Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5354/18.0T8LSB.L1.S.1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: CERTIFICADOS DE AFORRO
SUCESSÃO POR MORTE
INÍCIO DA PRESCRIÇÃO
CONHECIMENTO
HERANÇA
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
CONTAGEM DE PRAZOS
INTERPRETAÇÃO DA LEI
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 02/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de março, que rege a transmissão por morte dos certificados de aforro da Série B, contém a previsão de um prazo de prescrição especial, não se referindo expressamente qual o modo de proceder à sua contagem, designadamente quando a mesma se inicia, remetendo-se para as demais disposições em vigor relativas à prescrição.

II. Esta remissão não é feita para o regime regra da prescrição, mas para todas as disposições que o integram, pelo que, a este prazo especial, devem ser aplicáveis aquelas normas que se mostrem mais adequadas à natureza e caraterísticas do direito a que se reporta.

III. Na descoberta dessas normas devemos ter em atenção que estamos perante uma transmissão de bens por via sucessória, em que os herdeiros, muitas vezes, podem não ter conhecimento da totalidade dos bens que integram o património do de cujus.

IV. A existência de uma probabilidade de se verificar esse desconhecimento, nestas situações, equipara-as àquelas em que se adotou o sistema subjetivo na previsão de prazos especiais de prescrição, exatamente porque se teve em consideração igual probabilidade do titular do direito, apesar deste já ser exigível, não ter conhecimento dos seus elementos constitutivos, como sucede nos prazos de prescrição previstos nos artigos 482.º e 498.º, n.º 1, do Código Civil.

V. Perante a identidade de situações, deve considerar-se que a remissão do artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, para as disposições em vigor relativas à prescrição, relativamente ao início da contagem do prazo, não se dirigiu ao sistema objetivo acolhido no regime regra do artigo 306.º do Código Civil, mas sim às normas irmãs especiais que contém prazos de média duração, em que se verifica a probabilidade dos elementos constitutivos do direito não serem conhecidos pelo seu titular, apesar de ele já poder ser exercido, como ocorre  nos artigos 482.º e 498.º, n.º 1, do Código Civil.

VI. Assim sendo, o prazo de prescrição de 10 anos aqui em análise deve ser considerado um prazo sujeito a um sistema subjetivo, cuja contagem só se inicia quando, após a aceitação da herança, os herdeiros têm conhecimento da existência de certificados de aforro da série B no património do de cujus, sem prejuízo do decurso do prazo de prescrição ordinária de 20 anos, cuja contagem se inicia com a aceitação da herança, nos termos do artigo 306.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:

                                               *

I - Relatório

Os Autores vieram intentar a presente ação declarativa, com a forma de processo comum, pedindo a condenação da Ré a:

a) reconhecer que os certificados de aforro alegados no artigo 6º da petição integram as heranças abertas por óbito de CC e DD;

b) reconhecer que aos Autores, enquanto únicos titulares das heranças abertas por óbito de seus pais, assiste o direito de exigir o reembolso do valor atualizado das unidades de participação constantes dos certificados de aforro discriminados no artigo 6º da petição;

c) pagar-lhes a quantia de € 850.773,55, correspondente ao valor atualizado, capital e juros, desses certificados de aforro, bem como juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegaram:

- São herdeiros de CC, falecido em … .04.2002, no estado de casado com DD, em primeiras núpcias de ambos e no regime dotal do Código Civil de 1867, por casamento celebrado aos … de março de 1947, com convenção antenupcial celebrada a 17 de fevereiro de 1947;

- Sucederam-lhe como únicos herdeiros a referida sua mulher e os seus dois filhos, aqui Autores;

- No dia … de setembro de 2017, faleceu DD, no estado de viúva de CC;

- Tendo-lhe sucedido, como únicos herdeiros, os seus dois filhos, aqui Autores;

- O referido CC era titular de uma conta aforro, com o nº …23, a qual, à data do seu óbito, era constituída por certificados de aforro que identificam, com um valor total de 198.022,64 €;  

- No dia 8 de janeiro de 2018, o 1º Autor requereu a emissão de certidão dos certificados de aforro e certificados do tesouro detidos pelo seu falecido pai;

- Por carta de 10 de janeiro de 2018, a Ré informou que, nos termos da lei (artigo 12º do Decreto-Lei 122/2002, de 4 de maio), incide uma prescrição sobre esses mesmos certificados, por a habilitação se encontrar fora do prazo legalmente estabelecido para o efeito – 10 anos após o óbito do titular, em virtude de não ter sido apresentada qualquer prova conducente à interrupção ou suspensão da prescrição do prazo para a habilitação;

- Até à data, a Ré não procedeu ao pagamento aos Autores das quantias correspondentes aos valores atualizados dos certificados de aforro (capital e juros);

- Respeitando a vontade da mãe, e também porque cada um dos Autores vivia dos créditos dos seus salários, com os agregados familiares, nunca efetuaram partilhas totais por óbito de seu falecido pai.

- E, quando ele faleceu, desconheciam ambos, e também a sua mãe, que o seu pai era titular de certificados de aforro;

- No início de janeiro deste ano os Autores decidiram desfazer a casa dos pais, de forma a dar destino aos móveis que constituem o seu recheio, bem como às roupas e vestuário de seus pais, que lá se encontravam guardados desde o falecimento do pai, em 2002;

- Tendo encontrado, por mero acaso, dentro de uma agenda, misturado com outros papéis manuscritos pelo seu pai, numa cómoda, os títulos dos certificados de aforro acima alegados;

- Os Autores tiveram conhecimento da existência dos certificados de aforro, titulados em nome de seu falecido pai, em janeiro de 2018;

- O prazo aludido no artigo 7º do Decreto-Lei 172-B/86, de 30 de junho, com a redação que lhe foi dada pelo artigo 12º do referido Decreto-Lei 122/2002, de 4 de maio, é um prazo de prescrição.

- Porque ninguém pode exercer um direito que não conhece ter, que não sabe que lhe assiste (…) a contagem do prazo prescricional só se inicia com o conhecimento da morte do titular (facto neutro) e de que ele era titular de certificados de aforro.

- Razão pela qual os Autores estão em tempo para exercerem o seu direito ao reembolso dos certificados de aforro.

Citada, veio a Ré apresentar contestação, arguindo a exceção de prescrição do direito dos autores.

Defende a Ré que:

- Determina o art.º 7º do Regime Jurídico dos Certificados de Aforro da série B (D.L. nº 172-B/86, de 30 de junho, alterado pelo D.L. nº 122/2002, de 4 de maio, e D.L. nº47/2008 de 13 de março):

“1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos:

a) A transmissão da totalidade das unidades que o constituem; ou

b) O respetivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado.

2 - Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respetivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.”

- O alegado desconhecimento sobre a existência de certificados de aforro é juridicamente irrelevante, dado que o início do prazo de prescrição, no caso, se afere pelo decesso do aforrista;

- E uma vez falecido o aforrista, os herdeiros ficam em condições de poderem exigir os certificados de aforro ao IGCP;

- Ou seja, o início da contagem do prazo de prescrição não depende do conhecimento, mas sim da data da morte do aforrista.

Notificados para fins de contraditório, vieram os Autores apresentar articulado no qual defendem, sumariamente, que o exercício de um direito tem sempre, como precedente lógico, o seu conhecimento, concluindo que o termo inicial do prazo de prescrição depende do conhecimento do óbito e da existência dos certificados de aforro.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou procedente a presente ação e condenou a Ré a:

1) Reconhecer que os seguintes certificados de aforro

a) nº …21, emitido em 06-04-1988, composto por 5.000 unidades;

b) nº …94, emitido em 19-09-1988, composto por 10.000 unidades;

c) nº …35, emitido em 19-10-1988, composto por 20.000 unidades;

d) …76, emitido em 15-01-1991, composto por 3.000 unidades;

e) nº …72, emitido em 03-06-1991, composto por 800 unidades;

f) nº …63, emitido em 02-10-1991, composto por 8.000 unidades;

g) nº …53, emitido em 11-05-1992, composto por 2.600 unidades;

h) nº …13, emitido em 19-07-1994, composto por 4.000 unidades;

i) nº …18, emitido em 04-10-1994, composto por 20.000 unidades;

j) nº …95, emitido em 02-12-1994, composto por 6.000 unidades;

integram as heranças abertas por óbito de CC e DD;

2) Reconhecer que aos Autores AA e BB, enquanto únicos titulares das heranças abertas por óbito de seus pais, assiste o direito de exigir o reembolso do valor atualizado das unidades de participação constantes dos certificados de aforro discriminados supra;

3) Pagar-lhes a quantia de € 850.773,55, correspondente ao valor atualizado, capital e juros, desses certificados de aforro, bem como juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Desta decisão recorreu a Ré para o Tribunal da Relação o qual, por acórdão proferido em 14.07.2020, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença da 1.ª instância.

A Ré interpôs recurso de revista excecional desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual foi admitido por acórdão da Formação, a que alude o artigo 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Nas suas alegações de recurso, a Ré apresentou as seguintes conclusões:

i. Independentemente do desconhecimento dos herdeiros, o início do prazo de prescrição aplicável aos certificados de aforro da série B conta-se desde a morte do aforrista, conforme resulta do disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 172-B/ 86, de 30 de junho e só se suspende ou interrompe uma vez verificada alguma das causas taxativas previstas na lei civil;

ii. determinar que no contexto do regime legal dos certificados de aforro da série B a expressão “… quando o direito puder ser exercido ...” constante do artigo 306.º do código civil, se refere objetivamente à morte do aforrista como fator determinante para o direito poder ser exercido e para o início da contagem do prazo de prescrição;

iii. o artigo 26.º do Código do Imposto de Selo é imperativo e impõe a obrigação dos herdeiros participarem e relacionarem a transmissão gratuita de bens do autor da sucessão, designadamente requerer ao IGCP a certidão relativa aos produtos de aforro do falecido;

iv. o registo de produtos aforro existe desde a sua criação em 1960, uma vez que os certificados de aforro foram criados com natureza escritural e nominativa e, bem assim que a informação relativa à conta aforro dos aforristas falecidos constante desse registo de produtos de aforro sempre esteve disponível para os herdeiros, mesmo antes da publicação do Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de junho.

Terminou, pedindo que se decretasse procedente a exceção perentória da prescrição dos direitos dos autores e, consequentemente, revogasse o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ora recorrido, absolvendo o IGCP do pedido.

Os Autores apresentaram contra-alegações, sustentando a manutenção do decidido.

Os Autores vieram requerer a condenação da Ré, por litigância de má-fé, por esta ter junto acórdão não transitado em julgado para justificar a admissibilidade do recurso de revista excecional, nos termos do artigo 672.º, n.º 2, c), do Código de Processo Civil.


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II – O objeto do recurso

Tendo em consideração o conteúdo da decisão recorrida e as conclusões das alegações apresentadas cumpre decidir quando se inicia a contagem do prazo de prescrição estabelecido no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 172-B/ 86, de 30 de junho.

III – Os factos

Neste processo foram considerados provados os seguintes factos:

1. No dia … de abril de 2002, na freguesia ..., de onde era natural e onde teve a sua última residência habitual, na Rua …, nº …, …, faleceu CC, sem ter deixado testamento, ou qualquer outra disposição de última vontade.

2. O falecido era casado com DD, em primeiras núpcias de ambos e no regime dotal do Código Civil de 1867, por casamento celebrado aos … de março de 1947, com convenção antenupcial celebrada ao … de fevereiro de 1947, num Cartório Notarial da cidade ….

3. No dia … de setembro de 2017, faleceu DD, no estado de viúva de CC.

4. Tendo-lhe sucedido, como únicos herdeiros, os seus dois filhos, aqui Autores.

5. O referido CC era titular de uma conta aforro, com o nº ….23, a qual, à data do seu óbito, era constituída pelos seguintes certificados de aforro:

a) nº …21, emitido em 06-04-1988, composto por 5.000 unidades;

b) nº …94, emitido em 19-09-1988, composto por 10.000 unidades;

c) nº …35, emitido em 19-10-1988, composto por 20.000 unidades;

d)nº …76, emitido em 15-01-1991, composto por 3.000 unidades;

e) nº …72, emitido em 03-06-1991, composto por 800 unidades;

f) nº …63, emitido em 02-10-1991, composto por 8.000 unidades;

g) nº …53, emitido em 11-05-1992, composto por 2.600 unidades;

h)nº …13, emitido em 19-07-1994, composto por 4.000 unidades;

i) nº …18, emitido em 04-10-1994, composto por 20.000 unidades;

j) nº …95, emitido em 02-12-1994, composto por 6.000 unidades.

6. No dia 8 de janeiro de 2018, o 1º Autor requereu a emissão de certidão dos certificados de aforro e certificados do tesouro detidos pelo seu falecido pai, conforme está previsto no artigo 26º do Código do Imposto de Selo.

7. Por carta de 10 de janeiro de 2018, a Ré informou que, nos termos da lei (artigo 12º do Decreto-Lei 122/2002, de 4 de maio), incide uma prescrição sobre esses mesmos certificados, por a habilitação se encontrar fora do prazo legalmente estabelecido para o efeito – 10 anos após o óbito do titular, em virtude de não ter sido apresentada qualquer prova conducente à interrupção ou suspensão da prescrição do prazo para a habilitação.

8. Até à data, a Ré não procedeu ao pagamento aos Autores das quantias correspondentes aos valores atualizados dos certificados de aforro (capital e juros).

9. A mãe dos Autores ficou muito combalida com o falecimento do marido, com apatia e síndrome depressivo.

10. Tendo passado a viver, desde o falecimento do marido, em abril de 2002, na residência do Autor AA, até à data em que veio a falecer.

11. Em fevereiro de 2014, a Mãe dos Autores sofreu acidente vascular cerebral, e à data apresentava já síndrome depressivo grave, e síndrome demencial incipiente.

12. Desde o falecimento do pai dos Autores nunca foi desfeita a casa onde o pai e a mãe viveram, mantendo-se esta no mesmo estado.

13. Da relação de bens apresentada por óbito do pai dos Autores não foram incluídos os certificados de aforro referidos em 5.

14. No início do mês de janeiro de 2018, os Autores deslocaram-se à casa dos Pais, acompanhados de empregada doméstica.

15. Enquanto se realizavam arrumações e limpezas, foi encontrada, numa cómoda, uma agenda do pai dos Autores, dentro da qual se encontravam os títulos dos certificados de aforro descritos em 5., cuja existência desconheciam.

16. Mediante correio simples eram enviados extratos trimestrais (até 2012) e semestrais (de 2012 em diante) das contas dos titulares (pai e mãe dos Autores) para o domicílio destes, cessando a remessa de extratos da conta de que era titular o pai dos Autores em agosto de 2012, e da mãe em janeiro de 2018.

17. A Ré teve conhecimento do óbito de CC no ano de 2012, mediante comunicação do Instituto de Registos e Notariado.


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IV - O direito aplicável

1. Evolução legislativa

Os certificados de aforro são valores escriturais nominativos, reembolsáveis, representativos de dívida da República Portuguesa, denominados em moeda com curso legal em Portugal e destinados à captação da poupança familiar, tendo sido criados, originariamente, pelo Decreto-Lei n.º 43453, de 30 de dezembro de 1960, com o objetivo de estimular o espírito de previdência, cria-se uma nova forma de representação da dívida pública através dos chamados certificados de aforro, destinados a conceder uma aplicação remuneradora aos pequenos capitais, sem que estejam sujeitos às oscilações do mercado de títulos [1]. No artigo 14.º deste diploma autorizou-se o Ministro das Finanças a mandar emitir, por intermédio da Junta do Crédito Público, títulos de dívida pública nominativos e amortizáveis, denominados certificados de aforro, os quais passaram a integrar uma das formas de representação da dívida pública (artigo 15.º, g), do Decreto-Lei n.º 434453, de 30 de dezembro de 1960).

No mesmo dia, o Decreto n.º 43454 regulamentou os novos títulos de dívida pública, os quais nas palavras do seu preâmbulo, permitem uma fácil e segura aplicação de capital pelo razoável rendimento produzido no fim de dez anos, dado que não estão sujeitos às possíveis oscilações do mercado de títulos e porque, não havendo juros a cobrar periodicamente, evitam aos seus possuidores os correspondentes incómodos e preocupações ... sendo nominativos, amortizáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a pessoas singulares.

Nos artigos 18.º e 19.º deste diploma regulava-se o destino dos certificados de aforro, no caso de morte do seu titular, do seguinte modo:

Artigo 18.º - No caso de falecimento do titular de um certificado de aforro, poderá requerer-se, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão deste a favor de um dos herdeiros ou a respetiva amortização pelo valor que o certificado tiver à data em que a mesma se efetuar.

§ único. Em qualquer caso será pago pelo herdeiro ou herdeiros o imposto sobre as sucessões e doações da importância de 5 por cento sobre o valor do certificado à data do falecimento [2].

Artigo 19.º - Findo o prazo de cinco anos a que se refere o artigo anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de regularização da dívida pública os valores representados nos respetivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis ao caso as demais disposições em vigor relativas à prescrição.

Face à timidez da procura deste novo produto, o Decreto-lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, autorizou uma nova série de certificados de aforro (Série B), com algumas alterações no seu regime, visando um relançamento deste produto financeiro, tornando-o mais atraente, o que, como a realidade posterior veio a demonstrar, foi inteiramente conseguido.

No entanto, relativamente às situações de morte do seu titular, não se registaram alterações, dispondo-se no artigo 7.º deste último diploma:

1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efetivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respetivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.

2 - Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respetivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.

A norma constante do n.º 1 deste artigo viria a ser declarada inconstitucional pelo acórdão n.º 541/2004, de 15.07.2004, do Tribunal Constitucional [3], que considerou que os certificados de aforro conferem direitos patrimoniais aos respetivos titulares, consubstanciando a aplicação de “poupança(s) das famílias” integrados no quadro de emissão e gestão da dívida pública, mas não evidenciam, por esse facto, qualquer especificidade relativamente aos demais bens que constituem o património dos sujeitos no que se refere ao aspeto do regime agora em questão, isto é, à transmissão de tais bens por morte do respetivo titular. Assim, não se divisa nenhuma razão, decorrente da natureza dos certificados de aforro, que legitime o diferente tratamento relativamente ao prazo geral de caducidade do direito de aceitar a herança.

No entanto, o Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio, à data da prolação deste acórdão do Tribunal Constitucional, já havia desfeito a desigualdade detetada, tendo, nos seus artigos 12.º e 13.º, alargado para 10 anos os prazos previstos, quer no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, quer nos artigos 18.º e 19.º do Decreto n.º 43454, de 30 de Dezembro, aplicáveis às Séries A e B dos certificados de aforro, igualando-o ao prazo de caducidade do direito de aceitação da herança, previsto no artigo 2062.º do Código Civil.

Relativamente às novas séries de certificados de aforro, o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio, determinou a aplicação das disposições gerais relativas à prescrição dos juros e do capital de empréstimos da dívida pública, constantes da Lei n.º 7/98, de 3 de Fevereiro, o qual no seu artigo 14.º dispõe:

1 - Os créditos correspondentes a juros e a rendas perpétuas prescrevem no prazo de cinco anos contados da data do respetivo vencimento.

2 - Os créditos correspondentes ao capital mutuado e a rendas vitalícias prescrevem, considerando-se abandonados a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública, no prazo de 10 anos contados da data do respetivo vencimento ou do primeiro vencimento de juros ou rendas posterior ao dos últimos juros cobrados ou rendas recebidas, consoante a data que primeiro ocorrer.

3 - Aos prazos previstos nos números anteriores são aplicáveis as regras quanto à suspensão ou interrupção da prescrição previstas na lei civil.

Para as novas séries de certificados de aforro deixou de existir um prazo de prescrição autónomo, para os casos de morte do titular, estando apenas previsto um prazo geral de prescrição de 10 anos, após o vencimento dos certificados, o que ocorre em prazos que poderão atingir 20 anos (às séries C, D e E foi fixado um prazo de vencimento de 10 anos).

O Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de março, veio introduzir alterações no texto dos artigos 18.º do Decreto n.º 43454, de 30 de dezembro, e 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, que passaram a ter a mesma e seguinte redação:

Por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos:

a) A transmissão da totalidade das unidades que o constituem; ou

b) O respetivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado.

Além disso, no seu artigo 9.º-A determinou a criação de um registo central de certificados de aforro, tendo por expressa finalidade possibilitar a obtenção de informação sobre a existência destes títulos e sobre a identificação do respetivo titular, incluindo aos herdeiros deste (n.º 4 e 5).

2. A jurisprudência

O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 541/2004, de 15.07.2004, acima referido, foi proferido em recurso de fiscalização concreta em ação declarativa, na qual o Tribunal da Relação de Lisboa e o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdãos de 08.04.2002 e de 30.09.2003, respetivamente,  não publicados, mas com fundamentação parcialmente transcrita na decisão do Tribunal Constitucional, haviam considerado que o prazo de prescrição, então de 5 anos, havia iniciado a sua contagem na data da morte do seu titular.

No entanto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.11.2005 [4] que revogou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.05.2005 [5], o qual havia seguido a mesma orientação que os arestos referidos no parágrafo anterior, entendeu que aquele prazo de prescrição só se iniciava com o conhecimento pelos herdeiros do direito à transmissão dos certificados de aforro. Alicerçou esta opção, invocando que o fundamento específico da prescrição é a negligência do titular do direito e que, por isso, só a exigência do conhecimento da existência e titularidade do direito satisfaz o pressuposto de o direito poder ser exigido, referido no artigo 306.º do Código Civil. Nas palavras desta decisão que fizeram escola na jurisprudência: o facto que permite desencadear o instituto da prescrição é, em si neutro. Ninguém pode exercer um direito que não conhece ter, que não sabe que lhe assiste. Se, desconhecendo-o, o prazo se escoou não se pode verdadeiramente falar de inércia (há apenas decurso de um lapso de tempo) e, menos ainda, de negligência, sendo que pela prescrição se sanciona a inércia negligente do titular do direito.

No mesmo sentido seguir-se-iam várias decisões da Relação de Lisboa [6], do Supremo Tribunal de Justiça [7] e dos Tribunais da Jurisdição Administrativa [8].

Entretanto, o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, a pedido do Secretário de Estado do Tesouro e Finanças, emitiu um Parecer, em 14 de abril de 2011, em que, com um voto de vencido, concluiu que o prazo de dez anos, estabelecido no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, para os herdeiros do titular de certificados de aforro requererem a transmissão da totalidade das unidades que os constituem ou o respetivo reembolso, sob pena de prescrição a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública, prevista no n.º 2 da mesma disposição, deve contar-se a partir da data do falecimento do titular aforrador, em conformidade com a regra acolhida no artigo 306.º, n.º 1, 1.ª  parte, do Código Civil.

Neste Parecer, realçou-se que a expressão “quando o direito puder ser exercido”, contida no citado artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil, deve ser interpretada no sentido de a prescrição se iniciar quando o direito estiver em condições objetivas de o titular poder exercitá-lo, isto é, desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação, sendo irrelevante a data em que o titular tem conhecimento da existência do direito. Além disso, não se deixou de acentuar a existência de um registo central de certificados de aforro, tendo por expressa finalidade possibilitar a obtenção de informação sobre a existência de certificados de aforro e sobre a identificação do respetivo titular.

Na declaração do voto de vencido aposta a este Parecer, em que se defendeu que a contagem do prazo de prescrição previsto no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, só deveria iniciar-se com o conhecimento pelos herdeiros do seu chamamento à herança e da  existência dos certificados de aforro nesse património, pertinentemente chamou-se a atenção para o facto de estarmos perante um prazo de prescrição extintiva de direitos à transmissão sucessória, o que convocava uma interpretação teleológica-sistemática que não olvidasse todo o enquadramento jurídico do fenómeno sucessório.

Foi também nesta linha da declaração de voto de vencido que se posicionou a decisão aqui recorrida [9], denunciando que, a seguir-se a tese do referido Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, o prazo de prescrição extintiva do direito dos herdeiros reclamarem os seus certificados de aforro poderia, insolitamente, prescrever antes de sequer se iniciar a contagem do prazo para se aceitar a herança.

Nesta mesma orientação se posiciona o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.12.2020 [10], que, certeiramente, redefine o rumo da solução desta problemática: a questão é, por isso, de interpretação do artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86 e não a da interpretação do artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil.

Desalinhado da descrita unanimidade jurisprudencial, o Acórdão da Relação de Lisboa de 22.10.2020 [11], veio lembrar, com extensa fundamentação, que o nosso sistema, perseguindo a segurança jurídica, adotou como regra uma configuração objetivista da figura da prescrição, em que o respetivo prazo se conta desde o dia seguinte àquele em que o direito em causa possa ser exercido, independentemente do conhecimento da sua existência pelo seu titular, pelo que, não se tendo explicitado qualquer exceção a esta regra no artigo 7.º,  n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, não há razão para que o prazo aí previsto tenha uma configuração subjetivista.

Entretanto, o Tribunal Constitucional, no exercício da sua competência de fiscalização concreta da constitucionalidade, no Acórdão n.º 396/2020, de 13.07.2020 [12], não julgou inconstitucional o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio, na interpretação segundo a qual se consideram prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos certificados de aforro, cuja transmissão ou reembolso não tenham sido requeridos pelos herdeiros no prazo de dez anos após a morte do seu titular.

Os últimos desenlaces deste caminho jurisprudencial vieram iluminar o quadro no qual se deve encontrar uma solução justa e sistematicamente coerente.

3. O momento inicial da prescrição

Como explica António Menezes Cordeiro, na determinação do início do prazo de prescrição há dois sistemas possíveis: o objetivo e o subjetivo.

Pelo sistema objetivo, o prazo começa a correr logo que o direito possa ser exercido ... E isso independentemente de o titular ter conhecimento da sua existência ou dispor de meios para o exercer. Este sistema era tradicional. As injustiças a que pode dar azo são compensadas pelo facto de comportar prazos longos e de jogar com o substituto da suspensão da prescrição.

Pelo sistema subjetivo, o prazo prescricional só se inicia quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito. Postula em regra prazos curtos [13].

Tal como se demonstra no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República acima citado, o nosso sistema jurídico acolheu o princípio que, sendo a prescrição o efeito da inação do titular do direito, o respetivo prazo deve iniciar-se quando esse direito se encontre apto a ser exercido, a qual se encontra plasmada no artigo 306.º do Código Civil, mantendo-se a solução que já constava do artigo 536.º do Código de Seabra [14]. Apesar das dificuldades que muitas vezes existem na determinação dessa aptidão, a qual varia com as diferentes naturezas e espécies de direitos, é seguro que essa aptidão, em regra, deve ser verificada numa perspetiva objetiva, não contemplando obstáculos subjetivos.

Vaz Serra nos trabalhos preparatórios do atual Código Civil [15] foi bem explícito quanto ao pensamento que, nesta matéria, presidia ao regime da prescrição a consagrar no diploma então em preparação:

Quando existem objetivamente no aspeto jurídico as condições necessárias e suficientes para um direito possa ser feito valer, não têm relevância, para o fim de impedir o curso da prescrição, eventuais obstáculos ao exercício do direito, ainda que tais obstáculos sejam constituídos pelo estado de ignorância em que o titular do direito se encontra acerca da exigência e da pertinência dele. Não pode, pois, considerar-se como vigorando no nosso direito a máxima “contra non valentem agere non currit praescriptio”

...

Parece, realmente, que o princípio deve ser que o início da prescrição não é impedido pela ignorância do titular sobre a existência do direito e sobre a sua titularidade. Embora não haja então negligência do titular, ou possa não a haver, sempre há inércia da sua parte e a parte contrária não deve ficar à mercê da ignorância do titular, a qual, de resto, pode prolongar-se por muito tempo: não pode então dizer-se que a prescrição se funda numa presunção de renúncia ao direito, mas, como se viu, a razão de ser da prescrição não é só essa, intervindo também outras considerações e, entre elas, a da vantagem da segurança jurídica.

Compreendeu-se que a relevância do tempo como causa extintiva dos direitos, não tem como único fundamento sancionar a inércia negligente do seu titular, obedecendo também a razões atinentes à paz e à segurança jurídica do devedor, pelo que, em regra, não podem estes interesses ficar dependentes de qualquer impedimento relativo à pessoa do credor, designadamente a sua ignorância sobre a existência do direito, sobretudo quando os prazos de prescrição têm uma longa duração.

Daí que no artigo 306.º do Código Civil se tenha consagrado como regra geral aplicável aos prazos de prescrição o sistema objetivo, enunciando-se que o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido, sendo irrelevante o eventual desconhecimento pelo titular do direito da sua existência [16].

Foi esse também a opção das maior parte das legislações que nos são próximas e que ainda  se encontram no artigo 2935 do Código Civil Italiano, no artigo 130 do Código das Obrigações Suíço, e no artigo 1969 do Código Civil Espanhol.

Já o Código Civil Francês e o Código Civil Alemão foram recentemente objeto de profundas remodelações nesta matéria que alteraram o figurino anterior.

Na Alemanha, até à Reforma do BGB 2001/2002, além do prazo geral da prescrição ser de  30 anos (§ 194 do B.G.B.), o § 198 também referia que esse prazo se iniciava com a possibilidade do exercício do direito, consagrando o sistema objetivo, especificando-se nos § 199 a 201, quando é que se considerava que determinados direitos poderiam ser exercidos. Com a denominada “Lei para a modernização do Direito das obrigações”, de 29.11.2001, tudo mudou nesta matéria. O novo prazo geral de prescrição passou a ser de 3 anos (§ 195), tendo essa substancial redução como contrapartida que esse prazo só se inicie com o conhecimento pelo credor das circunstâncias constitutivas do respetivo direito ou com a sua cognoscibilidade (§ 199/1) [17]. Como refere António Menezes Cordeiro, abandonou-se o sistema anterior, objetivo, a favor de um sistema subjetivo [18].

Também em França, até à reforma operada pela Lei n.º 2016-131, de 10 de fevereiro de 2016, apesar do Code Civil não conter uma norma expressa, refletindo a opção objetivista, a doutrina retirava-a das disposições sobre as causas suspensivas da prescrição constantes do artigo 2257 [19], embora a inexistência de uma enunciação expressa conferisse maior liberdade ao intérprete para descobrir exceções a esse princípio [20]. Seguindo o exemplo alemão, a reforma do Código Civil Francês operada em 2016, que incidiu sobretudo em matéria de obrigações, também alterou o paradigma da figura da prescrição. O prazo regra de trinta anos foi reduzido para cinco anos, mas este prazo só começa a contar quando o titular do direito o conheça ou deva conhecer (artigo 2224). Também aqui se conjugou uma redução substancial do prazo regra de prescrição com a adoção de um sistema subjetivo em que o ponto de partida do prazo de prescrição é o conhecimento ou a cognoscibilidade do direito [21].

Um dia, também em Portugal, ocorrerão mudanças similares, as quais são inevitáveis face à manifesta desadequação do prazo de prescrição geral (20 anos) ao ritmo de vida atual e ao dinamismo da atividade económica.

No entanto, a máxima de Bártolo, contra non valentem agere non currit praescriptio, apesar de não ter sido adotada como princípio pelo Código Civil de 1966, não deixou de pesar na estrutura do regime da prescrição, designadamente, na relevância de impedimentos materiais ao exercício do direito, elevados a causa de suspensão da prescrição nos artigos 318.º e seguintes do Código Civil, e na menção à necessidade do conhecimento dos elementos constitutivos do direito, pelo seu titular, para que se inicie a prescrição, em disposições que preveem prazos especiais de prescrição (v.g. artigos 482.º e 498.º, n.º 1, do Código Civil).

O artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de março, estipula que por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos:

a) A transmissão da totalidade das unidades que o constituem; ou

b) O respetivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado.

O n.º 2, do mesmo artigo, ainda com a redação original, dispõe que findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respetivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.

Embora, em regra, a aceitação da herança confira aos herdeiros, automaticamente e com efeitos retroativos à data da morte, o domínio e a posse dos bens que a integram (artigo 2050.º do Código Civil), relativamente a determinados bens, pelas suas caraterísticas ou natureza, essa transmissão está dependente da prática de determinados atos (v.g. o artigo 102.º do Código dos Valores Mobiliários, relativamente à transmissão de valores mobiliários titulados nominativos, e o artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, na redação do Decreto-Lei n.º 111/2019, de 6 de agosto, relativamente à transmissão de veículos automóveis). É o que sucede com a transmissão dos certificados de aforro da série B, por morte do seu titular, em que o acesso à sua titularidade pelos herdeiros, está dependente da comunicação por estes da sua vontade de ingressarem na posição do de cujus, na titularidade dos certificados, ou de lhes ser pago o seu valor, resgatando-os, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de março. Para a prática deste ato de escolha, o legislador sentiu necessidade de impor um prazo, com a cominação de um efeito prescritivo pelo seu transcurso, em nome do interesse do Estado na certeza sobre a vontade dos herdeiros exercerem o seu direito, de modo a permitir um planeamento racional da gestão da dívida pública.

Estamos perante a previsão de um prazo de prescrição especial, sendo certo que nele não se refere expressamente qual o modo de proceder à sua contagem, designadamente quando a mesma se inicia, remetendo-se para as demais disposições em vigor relativas à prescrição.

Note-se que a remissão não é feita para o regime regra da prescrição, mas para todas as disposições que o integram, pelo que, a este prazo especial, devem ser aplicáveis aquelas normas que se mostrem mais adequadas à natureza e caraterísticas do direito a que se reporta.

A tendência da jurisprudência, com exceção dos mais recentes acórdãos (o acórdão recorrido e o acórdão da Relação de Lisboa de 22.10.2020), foi a de aplicar a regra geral contida no artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil, embora com resultados diferentes (para uns, o início do prazo seria o momento da morte do titular dos certificados de aforro, para outros seria o do conhecimento da existência no património do de cujus desses títulos).

Refira-se que, embora não seja essa a nossa opinião, caso a remissão do artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, fosse, nesse aspeto, para o sistema objetivo consagrado no artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil, então o prazo de prescrição não iniciaria a sua contagem no momento da morte do titular, mas sim no momento da aceitação da herança, pois, apesar dos efeitos retroativos deste ato (artigo 2050.º, n.º 2, do Código Civil) que aqui irrelevam, só a partir do momento da aceitação da herança é que, juridicamente, o direito à transmissão dos certificados de aforro poderia ser exercido pelos herdeiros. Se assim não fosse, verificar-se-ia a incompatibilidade de prazos já denunciada na declaração do voto de vencido aposto no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República e nas mais recentes decisões acima referidas, em que o prazo de prescrição do direito de transmissão dos certificados de aforro por morte do seu titular poderia, absurdamente, prescrever antes de se completar o prazo de caducidade de 10 anos para aceitação de herança, o qual só se inicia com o conhecimento da abertura da sucessão (artigo 2059.º, n.º 1, do Código Civil) [22].

No entanto, como já acima se afirmou a remissão feita no artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, não foi para o regime geral da prescrição, mas sim para as disposições que o integram, que, pela identidade de situações contempladas pela sua previsão, se mostrem mais adequadas à natureza e caraterísticas do direito atingido pela previsão deste prazo especial.

Na descoberta dessas normas devemos ter em atenção que estamos perante um direito, cuja aquisição tem origem sucessória. A totalidade das unidades que constituem um certificado de aforro ou o seu valor transmitem-se para os herdeiros do seu primitivo titular, em resultado da morte deste, embora a sua eficácia esteja condicionada ao exercício de um poder de escolha entre modalidades alternativas de realização dessa transmissão.

Ora, na transmissão de bens por via sucessória, os herdeiros, muitas vezes, podem não ter conhecimento da totalidade dos bens que integram o património do de cujus, realidade que se reflete em alguns aspetos do regime sucessório, como a possibilidade do herdeiro pedir judicialmente, a todo o tempo, a restituição de bens da herança a quem os possua (artigo 2075.º do Código Civil), a do legatário poder reivindicar a entrega dos bens legados sem dependência de prazo (artigo 2279.º do Código Civil), ou a previsão de partilhas adicionais, quando se verifique a omissão de bens (artigo 2122.º do Código Civil).

A existência de uma probabilidade de se verificar esse desconhecimento, nestas situações, equipara-as àquelas em que se adotou o sistema subjetivo na previsão de prazos especiais de prescrição, exatamente porque se teve em consideração igual probabilidade do titular do direito, apesar deste já ser exigível, não ter conhecimento dos seus elementos constitutivos. É o que sucede no artigo 482.º do Código Civil, relativamente ao direito à restituição por enriquecimento sem causa, o qual prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do enriquecimento, e no artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, em que o direito de indemnização por responsabilidade extracontratual prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso.

Tal como na previsão em análise, estamos perante situações em que se verifica a probabilidade do titular do direito não ter conhecimento dos seus elementos constitutivos, sendo o prazo de prescrição substancialmente menor que o prazo regra de prescrição de 20 anos, pelo que o legislador sentiu necessidade de adotar o sistema subjetivo, sob pena de poder dificultar excessivamente o exercício de um direito, sem prejuízo da relevância do prazo de prescrição ordinária.

Perante a identidade de situações, deve considerar-se que a remissão do artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, para as disposições em vigor relativas à prescrição, relativamente ao início da contagem do prazo, não se dirigiu ao sistema objetivo acolhido no regime regra do artigo 306.º do Código Civil, mas sim às normas irmãs especiais que contém prazos de média duração, em que se verifica a probabilidade dos elementos constitutivos do direito não serem conhecidos pelo seu titular, apesar de ele já poder ser exercido, como ocorre  nos artigos 482.º e 498.º, n.º 1, do Código Civil.

Assim sendo, o prazo de prescrição de 10 anos aqui em análise deve ser considerado um prazo sujeito a um sistema subjetivo, cuja contagem só se inicia quando, após a aceitação da herança, os herdeiros têm conhecimento da existência de certificados de aforro da série B no património do de cujus, sem prejuízo do decurso do prazo de prescrição ordinária de 20 anos, cuja contagem se inicia com a aceitação da herança, nos termos do artigo 306.º do Código Civil.

E a circunstância de existir um registo central de certificados de aforro, tendo por expressa finalidade possibilitar a obtenção de informação sobre a existência destes títulos e sobre a identificação do respetivo titular, incluindo aos herdeiros deste (n.º 4 e 5), a que alguns dos acórdãos acima referidos conferiram alguma relevância, não altera a conclusão acima afirmada.

Contrariamente ao que ocorre nos novos regimes da prescrição no direito francês e no direito alemão, em que, num sistema subjetivo, se equipara o conhecimento à mera cognoscibilidade da existência do direito em causa, como evento detonador do prazo de prescrição, nas normas especiais para as quais remete o n.º 2, do artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, essa equiparação está afastada da letra dos respetivos preceitos legais, não existindo razões decisivas para adotar uma interpretação nesse sentido [23], além de que, mesmo admitindo, por hipótese de raciocínio, tal equiparação, só quando existissem indícios da existência de certificados de aforro nos bens da herança é que poderia configurar-se um dever de consulta da referida base de dados.

Por estas razões, tendo-se provado que os Autores só tiveram conhecimento da existência dos certificados de aforro de que o seu pai era titular em janeiro de 2018, não está prescrito o seu direito ao reembolso do valor desses títulos de crédito, pelo que deve o presente recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

4. Da litigância de má fé

Os Autores requereram a condenação da Ré, como litigante de má fé, por esta ter invocado a prolação de um acórdão da Relação, não transitado em julgado, para justificar a admissibilidade do recurso de revista excecional, nos termos do artigo 672.º, n.º 2, c), do Código de Processo Civil.

É verdade que a Ré interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando que estava em causa uma questão cuja apreciação assumia indiscutível relevância jurídica, que existiam razões de particular relevância social subjacentes ao litígio e, finalmente, que existia um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.05.2005, com o qual o acórdão recorrido estava em contradição.

Conforme demonstram os Autores, juntando a respetiva certidão, esse acórdão havia sido revogado pelo Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.2008.

Apesar de a Ré também ser parte nesse processo, atento o tempo já decorrido, admite-se que, diferente patrocínio, possa não se ter apercebido do seu desfecho, pelo que, não existindo uma perceção segura da existência de dolo ou de que a negligência ocorrida se possa qualificar de grave, deve ser indeferido o pedido de condenação da Ré, por litigância de má fé.


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Decisão

Pelo exposto, acorda-se em:

- julgar improcedente o recurso interposto pela Ré, confirmando-se a decisão recorrida..

- indeferir o pedido de condenação da Ré, como litigante de má fé.


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Custas da revista pela Ré.


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Notifique


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Nos termos do artigo 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A, de 13 de março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/20, de 1 de maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.


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Lisboa, 25 de fevereiro de 2021

 

João Cura Mariano (relator)

Abrantes Geraldes

Tomé Gomes

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[1] Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 43453, de 30 de Dezembro de 1960.
[2] Este parágrafo foi revogado pelo artigo 3.º do Decreto 44580, de 19 de setembro de 1962.
[3] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt
[4] Proferido na Revista 3169/05 (Rel. Lopes Pinto) acessível em www.dgsi.pt, assim como todos os acórdãos aqui referidos., sem qualquer indicação da publicação.
[5] Proferido no Processo n.º 3850/2005-6 (Rel. Pereira Rodrigues).
[6] De 14.12.2006, no Processo n.º 8477/2006-8 (Rel. Carla Mendes), de 14.09.2017, no Processo n.º 1615/15 (Rel. Maria Manuela Gomes),  de 24.04.2018, no Processo 25635/15 (Rel. Rui Vouga), de 20.12.2018, no Processo n.º 1396/16 (Rel. Maria da Conceição Saavedra), de 21.03.2019, no Processo n.º 491/16 (Rel. Amélia Ameixoeira), e de 29.09.2020, no Processo n.º 1731/18 (Rel. Luís Espírito Santo).
[7] De 08.01.2019, na Revista n.º 25635/15 (Rel. Pedro Lima Gonçalves), e de 29.10.2020, na Revista n.º 24899/16 (Rel. Ilídio Sacarrão Martins).
[8] Do Tribunal Central Administrativo Sul, de 12.03.2015, no Processo 1193/15 (Rel. Rui Pereira) e do Supremo Tribunal Administrativo, de 01.10.2015, Rec. 0619/15 (Rel. Ana Paula Portela).
[9] Acórdão da Relação de Lisboa de 14.07.2020, proferido no Processo n.º (Rel. Luís Filipe Pires de Sousa).
[10] Proferido no Processo n.º 1812/18 (Rel. Ana de Azeredo Coelho).
[11] Proferido no Processo n.º 15325/19 (Rel. Pedro Martins).
[12] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt
[13] Código Civil Comentado I Parte Geral, Almedina, 2020, pág. 887.
[14] Sobre a inadmissibilidade da ignorância do direito pelo credor poder ser causa impeditiva do início do prazo de prescrição, CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. III, Coimbra Editora, 1930, pág. 758-760, que, curiosamente, refere um Acórdão da Relação de Lisboa de 08.11.1871, pub. na R.L.J. n.º 5, pág. 1143, que decidiu que o prazo de prescrição não corria relativamente a quem não podia agir, porque ignorava que lhe fora deixado um legado, apercebendo-se que na titularidade de direitos, em virtude de fenómeno sucessório, outras ponderações se justificavam.
[15] Prescrição e Caducidade, no B.M.J. n.º 105, pág. 194.
[16] RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código Civil, vol. II, ed. de autor, 1988, pág. 69, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. V, 3.ª ed., Almedina, 2017, pág. 204, e Código Civil Comentado I Parte Geral, cit., pág. 887, ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Prescrição e Caducidade, Anotação aos artigos 296.º a 333.º do Código Civil (O Tempo e a sua Repercussão nas Relações Jurídicas), 2.ª ed., Coimbra Editora, 2014, pág. 83, e JÚLIO GOMES, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 751.
[17] Sobre esta evolução ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Modernização do Direito Civil, vol. I, Almedina, 2004, pág. 85-95, e Tratado de Direito Civil, vol. V, cit., pág. 176-190, e DANIEL EFFER-UHE e ALICA MOHERT, German Civil Code, Vol. I, C.H.BECK/NOMUS, 2020, pág. 268-270.
[18] Tratado de Direito Civil, ob. cit., pág. 184.
[19] Por todos, JEAN CARBONNIER, Droit Civil, tomo 4, Les Obligations, 20.ª ed., Puf, 1996.
[20] Cfr. FRANÇOIS TERRÉ, PHILIPPE SIMLER e YVES LEQUETTE, Droit Civil. Les Obligations, 8.ª ed. Dalloz, 2002, pág. 1368-1369, referindo várias decisões judiciais em que a ignorância da existência do direito pelo credor foi valorada, pág. 1371-1372.
[21] Sobre este novo regime, BERTRAND FAGES, Droit des Obligations, 9.ª ed., LGDJ, 2019, pág. 504-505.
[22] O Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 396/2020, acima referido, também se apercebeu dessa incongruência, embora não tenha apreciado se a mesma poderia resultar numa inconstitucionalidade, por tal questão não se conter no objeto do recurso.
[23] RAUL GUICHARD afirma que no domínio geral da relevância do conhecimento, existem hipóteses cuja natureza e interesses subjacentes, nomeadamente a segurança e a paz jurídica fazem à partida parecer inadequado equiparar o conhecimento ao desconhecimento culposo: assim, designadamente, quando o conhecimento de determinados factos releva para efeito do início do decurso de um prazo onde muito raramente a lei deixa de atender apenas ao conhecimento efetivo (em Da Relevância Jurídica do Conhecimento no Direito Civil, Universidade Católica Editora, 1996, pág. 34-35).