Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
742/16.9T8PFR.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: INTERESSE EM AGIR
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
CONHECIMENTO DO MÉRITO
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
CONHECIMENTO OFICIOSO
RECONVENÇÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / ESPÉCIES DE ACÇÕES – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / GESTÃO INICIAL DO PROCESSO E DA AUDIÊNCIA PRÉVIA / RECURSOS.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA.
Doutrina:
- Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume II, 1982, p. 253;
- Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 186;
- Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência 121º, p. 14;
- Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, p. 97.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 10.º, N.ºS 2 E 3, ALÍNEA A), 595.º, N.º 1, ALÍNEA B), 635.º, N.º 4 E 639.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1 E 343.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 30-01-2003, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O nosso direito adjectivo civil não contempla o interesse em agir como excepção dilatória típica, e, nesta medida, o conceito tem sido tema doutrinal e jurisprudencial, sendo geralmente considerado excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso.

II. O interesse em agir assume-se como uma relação entre necessidade e adequação. De necessidade porque, para a solução do conflito é imprescindível a actuação jurisdicional, e adequação porquanto o caminho a seguir deve corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configura.

III. Na particular situação atinente à acção de simples apreciação negativa, inverte-se a regra do regime probatório, deixando de caber ao Autor, e passando a caber ao Réu, o ónus da prova do direito em causa, por ser, alegadamente, este quem se arroga àquele mesmo direito.

IV. Reconhecendo que o Tribunal deve respeitar, tanto quanto possível, as várias soluções prováveis ou verosímeis da questão de direito, caso o enquadramento jurídico do litígio suscite mais do que uma solução jurídico-dogmática, temos que, cingindo-se a questão decidenda à apreciação da questão jurídica atinente à arrogada aquisição do imóvel ajuizado, por parte dos Réus, a quem cabe o ónus da prova do direito em causa, por ser quem se arroga àquele mesmo direito, e atendendo às várias soluções plausíveis da questão de direito, impor-se-ia ao Tribunal recorrido considerar, que a invocada alegação não passasse, necessariamente, pela dedução do pedido reconvencional, impondo-se equacionar também a alegação do factos subsumíveis ao arrogado direito, através da simples defesa, sem qualquer ónus processual, donde, mostrando-se controvertidos os factos atinentes à arrogada aquisição do imóvel ajuizado, importa que os autos prossigam os seus termos, com a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO


AA e BB, intentaram a presente acção comum, de simples apreciação negativa, contra CC e DD.

Pedem os Autores que:

“- Se declare que os réus justificantes não são proprietários do prédio rústico objecto da referida escritura, não obstante terem aí declarado e prestado declarações falsas, devendo, assim, a referida escritura ser declarada nula e sem qualquer efeito jurídico;

- Se ordene o cancelamento do registo de inscrição e aquisição (Ap. 6 de 2002/10/16) do prédio justificado a favor dos réus, bem como de todos os demais registos posteriores, designadamente de constituição de propriedade horizontal (Ap. 651 de 2010/07/16), nos termos constantes nos autos, prédio que se encontra actualmente descrito sob o n.º 1422/20021016/…, na Conservatória do Registo Predial de ….”

Articularam, com utilidade, que:

- Em anúncio publicado na 209ª edição do jornal pacense "IMEDIATO" por indicação do Sr. Dr. EE, ilustre notário desse concelho, veio publicitar-se, mediante transcrição de extracto do respectivo teor, uma escritura de justificação outorgada no cartório deste último, a 5 de Agosto de 2002;

- Por via da referida escritura, intervindo na qualidade de justificantes, os réus CC e DD vieram, assim, declarar-se donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio rústico composto de cultura, sito no lugar de …, freguesia e concelho de …, com a área de novecentos e cinquenta metros quadrados, a confrontar do norte com caminho público, de nascente com FF, do sul com GG e do poente com AA, não descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho e inscrito na matriz predial respectiva em nome do justificante marido sob o artigo 23.º, por compra verbal feita a HH e II, residentes no lugar de …, freguesia de …, deste concelho, há mais de vinte anos, acto que nunca formalizaram.

- Os réus CC e DD, valeram-se da referida escritura de justificação notarial, com o propósito de obter registo, a seu favor, da inscrição do prédio rústico em apreço;

- Não vinga a versão dos factos apresentados pelos réus, demonstrando-se atentatória contra o legítimo direito de propriedade dos autores;

- HH e II, venderam a AA, JJ e a CC, o prédio misto, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob parte do nº 17998, composto pelo prédio urbano inscrito sob o respectivo artigo matricial 558, constituído por casa de rés-do-chão e primeiro andar, pequeno anexo e quintal, e pelo prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º 23, sito no Lugar de …, freguesia e concelho de …, assim o comprovando a escritura pública de compra e venda outorgada em 15 de Setembro de 1986;

- Neste seguimento, em 1989, mediante competente licença camarária, procedeu-se a destaque de parcela do referido prédio misto, na parte correspondente ao referido prédio rústico, com uma dimensão de 1338 m2;


- Com o destaque da referida parcela integrante do prédio misto, operada no ano de 1989, os referidos autores e, bem assim, JJ, na qualidade de legítimos comproprietários, entraram imediatamente na detenção e fruição do prédio rústico identificado, designadamente o prédio veio ser objecto da escritura de justificação notarial, sendo, todos estes factos, do inteiro conhecimento dos aqui réus justificantes, que não a poderiam desconhecer já que, também estes, adoptaram comportamento afim à daqueles;

- Não corresponde, como é óbvio, à verdade que os réus justificantes tenham entrado na posse e fruição do prédio rústico inscrito sob o artigo 23.º, conforme vieram de alegar na escritura de justificação;

. A ser exercida, diga-se, esta foi simultaneamente exercida pelos autores, AA, BB, e, bem assim, pelos réus justificantes, CC e DD, que nele edificaram os respectivos prédios;

- É falso que haja alguma vez existido uma compra verbal do referido prédio rústico;

- Não corresponde à verdade que alguma vez os Réus tenham exercido uma posse pública, pacífica e contínua, com exclusão de outrem, sobre o referido prédio rústico, e que a mesma tenha durado mais de vinte anos, tudo não passando de um enredo, uma invenção sem qualquer correspondência com a realidade, sendo que próprios réus confirmaram aos autores que foi a forma que «arranjaram» para conseguir legalizar o seu prédio;

- A celebração da escritura notarial de justificação, a 5 de Agosto de 2002, deu origem à criação da descrição n.º 1422/….

Regularmente citados, os Réus contestaram.

Invocam que os Autores não têm interesse em agir, porque não existe qualquer incerteza grave e objectiva por parte daqueles, não tendo sido articulados factos atribuíveis aos Réus que determinem qualquer pretensa dúvida.

Alegam ainda que é verdade que os autores, juntamente com os Réus e JJ, adquiriram em comum a HH o prédio identificado na escritura outorgada em 15-09-1986, mas aquando dessa compra já todos haviam acordado entre si que o prédio urbano ficaria para JJ e que o terreno de cultura ficaria para o Autor AA e para a Ré DD.

Enquanto os Autores construíram uma casa de habitação na parcela de terreno que lhes coubera e pediram aos irmãos do Autor (Ré DD e JJ) para fazerem conjuntamente o pedido de licenciamento junto da Câmara Municipal, quando os Réus quiseram construir uma habitação na sua parcela não receberam qualquer colaboração e a escritura de justificação foi a única forma de poderem dar início ao pedido de licenciamento junto da Câmara.

Pediram os Réus a condenação dos Autores como litigantes de má-fé, em multa e indemnização não inferior a €5.000,00.


Foi designada audiência prévia na qual teve lugar tentativa de conciliação, resultando a mesma frustrada.

Entretanto, afigurou-se que os autos dispunham já de todos os elementos necessários à decisão da causa, pelo que, foi proferida decisão (depois de ter apreciado a alegada falta de interesse em agir do Autores, concluindo, pela improcedência da invocada excepção de falta de interesse em agir dos Autores, outrossim, depois de ter conhecido da alegada extemporaneidade da presente acção, tendo concluído pela improcedência da caducidade invocada pelos Réus), tendo-se consignado no respectivo dispositivo: “Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais referidas decido julgar totalmente procedente a acção e em consequência: - Declaro ineficaz a escritura de justificação celebrada em 5 de Agosto de 2002, na qual foram outorgantes os Réus CC e DD, relativa ao prédio rústico sito no lugar de …, freguesia e concelho de … e inscrito na matriz predial sob o artigo 23; - Ordeno o cancelamento do registo de inscrição e aquisição (Ap. 6 de 2002/10/16) do prédio justificado a favor dos réus, bem como de todos os demais registos posteriores, operados com base na escritura aludida relativamente ao imóvel. Mais julgo improcedente o pedido de condenação dos Autores como litigantes de má-fé.”.

Inconformado, com a decisão de mérito proferida aquando do saneador/sentença, dela apelou o Réu CC, para o Tribunal da Relação, o qual, conhecendo do objecto do recurso, proferiu acórdão, onde consignou, no respectivo dispositivo: “Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando integralmente a bem fundamentada sentença recorrida.”


É contra esta decisão que os Recorrentes/Réus/CC e DD, se insurgem, interpondo revista, formulando as seguintes conclusões:

“1º - Os autores lançaram mão da ação declarativa de simples apreciação negativa, pedindo ao Tribunal que declarasse que os réus justificantes não são proprietários do prédio rústico objeto da referida escritura, não obstante terem aí declarado e prestado declarações falsas, devendo, assim, a referida escritura ser declarada nula e sem quaisquer efeitos, ordenando-se o cancelamento do registo de inscrição e aquisição do prédio justificado a favor dos réus, bem como de todos os demais registos posteriores;

2º - As razões de discordância dos réus-recorrentes com o douto acórdão recorrido dizem respeito ao entendimento a que o mesmo chegou quanto à não falta de legitimidade dos autores por falta de interesse de agir por parte dos mesmos, atenta a matéria de facto dada por provada e, à aquisição por usucapião por parte dos réus-recorrentes do prédio rústico identificado na escritura de justificação notarial;

3º - Da matéria de facto provada ficou a constar que tendo os autores, réus e JJ, em 15.09.1986 adquirido o prédio misto (...) e terreno de cultura e ramada com a área de 1.338 metros quadrados (nº 1), em 1989, mediante licença camarária, procedeu-se a destaque de parcela do referido prédio rústico com a dimensão de 1.338 m2 (nº 2), através de licença requerida apelo autor AA, pelo réu CC e pelo JJ, para efeito de realização das correspondentes obras de edificação no referido prédio rústico (nº 3), obras que vieram a ser realizadas pelos autores e pelos réus, com conhecimento do outro comproprietário (nº 4).

4º - De olhos postos nestes factos provados, importa vislumbrar onde está o interesse em agir dos autores, sabendo-se que “os autores têm interesse processual se, dos factos apresentados, resulta que necessitam de tutela judicial, ou seja, se a ação por si instaurada é o meio processual ajustado para almejar a tutela do direito que entendem violado”.

5º - Olhando para os factos provados e tratando-se duma ação de simples apreciação negativa, onde o interesse de agir assume particular relevo, esse pressuposto processual não se pode ter como verificado, quer pela não constatação de qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto dos réus, quer, ainda, porque essa dúvida ou incerteza, a existir, teria necessariamente que ser objetiva e grave, de modo a que, se viesse a proceder a ação, revestir-se-ia de utilidade prática;

6º - O interesse de agir, que é instrumental e secundário, surge da necessidade de obter através do processo a proteção ao interesse substancial;

7º - In casu, atentos os factos provados à pergunta se, somente, através da ação de simples apreciação negativa os autores poderão satisfazer a sua pretensão, ou seja, se para evitar um prejuízo, necessitam exatamente do recurso à presente ação, a resposta deve ser, obviamente, negativa;

8º - Isto, porque, se por um lado, conforme refere o Ac. Relação de Lisboa de 19.01.2017, in Col. Jur. Ano 2017, Tomo I, pág. 90, “tem legitimidade para pedir a justificação quem demonstre ter interesse legítimo no registo do respetivo facto aquisitivo”, por outro lado, o Ac. Relação de Lisboa de 27.05.2010, quanto à necessidade de obter um título com vista ao registo do direito de propriedade sobre imóvel, refere que o artº 116º do C. R. Predial estabelece que “aquele que não disponha de documento para efetuar a primeira inscrição de um prédio no registo predial, o pode obter através da escritura de justificação notarial ou de processo de justificação consagrado no C. R. Predial;

9º - Entendeu o douto acórdão recorrido que, tendo os réus-recorrentes terminado a sua Contestação pedindo que a ação fosse julgada improcedente e os réus absolvidos do pedido, reconhecendo-se o seu direito de propriedade sobre o prédio rústico em causa na escritura de justificação notarial, por ter resultado do acordo estabelecido entre os autores, os réus e o seu irmão e cunhado Joaquim, ou, quando assim se não entendesse, fossem os réus absolvidos igualmente do pedido, por se reconhecer o direito de propriedade dos réus sobre o prédio em causa, por o terem adquirido por usucapião, considerando-se como verdadeiro o teor da escritura executada, dando-se-lhe todos os efeitos legais, tal alegação e pedido se integravam na matéria da Contestação por impugnação, portanto, Contestação - defesa tendente à absolvição dos réus do pedido, e nunca pedido reconvencional, pois não respeita as exigências legais, daí, a improcedência deste fundamento do recurso;

10º - Conforme pelos réus-recorrentes foi alegado nos artigos 6º e 7º da sua Contestação, essa temática pôs-se-lhe, sendo que maturada a questão, afigurou-se-lhes na linha, aliás, da vasta doutrina e dalguma reputada jurisprudência, seguir o entendimento plasmado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Janeiro de 2003, posterior, aliás, ao de 23.01.2001 e nele referido, bem assim, três outros acórdãos, um da Relação de Évora e dois da Relação do Porto;

11º - Em todos estes Acórdãos, nomeadamente, no do S.T.J. de 30.01.2003, que servirá de acórdão fundamento, é sufragado o entendimento de que nas ações declarativas de simples apreciação negativa, na contestação não tem defesa por exceção (material ou perentória), nem a dedução de reconvenção, mas apenas a alegação das partes constitutivas do direito que o réu se arroga, sendo que a réplica, por seu lado, serve para o autor impugnar aqueles factos e alegar os factos impeditivos e extintivos do direito invocado pelo réu;

12º - Abandonada a tese da indispensabilidade da dedução do pedido reconvencional em ação de simples apreciação negativa, é sobre o réu que recai o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que invoca em juízo (artº 343º, nº l C.C.);

13º - Segundo o Prof. Antunes Varela, na contestação das açoes de mera apreciação negativa não tem cabimento defesa por exceção (material ou perentória), nem a dedução da reconvenção, mas apenas a alegação dos factos constitutivos do direito que o réu se arroga ou dos sinais demonstrativos da existência do facto (s) que afirmam, servindo a réplica, nesta espécie de ações, como função diversa da que lhe é, de modo geral, atribuída no nº 1 do artº 502 (584º NCPC), de resposta às exceções ou reconvenção deduzidas pelo réu, para o autor impugnar aqueles factos e para alegar os factos impeditivos e extintivos do direito invocado pelo réu (cfr. nº 2 do artº 342º C. Civil);

14º - Nas ações de simples apreciação negativa, tendo o réu o ónus da prova da existência do direito, passa a ocupar, materialmente, posição de autor, e, daí, torna-se difícil conceber a possibilidade de reconvenção, neste tipo de ações (cfr. Ac. Rel. Évora de 29.07.82, Col. Jur. Ano VII, tomo 4, pág. 278);

15º - Consistindo o pedido na declaração ou reconhecimento da inexistência do direito, não tem o autor de o provar, já que o nº 1 do artº 343 do CC. coloca a cargo do réu a prova dos factos constitutivos desse direito que se arroga e que o autor lhe nega, passando o réu a ocupar, quanto à relação material, a posição de autor, pelo que, a figura da reconvenção como uma espécie de contra-acção parece desenhar-se com dificuldade nestas mesmas ações (cfr. Ac. Rel. Porto de 21.10.81, Col. Jur. Ano VI, Tomo 4, pág. 202):

16º - Firmados os princípios enunciados quer no Ac. do S. T. Justiça - acórdão fundamento - quer nos Acs. da Rel. de Évora e da Rel. do Porto supra identificados sobre a estrutura da ação em apreço nos autos, dos factos dados por provados não se retira qualquer incerteza que possa assombrar o direito dos autores quanto àquilo de que são legítimos proprietários, jamais posto em causa, judicial ou extrajudicialmente pelos réus;

17º - Importa, pois, que aos réus seja dada a oportunidade, não pela via da reconvenção, como supõe o acórdão recorrido, mas pela forma como o fizeram, sustentada fundamentalmente no Acórdão do STJ de 30.01.2003 - Acórdão fundamento - e nos diversos acórdãos citados, pedir não só a improcedência da ação, como o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio em causa, por o terem adquirido por usucapião, considerando-se verdadeiro o teor da escritura extratada;

18º - uma vez que a questionada parcela de terreno, na qual implantaram a sua casa de habitação, havia sido objeto de destaque;

19º - Impondo-se, assim, o prosseguimento dos autos para apuramento dos fatos, segundo as várias soluções plausíveis de direito, de acordo com o disposto nos artºs 591º, nº 1, als. f) e g), e 596º do C. P. C. (cfr. Ac. Rel. Porto de 28.03.2017, Col. Jur. Ano 2017, Tomo II, pág. 173);

20º - Valorizada e tida como admissível a usucapião invocada pelos réus, o que importa relevar é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse, ou seja, a usucapião, capaz de afastar quaisquer efeitos de falta de legalidade ou idoneidade;

21º - o quadro factual provado (nºs 2, 3 e 4) retrata uma divisão em duas parcelas em 1989, data a partir da qual, as duas parcelas, então demarcadas, passaram a ser possuídas em exclusividade por cada um dos então comproprietários (autores e réus), perfeitamente seguro e conscientes de que as mesmas lhes pertenciam como prédios autónomos;

22º - Mesmo que esse destaque, ou essa divisão, fossem nulos por vício de forma, esta situação e facto obteve tutela jurídica e ao reconhecimento dos direitos de cada um, constituindo essa posse duradoura uma forma de aquisição do direito de propriedade;

23º - Aliás, relevando os princípios supra enunciados e invocada pelos réus a usucapião como título de aquisição sobre a parcela de terreno na escritura de justificação notarial, provados os respetivos requisitos integradores, o direito de propriedade não lhes poderá deixar de ser reconhecido (cfr. Ac. STJ de 27.06.2007 e de 06.04.2017, in Col. Jur. Ano 2007, Tomo II, pág. 133, e Ano 2017, Tomo II, pág. 39, respetivamente);

24º - Acresce dizer que uma ação de impugnação de escritura de justificação, quando nesta seja invocada a usucapião, demonstrados todos os requisitos desta forma de aquisição, o direito invocado permanecerá intocado, mesmo que se prove que o início da posse ocorreu de forma diversa da declarada na dita escritura, assim como, se as declarações vertidas nessa escritura, porventura, não corresponderem à verdade, quanto à causa de aquisição do direito aí indicado, não é essa compra verbal que servirá de causa aquisitiva, mas sim, a usucapião;

25º - Porque assim é, os réus tal como alegaram, provaram e provarão, quer todos os atos materiais de posse, quer os atinentes ao animus, necessários à aquisição por usucapião da parcela de terreno com os 950 m2, na qual construíram a sua casa de habitação;

26º - Mesmo que apelidadas de “falsas” as declarações prestadas quanto ao negócio que esteve na origem da aquisição da parcela de terreno, essa divergência em nada afeta o preenchimento dos requisitos necessários à aquisição por usucapião (antes pelo contrário) da parcela de terreno (cfr. Ac. Rel. Coimbra de 17.01.2017, in Col. Jur. Ano 2017, Tomo 1, pág. 9);

27º - Apesar de resultar do nº 1 dos factos provados que o prédio rústico inscrito na matriz rústica no artigo 23 foi adquirido em compropriedade, dos nºs 2, 3 e 4 sobressai que autores e réus procederam ao destaque dessa parcela de terreno, para efeito da realização das correspondentes obras de edificação por cada um deles, em cada uma das duas parcelas de terreno saídas do destaque, pelo que, poder-se-á concluir que autores e réus nunca chegaram a possuir esse mesmo prédio como comproprietários, donde, não lhes é exigível, nomeadamente aos réus, que para que lhes seja reconhecida a aquisição por usucapião da parcela de terreno que por acordo lhes foi atribuída, a prova da factualidade relevante para efeitos de inversão do título de posse, nos termos do nº 2 do artº 1406º do C. Civil;

28º - Porém, se só por razões de mero raciocínio, se entendesse como precária a posse de que gozam os réus, encontrando-se os mesmos, pelo menos desde 1986, a exercerem atos materiais sobre a parcela de terreno com 950 m2 objeto de destaque, com o conhecimento dos autores e atuando como verdadeiros titulares do direito, tanto bastaria para que tivesse como verificada a inversão do título de posse (cfr. Ac. STJ de 14.05.2016);

29º - Impõe-se, portanto, concluir que tendo os réus pelo menos desde 1986 passado a atuar de forma correspondente à de um proprietário singular relativamente aquela parcela de terreno - e só sobre aquela parcela de terreno - e não como comproprietários de todo o prédio (com as limitações inerentes ao estatuto de comproprietário), congregando em si o corpus e o animus possidendi, praticando de forma reiterada, com publicidade, os atos materiais correspondentes ao exercício do direito, mostram-se, assim, reunidos todos os pressupostos da usucapião, com a qual se bastará os 15 anos já decorridos integralmente, por a posse ser de boa-fé, pacífica e pública.

30º - Mostram-se violados os artigos 10º, 552º, al. d), 591º, nº 1 f) e g) e 596º, do C. P. Civil, e artigos 343º, 350º, nº 2 “a contrario”, 1260º, nºs 2 e 3, 1261º, nº 1, 1263º, 1296º, 1350º e 1406º do Cód. Civil, e artigos 2º, 43º, 115º e 117º A do CRP, e 89º do Cód. Notariado, entre outros.

Nestes termos, e pelo muito que como sempre não deixará de ser proficientemente suprido por Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o douto Acórdão recorrido, para que deste modo seja feita Justiça”.


Os Autores/Recorridos/AA e BB, apresentaram contra alegações, começando por adiantar que: “Acaso não nos deparássemos perante um recurso excecional, dir-se-ia que outra resposta não seria devida às alegações apresentadas pelos recorridos, senão subscrever, por completo, o douto acórdão ora sob censura, vindo este corretamente subsumir os factos ao direito, com inatacável rigor. Por outras palavras, arriscaríamos dizer: poderiam os recorridos louvarem-se, somente, em tudo quanto veio ser propugnado pelo mencionado acórdão - sustentando-se, este, por si próprio - sem mais, sustentadas nas conclusões que, de seguida, consignamos”.

Mesmo assim, enunciadas as CXXVI (cento e vinte e seis) conclusões, com 39 (trinta e nove) notas de rodapé, concluem os Autores/Recorridos/AA e BB: “Termos em que, em face das conclusões atrás enunciadas, deve ser negado provimento ao recurso de revista excecional interposto pelos recorrentes, confírmando-se o douto acórdão sob censura tudo como é de inteira e liminar Justiça”.


Foram colhidos os vistos.

Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


II. 1. As questões a resolver, recortadas das alegações apresentadas pelos Recorrentes/Réus/CC e DD consistem em saber se:

(1) O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito, ao reconhecer, na presente demanda, o interesse de agir dos Autores?

(2) O Tribunal a quo, além de desconsiderar a aquisição, por usucapião, por parte dos Réus, do prédio rústico identificado na escritura de justificação notarial, concretizou um deficiente enquadramento jurídico dos factos relevantes para a boa análise e decisão da causa, pela falta de consideração das soluções plausíveis da questão de direito, diversas da recorrida, sendo que o estado do processo não permite, sem mais provas, conhecer proficiente e imediatamente do mérito da causa?

II. 2. Da Matéria de Facto


As Instâncias consideraram assentes os seguintes factos:

“1. Por escritura de compra e venda outorgada no dia 15-09-1986, da qual se encontra junta cópia a fls. 36 a 38 e cujo teor se dá por reproduzido, HH e KK, como primeiros outorgantes, venderam ao Autor, ao Réu e a CC, na qualidade segundos outorgantes, o prédio misto composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, pequeno anexo e quintal, e terreno de cultura e ramada, com a área coberta de setenta e cinco metros quadrados e descoberta de mil trezentos e trinta e oito metros quadrados, sito no lugar de …, da freguesia e concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob parte do número dezassete mil novecentos e noventa e oito e inscrito na matriz nos artigos quinhentos e cinquenta e oito (558), da urbana, e vinte e três (23), da rústica.

2. Em 1989, mediante licença camarária, procedeu-se a destaque de parcela do referido prédio misto, correspondente ao referido prédio rústico, com uma dimensão de 1338m2.

3. A licença referida em 2. resultou de requerimento efectuado pelo Autor AA, em seu nome, em nome do Réu e de CC, para efeito da realização das correspondentes obras de edificação, no referido prédio rústico.

4. As obras vieram a ser realizadas pelo Autor e sua mulher e pelos Réus, com o conhecimento do outro comproprietário CC.

5. Por escritura pública de justificação, outorgada em 5 de Agosto de 2002, de cópia a fls. 29 a 31, cujo teor se dá por reproduzido, os Réus CC e DD declararam ser, com exclusão de outrem, donos e legítimos possuidores do prédio rústico composto de cultura, sito no lugar de …, freguesia e concelho de …, com a área de novecentos e cinquenta metros quadrados, a confrontar de norte com caminho público, do nascente com FF, do sul com GG e do poente com AA, não descrito na Conservatória do Registo Predial do mesmo concelho, inscrito na matriz predial sob o artigo 23, com o valor patrimonial de €34,69 e o atribuído de cem euros, por o terem adquirido por compra verbal feita a HH e mulher, II, há mais de vinte anos, e não formalizado. Mais declararam que há mais de vinte anos que exercem sem interrupção no prédio todos os poderes de facto inerente ao direito de propriedade, portando-se como seus verdadeiros donos, praticando os actos necessários ao aproveitamento de todas as suas utilidades, pagando as contribuições devidas, convictos de exerceram o mencionado direito, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

6. Os Réus CC e DD valeram-se da escritura de justificação referida em 5. para obter a seu favor o registo do imóvel, e deram origem à descrição n.º 1422/161002 da Conservatória do Registo Predial de ….

7. Não corresponde à verdade que os Réus CC e DD tenham adquirido verbalmente a HH o prédio identificado em 5.

Factos não provados:

Com interesse para a decisão da causa, inexistem factos não provados a enunciar.”


II. 3. Do Direito


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes/Réus/CC e DD, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjectivo civil - artºs. 635º, n.º 4, e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código Processo Civil.


II. 3.1. O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito, ao reconhecer, na presente demanda, o interesse de agir dos Autores? (1)

A exegese seguida na decisão recorrida que sufragou a sentença proferida em 1ª Instância, considerou que estamos perante uma acção de simples apreciação negativa, e, neste entendimento, o Tribunal a quo conheceu, desde logo, a questão suscitada na apelação interposta que contende com o interesse processual, para daí concluir da necessidade para os Autores de recorrer às vias judiciais para tutela do direito arrogado.

Assim, enquanto pressuposto lógico e jurídico das pretensões arrogadas, concretamente: “- Se declare que os réus justificantes não são proprietários do prédio rústico objecto da referida escritura, não obstante terem aí declarado e prestado declarações falsas, devendo, assim, a referida escritura ser declarada nula e sem qualquer efeito jurídico; - Se ordene o cancelamento do registo de inscrição e aquisição (Ap. 6 de 2002/10/16) do prédio justificado a favor dos réus, bem como de todos os demais registos posteriores, designadamente de constituição de propriedade horizontal (Ap. 651 de 2010/07/16), nos termos constantes nos autos, prédio que se encontra actualmente descrito sob o n.º 1422/20021016/…, na Conservatória do Registo Predial de …”, o Tribunal recorrido começou por reconhecer que “O pedido de declaração da inexistência de um direito deve decorrer da sequência da alegação de uma determinada situação de conflitualidade entre as partes ou da alegação de um estado de incerteza objectivamente determinado, passível de comprometer o valor da relação jurídica. E, como se verifica das alegações da petição, que se dão por reproduzidas, e do que resulta sobre elas e o objecto do litígio, temos, como se disse, que a acção se configura como de simples apreciação negativa”, outrossim, que “O interesse em agir consiste assim na verificação da necessidade ou utilidade da acção, sendo definido como «a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção” (…) Assim, tem de considerar-se que a sua verificação ocorre sempre que o demandante tenha necessidade de intervenção judicial para reconhecimento da sua pretensão, tal como a configura no exercício da sua liberdade de conformação da acção” para daqui concluir, aprovando o consignado em 1ª Instância “Tendo em conta os factos alegados na petição inicial, dos mesmos resulta que o direito declarado pelos Réus na escritura de justificação notarial colide com o direito dos Autores no que se refere ao imóvel descrito na matriz sob o artigo 23.º, posto que os primeiros não são proprietários exclusivos do prédio mas antes comproprietários por o haverem adquirido conjuntamente com os Autores e JJ por compra e venda outorgada em data anterior, concretamente em 15-09-1986. Há, assim, segundo a alegação dos Autores, uma incompatibilidade pelo menos parcial entre o direito declarado pelos justificantes/réus na escritura de justificação notarial e o direito invocado pelos autores na presente acção. Invocam claramente os Autores uma incompatibilidade do direito declarado na escritura com o direito de propriedade cuja titularidade defendem, sendo que tal incompatibilidade resulta nomeadamente do teor das duas escrituras juntas com a petição inicial, a celebrada em 15-09-1986 da qual resulta a aquisição em comum por Autores, Réus e um outro irmão de um prédio descrito sobre o artigo 23.º rústico e a escritura de justificação notarial. (…) Ora, atento o disposto nos art. 89 a 101 do Código do Notariado, e arts. 116 e 117 do Código do Registo Predial, (…) verificado está o interesse em agir dos AA. na presente acção”, o que, de resto, este Tribunal ad quem sufraga, impondo-se reforçar e sublinhar a propósito.

Divisamos que o Tribunal a quo resolveu a questão que lhe foi colocada, chamando à colação, e bem, o conceito de interesse processual nas acções de simples apreciação, sem deixar de sublinhar as regras do ónus da prova, e, uma vez subsumidos os factos adquiridos processualmente, julgou o conflito trazido a Juízo.

O nosso direito adjectivo civil não contempla o interesse em agir como excepção dilatória típica, e, nesta medida, o conceito tem sido tema doutrinal e jurisprudencial, sendo geralmente considerado excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso.

“O interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela”, neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, apud, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, página 97.

O interesse de agir assume-se como uma relação entre necessidade e adequação. De necessidade porque, para a solução do conflito é imprescindível a actuação jurisdicional, e adequação porquanto o caminho a seguir deve ter a virtualidade de corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configura.

Como defende, Anselmo de Castro, apud, Direito Processual Civil Declaratório, volume II, 1982, página 253, “O interesse em agir apresenta-se como um interesse instrumental em relação ao interesse substancial primário, pressupondo a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação”.

Como sabemos, o que justifica as acções de simples apreciação, ou de declaração - que se podem configurar como positivas ou negativas - é, genericamente, a necessidade de reagir contra uma situação de incerteza acerca da existência, ou inexistência, de um direito, ou de um facto.

Uma acção de simples apreciação, configura-se, pelo seu fim.

Na verdade, como resulta do disposto no art.º 10º n.º 2 e n.º 3 alínea a) do Código Processo Civil, as acções declarativas de simples apreciação são as que têm por fim “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto”.

Remédio Marques, apud, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, páginas 86 e seguintes, sustenta que “a necessidade de subordinar a admissibilidade das acções de simples apreciação à existência de interesse processual de quem a elas recorre justifica-se à luz de dois postulados: a) A exigência de protecção do réu contra acções vexatórias propostas pelo autor, no sentido de permitir o uso do processo para provocar danos ao réu ou limitar o direito fundamental de defesa; e b) A necessidade de lograr a economia processual e a efectividade da tutela jurisdicional dos direitos e das demais posições jurídicas, o que importa impedir que as acções de simples apreciação se transformem num peso injustificado para o aparelho jurisdicional estadual, mais precisamente nas situações em que a carência de tutela judiciária é meramente fictícia, nas eventualidades em que não se está na presença de uma ameaça efectiva à violação de direitos ou posições jurídicas, ou nos casos em que o autor tem ao seu dispor uma forma de tutela jurisdicional mais efectiva, vigorosa ou consistente (v.gr. podendo propor uma acção de condenação, uma acção constitutiva ou, inclusivamente, uma acção executiva).”

Por seu turno, ensinam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, apud, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, página 186, que “as acções de simples apreciação, que pode ser positiva ou negativa, consoante os casos, são aquelas em que, reagindo contra uma situação de incerteza, o autor pretende apenas obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.”.

Ademais, como expressam estes Autores “Destinando-se essas acções a “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto”, tem-se entendido que não basta qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na acção”. (…) “Só quando a situação de incerteza, contra a qual o autor pretende reagir através da acção de simples apreciação, reunir os dois requisitos postos em destaque – a objectividade, de um lado; a gravidade, do outro – se pode afirmar que há interesse processual”. (…) “Será objectiva a incerteza que brota de factos exteriores, de circunstâncias externas e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor (…). A gravidade da dúvida medir-se-á pelo prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor”.

No caso sub iudice os Autores pretendem que o tribunal aprecie a alegada situação de incerteza jurídica e ponha termo à invocada insegurança, que os prejudica (ainda que esse prejuízo se possa não configurar como material ou económico).

Os Autores pretendem reagir contra uma situação de incerteza que os impede de auferir todas as vantagens proporcionadas pela alegada relação jurídica material no que se refere ao ajuizado imóvel, descrito na matriz sob o art.º 23º, em razão da respectiva aquisição, conjuntamente com os Réus e JJ, por compra e venda, por escritura pública, outorgada em data anterior ao direito declarado pelos Réus na escritura de justificação notarial, com referência ao dito imóvel.

Daqui decorre, sem reserva o afirmamos, clara colisão do direito declarado pelos Réus na escritura de justificação notarial, com o arrogado direito de compropriedade dos Autores, quanto ao prédio rústico composto de cultura, sito no lugar de …, freguesia e concelho de …, com a área de novecentos e cinquenta metros quadrados, a confrontar de norte com caminho público, do nascente com FF, do sul com GG e do poente com AA, não descrito na Conservatória do Registo Predial do mesmo concelho, inscrito na matriz predial sob o art.º 23, sendo evidente a incompatibilidade, entre o direito declarado pelos Réus, enquanto justificantes, na escritura de justificação notarial, e o direito invocado pelos autores na presente acção, sustentada na escritura pública, também junta aos autos, outorgada em data anterior àquela, sendo óbvio, o dano apreciável, alegadamente causado aos Autores.

A incerteza contra a qual os Autores pretendem reagir é objectiva e grave, e está sustentada em factos exteriores, em circunstâncias externas (a escritura pública de compra e venda outorgada em 15 de Setembro de 1986, junta cópia a fls. 36 a 38, na qual, HH e KK, como primeiros outorgantes, venderam ao Autor, ao Réu e a CC, na qualidade de segundos outorgantes, o prédio misto composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, pequeno anexo e quintal, e terreno de cultura e ramada, com a área coberta de setenta e cinco metros quadrados e descoberta de mil trezentos e trinta e oito metros quadrados, sito no lugar de …, da freguesia e concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob parte do número dezassete mil novecentos e noventa e oito e inscrito na matriz nos artigos quinhentos e cinquenta e oito [558], da urbana, e vinte e três [23], da rústica), e não apenas na mente dos próprios Autores.

Acentuamos, que só quando a situação de incerteza, contra a qual os demandantes pretendem reagir através da acção de simples apreciação, reunir os requisitos da objectividade e da gravidade, se pode afirmar que há interesse processual, sublinhando que a causa de pedir nas acções de simples apreciação, consubstancia-se na existência ou inexistência do direito e nos factos materiais alegadamente praticados pelos demandados que determinaram o estado de incerteza.

Revertendo ao caso sub iudice, temos de convir que a demonstração fáctica constante do item 1. a 6., ao integrarem inequivocamente, factos indiciadores do estado de incerteza que os demandantes pretendem fazer terminar, não nos podem levar a outra conclusão que não seja a de reconhecer interesse processual dos Autores no presente litígio.

Tudo visto, reconhecendo ser despiciendo quaisquer outras considerações a este respeito, considerando o enquadramento jurídico que acabamos de enunciar, conjugado com a facticidade demonstrada nos autos, entendemos que não merece censura o aresto posto em crise pelos Recorrentes/Réus/CC e DD, na parte que reconheceu estar verificado o interesse em agir dos Autores/AA e BB, na presente demanda.


II. 3.2. O Tribunal a quo, além de desconsiderar a aquisição, por usucapião, por parte dos Réus, do prédio rústico identificado na escritura de justificação notarial, concretizou um deficiente enquadramento jurídico dos factos relevantes para a boa análise e decisão da causa, pela falta de consideração das soluções plausíveis da questão de direito, diversas da recorrida, sendo que o estado do processo não permite, sem mais provas, conhecer proficiente e imediatamente do mérito da causa? (2)

Delimitado o objecto do recurso, passemos à outra questão, vertida nas conclusões das alegações dos Recorrentes/Réus/CC e DD, importando, nesta medida, apreciar se, considerados os factos jurídicos apresentados em Juízo e a pretensão arrogada, impunha-se que o Tribunal recorrido não sufragasse o despacho saneador que conheceu imediatamente do mérito da causa, sendo a presente demanda, manifestamente improcedente, outrossim, o estado do processo não permitia, nem permite, sem mais provas, conhecer proficiente e imediatamente do mérito da causa.


Estatui o direito adjectivo civil - art.º 595° n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil - que, findos os articulados, se conheça da fase do saneador e da condensação, destinando-se a: “Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória”, concedendo-se, assim, o conhecimento do mérito da causa quando, fundamentadamente, se entenda ser o caso.

É precisamente a bondade do proferido despacho saneador que conheceu imediatamente do mérito da causa, levado a cabo pela 1ª Instância e sufragado pelo Tribunal recorrido, que está em causa, sabendo nós que o mesmo só poderá ser levado a cabo quando se conclua pela desnecessidade de prosseguir a acção com a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova, cuja discussão deve ter lugar em audiência final, uma vez dada a oportunidade aos intervenientes processuais de aduzir a prova, entendida por pertinente.

Para conhecer da questão enunciada relativa ao imediato conhecimento da causa, findos os articulados, importa relembrar que estamos perante uma acção de simples apreciação negativa, no caso, os Autores/AA e BB, reagindo contra uma alegada situação de incerteza, pretendem apenas obter a declaração da inexistência do direito de propriedade sobre o identificado imóvel, arrogado pelos Réus/CC e DD.

A propósito das acções de simples apreciação negativa, convirá, desde já, observar, que nestas particulares demandas, se inverte a regra do regime probatório prevista no art.º 342º n.º 1 do Código Civil, deixando de caber ao Autor, e passando a caber ao Réu, o ónus da prova do direito em causa, por ser, alegadamente, este quem se arroga àquele mesmo direito.

É o que resulta expressamente do art.º 343º, n.º 1 do Código Civil.

Na verdade, nunca uma acção de simples apreciação negativa pode improceder, com a consequente absolvição do pedido do demandado, por falta de prova, pois que, nessa espécie de acções, um non liquet probatório terá sempre que resolver-se em desfavor do réu, face ao direito substantivo e adjectivo civil atinente – art.º 346º do Código Civil e artº. 414º, do Código de Processo Civil.

Assim, contrariamente ao entendimento perfilhado pelo Tribunal recorrido, a prova desse direito, deverá importar ao Tribunal, considerar, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a simples defesa apresentada em Juízo, não fazendo sentido, ater-se, exclusivamente, à exigência de ónus processual, concretamente, à dedução de pedido reconvencional, em acção de simples apreciação negativa, com vista ao reconhecimento do direito alegadamente posto em crise.

Neste sentido, pode ler-se a exposição do Professor, Antunes Varela, apud, Revista de Legislação e Jurisprudência 121º/14 “na contestação das acções de mera apreciação negativa não tem, em princípio, cabimento defesa por excepção (material ou peremptória), nem a dedução de reconvenção, mas apenas a alegação dos factos constitutivos do direito que o réu se arroga ou dos sinais demonstrativos da existência do facto que (...) afirma”, o que, aliás, é sufragado pela Jurisprudência - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Janeiro de 2003, in, www.dgsi.pt, onde se consignou a propósito da eventual exigência de ónus processual, concretamente, a dedução de pedido reconvencional em acção de simples apreciação negativa “não pode negar-se ao réu em acção de simples apreciação negativa posição substancial ou materialmente (embora não formalmente) coincidente com a de autor em acção de simples apreciação positiva. (…) o réu passa, nas acções de simples apreciação negativa, a ocupar posição equivalente à de autor noutra qualquer acção. (…) não vê como negar que a improcedência de acção de simples apreciação negativa envolve - sem margem para tergiversação - o reconhecimento da existência do direito que o réu se arroga, que fica definitivamente estabelecida em face, ou vis à vis, da parte contrária. Por isso mesmo prejudicada a proposição pelo mesmo de ulterior acção de simples apreciação positiva (…), logo por aí se revela redundante a dedução de reconvenção, a que não pode atribuir-se mais valia alguma em relação à simples procedência da defesa deduzida em acção de simples apreciação negativa, não passando, nesse caso, de puro reverso da pretensão do autor, que se limita a pedir a declaração da inexistência de direito que o réu invoca.

Cometida a este, em tal acção, a prova desse direito, dificilmente se descortina o que é que em acção de simples apreciação negativa a dedução da reconvenção possa efectivamente acrescentar à simples defesa.”

Revertendo ao caso em apreço, distinguimos que os Réus/CC e DD deduziram simples defesa, traduzida no puro reverso da pretensão reclamada pelos Autores/AA e BB, sustentando factos tendentes ao reconhecimento da aquisição do imóvel ajuizado.

Assim, sendo, importaria ao Tribunal recorrido, considerar como uma das soluções plausíveis da questão de direito, a alegação dos factos tendentes ao reconhecimento da aquisição do imóvel ajuizado, através de simples defesa, sem o ónus processual da reconvenção, e, na comprovação de que os alegados factos estão controvertidos, impor-se-ia que o Tribunal a quo ajuizasse que o estado do processo não permitia, sem mais provas, conhecer proficiente e imediatamente do mérito da causa.

Sublinhamos que o Tribunal recorrido, ao julgar procedente a apelação interposta, sufragando a decisão da 1ª Instância, que julgou procedente a demanda, não cuidou de ter em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito que importam a apreciação da aquisição do ajuizado prédio rústico.

Cingindo-se a questão decidenda, à apreciação da questão jurídica atinente à aquisição do imóvel ajuizado, por parte do Réus/CC e DD, a quem cabe, como adiantamos, o ónus da prova do direito em causa, por ser, alegadamente, quem se arroga àquele mesmo direito, impor-se-ia ao Tribunal recorrido considerar, que a invocada alegação não passasse tão só, ou mesmo, necessariamente, reconhece este Tribunal ad quem, pela dedução do pedido reconvencional, pelo que, importa, por isso, revogar o acórdão recorrido, para que os presentes autos prossigam, com a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova, cuja discussão deve ter lugar em audiência final, uma vez dada a oportunidade aos intervenientes processuais de aduzir a prova, entendida por pertinente.

Pelo exposto, na procedência das conclusões retiradas das alegações, trazidas à discussão pelos Réus/Recorrentes/CC e DD, reconhecemos à respectiva argumentação, virtualidade no sentido de alterar o destino da demanda, merecendo censura a decisão posta em crise.


IV. DECISÃO


Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar procedente o recurso interposto, e, consequentemente, concede-se a revista, anulando-se o saneador sentença, quando conheceu imediatamente do mérito da causa, devendo os autos prosseguir os seus termos, desde logo, com a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova.

Custas pelos Recorridos/Autores/AA e BB.

Notifique.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 19 de Dezembro de 2018  


Oliveira Abreu (Relator)

Ilídio Sacarrão Martins

Maria dos Prazeres Beleza