Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | FONSECA RAMOS | ||
Descritores: | SIMULAÇÃO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DECLARAÇÃO NEGOCIAL DOCUMENTO AUTÊNTICO ESCRITURA PÚBLICA VONTADE DOS CONTRAENTES MEIOS DE PROVA PROVA TESTEMUNHAL PROVA PROIBIDA INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA PRESUNÇÕES JUDICIAIS REPRESENTAÇÃO DOLO | ||
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Data do Acordão: | 05/22/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADAS AMBAS AS REVISTAS | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS/ REPERCUSSÃO DO TEMPO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS/ PROVAS - DIREITO REAIS/ POSSE/ USUCAPIÃO | ||
Doutrina: | - Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, 12ª edição, 1999, pág.971. - Carvalho Fernandes, in “A Prova da Simulação pelos Simuladores”, “O Direito”, 124, 1992, págs. 593 e segs.. - Henrich Ewald Hörster, in “A Parte Geral do Código Civil Português” – 1992, pág.536. - Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, págs. 12, 91, 103. - Manuel de Andrade, in “Teoria Geral”, II, pág.179. - Menezes Cordeiro, in “A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais”, 3.ª edição, pág. 91; in “Da Boa Fé no Direito Civil”, págs. 1208 a 1224; in “Tratado de Direito Civil Português”, págs. 850 e segs.. - Miguel Ricardo Machado Oliveira, “A Posse na Doutrina e na Jurisprudência”, Porto/1981, págs. 56 e 57. - Mota Pinto e Pinto Monteiro, in “Arguição da Simulação pelos Simuladores – Prova Testemunhal”, CJ, X 1985, págs. 593 e segs.; “Direitos Reais”, 1970, pág. 191; “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª edição actualizada, pág. 475; 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto – Coimbra Editora, Maio 2005, pág. 413. - Oliveira Ascensão, in “Direito Civil Reais”, 4.ª edição, pág. 103; “Direitos Reais”, 5ª edição, pág.382. - Orlando de Carvalho, “Introdução à Posse”, in RLJ, Ano 122º, pág. 265. - Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 2010, págs. 636, 638. - Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 312; in “Código Civil Anotado”, vol. III, pág. 18, em comentário ao art.1259.º. - Rui Pinto Duarte, in “Curso de Direitos Reais”, 2ª edição, pág.288. - Vaz Serra, na RLJ, ano 107.°, págs. 173-174. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 240.º, 241.º, 259.º, 281.º, 280.º, N.º2, 281.º, 291.º, 323.º, 326.º, N.º1, 349.º, 371.º, 373.º, 379.º, 393.º, N.º3, 394.º, 1251.º, 1252.º,1253.º ALS. A),B), C), 1255.º, 1256.º, N.º1, 1259.º, 1260.º, N.º2, 1263.ºD), 1265.º, 1287.º, 1292.º, 1296.º, 2133.º, 2157.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 511.º, N.º1, 646.º, N.º4. CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL: - ARTIGO 7.º | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 19/10/1994, BMJ, 440-361; -DE 14/12/1994, CJSTJ, 1994, III, 183; -DE 30/5/1995, CJSTJ, 1995, II, 118; -DE 17/6/2003, CJSTJ, 2003, II, 112. | ||
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Sumário : | I - Na génese da existência de negócios simulados, ainda que para camuflar negócios dissimulados, estão declarações negociais queridas para valer com força vinculativa, mas que não foram sinceras. II - Quando se invoca a simulação, afirma-se que a vontade declarada intencionalmente não correspondeu à vontade representada e querida pelas partes; através de um concerto defraudatório, fingido, as partes emitiram intencionalmente declarações não consonantes com aquilo que efectivamente queriam, com o fito de enganar terceiros (art. 240.º do CC), ou seja, simularam declarações negociais. III - Estando em causa as declarações negociais plasmadas em escritos – sejam eles documentos particulares ou autênticos –, como escrituras públicas notariais, tendo sido arguida a simulação das declarações de vontade nelas contidas, irreleva terem ou não esses documentos sido arguidos de falsidade, já que o que está em causa é a autenticidade intelectual. IV - O que o tribunal tem que apreciar são essas declarações, a que se não atribui sinceridade e verdade, mas um fingimento, uma simulação, para captar o sentido autêntico, genuíno, dos efeitos jurídicos que se pretendiam, pelo que não pode afirmar-se que, pelo facto das escrituras não terem sido arguidas de falsidade, não foi posta em causa a sua força probatória plena (art. 371.º do CC). V - Mesmo em documentos autênticos, com força probatória plena, é admissível prova testemunhal para precisar o sentido e o contexto da declaração negocial (art. 393.º, n.º 3, do CC). VI - Embora seja proibida a produção de prova testemunhal quando a simulação é invocada pelos próprios simuladores, admite-se, em interpretação restritiva do art. 394.º do CC, que possa ser produzida prova testemunhal desde que o acordo simulatório contenha um mínimo de prova, um começo de prova de natureza documental. VII - O Tribunal da Relação, ao reapreciar a prova e ao analisar o conteúdo das escrituras públicas onde, alegadamente, constam declarações de vontade negociais simuladas, não violou a lei, mormente, a força probatória desses documentos; de outro modo estaria consolidada a simulação se, apesar de arguida, os documentos que a encerravam, sendo documentos com força probatória plena, não pudessem ser escrutinados para neles se perscrutar a vontade real neles inserta. VIII - Sendo a simulação um fingimento que visa criar a aparência de um negócio que não foi querido pelas partes (simulação absoluta), ou que foi celebrado para esconder um outro, esse sim querido pelas partes (negócio dissimulado), a prova do requisito “intuito de enganar terceiros” pode ser feita de forma expressa – quando, por exemplo, existe um quesito a indagar sobre a intenção que é matéria de facto – ou de forma menos ostensiva, quando as instâncias recorrem a presunções. IX - Existindo divergência intencional entre a vontade expressa no documento e a intenção dos contraentes, com o objectivo de prejudicar terceiros, o facto dos vendedores terem sido representados por um dos réus não excluiu a existência de concerto simulatório, se o conluio era do conhecimento do representante dos vendedores, sendo a situação, nos termos do art. 259.º, n.º 1, do CC, de equiparar a atitude dolosa dos representados. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA, instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca do Funchal, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra: 1. BB e mulher, CC. 2. DD.
3. EE e marido, FF. 4. GG. 5. HH e marido, II. 6. JJ e marido, KK. 7.LL e marido, MM. 8. NN e marido, OO. 9. PP. 10. QQ. 11. RR. 12. SS, 13. TT, 14. UU, menor, representada por sua mãe, TT, e; 15. VV. Peticionando: - que sejam declaradas nulas, por simuladas, ou/e por ofenderem os bons costumes ou defraudarem a lei, as compras e vendas aparentemente tituladas nas escrituras juntas sob os nºs 7 e 9; - quando assim se não entenda, que sejam declaradas nulas essas compras e vendas declaradas naquelas escrituras porque na verdade não foram acordadas, nem para elas foram estipulados e pagos os preços delas constantes, nem alguns outros; - em qualquer dos casos, devem declarar-se válidas por realmente queridas as compras e vendas feitas para ele próprio pelo XX e pagas com dinheiro deste; - que seja ordenado o cancelamento das inscrições dos artigos 12° e 20° da petição inicial e de qualquer outros registos que porventura venham a ser feitos a partir ou com base nas escrituras referidas; - se os pedidos não procederem quanto às duas escrituras, deve proceder relativamente à outra e se não totalmente pelo menos na parte e na medida em que o deva ser e consequentemente daqueles registos que se ordene o cancelamento do correspondente. Alegou, em síntese: - que é filho de XX e da primeira mulher deste, o qual casou em segundas núpcias com TT (aqui Ré), de quem teve dois filhos, os réus UU e VV; - que em 1983, estando o XX cheio de dívidas, emigrou para a África do Sul, onde adquiriu um negócio que deu lucro, e continuou a explorar o estabelecimento “C...” através da sociedade referida; - que em 13.10.1988, DD, como procurador dos réus BB e esposa, declarou vender ao XX e mulher, TT, o usufruto do prédio rústico sito ao R..., S..., Funchal, pelo preço de 1500 contos, e ao filho de ambos, VV, a nua propriedade desse prédio, pelo preço de 450 contos, prédio esse que valia, à data, 7500 contos e que, na realidade, foi comprado pelo XX, para si próprio, no qual veio a construir uma vivenda, tendo todos os outorgantes acordado em emitir as declarações que constam da escritura e que não correspondem ao realmente querido pelas partes com vista a prejudicarem os credores do XX e bem assim o Autor; - que em 10/02/1992, os réus EE e marido, FF, este por si e como procurador dos demais réus acima identificados, declararam vender ao XX e esposa TT, pelo preço de 1800 contos, o usufruto do prédio urbano ao sítio da V..., C..., com a área global de 140 m2, e aos filhos daqueles, VV e UU, a nua propriedade desse prédio, pelo preço de 1200 contos; - que foi o XX quem pagou os valores em causa, tendo os outorgantes acordado na divergência da vontade declarada de modo a impedir que o Autor herdasse esse prédio após a morte do pai, XX; - que este faleceu a 16/05/2000. Contestaram os réus BB e mulher (fls. 121), por um lado, e, por outro, os réus TT, UU, VV, e DD (fls. 147), dizendo aqueles, em síntese, que celebraram um contrato promessa de compra e venda com DD relativamente ao prédio ao sítio do R..., S..., pelo preço de 6.750.000S00; - que não conheciam o promitente-comprador nem o seu procurador; - que receberam a totalidade do preço e emitiram procuração a favor do DD a fim de que diligenciasse pela celebração do contrato definitivo, não tendo qualquer conhecimento dos demais factos articulados, e devendo a acção ser julgada em conformidade com o assim alegado. Os réus TT, por si e em representação da sua filha UU, VV e DD, vieram deduzir contestação excepcionando a ilegitimidade deste último com fundamento em que o mesmo apenas interveio na escritura em causa em representação e como procurador de outrem pelo que o acto praticado produz todos os efeitos na esfera jurídica dos seus representados, não sendo, pois, sujeito da relação jurídica material de compra e venda do prédio ao sítio do R..., não tendo interesse directo em contradizer; - que a ré TT, enquanto usufrutuária, e o réu VV, enquanto nu-proprietário, tomaram posse do prédio em 13.10.1988 e em 9.01.1989 iniciaram a construção de uma moradia de dois pavimentos, prédio esse que vêm ocupando e possuindo desde há mais de quinze anos, sem oposição de ninguém e na convicção de se tratar de coisa própria, o que continuaram a fazer após a morte do co-usufrutuário, o XX; - que o valor do prédio sito ao R..., S..., era de 1500 contos, exactamente o valor que ficou a constar da escritura pública de compra e venda, sendo que os vendedores quiseram, de facto, vender o usufruto ao XX e à TT e a nua propriedade ao filho VV, tendo aquele pago apenas o valor de 525.000$00 e a ré TT pago o valor de 525 000$00 e de 450 000$00, não tendo existido qualquer acordo no sentido de ficar consignado aquilo que não correspondia à verdade; que a vivenda construída no referido prédio foi-o a expensas da ré TT, em nome próprio e em representação do filho VV, com as economias próprias trazidas da África do Sul, e todas as mobílias, demais recheio e utensílios domésticos são sua propriedade; - que do prédio da C..., o XX pagou apenas a importância de 900.000$00 correspondente ao seu usufruto, e a TT pagou a importância de 2.250.000$00 correspondente ao seu usufruto e à nua propriedade adquirida pelos filhos de ambos e não existe qualquer divergência entre a vontade declarada e a vontade real dos réus e dos vendedores, nem nunca houve intenção de prejudicar o Autor, até porque este recebeu uma doação em primeiro lugar. Os réus VV e TT deduziram reconvenção invocando a sua posse sobre o prédio ao Sítio do R..., freguesia de S..., alegando aí terem construído a sua moradia e instalado o seu domicílio, sem oposição de ninguém e à vista de toda a gente, tendo-o adquirido por usucapião, que invocam. Pugnam pela improcedência da acção e pela procedência das excepções de ilegitimidade e de usucapião e bem assim da reconvenção. O Ministério Público apresentou contestação (fls. 173) em representação do réu SS, ausente em parte incerta, oferecendo o merecimento dos autos. Na réplica, (fls. 175) o autor sustentou a legitimidade do réu DD, referindo ainda que o XX pagou 7500 contos como sendo o preço real da compra do prédio do R... e o procurador ficou com os restantes 750 contos, pelo que lhe advém prejuízo da procedência da presente acção; mais alegou que a posse sustentada numa compra e venda simulada é sempre de má fé, sendo certo que já com a apresentação de reclamação no processo de inventário quanto à relação de bens se teria interrompido o eventual prazo de prescrição. Conclui pela improcedência das excepções e da reconvenção, devendo os réus ser condenados como litigantes de má fé. No despacho saneador julgou-se procedente a excepção da ilegitimidade do réu DD, o qual foi absolvido da instância. Inconformado, o autor agravou desse despacho, tendo o recurso sido admitido com subida deferida (a subir com o 1º que haja de subir imediatamente). Foram elaborados os factos assentes e a base instrutória. Oportunamente teve lugar audiência de discussão e julgamento. Por se ter perdido o paradeiro do processo, houve lugar a reforma de autos nos termos dos arts. 1074° e segs. do Código de Processo Civil, a qual foi decidida por sentença, transitada em julgado, de 03/04/09 (fls. 347 a 351), que julgou a acção reformada. *** Foi proferida sentença na qual se decidiu:
“a. declarar a nulidade das compras e vendas tituladas pelas escrituras referidas no pontos 6) e 8) da matéria de facto relativamente ao usufruto e nua propriedade do prédio rústico destinado a construção urbana, com a área de 1280 m2, no sítio do R..., freguesia de S..., concelho do Funchal, a confrontar pelo norte com ZZ, Sul com AAA, Leste com BBB, Oeste com CCC, inscrito na matriz cadastral na freguesia de S..., sob o n.º9 da Secção S, sem rendimento colectável discriminado, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º …, e do prédio urbano coberto de telha, no sítio da V..., freguesia e concelho da C..., com a área global de 140 m2, sendo 42 m2 de área coberta e 98 m2 de logra douro, a confrontar pelo Norte com o Caminho Municipal, Sul com F..., Leste com a Entrada Particular e Oeste com a Entrada de herdeiros de DDD, inscrito na matriz sob o artigo 1021, com o valor patrimonial de 21.112$00, actualmente descrito sob o n.º 01973/161297 da freguesia da C..., por simulação;
b. ordenar o cancelamento das inscrições G19981230012-AP. 12 de 1098/12/30 e F19981230013-Ap. 13 de 1998/12/30 relativamente ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número 00100/2311986, e das inscrições G-5 Ap. 07/161297 e F-1 of. Ap. 07/161297 relativamente ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial respectiva, freguesia da C..., sob o n.º 01973/161297;
c. declarar a validade dos negócios dissimulados encobertos pelos negócios simulados referidos em a), correspondentes à compra e venda do direito de propriedade plena pelo XX relativamente aos prédios referidos em (a), sendo o valor do preço da venda quanto ao prédio sito ao R..., Funchal, equivalente a Esc. 7.500.000$00 (37.409,84 euros);
d. julgar improcedente o pedido reconvencional deduzido pelos réus TT, esta por si e em representação da filha menor UU, e VV, dele absolvendo o Autor;
e. comunicar aos serviços de finanças competentes do teor da mesma sentença, dando conta da simulação do preço acima referida, para os efeitos que aqueles tiverem por convenientes;
f. condenar os réus TT, esta por si e em representação da filha menor UU, e VV, como litigantes de má fé, no pagamento de uma multa equivalente a 10 (dez) UC.” (sublinhados nossos)
*** Inconformados, TT e outros recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 11.10.2011 – fls. 680 a 728 – decidiu:
1. Negar provimento ao agravo, confirmando-se a decisão recorrida;
2. Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
- revogou sentença recorrida na parte em que na mesma se decretou a nulidade da compra e venda titulada pela escritura outorgada dia 14.02.92 (referente ao prédio da C...), e declarou válido o negócio dissimulado referente à compra do direito de propriedade plena desse prédio pelo XX e ordenou o cancelamento das inscrições prediais G-5 Ap. 07/161297 e F-l of. Ap. 07/161297;
- confirmou no demais a sentença recorrida, excepto no que toca ao preço da venda do prédio localizado no sítio do R..., Funchal, o qual foi de 6.750.000$00 (€ 33.668,86) e não 7.500.000$00 como declarado na sentença. *** Este Acórdão foi alterado pelo de fls. 817 a 820 – Conferência – de 14.2.2012, que decretou: “Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a nulidade invocada pelo apelante AA, decide-se:
1. Manter o acórdão recorrido, suprimindo-se, todavia, o vício de que padece na sua parte decisória, explicitando-se agora que se julgam improcedentes os pedidos formulados na p.i. sob as alíneas b), e), d) e e) relativamente ao prédio da C..., absolvendo-se os réus dos mesmos. 2. Notifique.” *** Inconformados, recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça, AA, DD, TT e VV.
*** TT e VV, alegando, formularam as seguintes conclusões – fls. 747 a 749: 1. O presente recurso de revista é de Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu do mérito da causa e tem por fundamento violação de lei substantiva — os arts. 371°, 1259° e 1878° do Código Civil, e violação da lei de processo — art. 515º e art. 668°, n° 1, al. d) do Código de Processo Civil. 2. O Tribunal recorrido, nos termos do art. 646°, n°4, do Código de Processo Civil, decidiu e considerou não escritas as expressões “vêm possuindo” e “pratica reiterada dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade” constantes da resposta ao quesito 22º da Base Instrutória, mas, o Tribunal recorrido, com essa decisão, não afastou a posse titulada dos RR. /TT e filho VV, que resulta da escritura de compra e venda de fls. 84, nos termos do art.1259° do Código Civil, que é documento que continua a constar dos autos, cuja forma mantém-se válida, para todos os efeitos legais. 3. O Tribunal recorrido, com o fundamento de que foi o XX que custeou “a aquisição do terreno e a construção da casa”, alterou a resposta ao quesito n°23 da Base Instrutória, dando por provado “que a Ré TT é quem limpa ou manda limpar o prédio” apenas desde poucos meses antes da morte do marido (Pai XX) e procedeu a essa alteração da matéria de facto sem atender, e ignorando, por completo, que os pais do VV praticaram todos esses actos em representação legal e em nome do Filho VV e no exercício do poder paternal, e que é facto notório. 4. E logo através da escritura inicial de compra e venda do terreno, constante dos autos de fls. 84, ficou documentalmente provado que o Pai XX quis comprar e comprou o terreno em representação legal e em nome do filho menor e no exercício do poder paternal è o mesmo aconteceu com a licença de construção, passada pela Câmara Municipal do Funchal, a favor do Filho VV e não a favor do Pai XX, que é documento autêntico, com força probatória plena, constante dos autos. 5. Pode-se discutir se os dinheiros do Pai XX, usados para comprar o terreno e custear a construção da casa, foram doados ou foram emprestados ao Filho VV, que tem posse titulada e tem licença de construção, mas, se os dinheiros foram doados, a casa é do Filho VV e se, por hipótese, os dinheiros foram emprestados, a casa continua a ser do VV, tendo este apenas de reembolsar o pai, ou a herança deste, dos dinheiros que haja recebido, a título de empréstimo, o que não está demonstrado nos autos. 6. E a posse titulada do filho VV e a licença de construção do Filho VV e a actuação notória do Pai XX, em representação legal e em nome do filho menor VV, no exercício do poder paternal, são elementos fornecidos pelo próprio processo, e completamente ignorados pelo Tribunal recorrido, e com influência no exame e decisão da causa e; só por si, impõem decisão diversa da recorrida, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, designadamente, pelas provas indicadas como fundamento da decisão de que se recorre.
7. E há omissão de pronúncia, na medida em que os recorrentes invocaram, no Recurso de Apelação, a questão da posse titulada, resultante do art. 1259°, n°1, do Código Civil, na convicção de que se tratava de um direito seu, sobre a qual pretendiam obter decisão favorável, e sobre essa questão o Tribunal Recorrido não se pronunciou e devia pronunciar-se, designadamente, devia pronunciar-se se essa posse titulada é, ou não é, um direito dos recorrentes, e se esse direito prevalece, ou não prevalece, sobre eventual posse do Pai XX, proveniente de depoimento testemunhal, aliás, pouco esclarecedor.
8. Há erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa com ofensa de disposição expressa da lei (art. 1259°, n°1, do Código Civil), que exige certa espécie de prova (escritura válida na sua forma) para a existência do facto (posse titulada), e com violação da lei (art. 371° do Código Civil) que fixa a força de determinado meio de prova (documento autêntico — licença de construção), pelo que tal, erro, da decisão recorrida, pode ser objecto de recurso de revista nos termos do art. 722°, n°1, do Código de Processo Civil.
Normas legais violadas: Código Civil — art. 371°; art. 372°; art. 394°; art. 408°, n°1; art. 1259°, art. 1254°, n°2 e art.° 1878°.
Código de Processo Civil — art. 515°; art. 668°, n°1, al. d) e art. 712°, n° 1, al. b) e n°2.
Termos em que deve ser declarada nula, anulada ou revogada, a decisão recorrida, que põe termo ao processo, na parte desfavorável aos recorrentes, que considerou não escritas as respostas ao quesito 22º da base instrutória, e na parte respeitante à alteração da matéria impugnada de facto, dada por provada na 1ª Instância, e constante da resposta ao quesito 23º e na parte respeitante à decisão final de improcedência da acção, quanto à casa do Funchal, R..., S..., devendo proferir-se nova decisão que julgue a invocada usucapião da TT e do VV totalmente procedente e provada, com todas as consequências legais, uma vez que, dos autos, constam todos os elementos necessários.
*** O Recorrente AA, alegando, formulou as seguintes conclusões – fls. 772 a 779:
1ª - A Primeira Instância havia julgado totalmente procedente o pedido principal mas depois de alterar a matéria de facto a Relação, com base nos factos infra transcritos julgou improcedente o pedido da escritura junta sob o n°9 ou seja relativamente ao do prédio da C... essencialmente porque deles não resultaria provado o acordo simulatório nem são de molde a que se possa concluir haver fraude à lei ou ofensa dos bons costume e isso sem que tenha abordado o pedido formulado subsidiariamente nas alíneas b), c) e e) do pedido da Petição Inicial.
2ª- E no que importa àquela improcedência que ao fim e ao cabo consubstancia o objecto do presente recurso, o douto Acórdão após aquela alteração deu como provados, entre outros, os factos supra transcritos de fls. 3 a 8 ou e melhor a Relação alterou, no que para este recurso importa, as respostas aos quesitos 13 a 17 da 1ª Instância (ou dos números 29 a 33 fls. 16 do Acórdão) passando por isso a serem dados como provados os da linha 23 de fls. 30 à linha 8 de fls. 31 do Acórdão ou dos números 30 a 35 supra transcritos a fls. 6 e 7.
3ª - E contra esta alteração importa dizer que não se mostra conforme à lei e mormente à 2ª parte da alínea a) do n°1 dos artigos 712º, e nº2 do 690º-A ambos do Código de Processo Civil (na redacção aplicável do DL.183/2000 de 10/8) uma vez que os Recorrentes ao impugná-los nunca indicaram os depoimentos gravados em que se fundam por referência designadamente ao nome da testemunha e ao seu início e termo conforme assinalados na acta nos termos do disposto no n°2 do artigo 522º-C e também daquele Diploma.
4ª - Bem ao invés, ao longo das suas alegações e conclusões, mormente junto da Relação por diversas vezes e sempre de modo genérico e abstracto, os Recorrentes falam apenas em “inadmissibilidade da prova testemunhal” e “ausência de prova de acordo simulatório” (fls. 2 linha 20 e Folhas 9, linhas 14 e 15); “em prova testemunhal, que não contém elementos mínimos de prova do acordo simulatório”. (fls. 10, linha 9; fls. 12, linha 12; fls. 19 linha 22, fls. 52 linhas 7,10,14,19 e fls. 62 linha 1).
5ª - Não obstante o que se vem dizendo sobre a total omissão dos RR., o Autor nas suas contra-alegações indicou passagens de depoimentos gravados por referência ao assinalado na acta com vista a infirmarem as alegações e conclusões do Recorrente mas o Acórdão Recorrido não as teve em qualquer conta, como e por isso não teve o n°2 daquele artigo 712º.
6ª - Vai daí que o Acórdão recorrido se tenha substituído aos Recorrentes e a propósito surja o que nele se escreve da linha 12 de fls. 29 à linha 8 de fls. 31 e assim acabe por alterar os ditos quesitos 13º a 17º para aquele outro modo que se assinala na 2ª Conclusão.
7ª- E assim sem tomar em conta o que se diz desde a 3ª Conclusão, o Acórdão analisa e conclui com a alteração da 2ª e por isso deve ser tida e havida como nula por violação das disposições legais citadas nas 3° e 5ª Conclusão e quando não assim, sempre seria prática de um acto susceptível de influir no exame e decisão da causa e igualmente nula e por conseguinte repristinar os factos em apreço 13 a 17 como são dados provados pela 1ª Instância, incluindo o acordo simulatório e julgar procedente o pedido relativamente ao prédio da C... (artigo 201 do Código de Processo Civil).
8ª - Nem se diga que tal alteração da Relação está coberta pelo Acórdão do Supremo ao ordenar a reapreciação da prova pois este mais alto Tribunal em concreto, explicita ou mesmo tacitamente não abordou nem decidiu a questão em apreço nem sequer como obiter dictum e onde nem ao menos quando trata da questão a fls. 23 transcreve ou aborda o citado n°2 do artigo 790º - A, apesar de aí o ter feito quanto à parte restante.
9ª- A não ser nula a referida alteração factual pela Relação e consequentemente a não ser dado como provado o acordo simulatório da 1ª Instância, então terá havido e está provado um outro acordo capaz e suficiente de motivar a procedência desse pedido pois segundo o douto Acórdão, com a dita alteração dos factos provados emerge a divergência da vontade declarada e querida do XX e TT, assim como o seu propósito de enganarem e prejudicarem o Autor AA privando e afastando esse prédio da sua legítima, bem como e ainda emerge um acordo claro e preciso neste sentido mas apenas entre o XX e TT. (Factos supra nºs 30 a 32)
10ª - E se o douto Acórdão entende não ter havido directa e expressamente esse acordo do lado dos vendedores, contudo naturalmente eles tiveram a percepção de que algo de estranho havia ali uma vez que do declarado na escritura a respeito da compra e venda do usufruto e nua propriedade nada haviam falado nem recebido qualquer preço e assim sendo só se fossem tolos ou atrasados mentais é que não se aperceberiam dessa divergência.
11ª - Por isso ou assim sendo sempre se estaria perante um acordo, ainda que incompleto mas suficiente para a simulação e concluir não ser necessário que se faça com um declaratório em sentido próprio podendo ser com o destinatário beneficiário do negócio ou a quem é destinatário ou só beneficiário da correspondente declaração.
12ª- Daí, ou por haver esse acordo simulatório incompleto com este sentido dever ter lugar a procedência da acção também nesta outra sua parte, declarando nula a simulada compra e venda da raiz e usufrutos declarados na escritura junta sob o n° 9 e válida a oculta ou dissimulada compra e venda do prédio pelo XX e em consequência alterar-se o Acórdão nesse sentido em harmonia com os artigos 240º a 242º do Código Civil.
13ª - Quando não como se vem dizendo, então a procedência da acção quanto ao prédio da C... deve acontecer porque o supra transcrito a fls. 14 do Acórdão e os factos que lhes são subjacentes mostram que os comportamentos desses RR. defraudam a lei ao invés do que aí se escreve.
14ª- Para mais em vez de se ficar por aquela transcrição, o Acórdão interpretou-a dando-lhe o sentido de empréstimo ou doação do dinheiro aos filhos ao mesmo tempo que o silencia quanto à restante parte do dinheiro do XX com a qual a TT diz ter comprado o “seu” usufruto, por isso e porque tal entendimento é antagónico com o seu texto e contexto e sobretudo porque o pagamento desses preços pelo XX não são a única nem a principal divergência da escritura n° 9 tudo torna claro de que os referidos “indícios e indiciados” não têm qualquer razão ou apoio factual ou jurídico nos factos provados e assim como não a há razão para ai concluir que o negócio não defrauda a lei nem é contra os bons costumes.
15ª - Aliás é quase incompreensível que aí se fale em “doação ou empréstimo do dinheiro por parte do XX aos filhos e que tal seja indiciado do facto provado de ter sido do XX o dinheiro da aquisição da nua propriedade” pois muito claramente, ou de todo em todo, não há qualquer declaração na escritura ou fora dela, oculta ou aparente ou qualquer facto provado que evidencie, indicie ou aponte para tal empréstimo ou doação aos filhos bem ao contrário tal entendimento está em manifesta oposição e contradição não só com os factos provados de 29 a 31 de fls. 16 do Acórdão ou supra transcritos de 30 a 35.
16ª - Mas também com os demais dados provados na Relação e na 1ª Instância manifestamente resulta que o XX e a TT ao procederem como procederam, e sempre por si e representante legal dos seus filhos menores VV e UU, foi com o propósito de contornarem a lei que protege a legítima e por consequente para defraudar e contornar as normas que protegem o direito sucessório do Autor e que sendo de ordem pública não podem ser afastadas directa ou indirectamente por vontade dos RR. - (artigos 294 e 2156 e 2157 do Código Civil).
17ª - E quem assim procede e acabamos de ver ao outorgar a escritura junta sob o n°9, também e notoriamente ofende os bons costumes e cuja compra e venda por isso é sancionada com a nulidade por diversos preceitos daquele Diploma designadamente pelos seus artigos 280º, n°2, 281º e 334º ou e no mínimo tendo por não escrita qualquer condição de igual conteúdo como sucede naqueles outros seus artigos 271, 967, 2.186 e 2.230.
18ª - E muito concretamente o supra descrito comportamento dos ditos RR. não se coaduna com os bons costumes ou com as concepções ético - jurídicas dominantes da nossa colectividade que vão no sentido generalizado de não diferenciar os filhos e, mormente prejudicando os mais necessitados como é o Autor (a litigar graças ao apoio judiciário) e com quem o Réu XX apesar de ser Pai não tinha boas relações desde 1988 estando cortadas ao tempo da escritura sub judice em 1992.
19ª - E o XX não só quis diferenciar e prejudicar o Autor com a compra deste prédio da C... como fez também ainda com a escritura junta sob o n°7 e com outras e consequentemente no nosso caso não considerar nula a venda declarada na escritura, doc.nº 9, resultaria numa intolerável ofensa da nossa tradição cultural familiar, da nossa Justiça e do nosso sentido ético - jurídico e das supra disposições legais sucessórias e imperativas.
20ª - Chegados assim à nulidade da compra e venda declarada na escritura n°9 ou seja da compra do usufruto pelo XX e TT e a raiz pelos filhos menores de ambos através dos dois caminhos assinalados desde a 13ª Conclusão ou por qualquer deles, quid juris daquela outra compra e venda oculta do prédio pelo XX uma vez que no caso há dois (pluralidade) negócios relacionados entre si, ou seja um aparente e outro oculto e onde a nulidade daquele não determina a deste nos termos do artigo 292 do Código Civil e como o declaratório (TT e filhos) conhecem a vontade real do declarante (XX) é de acordo com esta que vale a declaração emitida (artigo 236º do Código Civil)
21ª - E como esta opção pela nulidade do negócio aparente assegura melhor os interesses de terceiros e mesmo os de qualquer dos herdeiros do XX daí se concluir no sentido da validade do negócio dissimulado ou seja da compra da propriedade plena do prédio em causa pelo XX pelo preço de 3.000 contos.
22ª - Para mais esta solução está de harmonia com a orientação predominante, ao pensar que neste caso sempre seria aplicável analogicamente o princípio genericamente estabelecido para a simulação relativa pelo artigo 241° do Código Civil, destruído o negócio simulado, será válido o negócio dissimulado, não sendo a sua validade prejudicada pela invalidade do negócio simulado.
23ª - A não ser como se vem dizendo desde a 2ª Conclusão, então há-de reconhecer-se a nulidade do Acórdão porquanto não conheceu do pedido subsidiário constante das supra alíneas b) a e) e e) da p.i. e a consistir no pedido da declaração de nulidade da compra e venda da escritura junta como documento n°9 e válida aquela outra feita do prédio pelo XX que ajustou e pagou com o seu dinheiro.
24ª - É que e conforme resulta dos supra números 33 a 35 a fls. 7 dos factos provados para a compra e venda do usufruto pela Ré TT e da raiz pelos filhos, da escritura não foram acordados nem pagos quaisquer preços nem para isso tinham dinheiro e como na compra e venda a estipulação do preço é um elemento essencial, a sua falta ocasiona a nulidade da mesma. (artigos 847 e 879 do Código Civil).
25ª - Consequentemente o Acórdão recorrido enfermaria da nulidade prevista na 1ª parte da alínea d) do n°1 do artigo 668º do Código Processo Civil ex vi do artigo 716º, n°1, do mesmo diploma legal e, in casu, o processo teria de baixar à 2ª instância para se reformar a decisão só nesta parte ou para conhecimento deste pedido subsidiário e o que obviamente não se põe relativamente à 1ª Instância uma vez que o decidiu como procedente ao invés da Relação.
26ª - O douto Acórdão recorrido ao julgar nos termos em que o faz violou entre outras as disposições citadas nestas Alegações e Conclusões.
Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso.
Houve recíprocas contra-alegações.
*** Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:
1. DD nasceu no dia … de … de 19… e é filho de FFF e de GGG – (documento de fls. 360).
2. TT nasceu no dia … de … de 19… e é filha de FFF e de GGG – (documento de fls. 362).
3. O Autor (também conhecido por AA) é filho de XX e de HHH, cujo casamento foi dissolvido por divórcio – Al. A).
4. O XX casou em segundas núpcias, sob o regime imperativo de separação de bens, com a ré TT, e desse casamento nasceram os filhos VV e UU, também ora réus – Al. B).
5. Em 18 de Outubro de 1983, o XX declarou ceder as quotas correspondentes a 80% do capital que detinha na sociedade … & …, Lda., ao seu irmão III – Al. E).
6. Por sentença, não transitada em julgado, proferida dia 22-05-2003 pela Vara Mista do Funchal foi declarada nula a cessão de quotas operada pela escritura de 18-10-83, na qual XX declarou ceder a III a quota que detinha na … & …, Lda. – Al. L).
7. O facto referido em 5. visou a eventual perseguição dos credores – resposta ao quesito 3º.
8. No dia 19 de Outubro de 1983, o XX doou ao Autor, por conta da legítima, um prédio rústico e urbano sito na freguesia de São … e o estabelecimento então nele instalado, denominado “C...” – Al. D).
9. Em articulado de acção judicial, o XX alegou que aquando da doação a que alude o ponto 7. era grande devedor e só o receio da eventual perseguição dos credores ao seu património o impeliu a fazer a doação e a emigrar para a África do Sul – Al. C).
10. Em Dezembro de 1983, o XX, em razão de dificuldades económicas, emigrou pela segunda vez para a África do Sul – resposta ao quesito 1º.
11. Antes de o fazer, vendeu algum do seu património e com parte do produto dessas vendas pagou dívidas a alguns dos seus credores – resposta ao quesito 2º.
12. Com o remanescente do dinheiro das vendas a que alude o ponto 11., o XX adquiriu um negócio em Joanesburgo que passou a explorar de modo bastante lucrativo – resposta ao quesito 4º.
13. Como continuou também de modo bastante lucrativo a explorar as “C...” através da sociedade … & …, Lda.
14. A ré TT explorava o negócio da África do Sul em conjunto com o XX, com quem veio a casar – resposta ao quesito 5º.
15. Em 21 de Novembro de 1985, DD, invocando a sua qualidade de procurador de XX, declarou prometer comprar a BB e este declarou prometer vender-lhe o prédio identificado no documento de fls. 125 a 127 que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
16. Por escritura de 13 de Outubro de 1988 do Cartório Notarial de Santana, o aí primeiro outorgante, DD, como procurador dos réus BB e mulher, CC, disse que pelo preço global e já recebido de um milhão e quinhentos mil escudos vende ao segundo outorgante, XX e mulher, TT, o usufruto por um milhão e cinquenta mil escudos, e ao seu (deles) legalmente representado filho de ambos com 3 anos VV, por quatrocentos cinquenta mil escudos, a nua propriedade do prédio rústico destinado a construção urbana, com a área de 1280 metros2, no sítio do R..., freguesia de S..., concelho do Funchal, a confrontar pelo norte com ZZ, Sul com AAA, Leste com BBB, Oeste com CCC, inscrito na matriz cadastral na freguesia de S..., sob o n.º 9 da Secção 5, sem rendimento colectável discriminado, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o nº00100/2311986, tendo os segundos outorgantes, aquele XX e mulher, por si e como representante legal do filho menor, dito que aceitam a venda nos termos expostos – Al. G).
17. As aquisições da nua propriedade e do usufruto foram registadas, respectivamente, pelas inscrições G 19981230012 - AP. 12 de 1998/12/30 e F19981230013 – Ap. 13 de 1998/12/30 – Al. H).
18. Em 23.05.1986, os réus BB e mulher outorgaram a procuração que consta do documento de fls. 129 e 130 conferindo a DD poderes especiais para vender o prédio identificado em 16 – (fls. 238).
19. Aquando da escritura referida em 16. as relações entre o XX e o filho AA já não eram boas – resposta ao quesito 18º.
20. O prédio a que se refere o ponto 16. valia ao tempo sete mil e quinhentos contos – resposta ao quesito 6º.
21. Foi o XX quem comprou para si próprio o prédio a que se refere o ponto 16 – resposta ao quesito 7º.
22. O XX pagou pela aquisição desse prédio a quantia de 7.500 contos, com o esclarecimento de que 6750 contos foram pagos aos proprietários do mesmo e a quantia de 750 contos ao DD – resposta ao quesito 8º.
23. As declarações negociais dos outorgantes da escritura a que se refere o ponto 16. foram acordadas entre todos eles com o propósito de impedir a execução do prédio pelos credores do XX e ainda de impedir o autor de herdar nele por morte de seu pai – resposta ao quesito 9º.
24. O XX, a ré TT e DD concordaram que nela figurassem aqueles dois como compradores do usufruto do prédio e o VV, filho de ambos, da raiz, para através desse expediente enganarem e prejudicarem os credores daquele e o Autor AA, fazendo-os acreditar erroneamente que o prédio não havia sido adquirido pelo XX e consequentemente aqueles não o poderiam executar e o A., futuramente, não participaria na sua partilha por, aparentemente, o prédio não integrar o património e, mais tarde, o acervo hereditário do seu pai – resposta ao quesito 10º.
25. Todos concordaram ainda em declarar na referida escritura os três preços dela constantes, de 1.500, 1.050 e 450 contos, em vez do único realmente querido de 7.500 contos negociados e pagos pelo XX com a compra do prédio para ele mesmo e isso para que este pagasse, – como pagou – menos sisa – resposta ao quesito 11º.
26. Posteriormente, sobre esse prédio e com dinheiro só dele, o XX mandou construir uma vivenda de dois pavimentos, com área coberta de 500 m2 e piscina, despendendo cerca de 60 mil contos para o efeito, com os arranjos por dentro e por fora e ainda com a respectiva mobília, recheio e utensílios domésticos – resposta ao quesito 12º.
27. Por escritura de 10 de Fevereiro de 1992 do Cartório Notarial de Santana (feita ao Sítio do Ribeiro Frio, freguesia de São Roque do Faial, daquele concelho), o aí primeiro outorgante, os réus EE e marido FF, sendo este por si e como procurador dos réus GG, HH e marido, II, JJ e marido, KK, LL e marido, MM, NN e marido, OO, PP, QQ, RR e SS, disseram que pelo preço global e já recebido de três milhões de escudos vendem ao terceiro outorgante, XX e mulher, TT, por um milhão e oitocentos mil escudos, o usufruto, e aos seus representados filhos menores, os réus UU e VV, por um milhão e duzentos mil escudos, a nua propriedade do prédio urbano coberto de telha, no sítio da V..., freguesia e concelho da C..., com a área global de 140 m2, sendo 42 m2 de área coberta e 98 m2 de logradouro, a confrontar pelo Norte com o Caminho Municipal, Sul com F..., Leste com a Entrada Particular e Oeste com a Entrada de herdeiros de DDD, inscrito na matriz sob o artigo 1021, com o valor patrimonial de 21.112$00, tendo aqueles terceiros outorgantes dito, por eles e nas invocadas qualidades que outorgaram, que aceitam estas vendas nos termos acima expostos – Al. I).
28. Era então parte do descrito na Conservatória do Registo Predial da Ponta do Sol, sob o nº …, a folhas 148 verso do Livro B-59 e actualmente é o descrito sob o nº … da freguesia da C... e onde aquela propriedade e usufruto se encontram registados, respectivamente, pelas inscrições G-5 Ap. 07/161297 e F-l of. Ap. 07/161297 – Al. J).
29. Ao tempo da realização da escritura referida em 27., já o Autor e o XX estavam de relações totalmente cortadas – resposta ao quesito 19º.
30. Ao contrário do declarado na escritura referida na alínea I) pela TT e pelo XX, por si e enquanto representantes dos seus filhos menores, aquele (o XX) queria adquirir para si o prédio em referência tendo pago o preço do seu bolso – resposta ao quesito 13º.
31. A divergência entre a vontade declarada na escritura pelo XX e mulher e a realmente querida, aquisição do prédio pelo XX, foi acordada entre estes, propositadamente, para que o Autor nada herdasse desse prédio por morte do pai, XX – resposta ao quesito 14º.
32. O XX e mulher concordaram que na escritura figurassem como sendo compradores do usufruto e os seus dois filhos menores como os compradores da nua propriedade do prédio, tendo o XX e a TT, em seu nome e como representantes dos filhos menores, actuado desse modo para convencerem o autor de que nada havia sido adquirido pelo XX, para que não herdasse esse prédio aquando da morte deste - resposta ao quesito 15º.
33. A TT e os filhos UU e VV não tinham dinheiro para pagar nada do que se diz terem comprado nas escrituras outorgadas nos dias 13-10-88 e 10-02-92 quanto mais o preço de 6750 contos da primeira e os três mil contos da segunda e ainda os sessenta mil contos do custo das obras e do recheio da vivenda – resposta ao quesito 16º.
34. Na realidade, a TT e os filhos desta nunca ajustaram nem pagaram qualquer preço pelo usufruto e nua propriedade do prédio referenciado na escritura, que aí dizem ter comprado, nem os vendedores receberam destes qualquer preço – resposta ao quesito 17º.
35. Os réus UU e VV, filhos do XX e da ré, TT, não tinham dinheiro para adquirir os prédios descritos nas escrituras de 13-10-88 e de 10-02-92 – resposta ao quesito 37º.
36. Em 11.08.1997, o XX fez testamento deixando aos filhos UU e VV a quota disponível dos seus bens – Al. M).
37. O XX faleceu em …….2000 deixando como únicos herdeiros a ré TT, os dois filhos de ambos, ora co-réus VV e UU, e ainda o autor AA, filho do primeiro casamento – Al. N).
38. No inventário aberto por óbito de XX, a ré TT, na qualidade de cabeça-de-casal, relacionou apenas o prédio que fora objecto da doação ao autor e reclamou a sua inoficiosidade – Al. O).
39. O Autor AA reclamou da falta de relacionação dos dois prédios e quotas em causa nesse inventário, tendo o juiz, inicialmente, remetido os interessados para os meios comuns, mas vindo, posteriormente, a suspender os trâmites do inventário até que aquelas questões se mostrem decididas definitivamente, uma vez que tudo isso releva para aferir da inoficiosidade ou da redução da doação e para a melhor igualação na partilha – Al. P).
40. Os réus TT e o filho VV instalaram o seu domicílio na vivenda referida em 26 – resposta ao quesito 21º.
41. Os réus TT e o filho VV, desde a construção da vivenda, ocorrida em 1990 ou 1991, vêm habitando a mesma, o que fazem à vista de todos e sem oposição de ninguém – resposta ao quesito 22º.
42. A ré TT é quem, desde poucos meses antes da morte do seu marido, XX, limpa ou manda limpar o prédio do Sítio do R... e quem repara ou manda reparar as degradações que o uso e o tempo provocam na moradia – resposta ao quesito 23º.
43. A licença de obras para a construção da vivenda no prédio em causa foi requerida no ano de 1989 na Câmara Municipal do Funchal em nome do VV– resposta ao quesito 25º.
44. Os réus TT e filho (VV) passaram a habitar na vivenda após a sua construção, o que ocorreu por volta do ano de 1990 ou 1991, sem qualquer violência, e sem oposição de ninguém, ignorando então que lesavam o direito de outrem – resposta ao quesito 24º.
45. Após o óbito do XX, a ré TT e filho, réu VV, continuaram a habitar na vivenda em referência – resposta ao quesito 26º.
46. O Autor AA nunca esteve na posse do prédio do Sítio do R..., nunca lá teve o seu domicílio, nunca lá residiu e nunca lá pernoitou – resposta ao quesito 27º.
Fundamentação:
Sendo pelo teor das conclusões das alegações dos recorrentes que, em regra, se delimita o objecto do recurso – aforas questões de conhecimento oficioso – importa saber:
- quanto ao recurso dos RR. TT e VV, se a Relação violou a lei ao apreciar a matéria de facto nos termos em que o fez infringindo a lei substantiva, sendo ilegais as alterações introduzidas nas respostas aos quesitos 22º – em relação ao que considerou não escrito – e 23º que conduziram à decisão de improcedência da acção no que respeita à Casa do Funchal, escritura de fls. 84, de 10.2.1992, prédio de R..., S. Gonçalo, Funchal;
- mais entendem estes recorrentes que o Tribunal não considerou, e deveria ter considerado, como titulada a posse exercida sobre a moradia construída pelo falecido XX, pelos recorrentes TT e pelo filho VV, ainda que o negócio aquisitivo fosse simulado, imóvel que consideram ter adquirido por usucapião;
- no que respeita ao recurso do Autor – é suscitada a questão de saber se os RR. recorrentes impugnaram correctamente a matéria de facto;
- se, mesmo a considerar-se sem mácula tal alteração, mesmo não se considerando provada a existência de simulação no negócio, ainda que incompleta de compra e venda do usufruto e da nua propriedade, não deverá ser considerado válido o negócio dissimulado, e assim, prejudicado o Autor na legítima que lhe cabia por morte do seu pai XX, negócio formalizado pela escritura documento nº9, de 10.2.1992 (fls. 94 a 97).
À guisa de intróito, importa dizer que este processo intentado na Comarca do Funchal foi perdido e reformados os autos, o que desde logo provocou indicações confusas sobre a paginação, uma acrescida dificuldade de consulta num processo que é uma réplica do original.
Antes de mais e porque todos os recorrentes colocam em causa o julgamento da matéria de facto feito pela Relação, com alteração substancial das respostas a vários quesitos e a uma alínea dos Factos Assentes, sobretudo o Autor que entende que os RR. recorrentes não deram cumprimento ao art. 690º-A do Código de Processo Civil (na redacção do DL. 183/2000, de 10.8), na medida em que não cumpriram os requisitos legais, mormente quanto à indicação precisa dos depoimentos e sua localização na acta da audiência de discussão e julgamento.
O primeiro Acórdão proferido no processo pela Relação de Lisboa recusou, com esse e outros fundamentos a reapreciação da matéria de facto, decisão que foi recorrida para este Supremo Tribunal de Justiça que, por Acórdão de 13.4.2011 (fls. 641 a 666), revogou a decisão por ter considerado que os recorrentes deram cumprimento ao ónus legal e, como tal, determinou à Relação que apreciasse o recurso de apelação também no que respeita à matéria de facto.
Em cumprimento do Acórdão deste Alto Tribunal, a Relação de modo minucioso e fundamentado, reapreciou e alterou a matéria de facto – quesitos 8º, 13º a 17º, 22º a 26º e 37º, bem como alterou a redacção da L) dos Factos assentes.
Portanto, nenhum dos recorrentes tem qualquer fundamento para invocar que a Relação não poderia reapreciar a matéria de facto. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, transitado em julgado assim o impôs.
Como é sabido o julgamento da matéria de facto só pode ser objecto de apreciação neste tribunal de revista se tiver existido violação das normas de direito probatório material pelo Tribunal da Relação, admitindo uma prova proibida ou não atribuindo força probatória a um meio de prova em violação da lei, das regras de direito probatório material.
O Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista tem competência excepcional no domínio da apreciação da prova como claramente resulta dos arts. 722º, nº2, e 729º, nº2, do Código de Processo Civil.
Em circunstância alguma lhe compete apreciar a prova testemunhal ou corrigir erros na apreciação das provas.
Dito isto, importa desde logo, tendo em conta que a causa de pedir da acção ancora no pedido de declaração de nulidade, por simulação dos negócios imobiliários realizados pelo pai do Autor, impetrando o demandante a invalidade dos negócios constantes das escrituras de compra e venda juntas sob os documentos (escrituras públicas) nºs 7, de 13.10.1998 (fls. 84 a 89) – relativa ao prédio rústico de R...-S….-Funchal e nº.., esta celebrada em 10.2.1992 – (fls. 94 a 97) relativa ao prédio urbano da V... da C... (também figurando como comprador do usufruto o XX, e os filhos menores VV e UU como compradores da nua propriedade, ambas intituladas de contratos de “Compra e Venda”, por considerar terem sido simulados em seu prejuízo tais negócios – com o fito de prejudicarem a sua legítima – já que neles intervém o seu pai XX a comprar para si, e também em representação de outros dois filhos menores fruto de um segundo casamento, a nua propriedade e ele XX e sua segunda mulher a Ré TT mais os filhos menores deste casal (UU e VV) o usufruto, quando o que todos quiseram foi algo diferente, ou seja, que o XX fosse o dono da raiz e os filhos donos do usufruto.
Esses dois negócios, assim simuladamente declarados em contrário da vontade real, visavam, não só prejudicar os credores do XX, ao tempo com acentuadas dificuldades económicas, mas, sobretudo, o Autor do ponto em que sendo más as relações pai e filho, aquele pretenderia que, quando falecesse, nada existisse no seu património para o Autor dele herdar a título de legítima, assim propositadamente esvaziada de bens patrimoniais de raiz.
A Ré TT, por si e em representação dos seus filhos menores UU e VV, sustentou que os negócios não foram simulados e que, tendo ambos tomado posse de um prédio sito em R...-S….-Funchal, ela enquanto usufrutuária e o filho VV, enquanto titular da raiz, aí construíram uma moradia – em 1988/1989 – pelo que pediram, em reconvenção, que lhes fosse reconhecido o direito de propriedade por eles adquirido por usucapião, alegando os pertinentes requisitos da posse.
Voltando um pouco atrás, para retomarmos um dos fundamentos do recurso dos RR.
Afirmam que a Relação, ao alterar as respostas aos quesitos de modo a concluir pela inexistência de contrato simulado, em relação à escritura de 14.2.1992 (referente ao prédio da C..., escritura documento nº9) violou prova documental – as escrituras públicas de compra e venda – documentos cuja falsidade não foi arguida e, nessa medida, violou o Acórdão normas probatórias de direito material, competindo ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar a alteração da matéria de facto, repristinando, nesse ponto, o julgamento da primeira Instância.
Parecem não atentar os RR./recorrentes, que, estando em causa a apreciação da existência de negócios alegadamente simulados, ainda que para camuflar negócios dissimulados, o que está na génese de tudo são declarações negociais queridas para valer como força vinculativa mas que não foram sinceras; isto é, quando se invoca a simulação afirma-se que a vontade declarada intencionalmente não correspondeu à vontade representada e querida pelas partes, através de um concerto defraudatório, fingido, emitiram intencionalmente declarações não consonantes com aquilo que efectivamente queriam com o fito de enganar terceiros – art. 240º do Código Civil – ou seja, simularam declarações negociais.
Bem podendo suceder que, sob o manto desse negócio simulado (de todo não querido), as partes pretendam esconder um outro, o negócio dissimulado, esse sim querido.
Por isso, estando em causa as declarações negociais plasmadas em escritos – sejam eles documentos particulares ou autênticos – como no caso, já que se trata de escrituras públicas notariais, tendo sido arguida a simulação das declarações de vontade nelas contidas, irreleva terem ou não esses documentos sido arguidos de falsidade, já que o que está em causa é a autenticidade intelectual, ou seja, o que o Tribunal tem que apreciar são essas declarações, a que se não atribui sinceridade e verdade mas um fingimento, uma simulação, para captar o sentido autêntico, genuíno dos efeitos jurídicos que se pretendiam sob o manto mais ou menos espesso da insinceridade.
Daí que seja um sofisma afirmar-se que, pelo facto das escrituras não terem sido arguidas de falsidade não foi posta em causa a sua força probatória plena – art. 371º do Código Civil – tendo sido ilegal a produção de prova testemunhal.
É de lembrar que, mesmo em documentos autênticos com força probatória plena, é admissível prova testemunhal para precisar o sentido e o contexto da declaração negocial – nº3 do art. 393º do Código Civil.
Também, embora seja proibida a produção de prova testemunhal quando a simulação é invocada pelos próprios simuladores, se admite, em interpretação restritiva do art. 394º do Código Civil, que possa ser produzida prova testemunhal desde que o acordo simulatório contenha um mínimo de prova, um começo de prova de natureza documental.
A prova do pacto simulatório não pode ser realizada por testemunhas quando o negócio simulado for celebrado por documento autêntico, ou por algum dos documentos particulares mencionados nos arts. 373.° e 379.° e aquele pacto seja invocado pelos simuladores - art. 394°, nº2, do Código Civil.
Este preceito deve ser interpretado restritivamente, segundo Mota Pinto e Pinto Monteiro, in “Arguição da Simulação pelos Simuladores – Prova Testemunhal”, CJ, X 1985, págs. 593 e segs; Carvalho Fernandes, in “A Prova da Simulação pelos Simuladores”, “O Direito”, 124, 1992, págs. 593 e segs., e ainda segundo Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, págs. 850 e segs., nada impedindo que seja realizada prova testemunhal a partir de documento com a forma legal do negócio simulado.
Também assim, inter alia, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17.6.2003: “I – Arguida simulação pelos simuladores, entende-se admissível prova testemunhal se os factos a provar surgem, com alguma verosimilhança, em provas escritas. II – Dissimulando escritura de compra e venda um contrato de doação, para a validade deste último não é necessária a existência de contra-declaração válida e a intenção de doar não pode, por natureza, constar daquela escritura” – CJSTJ, 2003, II, 112.
Concluímos, assim, que o Tribunal da Relação, ao reapreciar a prova e ao analisar o conteúdo das escrituras públicas onde, alegadamente, constam declarações de vontade negociais simuladas, não violou a lei, mormente, a força probatória desses documentos; de outro modo estaria consolidada a simulação se, apesar de arguida, os documentos que a encerravam, sendo documentos com força probatória plena, não pudessem ser escrutinados para neles se perscrutar a vontade real neles inserta.
Nenhuma censura há a fazer ao Acórdão quando considerou não escritas, nos termos do art. 646º, nº4, do Código de Processo Civil, expressões como: “vêm possuindo”, e “prática reiterada dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade”, constantes da resposta ao quesito 22º da B.I, que, além de envolverem conceitos jurídicos e serem conclusivas, não se mostram assentes em factos.
Logo, teriam tais expressões de ser expurgadas da base instrutória onde só deve ser incluída matéria de facto relevante para a decisão da causa – art. 511º, nº1, do Código de Processo Civil.
A sentença da 1ª Instância de 15.9.2009 – fls. 365 a 384 – baseada no que considerou factualmente provado (não é a mesma realidade factual que emerge para apreciação no recurso de revista), indicou como questões decidendas: “existência de simulação quanto aos contratos vertidos nas escrituras referidas em 6. e 8; eventual validade dos negócios dissimulados; apreciação da aquisição do direito de propriedade por parte dos réus TT, por si e em representação da filha UU e VV, por usucapião, relativamente ao prédio identificado em 6; litigância má fé”.
Essencialmente foi considerado que os negócios constantes das escrituras referidas foram simulados.
Assim, a fls. 374, pode ler-se:
“Relativamente à celebração de ambas as escrituras referidas em 6. e 8. constata-se que todos os outorgantes nela intervenientes conluiaram-se no sentido de fazer consignar que os vendedores vendiam o usufruto ao XX e mulher TT e a nua propriedade ao filho VV (na escritura referida em 6.) e aos filhos VV e UU (na escritura referida em 8.), quando, na realidade, o que as partes pretenderam, quiseram e fizeram foi a venda dos prédios em causa, única exclusivamente, ao XX, que adquiriu para si próprio tais prédios, pagando-os com dinheiro próprio. Para além da divergência entre a vontade e a declaração intencionalmente ocorrida e do acordo simulatório entre os intervenientes, provou-se o intuito de enganar terceiros: os credores do XX e o filho deste, o Autor AA, quanto à escritura referida em 6. e o Autor AA, quanto à escritura referida em 8.”…E mais adiante – “…Na situação em apreço, o que as partes quiseram foi, ao contrário daquilo que declararam, vender ao XX, e este quis comprar, a propriedade plena dos prédios identificados nas escrituras referidas nos pontos 6. e 8. da matéria de facto, pela qual, aliás, pagou o valor efectivamente acordado (7.500 e 3.000 contos, respectivamente), pelo que se trata de uma simulação relativa. Para além de pretender a declaração de nulidade dos negócios simulados, o Autor pretende obter o reconhecimento da validade dos negócios efectivamente queridos pelas partes, ou seja, a compra e venda da propriedade plena pelo pai XX.”
Considerando verificados os requisitos formais – art. 241º, nºs1 e 2, do Código Civil – a sentença, afirmou que:
“Os outorgantes TT, VV e UU nada quiseram comprar e nenhum preço pagaram e que os outorgantes vendedores nada quiseram vender a estes, nada obstará a que se considerem válidos os negócios dissimulados, ou seja, a compra e venda dos prédios referidos em 6. e 8. em que figura como comprador da propriedade plena apenas e tão-só o XX. No que diz respeito ao prédio sito ao R... e identificado na escritura referida em 6., a divergência entre a vontade declarada e a realmente querida pelas partes não se cingiu apenas ao direito a transmitir e respectivos adquirentes mas também quanto ao preço da venda dado que as partes fixaram tal preço em 7.500 contos, sendo este o valor que o XX pagou integralmente, quando apenas fizeram consignar os valores de 1.050 e 450 contos pelo usufruto e pela nua propriedade, respectivamente. Resultou demonstrado que essa divergência foi acordada entre todos os declarantes com o intuito de que o comprador, o XX, pagasse, como pagou, menos Sisa – cfr. ponto 27. da matéria de facto”., concluindo a decisão pela validade dos negócios dissimulados.
No que respeita ao pedido reconvencional, foi julgado improcedente porque, malgrado os actos de posse dos reconvintes, assentando a sua posse na base de um contrato simulado não poderiam esse actos relevar para a usucapião, a menos que houvesse inversão do título de posse.
O Acórdão recorrido[1] considerou, tendo em conta a alteração da matéria de facto a que procedeu, que não se pode considerar simulado o negócio que consta da escritura de 10.2.1992, argumentando:
“Não resulta agora provado, relativamente ao negócio realizado através da escritura de 10.02.92 (prédio da C...), o acordo simulatório. Efectivamente, apenas se apurou que, apesar do XX pretender adquirir para si o prédio, o mesmo e a mulher concordaram que figurassem na escritura como sendo compradores do usufruto e os seus dois filhos menores como os compradores da nua propriedade do prédio, tendo o XX e a TT actuado desse modo para convencerem o autor de que nada havia sido adquirido pelo XX, para que não herdasse esse prédio aquando da morte deste. Não se apurou assim que tivesse existido um pacto, abrangente dos vendedores, para criar uma falsa aparência de negócio e que tivesse existido por parte destes últimos a vontade: celebrar um outro contrato de compra e venda. Assim, não se tendo provado que houve simulação, não se pode concluir que existiu um negócio (não querido) que encobrisse um outro, o negócio dissimulado, neste caso a compra e venda do prédio a favor do XX, porque, como supra assinalámos, para que se pudesse considerar a validade do negócio dissimulado, teria que haver um outro considerado nulo, no caso o contrato de compra e venda do direito de usufruto e da nua propriedade. É certo que decorre do provado que o preço de aquisição da nua propriedade pelos réus VV e UU foi suportado pelo XX. Esse facto indicia que este emprestou ou doou a esses filhos essa quantia em dinheiro para permitir aos mesmos a aquisição da nua propriedade do imóvel. Todavia, as doações são livres, estabelecendo a lei um mecanismo para não prejudicar a legítima dos outros filhos: a sua redução em caso de inoficiosidade (art. 2168° do Código Civil). Não se mostra pois que esse negócio ofenda os bons costumes ou que defraude a lei.”.
Pese embora a fundamentação do Acórdão, apesar da alteração da matéria de facto, importa saber se o negócio celebrado pela escritura de 10.9.92 – documento nº9 – foi ou não simulado, isto é, se com base na matéria de facto alterada pela Relação deixou de se poder considerar simulado aquele negócio de compra e venda envolvendo o pai do Autor e a Ré TT, sua segunda mulher, e os filhos menores do casal.
Vejamos:
O art. 240º do Código Civil estatui:
“1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
A lei portuguesa supõe a classificação entre simulação absoluta e relativa no art. 241º, sob a epígrafe “simulação relativa”. O desvalor jurídico do negócio simulado é a nulidade.
Trata-se de uma nulidade atípica (neste sentido, Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil”, pág. 845). A atipicidade deriva do facto dos simuladores não poderem invocar a simulação contra terceiro de boa fé (art. 243º, nº1).
O art. 241º do Código Civil estatui:
“1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado. 2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei”.
Enquanto o negócio simulado é sempre nulo (art. 240º, nº2), o negócio dissimulado fica sujeito a uma valoração jurídica autónoma, destinada a verificar se os requisitos legais de validade para o negócio em causa foram ou não observados com a celebração do negócio simulado. Se houverem sido, o negócio dissimulado é válido; se não foram, o negócio será nulo ou anulável, conforme o vício que estiver em causa.
A simulação negocial constitui uma divergência intencional entre o sentido da declaração das partes e os efeitos que elas visam prosseguir com a celebração do negócio jurídico.
“I – Por via de regra, pelo menos, identifica-se o intuito de enganar terceiros com a intenção de criar uma aparência. II – É no fingimento, na intenção de criar a aparência de uma realidade “fazendo crer que”, como é próprio da simulação, que há o desígnio de provocar uma ilusão normalmente destinada a enganar terceiros”. - Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.5.1995, CJSTJ, 1995, II, 118.
A divergência entre a vontade real e a manifestada pode ser intencional ou não intencional. A simulação é sempre uma divergência intencional.
O art. 240°, nº1, estabelece os seus requisitos:
A existência de um pacto simulatório entre o declarante e o declaratário; a divergência intencional entre o sentido da declaração e os efeitos do negócio jurídico simuladamente celebrado e o intuito de enganar terceiros.
Segundo Mota Pinto – “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto – Coimbra Editora – Maio 2005 – 413:
“A vontade negocial, vontade do conteúdo da declaração ou intenção do resultado (Geschäftswille) — consiste na vontade de celebrar um negócio jurídico de conteúdo coincidente com o significado exterior da declaração. É uma vontade efectiva correspondente ao negócio concreto que apareceu exteriormente declarado”.
“A simulação absoluta verifica-se quando os simuladores fingem concluir um determinado negócio, e na realidade nenhum negócio querem celebrar” – Henrich Ewald Hörster, in “A Parte Geral do Código Civil Português” – 1992, pág.536.
Sendo a simulação um fingimento que visa criar a aparência de um negócio que não foi querido pelas partes (simulação absoluta), ou que foi celebrado para esconder um outro, esse sim querido pelas partes (negócio dissimulado), a prova do requisito “intuito de enganar terceiros” pode ser feita de forma diríamos expressa – quando, por exemplo, existe um quesito a indagar sobre a intenção que é matéria de facto – ou de forma menos ostensiva, quando as instâncias recorrem a presunções.
Dito isto, entendemos que as considerações, a fls. 722 do Acórdão recorrido e que acima transcrevemos, excluem os requisitos da simulação do negócio celebrado em 10.9.1992 – escritura de fls. 94 a 99, documento nº9.
Com efeito, não há um concerto fraudulento entre o pai do Autor, que nela interveio na veste de comprador do usufruto, quando o que queria, tal como a sua mulher (também interveniente no negócio) era adquirir para ele mesmo a nua propriedade, ficando a constar na escritura, falsamente, que quem era o adquirente da raiz eram os filhos menores – representados pelos pais, apesar destes estarem concertados em fazer as declarações negociais que fizeram para com negócio para prejudicarem o Autor.
Em face da alteração da matéria de facto, ficaram excluídos do pacto simulatório os vendedores. Assim, fenecendo um dos requisitos do art. 240º, nº1, do Código Civil, não se pode considerar que o negócio constante da escritura de 10.9.1992 seja nulo por simulação. Não havendo negócio simulado cuja nulidade haja de ser declarada, não se pode considerar a existência de um negócio dissimulado.
Dizendo-se no Acórdão – “…tendo o XX e a TT actuado desse modo para convencerem o autor de que nada havia sido adquirido pelo XX, para que não herdasse esse prédio aquando da morte deste.”, importa concluir que os compradores visaram um fim censurável, malgrado a ele serem alheios os vendedores.
Daqui decorre que o XX e a mulher sabiam que o que estavam a declarar era contrário à sua real vontade e, tanto assim é, que tal declaração tinha um propósito – convencerem o Autor de que nada tinha sido adquirido pelo XX para que nada herdasse aquando da sua morte, o pai do Autor e a sua mulher ao declararem que adquiriam o usufruto para os filhos menores, que legalmente reapresentavam, sem margem para dúvidas, que quiseram prejudicar os direitos hereditários do Autor como filho do XX, todavia não se provou que tivesse existido um pacto simulatório abrangendo os vendedores para criar uma falsa aparência do negócio.
Provou-se, afirma o Acórdão, que o preço da nua propriedade devido pelos RR. VV VV e UU foi suportado pelo XX, escrevendo-se que “esse facto indicia que este emprestou ou doou a esses filhos essa quantia em dinheiro para permitir aos mesmos a aquisição da nua propriedade do imóvel”. Pese embora a irrelevância desta afirmação, não a sufragamos, mesmo na perspectiva que se trata de uma ilação, já que não brota de nenhum facto seguro e provado que constitua a base da pretensa ilação.
Com efeito, dir-se-ia que não é muito comum indiciar-se que, sempre que um pai adquire bens ou direitos reais a favor dos filhos – que representam pela sua menoridade –, estão a emprestar-lhes ou doar-lhes o dinheiro do preço. Para que tal conclusão se pudesse extrair, teria que assentar em factos de onde fosse consentida a inferência que o Acórdão parece tirar.
Salvo o devido respeito, a afirmação da Relação não assenta em factos, não pode justificar-se sequer a extracção de uma ilação e, como tal, este Supremo Tribunal de Justiça não se está cerceado na aplicação do direito por aquele quase facto ou aparente ilação.
Os factos conhecidos do negócio não permitem a afirmação do facto desconhecido, ou seja, que os pais dos menores, enquanto compradores, doaram-lhes ou emprestaram-lhes o dinheiro necessário para o negócio oneroso em que os representavam.
Nos termos do art. 349º do Código Civil – “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 312: “As presunções podem ser legais, se estabelecidas pela lei, ou judiciais, simples ou de experiência, quando assentam no simples raciocínio de quem julga. Estas últimas inspiram-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana. Um exemplo extraído da jurisprudência: feita a prova de que o preço declarado numa escritura de compra e venda é inferior ao preço real, pode inferir-se daí, por presunção, a existência de um acordo simulatório para defraudar a Fazenda Nacional…”.
Constitui jurisprudência corrente que – “É lícito aos tribunais de instância tirarem conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la, conclusões essas que constituem matéria de facto, como tal alheia à sindicância do Supremo Tribunal de Justiça” – inter alia – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.10.94, in BMJ 440-361.
Não cabe, na competência do Supremo Tribunal de Justiça, sindicar a decisão da Relação por via da qual, dos factos assentes, ainda que por presunção judicial, extrai outros factos que sejam o seu desenvolvimento. O Supremo apenas poderá censurar a decisão da Relação quando o uso de presunções tiver conduzido à violação de normas legais, isto é, decidir se, no caso concreto, era ou não permitido o uso de tais presunções.
Ora, no caso em apreço, mesmo que fosse ostensivo, ou estivesse implícito, que a Relação tenha extraído a ilação referida, uma vez que o facto base da presunção, à luz das regras da experiência comum, a não consentia, este Tribunal poderia afastar essa prova.
Releva esta consideração para afirmar que, considerando a matéria de facto com que operou a Relação, não se podendo considerar a existência de simulação quanto ao negócio de 10.1.1992, não se acompanha nesta parte a fundamentação do Acórdão recorrido.
Mas não será de ponderar que, não obstante não ter havido simulação, o facto de XX e a sua mulher terem intervindo no negócio, tal como o congeminaram através das declarações de vontade fraudulentas para prejudicar o Autor, que tal negócio é contrário aos bons costumes e, como tal, nulo nos termos do art. 280º, nº2, do Código Civil?
Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil”, págs. 1208 a 1224, a propósito da “delimitação negativa da boa fé”, no item 113, pág. 1208 – “Bons Costumes e Ordem Pública” – depois de abordar os referidos conceitos e a sua evolução, sobretudo no direito alemão, mormente, quanto à distinção dos conceitos de bons costumes e de ordem pública, afirma que os bons costumes revelam uma origem diferenciada da boa fé e que essa diferenciação existe no Código Civil – “Seja qual for o sentido encontrado para os bons costumes e para a boa fé, há que convir em como, do Código Civil, se depreende uma efectiva diferenciação entre as duas noções. Os bons costumes surgem, nas disposições que os consagram, salvo o art. 334.°, sempre como algo exterior, que delimita o campo de actuação permitida no domínio da permissão genérica de produção de efeitos jurídicos — isto é, da autonomia privada — mas que, em si, não prescreve o teor do comportamento a assumir. Esta ideia fica clara comparando, com a dos bons costumes, a linguagem de uma remissão típica para a boa fé” (pág.1213). Mais adiante, depois de aludir a diferenças “profundas entre a boa fé, bons costumes e ordem pública”, afirma – pág. 1223 – “Além disso, no que tem um significado do profundo, boa fé e bons costumes apresentam origens históricas diferentes, evoluções diversas e sentidos jusculturais distintos, colocando, na Ciência do Direito, temas próprios de discussão e aprofundamento. Em consequência, têm conteúdos inconfundíveis: os bons costumes exprimem a Moral social, nas áreas referidas da actuação sexual e familiar e da deontologia profissional, proibindo os actos que a contrariem, enquanto a boa fé, mais complexa, manda assumir uma série de atitudes correspondentes a exigências fundamentais do sistema.”
Mesmo considerando que o negócio em causa tem algo de censurável, do ponto em que visou prejudicar o Autor, o facto deste ter já, em sede de inventário, reagido em defesa dos seus interesses, pondo em causa a relação de bens apresentada pela Ré TT, mulher do pai do Autor, [cfr. itens 38) e 39) dos factos provados], isso assegura-lhe protecção contra aquele acto, não sendo de o considerar nulo à luz daquele conceito – nº2, do art. 280º do Código Civil; ademais, nos termos do art. 281º de mesmo diploma, mesmo a considerar-se que o negócio em apreço foi ofensivo dos bons costumes ou contrariou a lei ou a ordem pública, o facto do fim negocial visado pelo XX e mulher não ter sido comum aos vendedores impede a declaração de nulidade nos termos do art. 281º que consigna – “Se apenas o fim do negócio jurídico for contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes”.
Entendemos, assim, que pela via dos arts. 280º, nº2, e 281º do Código Civil não deve ser declarada a nulidade do negócio.
Mas será que o negócio plasmado na escritura pública de 1992 exprime um negócio indirecto? Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil” – 2010 – pág. 636 – define o negócio jurídico indirecto assim:
“São negócios indirectos aqueles em que as partes elegem um tipo negocial legal para com ele alcançar um fim que não é próprio desse tipo, mas que, não obstante, ele permite alcançar. No negócio indirecto ocorre uma diferença entre o fim típico e o fim indirecto que é efectivamente prosseguido… Há dois aspectos importantes nos negócios indirectos, que importa reter: o tipo de referência e o fim indirecto. O tipo de referência deve ser um tipo negocial legal por referência ao qual as partes celebraram o negócio. O fim indirecto é atípico, no sentido de que não é característico do tipo de referência; mas pode ser típico, no sentido de que pode ser o fim correspondente à função característica de um outro tipo negocial. No negócio indirecto há uma divergência entre a função típica e o fim concreto com que é celebrado (fim indirecto)”. (destaque nosso)
Na pág. 638, afirma:
“…O negócio indirecto não deve ser confundido com o negócio simulado com simulação relativa, em que as partes convencionam entre si celebrar certo negócio (negócio real ou dissimulado), mas declarar exteriormente que celebraram um outro diferente negócio (negócio aparente ou simulado). O negócio simulado tem uma configuração complexa, tripla, em se conjugam formalmente, em princípio, três aspectos: o negócio aparente, que é simulado; e o pacto simulatório, que é mantido secreto e pelo qual as partes acordam só vale e tem verdadeira vigência, entre elas, o negócio verdadeiro e não o aparente, e que este apenas deve ser exigido perante terceiros. Ao contrário, no negócio indirecto não existe pacto simulatório, não existe divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada, não existe a intenção de criar externamente uma falsa aparência negocial, não existe acordo para enganar terceiros. No negócio indirecto as partes não têm a intenção de esconder o que quer que seja, nem de enganar quem quer que seja. Querem simplesmente utilizar o modelo regulativo de um tipo negocial para um fim que não corresponde à sua função típica, mas que esse tipo permite alcançar”.
Manuel de Andrade, in “Teoria Geral”, II-179, sobe o negócio indirecto ensina – “…Pode um negócio típico (venda, etc.) cujos efeitos são realmente queridos pelas partes ser concluído por um motivo ou por um escopo ulterior diverso dos que estão de acordo com a função característica (causa) desse tipo negocial e correspondente a outro negócio típico ou tipificável (doação, qualquer negócio de garantia creditória, etc.” “O fim ulterior há-de ser indirecto em face do negócio adoptado, autónomo em face das respectivas consequências normais, mas derivar imediatamente da própria actuação do negócio”.
Ora, no caso, a haver negócio indirecto, o negócio querido seria uma doação ou um empréstimo, já que os pais com dinheiro seu, pagaram o preço da aquisição da nua propriedade.
Entendemos que não existe negócio indirecto, desde logo, porque através do negócio celebrado – aquisição da nua propriedade pelos RR. VV e UU – não se vislumbra que, pelo mero facto destes ao tempo menores não disporem de dinheiro, o XX, seu pai, ao pagar o preço tivesse querido fazer-lhes um empréstimo ou uma doação como a Relação considerou.
O negócio só poderia transmutar-se em doação ou empréstimo pela via da consideração de um negócio indirecto. Para isso teria que haver consenso das partes em usar um modelo contratual típico para através dele almejarem o efeito de outro negócio (no caso a doação ou empréstimo) – o negócio indirecto. Nada do domínio factual o indica. Ademais, nem sequer se vislumbra consenso negocial de vendedores e compradores com esse fito, nem tão pouco o propósito de defraudarem a lei. O negócio simulado não se confunde com o negócio dissimulado, nem este com o negócio indirecto.
No que respeita ao contrato que consta da escritura pública de 10.3.1988, doc. nº8, relativa ao prédio situado em R..., concorda-se com o Acórdão recorrido.
Com efeito, verificam-se, quanto a ele, os requisitos do art. 240º, nº1, do Código Civil.
Houve divergência intencional entre a vontade expressa no documento e a intenção dos contratantes com o objectivo de prejudicar não só terceiros, credores do XX, como a posição hereditária do Autor. Também neste negócio foi simulada a aquisição do usufruto pelo XX e da nua propriedade pelo filho dele, XX e mulher, TT.
O facto dos vendedores terem sido representados pelo Réu DD não excluiu a existência de concerto simulatório, já que, como consta do item 23) dos factos provados e da resposta ao quesito 9º – “As declarações negociais dos outorgantes da escritura a que se refere o ponto 16. foram acordadas entre todos eles com o propósito de impedir a execução do prédio pelos credores do XX e ainda de impedir o autor de herdar nele por morte de seu pai”.
O conluio era do conhecimento do representante do vendedor e, assim sendo, nos termos do art. 259º, nº1, do Código Civil a situação é de equiparar a atitude dolosa dos representados.
Sendo que, quanto ao negócio oculto no negócio nulo – aquisição da nua propriedade pelo XX e não do usufruto como consta do documento – ocorrem os requisitos de validade formal do negócio dissimulado – art. 241º, nºs 1 e 2, do Código Civil – sendo certo que ambos os negócios são de alienação, onerosos e formais, tendo sido estipulado o preço de 6.750 contos.
Não estando em causa qualquer transmissão subsequente ao negócio celebrado entre o alienante e o comprador, não tendo o XX alienado a terceiro e, por isso, não se colocando a questão de boa ou má fé de um pretenso terceiro sub-adquirente, não há que convocar a problemática da aplicação do art. 291º do Código Civil e a da protecção que confere a terceiro de boa fé adquirente a título oneroso, antes ou depois do prazo de três anos sobre a conclusão do negócio.
Finalmente, importa apreciar se o prédio a que se reporta a escritura de compra e venda celebrada em 13.10.1988, sito em R..., foi adquirido por usucapião pela Ré TT e pelo filho VV.
Sustentam estes que exerceram actos de posse sobre um imóvel aí existente mandado construir com dinheiro do XX que despendeu 60 000 contos.
Sustentam, ainda que, mesmo que se possa considerar simulado o negócio relativo ao imóvel onde foi construída a moradia, a posse dos recorrentes é titulada e, no caso, ocorrem os demais requisitos da usucapião.
Os recorrentes, bem como o Autor, são herdeiros legitimários do XX, falecido em 16.5.2000 – arts. 2157º e 2133º do Código Civil.
Importa analisar a seguinte factualidade considerada provada no Acórdão recorrido:
“36. Em 11.08.1997, o XX fez testamento deixando aos filhos UU e VV a quota disponível dos seus bens – Al. M). 37. O XX faleceu em 16.05.2000 deixando como únicos herdeiros a ré TT, os dois filhos de ambos, ora co-réus VV e UU, e ainda o autor AA, filho do primeiro casamento – Al. N). 38. No inventário aberto por óbito de XX, a ré TT, na qualidade de cabeça-de-casal, relacionou apenas o prédio que fora objecto da doação ao autor e reclamou a sua inoficiosidade – Al. O). 39. O Autor AA reclamou da falta de relacionação dos dois prédios e quotas em causa nesse inventário, tendo o juiz, inicialmente, remetido os interessados para os meios comuns, mas vindo, posteriormente, a suspender os trâmites do inventário até que aquelas questões se mostrem decididas definitivamente, uma vez que tudo isso releva para aferir da inoficiosidade ou da redução da doação e para a melhor igualação na partilha – Al. P). 40. Os réus TT e o filho VV instalaram o seu domicílio na vivenda referida em 26 – resposta ao quesito 21º. 41. Os réus TT e o filho VV, desde a construção da vivenda, ocorrida em 1990 ou 1991, vêm habitando a mesma, o que fazem à vista de todos e sem oposição de ninguém – resposta ao quesito 22º. 42. A ré TT é quem, desde poucos meses antes da morte do seu marido, XX, limpa ou manda limpar o prédio do Sítio do R... e quem repara ou manda reparar as degradações que o uso e o tempo provocam na moradia – resposta ao quesito 23º. 43. A licença de obras para a construção da vivenda no prédio em causa foi requerida no ano de 1989 na Câmara Municipal do Funchal em nome do VV – resposta ao quesito 25º. 44. Os réus TT e filho (VV) passaram a habitar na vivenda após a sua construção, o que ocorreu por volta do ano de 1990 ou 1991, sem qualquer violência, e sem oposição de ninguém, ignorando então que lesavam o direito de outrem - resposta ao quesito 24º. 45. Após o óbito do XX, a ré TT e filho, réu VV, continuaram a habitar na vivenda em referência – resposta ao quesito 26º. 46. O Autor AA nunca esteve na posse do prédio do Sítio do R..., nunca lá teve o seu domicílio, nunca lá residiu e nunca lá pernoitou – resposta ao quesito 27º.”
A sentença recorrida, a fls. 378, ante os factos aí considerados provados – que não são os mesmos com que a Relação operou por ter alterado matéria de facto pertinente – recusou a pretensão dos RR., por ter considerado, (citando Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª edição actualizada, pág. 475) que:
“Em caso de simulação, […] não poderá haver, em regra, usucapião, pois o simulado adquirente é um possuidor em nome alheio ou, na terminologia da lei, um detentor ou possuidor precário (art. 1253°, c) do C. Civil), não podendo adquirir por aquele modo, salvo achando-se invertido o título da posse (art. 1290°), mas começando o tempo necessário para a usucapião, neste caso, a correr desde a inversão do título”.
Assim, concluiu que:
“…Os réus TT e VV, ainda que tenham praticado actos materiais sobre o prédio em causa, fizeram-no, naturalmente, enquanto detentor ou possuidor precário porquanto sabiam que tal prédio fora adquirido pelo XX e a este pertencia porque por ele pagou o preço acordado, logo todos os actos que praticaram o fizeram enquanto esposa e filho deste, ou seja, como seus representantes ou como possuidores em nome dele. Essa actuação é, pois, insusceptível de conduzir à aquisição por usucapião porque esta pressupõe a posse que, no caso, não existe (cfr. art. 1287° do C. Civil). Por outro lado, estes réus nada alegaram ou provaram no sentido de, a dado momento, ter ocorrido inversão da posse posto que nada resultou demonstrado quanto a uma eventual oposição destes relativamente ao possuidor, o XX.”.
Já o Acórdão recorrido considerou improcedente tal pretensão, escrevendo a fls. 725/726:
“Nesta matéria apurou-se que a aquisição do direito de usufruto e da nua propriedade, respectivamente, pelo XX e mulher e pelo VV, foi simulada, e que o efectivo comprador do imóvel em referência foi o XX; que, posteriormente, sobre esse prédio e com dinheiro só dele, o XX mandou construir uma vivenda de dois pavimentos, com área coberta de 500 m2 e piscina, despendendo cerca de 60 mil contos para o efeito, com os arranjos por dentro e por fora e ainda com a respectiva mobília, recheio e utensílios domésticos; e que o XX faleceu em 16.05.2000 deixando como únicos herdeiros a ré TT, os dois filhos de ambos, ora co-réus VV e UU, e ainda o autor AA, filho do primeiro casamento. Apurou-se ainda, em face das alterações operadas por esta Relação na matéria de facto, que os réus TT e o filho VV, desde a construção da vivenda, ocorrida em 1990 ou 1991, vêm habitando a mesma, o que fazem à vista de todos e sem oposição de ninguém – resposta ao quesito 22º e que a ré TT é quem, desde poucos meses antes da morte do seu marido, XX, limpa ou manda limpar o prédio do Sítio do R... e quem repara ou manda reparar as degradações que o uso e o tempo provocam na moradia – resposta ao quesito 23°. Deste enunciado, e tal como se frisou no acórdão anteriormente proferido nos autos, a posse dos apelantes só passou a ser uma posse em nome próprio após a morte do XX. Antes era este quem exercia, em seu nome, os actos materiais sobre o imóvel, comportando-se como proprietário do mesmo, sendo aqueles meros possuidores precários art. 1253°, do Código Civil. Por essa razão, e por até à data em que o ora autor reclamou nos autos de inventário o relacionamento do bem em referência (desconhece-se a data exacta em que tal ocorreu, sabendo-se apenas que foi em data anterior à prolação do despacho que remeteu os interessados para os meios comuns, o qual foi proferido a 4.05.2001) – manifestando assim a intenção de exercer o seu direito – não ter decorrido o prazo de 15 ou 20 anos conducente à aquisição do imóvel por usucapião, é manifesta a improcedência da pretensão deduzida por aqueles – cfr. arts. 1292°, 323° e 1296°do Código Civil”.
Estes Réus, no recurso, censuram o Acórdão pelo facto de não qualificar como titulada a posse dos reconvintes, alegando que existe no processo prova documental que evidencia que, tendo a licença de construção sido passada pela Câmara Municipal a favor do filho VV e não do pai XX, esse facto plenamente provado, aduzem, revela que o dono do imóvel era o filho.
Há um aspecto que merece ponderação e sobre o qual as instâncias não se pronunciaram com clareza, qual seja o de como qualificar a posse de quem exerce actos materiais sobre imóvel que foi alienado com base num negócio simulado, logo nulo.
Implicita-se, todavia, das decisões das instâncias que essa posse, por ter a mácula original da simulação, foi considerada posse não titulada.
A posse conducente à usucapião, tem de ser pública e pacífica, influindo as características de boa ou má-fé, justo título e registo de mera posse, na determinação do prazo para que possa produzir efeitos jurídicos.
O art. 1251º do Código Civil define posse como – “O poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de doutro direito real”.
O art. 1287º do citado diploma estatui – “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida opor certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”.
A posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja a relação material e permanente com a coisa e o “animus”, ou seja, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.
“A doutrina dominante (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, III, 2ª ed., pág.5; Mota Pinto, “Direitos Reais”, p. 189; Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 69 e ss; Orlando de Carvalho. RIJ, 122."-65 e ss; Penha Gonçalves, “Direitos Reais”, 2ª ed., págs. 243 e ss.) entende que o conceito de posse, acolhido nos arts. 1251º e ss., deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa situação jurídica que tem como ingredientes necessários o “corpus" e o “animus possidendi” (contra, Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1º-563 e ss; Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 4ª ed., págs. 42 e ss.).
O “corpus” da posse traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252º, nº2, do Código Civil).
Actividade que não carece, aliás, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o “corpus” permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257º, n.º1).
“Quanto ao “animus possidendi”, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a actividade em que o “corpus” se traduz pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu benefício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.” – cfr. Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, 12ª edição, 1999, pág.971.
Havendo registo de aquisição do direito de propriedade, de harmonia com a regra do art. 7º do C.R. Predial, beneficia o registante da presunção de que tal direito existe na sua titularidade, nos exactos termos em que o registo o define.
Tal presunção, é ilidível pois que, como afirma, o Professor Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 5ª edição, pág.382:
“É preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais; vale por si. Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes mas nada pode contra a usucapião”.
Só a posse exercida em nome próprio e que revista as características de posse pacífica, titulada, de boa-fé e exercida durante certo lapso de tempo conduz à usucapião.
“A usucapião, que é uma forma de constituição de direitos reais e não de transmissão, baseia-se numa situação de posse – corpus e animus – exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé” – cfr. inter alia, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.12.1994, in CJSTJ, 1994, III, 183.
O Código Civil perfilha, como é dominantemente entendido, um conceito subjectivo de posse – art. 1251º do Código Civil.
A posse pode ser exercida em nome próprio ou em nome alheio – art. 1252º do Código Civil. Em caso de dúvida, presume-se a posse em quem exercer o poder de facto – nº2 do citado artigo.
Sobre este normativo escreveu o Professor Mota Pinto, in “Direitos Reais”, 1970, 191: “Como a prova do “ animus” poderá ser muito difícil, para facilitar as coisas, ao possuidor a lei estabelece uma presunção. Diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto. Daqui decorre que, sendo necessário o corpus e o animus, o exercício daquele faz presumir a existência deste”. Os que exercem a posse em nome alheio só podem adquirir o direito de propriedade se ocorrer inversão do título de posse (“interversio possessionis”) – art. 1263º d) do Código Civil – ou seja, se, a partir de certo momento, passarem a exercer o domínio, contra quem actuava como dono, com a intenção, agora, de que o oponente actua como dono da coisa.
Tal inversão também pode ocorrer por acto de terceiro, hábil para transferir a posse. “A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.” – art. 1265º do Código Civil.
Nos termos do art. 1253º als. a), b) e c) do Código Civil; são havidos como detentores ou possuidores precários: os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; os que se aproveitam da tolerância do titular do direito, os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.
A partilha, sendo um modo de repartição de bens pelos herdeiros, não é uma forma originária de aquisição.
À posse advinda da partilha, pode o herdeiro somar a posse dos antepossuidores, pois que, nos termos do art. 1255º do Código Civil, por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa. A abertura da herança não faz com que se inicie uma nova posse.
“A posse do sucessor forma um todo com a do “de cujus”, havendo só alteração subjectiva” – Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 1967, 103.
Vejamos, agora, acerca da definição legal de posse titulada:
O conceito consta do art. 1259º, nº1, do Código Civil:
“Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico”.
Esclarecendo-se no n.º 2 que:
“O título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca”.
Menezes Cordeiro, in “A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais”, 3.ª edição, pág. 91:
“O título equivale a um acto jurídico aquisitivo, abstractamente idóneo mas que, em concreto, pode ser inválido, desde que a invalidade não seja formal. A lei afasta a hipótese do título putativo: o nº2 do artigo 1259º exige que o título seja provado por quem o invocar”.
Para haver posse titulada, é necessário ainda, como alerta Oliveira Ascensão, in “Direito Civil Reais”, 4.ª edição, pág. 103, que aquela posse se refira àquele título.
Como ensina Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, 91:
“Para se averiguar se a posse adquirida por sucessão mortis causa é titulada ou não só pode atender-se ao modo por que o de cujus a obteve. O sucessor mortis causa não dispõe de um título novo; apenas continua a posse do autor da herança”.
Miguel Ricardo Machado Oliveira, “A Posse na Doutrina e na Jurisprudência”, Porto/1981, págs. 56 e 57, a respeito da posse titulada:
“Temos pois como geradores de justo título, os negócios constitutivos (aquisição originária e derivada constitutiva) e translativos (aquisição derivada translativa, quer sejam gratuitos quer onerosos, “inter vivos” ou “mortis causa)”.
Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. III, pág. 18, em comentário ao art. 1259º, escrevem:
“A primeira parte do nº1 (do art. 1259º) dá de posse titulada o conceito que se formulava no artigo 518° do Código velho. Para que a posse seja havida como tal, é necessário que se funde (tenha a sua causa) em qualquer modo legítimo de adquirir o direito sobre a coisa (justa causa traditionis), independentemente do direito do transmitente (aquisição a non domino), isto é, que se funde num negócio abstractamente idóneo para a transferência da propriedade ou de um direito real de fruição (…) …A aquisição a non domino era a especialmente visada, no Código de 1867, como causa de uma posse titulada. Mas seria a única que se pretendia prever? O negócio translativo da posse podia vir a ser declarado nulo ou anulado por vício substancial ou de forma. Quid juris, nestes casos? Foram longas as discussões que se travaram na doutrina, sobretudo a respeito dos actos simulados e dos actos nulos por vício de forma. Quanto a estes últimos, era dominante a corrente que lhes não atribuía o poder de titularem a posse; mas quanto aos actos simulados, as divergências eram profundas, não faltando mesmo quem negasse, neste caso, a própria posse, se a simulação fosse absoluta, a qual consideravam apenas capaz de atribuir uma posse precária (cfr. Manuel Rodrigues, ob. cit., nº47, e Dias Marques, ob. cit. nº71-3). Ora, foram estes e outros problemas que o Código veio resolver, aditando à parte final do nº1 deste artigo as seguintes palavras: “quer da validade substancial do negócio jurídico”. Nenhum vício de fundo, portanto, afasta hoje categoricamente a titularidade da posse, incluindo entre eles a simulação, o erro, a coacção, a ofensa de lei de ordem pública, etc. A própria simulação absoluta não constitui hoje obstáculo insuperável à existência da posse titulada. Na maior parte, porém, dos negócios absolutamente simulados não haverá posse titulada, por não chegar a haver posse, mas mera detenção, por faltar ao simulado adquirente a intenção de agir como beneficiário do direito (cfr., a propósito, Henrique Mesquita, ob. citada, nº12, e Vaz Serra, na RLJ ano 107.°, págs. 173-174). Quando assim não seja, porque o simulado adquirente aja intencionalmente como beneficiário do direito, então não será a natureza simulada do negócio que obsta à existência da posse titulada. Desde que a posse é uma situação de facto, uma actuação correspondente ao exercício de um direito real, que pode ser titulada ou não titulada, não deve, em princípio, a qualificação dessa situação basear-se num título, que pode existir ou não existir. O que há a fazer, em princípio, é procurar nela, o corpus e o animus, para, encontrando-os, considerar o detentor um possuidor em nome próprio. O que, porém, excepcionalmente acontece é que o título, de per si, qualifica a detenção como posse precária, e, neste caso, torna-se necessária a inversão, como acontece se ela provém, por exemplo, dum contrato de locação, de depósito ou de comodato… E quanto aos vícios formais? Esses ficaram claramente afastados. Uma vez que, de caso pensado, a lei prescinde apenas da validade substancial do negócio jurídico. Se o acto é nulo por vício de forma, como se, por exemplo, se compra um prédio por escrito particular, ou verbalmente a posse que daí deriva não é titulada”. (destaque e sublinhados nossos)
Como ensina o Prof. Orlando de Carvalho, “Introdução à Posse”, in RLJ, Ano 122º, pág. 265: “O conceito de posse titulada integra dois requisitos, um positivo – a legitimação da posse através da existência de um título de aquisição do direito em termos do qual se possui – outro negativo, e que é, sendo esse título de aquisição um negócio jurídico, a não existência de vícios formais nesse mesmo negócio”. Os vícios de forma – a não observância, no titulus adquirendi negocial, de formalidades ad substantiam – determinam inequivocamente a falta de título da posse. Idêntico entendimento vem perfilhado pelo Prof. Menezes Cordeiro, que, discordando embora da solução, de jure condendo, escreve, reportando-se ao conceito definido no art. 1259º, n.º1, que o título equivale a um acto jurídico aquisitivo, abstractamente idóneo mas que, em concreto, pode ser inválido, desde que a invalidade não seja formal…”.
Rui Pinto Duarte, in “Curso de Direitos Reais” – 2ª edição – pág.288:
“A posse é titulada quando tem na sua origem um modo legítimo de aquisição do direito que estiver em causa – independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico; obviamente, a posse é não titulada nas outras hipóteses: sirva de exemplo à posse titulada a que tem na sua base um contrato de compra e venda (mesmo que inválido, por exemplo, por incapacidade ou por erro do vendedor) e de exemplo à posse não titulada a que resulta de apossamento”. A posse titulada é presumidamente de boa-fé – art. 1260º, nº2, do Código Civil. O Código Civil não admite a existência de título putativo, ou seja, a relevância para o possuidor do seu convencimento de que ele existe. Não releva, pois, a convicção subjectiva do possuidor, exige-se objectivamente um título “um facto abstractamente susceptível de produzir a aquisição em causa”. A existência de título não se presume, devendo ser provada por quem o invoca – art.1259º, nº2, do Código Civil.”. (destaque nosso)
A lição da doutrina é claramente no sentido de considerar que posse titulada é aquela que se baseia num modo legítimo de adquirir, não sendo qualquer vício de fundo que afecta a posse como titulada; ela só não o será se o acto em que se baseia for nulo por vício de forma. Assim é que os civilistas consideram que nem mesmo a simulação, sobretudo a simulação relativa, priva a posse de titularidade.
O art. 1259º do Código Civil no confronto com o preceito correspondente do Código de Seabra acrescentou a actual parte final do nº1 – “quer da validade substancial do negócio jurídico”, esclarecendo assim definitivamente que a posse não deixa de ser titulada desde que se funde em qualquer modo legítimo de adquirir, mesmo que, em concreto, esse meio não seja válido, por exemplo, porque a vontade do transmitente enferma de vício substancial, ou o direito nem sequer existia como direito do transmitente. A posse só não é titulada se enfermar de vício formal.
Assim sendo a posse exercida pelos reconvintes é uma posse titulada.
Provou-se que os réus TT e o filho VV, desde a construção da vivenda, em 1990 ou 1991, vêm habitando a mesma, o que fazem à vista de todos e sem oposição de ninguém, o que vale por dizer que vêm exercendo actos de posse desde data anterior à da morte do XX, marido da TT e pai do VV, de quem são herdeiros.
Antes de mais importa dizer que o facto da licença de construção do prédio ter sido emitida em nome de VV, filho do XX e da TT, não permite considerar que seja ele o dono do terreno onde a moradia foi construída. A licença foi emitida em nome dele, porque, na escritura de compra e venda e no registo, era ele quem figurava (simuladamente como vimos) como dono da raiz.
Sendo a Ré e o seu filho, herdeiros legitimários do XX, à morte deste sucederam-lhe na posse, nos termos do art. 1255º do Código Civil, tal como o filho AA.
Do que se trata é de sucessão na posse e não acessão na posse (art. 1256º, nº1, do Código Civil).
A posse do XX, nos termos do negócio simulado era exercida como posse de usufrutuário, assim como a de sua mulher TT, e só com a decisão judicial se considera, por via da validade do negócio dissimulado que ele era o dono da raiz e não do usufruto, daí que, pese embora o efeito retroactivo da declaração de nulidade do negócio simulado, essa retroacção não transmuta o animus possessório, pelo que os RR./Reconvintes não sucederam na mesma posse, nem a posse dos reconvintes perdurou pelo tempo necessário à aquisição pela via da usucapião.
Ademais, a posse do usufrutuário só conduz à usucapião da nua propriedade se houver inversão do título de posse.
No caso, a posse boa para usucapião para beneficiar os reconvintes, teria de ter durado ou 15 ou 20 anos – art. 1296º do Código Civil.
No caso, nem sequer se pode considerar, sem oposição, a posse que os reconvintes exerceram, já que, em data anterior a 2001, no processo de inventário de XX, pai do recorrido AA, este reclamou contra a não inclusão na relação de bens oferecida pela Ré TT, da moradia em causa, o que traduz não reconhecimento do direito dela e dos demais herdeiros e oposição à posse e ao arrogado direito de propriedade dos reconvintes, em via de consolidação pela aquisição prescritiva.
Ora, desde a construção da vivenda, em 1990 ou 1991, até essa oposição no inventário, ocorrida em data anterior a 2001, mediaram cerca de 10 ou 11 anos.
Da remissão do art. 1292º do Código Civil para o art. 323º – aplicabilidade à usucapião das regras da prescrição – resulta que o acto de oposição à relação de bens no inventário, enquanto excludente da moradia, por parte do Autor como herdeiro de seu pai, traduz expressamente intenção de exercer os direitos que, como herdeiro, lhe assistiam sobre aquele bem da herança – art. 323º do Código Civil – e, como tal, esse acto teve a virtualidade de interromper qualquer prazo de usucapião que estivesse em curso, com a consequente inutilização do prazo corrido anteriormente – art. 326º, nº1, do Código Civil.
Assim, ainda que com fundamentação não consonante com a das instâncias, improcede o recurso dos RR., considerando-se que não adquiriram por usucapião o referido imóvel-moradia.
Decisão.
Nestes termos, negam-se as revistas, posto que com fundamentação não inteiramente coincidente com a do Acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes sucumbentes.
Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Maio de 2012
Fonseca Ramos (Relator) Salazar Casanova Fernandes do Vale _____________________________________ |