nº 4/2002, de 9 de maio de 2002, só é admissível caso contenha expressamente a discriminação do valor que está a ser atualizado, o momento a partir do qual tal atualização é feita e a indicação da(s) respetiva(s) taxa(s) atualizadora(s), referências essas que não constam do Acórdão Recorrido, pelo que não poderá deixar de se entender que a indemnização não foi atualizada.

35. Caso assim não se entenda, no que não se concede, os juros deverão ser contabilizados desde a data de prolação do Sentença de Primeira Instância, tal como já decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 20.11.2014.

36. Em face do exposto, deve a alínea c) do Acórdão Recorrido ser revogada, devendo, em consequência, ser substituída por outra que determine que o Recorrente tem direito a uma indemnização em virtude pelos danos patrimoniais futuros, e fixe o montante indemnizatório em valor não inferior a € 1.031.539,20 (um milhão trinta e um mil quinhentos e trinta e nove euros e vinte cêntimos), ao qual acrescerão os juros que se vençam desde a data da citação até efetivo e integral pagamento e, subsidiariamente, os juros que se vençam desde a data da prolação da Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

 49. O art. 805.º do Código Civil é do seguinte teor:

1. — O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.

2. — Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:

a) Se a obrigação tiver prazo certo;

b) Se a obrigação provier de facto ilícito;

c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.

3. — Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.

 50. O acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de Maio de 2002, interpretou-o nos seguintes termos:

“Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação” [18].

51. Entendendo-se, como entendemos, que deve fixar-se a indemnização do dano biológico, na sua vertente patrimonial, em 500 000 euros, esclarece-se que a actual decisão é uma decisão actualizadora no sentido do art. 805.º, n.º 1, do Código Civil, como interpretado pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 4/2002.

 52. Em resposta á terceira questão, dir-se-á que os juros se vencem desde a data da decisão actualizadaora e esclarecer-se-á que deve considerar-se como data da decisão actualizadora a data do actual acórdão.

III. — DECISÃO

 Face ao exposto, concede-se parcial provimento ao recurso interposto pelo Autor AA e nega-se provimento ao recurso interposto pela Ré Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A., nos seguintes termos:

  I. — revoga-se o acórdão recorrido, na parte em que alterou a alínea c) da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância e fixou indemnização devida pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, em 350000 euros;

  II. — fixa-se indemnização devida pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, em 500 000 euros (quinhentos mil euros);

  III. — determina-se que os juros de mora se vençam a partir da data da actual decisão.

  Em tudo o mais, confirma-se o acórdão recorrido.

  Custas do recurso interposto pelo Autor AA pelo Recorrente e pela Recorrida, na proporção do respectivo decaimento.

    Custas do recurso interposto pela Ré Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A., pela Recorrente.


Lisboa, 14 de Janeiro de 2021


Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

José Maria Ferreira Lopes

Manuel Pires Capelo

  Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiros José Maria Ferreira Lopes e Manuel Pires Capelo.

___________

[1] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016 — processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1.

[2] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 2018  — processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1.

[3] Vide, p. ex., acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 2018 — processo n.º 773/07.0TBALR.E1.S1 —, de 19 de Abril de 2018 — processo n.º 196/11.6TCGMR.G2.S1 —, de 18 de Outubro de 2018 — processo n.º 3643/13.9TBSTB.E1.S1 —, de 23 de Outubro de 2018 — processo n.º 902/14.7TBVCT.G1.S1—, de 18 de Dezembro de 2018 — processo n.º 181/12.0TBPTG.E1.S1 — ou de 8 de Janeiro de 2019 — processo n.º 4378/16.6T8VCT.G1.S1.

[4] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Janeiro de 2019 — processo n.º 4378/16.6T8VCT.G1.S1.

[5] Sobre o dano biológico, vide desenvolvidamente Maria da Graça Trigo, Adopção do conceito de dano biológico pelo direito português”, in: Revista da Ordem dos Advogados, ano 72.º (2012), págs. 147-178; ou Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil. Temas especiais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 69-87. O tema foi recentemente retomado por Luísa Monteiro de Queiroz, “Do dano biológico”, in: Revista da Ordem dos Advogados, ano 75.º (2015), págs. 183-222, e por José Carlos Brandão Proença. “A responsabilidade civil extracontratual nos 50 anos de vigência do Código Civil: um olhar à luz do direito contemporâneo”, in: Elsa Vaz de Sequeira / Fernando Oliveira e Sá (coord.), Edição comemorativa do cinquentenário do Código Civil, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017, págs. 313-388 (esp. nas págs. 368-371).

[6] Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil. Temas especiais, cit., pág. 78: “O lesado alcança[ria] o mesmo trabalho que alcançaria se não tivesse tido a lesão, mas fá-lo com mais esforço”.

[7] Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil. Temas especiais, cit., pág. 78.

[8] Vide, p. ex., Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 680-685.

[9] Cf. Maria da Graça Trigo, “Adopção do conceito de ‘dano biológico’ pelo direito português”, cit., pág. 158 (nota n.º 23): “… há situações de vítimas sobreviventes em que os sofrimentos são de tal forma graves e duradouros que se justifica a atribuição de uma indemnização superior à de casos de morte de uma pessoa”.

[10] Mário Tavares Mendes / Joaquim de Sousa Ribeiro / Jorge Ferreira Sinde Monteiro, “Relatório do Conselho constituído para fixação dos critérios das indemnizações por morte das vítimas dos incêndios em Portugal, nos meses de junho e outubro de 2017” in: Diário da República, 2.ª série, de 30 de Novembro de 2017 — págs. 27202(4) a 27202 (7) = In: Revista da Faculdade de Direito e de Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, n.º 10 (2017), págs. 135-147 (144).

[11] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Maio de 2017 — processo n.º 868/10.2TBALR.E1.S1 —: “[p]ara evitar um total subjectivismo que, em última análise, poderia afectar a segurança do direito e o princípio da igualdade o montante indemnizatório deve começar por ser procurado com recurso a processos objectivos, através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas, com vista a calcular o referido capital produtor de um rendimento vitalício para o lesado”.

[12] Expressão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Maio de 2017 — processo n.º 868/10.2TBALR.E1.S1.

[13] Expressão de Mário Tavares Mendes / Joaquim de Sousa Ribeiro / Jorge Ferreira Sinde Monteiro, “Relatório do Conselho constituído para fixação dos critérios das indemnizações por morte das vítimas dos incêndios em Portugal, nos meses de junho e outubro de 2017” in: Diário da República, 2.ª série, de 30 de Novembro de 2017 — págs. 27202(4) a 27202 (7) = In: Revista da Faculdade de Direito e de Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, n.º 10 (2017), págs. 135-147 (143).

[14] Expressão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2018 — processo n.º 3643/13.9TBSTB.E1.S1.

[15] Sobre o recurso à equidade, vide designadamente António Castanheira Neves, Curso de Introdução ao estudo do direito (policopiado), Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1971-1972, pág. 244;  ou Manuel Carneiro da Frada, “A equidade ou a justiça com coração. A propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in: Forjar o direito, Livraria Almedina, Coimbra, 2015, págs. 653-687.

[16] Vide, por último, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Outubro de 2018, no processo n.º 2416/16.1T8BRG.G1.S1, e de 6 de Dezembro de 2018, no processo n.º 652/16.0T8GMR.G1.S2.

[17] Vide, por último, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro de 2018, no processo n.º 245/12.0TAGMT.G1.S1, de 17 de Maio de 2018, processo n.º 952/12.8TVPRT.P1.S1, de 18 de Outubro de 2018, no processo n.º 3643/13.9TBSTB.E1.S1, e de 6 de Dezembro de 2018, processo n.º 652/16.0T8GMR.G1.S2.

[18] Sobre o acórdão de de uniformização de jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de Maio de 2002, vide, p. ex., Nuno Manuel Pinto Oliveira, ”Obrigação de indemnizar e mora do devedor. Anotação ao acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/2002, de 9 de Maio", in: Cadernos de Direito Privado , n.º 1, Janeiro-Março de 2003, págs. 41-51.