Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | CATARINA SERRA | ||
| Descritores: | RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA ARGUIÇÃO DE NULIDADES NULIDADE DE ACÓRDÃO ERRO DE JULGAMENTO FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO OMISSÃO DE PRONÚNCIA AMBIGUIDADE OBSCURIDADE EXCESSO DE PRONÚNCIA EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA INDEFERIMENTO | ||
| Data do Acordão: | 05/28/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | INDEFERIDA | ||
| Sumário : | A reclamação para a Conferência em que se arguem nulidades do Acórdão que, visivelmente, não se verificam não é um meio admissível para o recorrente manifestar discordância com a decisão e obter decisão que lhe seja mais favorável. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1. Em 13 de Março de 2025 proferiu este Supremo Tribunal de Justiça Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se: “Pelo exposto, decide-se: a) conceder provimento ao recurso independente da autora, revogando-se a decisão de absolvição da instância da ré por falta de personalidade judiciária; b) negar provimento ao recurso subordinado da ré, confirmando-se a decisão quanto à competência material do tribunal; c) determinar a baixa ao tribunal recorrido para o prosseguimento dos autos”. 2. Notificados deste Acórdão, vem a ré / recorrente subordinada Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A., reclamar para a conferência, “nos termos dos artºs. 616.º, 666.º e 685.º do CPC”, invocando, em conclusão, “a nulidade do douto Acórdão por falta de fundamentação, quando não por obscuridade da fundamentação”. Pretendem e alegam, mais precisamente, o seguinte (ipsis verbis e integralmente): “I – Quanto à excepção da falta de personalidade judiciária da Ré Refere-se no douto Acórdão que “[o]s factos relevantes para a decisão dos presentes autos são os constantes do precedente Relatório”. Sucede que, no Relatório, não consta qualquer materialidade fáctica, mas sim a citação do teor do despacho saneador e das conclusões do recurso da Autora e do recurso subordinado da Ré. De seguida, na fundamentação da decisão sobre a personalidade judiciária, é feita uma apreciação sobre apenas parte do alegado pela Autora, omitindo, por exemplo, qualquer referência a outros excertos das peças processuais da Autora e atinentes à “sucursal” como ente demandado, designadamente os seguintes: - “Sendo a presente ação movida contra a sua sucursal, com estabelecimento em Rua de ..., ..., Portugal” (artigo 20.º da p.i.) — a letra da declaração e o sublinhado da Autora não deixam margem para dúvidas de que foi sua intenção propor a ação contra a “sucursal” da Ré e não contra esta sociedade; - “A ré detém uma posição dominante nos mercados relevantes, porquanto, em conjunto com o Modelo Continente Hipermercados, S.A. detém uma quota de mercado de cerca de 45 %, conferindo-lhe, no caso da sucursal em causa, devido ao posicionamento geográfico estratégico, uma posição de domínio no mercado relevante, atento à sua inferência por intermédio das elasticidades cruzadas da procura na área geográfica especifica em que os produtos são fornecidos” (artigo 25.º da p.i.) — o critério invocado pela Autora quanto à alegada posição de domínio refere-se ao circunstancialismo geográfico da “sucursal”; - “O comportamento da ré descrito no número anterior é aquele que esta adota para com todos os consumidores, seus clientes, os aqui autores populares, e que consubstancia em publicidade enganosa e numa prática comercial desleal e restritiva da concorrência, as quais se entrecruzem, de modo secante, na defesa do consumidor – embora, neste caso, confinado e por decisão da sua sucursal na Rua de ..., ..., ..., Portugal” (artigo 28.º da p.i.) – uma vez mais, a letra da declaração e o sublinhado da Autora não deixam margem para dúvidas que a Autora delimitou a relação material à “sucursal”; - “CITIZENS' VOICE - CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, representante da classe, e restantes AUTORES POPOULARES, nos autos supra e à margem melhor referenciados e nos mesmos devidamente identificados, em que é ré a sucursal da sociedade PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A.” (Reclamação da Autora de 06.10.2023, Ref.ª ......89) — da qual resulta com meridiana clareza que, para a Autora, a Ré é “sucursal”; - Referindo-se a uma outra ação, “(…) a ação é movida contra a sucursal do PINGO DOCE DISTRIBUIÇÃO LIMENTAR, S.A. e não contra a sede, tal como acontece nesta petição inicial” (Reclamação da Autora de 06.10.2023, Ref.ª ......89, negrito e sublinhados da Ré) — uma vez mais e agora de forma categórica, a Autora afirmou que a presente ação é intentada contra a “sucursal” e não contra a sociedade. - “Os factos que estribam a presente ação são imputados à sucursal melhor identificada no supra aludido artigo 20 desta peça processual. Tal como consta da causa de pedir, nomeadamente, mas não exclusivamente, dos artigos 27 (1), 28 e 37 supra, a retro referida sucursal foi quem praticou os factos de que procede a presente ação. São estes os factos que interessam para aferir da personalidade judiciária da sucursal para os efeitos da presente ação. O resto, resume-se a uma simples questão de direito adjetivo, porquanto assim o dita o artigo 13 (1), do CPC” (pág. 148 da p.i.) — a Autora reitera que a ação é proposta contra a sucursal, reforçando-os para afirmar a personalidade judiciária daquela, à luz do art.º 13.º do CPC. Estas afirmações categóricas da Autora quanto à “sucursal”, as quais não permitem outra interpretação que a constante da douta sentença recorrida, não foram apreciadas pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça aquando da prolação do douto Acórdão, o que é evidente em face da total omissão no texto àquelas afirmações da Autora. Considera, assim, a Recorrente, que se impõe, nos termos do art.º 616.º, n.º 2 do CPC, reformar o douto Acórdão, ponderando-se também aqueles pontos e sopesando o conjunto da factualidade, confirmando-se a sentença recorrida. Sem prescindir, afigura-se que, ao não apreciar aquela factualidade, o douto Acórdão não compatibilizou toda a matéria de facto adquirida, como se impunha (art.º 607.º, n.º 4 do CPC), não ficando assim claro por que razão sopesou apenas as passagens que citou e não também as supratranscritas, as quais apontam para o sentido contrário da decisão. Deste modo, a fundamentação tornou-se ambígua, quando não obscura, tornando a decisão ininteligível em face da posição que a própria Autora vinha tomando nos autos, pelo que se verifica o vício da nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC (quando não a prevista pela al. d), porquanto não há verdadeira pronúncia quando a decisão apenas contém uma apreciação dos factos favoráveis para a decisão, não revelando o conhecimento e qualquer juízo sobre os factos contrários). Por outro lado, na decisão em apreço afirmou-se que «a intenção da autora é de demandar esta [sucursal] enquanto "desdobramento"», não se entendendo para que figura jurídica remete este entendimento. Ora, como acima citado, a Autora alegou que os factos por si alegados são os “que interessam para aferir da personalidade judiciária da sucursal para os efeitos da presente ação. O resto, resume-se a uma simples questão de direito adjetivo, porquanto assim o dita o artigo 13 (1), do CPC” (negrito da Ré). Ou seja, não há qualquer “desdobramento”, mas sim uma inequívoca intenção da Autora em propor a ação contra a “sucursal”, porque entendeu a Autora que o estabelecimento da Ré tinha aquela natureza e porque se trata de factos por ela praticados, defendendo a Autora, por conseguinte, a sua personalidade judiciária “porquanto assim o dita o artigo 13 (1), do CPC”. Com alguma surpresa da Ré, diga-se, verifica-se que o Supremo Tribunal de Justiça não ponderou esta posição da Autora, que invoca expressamente como relevante “para aferir da personalidade judiciária da sucursal” (sic) o que se encontra disposto no art.º 13.º, n.º 1 do CPC, sendo esta uma manifestação clara do próprio entendimento da Autora quanto à identidade da Ré como sendo a sucursal. O preceito em análise — repita-se, invocado pela própria Autora para justificar a personalidade judiciária da “sucursal”— não podia ser desconsiderado na apreciação da excepção da falta de personalidade judiciária da demandada, por se tratar de norma que rege directa e especialmente sobre a questão que é aqui colocada, sem prejuízo da invocação que é feita no douto Acórdão das normas gerais contidas no art.º 11.º, nºs. 1 e 2 do CPC. Segundo entende a Ré, pretendendo expressamente a Autora configurar a personalidade judiciária da Ré à luz do art.º 13.º, n.º 1 do CPC, impunha-se que no douto Acórdão se apreciasse a verificação dos respetivos pressupostos, até porque foi no quadro da aplicação daquele preceito que a questão foi enquadrada e decidida pela 1.ª instância. Houve, pois, um lapso manifesto na determinação da norma aplicável, pelo que se impõe a reforma do douto Acórdão (art.º 616.º, n.º 2, al. a) do CPC), o que se requer. Por último, refere-se no douto Acórdão que «mesmo que entendesse que a autora havia demandado exclusivamente a "sucursal" e não - nem sequer adicionalmente -a Pingo Doce Distribuição Alimentar, S.A., o juiz deveria, em observância do princípio da economia processual, da necessidade de evitar a realização de actos inúteis (cfr.artigo130.°doCPC)e, acima de tudo, do seu dever de gestão processual [cfr., em especial, os artigos 6.°, n.° 2, e 590.°, n.° 2, al. a), do CPC], considerar a hipótese de suprimento da falta da legitimidade processual nos termos legais aplicáveis». Ora, a este respeito, em recente acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 28.01.2025 (Proc. n.º 232/23.3YRPRT.S1, publicado em www.dgsi.pt) concluiu-se diversamente que: “I- A parte desfruta de legitimidade processual quando, admitindo-se, ab initio, na configuração dada pelo autor na petição, que existe a relação material controvertida, a parte for efetivamente o seu titular. II- Há ilegitimidade quando se verifica uma disparidade entre os titulares dos interesses em conflito, ou das posições na relação jurídica e as partes ou sujeitos da relação jurídica processual. III- As exceções dilatórias, obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (cfr. art. 576,nº. 2 do CPC). IV- A perspetiva de sanação da falta de um pressuposto processual só pode colocar-se nos casos em que a falta seja objetivamente suprível. V-O princípio da adequação formal, a que se reporta o art. 547º do CPC., atribui ao juiz o poder de gestão processual e de adequação formal, perante a concreta situação, providenciando pelo suprimento de falta de pressupostos suscetíveis de sanação, ou convidar as partes a suprir as falhas que dependam das mesmas.” VI- Tal princípio comporta limites, tais como, a impossibilidade de adequação formal perante os casos insanáveis”. Como referido na douta sentença recorrida, “não se verifica a mera falta de personalidade judiciária pela inexistência de uma sucursal da ré. O que ocorre é uma situação distinta e bem mais gravosa em que a autora estruturou toda a ação (incluindo para o efeito da competência do tribunal) com base no entendimento de que existia uma sucursal da ré e que era esta sucursal que pretendia demandar, afirmando expressamente que não estava a demandar a sociedade. A substituição da sucursal pela administração principal da sociedade significava não apenas uma alteração formal da demandada, mas uma substituição da ação por outra que a autora afirmou com toda a clareza que não correspondia ao que pretendia”. Assim sendo, não podia o Mm.º Juiz de Direito considerar a hipótese de suprimento da falta da legitimidade processual, com o apelo ao dever de gestão processual, pois tal vício não pode ser suprido, como assinalado no supra citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e pelo Mm.º Juiz de Direito. Donde, afigura-se à Recorrente que a amplitude conferida pelo douto Acórdão sob reclamação ao dever de gestão processual não tem cabimento legal, pelo que o entendimento vertido no Acórdão enferma da nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. d), segunda parte, do CPC. II – Quanto ao recurso subordinado da Ré. Analisando o douto Acórdão em apreço, verificou a Recorrente que, salvo melhor entendimento e com o devido e merecido respeito, as normas invocadas não permitem fundamentar a interpretação realizada e, inclusive, algumas asserções carecem da necessária fundamentação, clara e objetiva, do entendimento e decisão deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça. Debruçando-se sobre o recurso subordinado da Ré, este Colendo Supremo Tribunal de Justiça consignou que: “(…) do disposto no artigo 52.°, n.° 3, da CRP e nos artigos 1.° e 12.°, n.° 2, da Lei n.° 83/95, de 31.08 (direito de acção procedimental e de acção popular) resulta que o exercício da acção popular para alguma das finalidades que lhe estão assinaladas, entre as quais a de obter uma indemnização para o lesado ou os lesados, é sempre exercido autonomamente, ainda que, como se diz no artigo 25.° da referida lei, a violação dos interesses previstos no artigo 1.º revista natureza penal” (negrito da Recorrente). O artigo 52.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP) tem a seguinte redação: “3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”; O artigo 12.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto (LAP), estipula que: “1 - A ação popular administrativa pode revestir qualquer das formas de processo previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos. 2 - A acção popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil”; E, por fim, o artigo 25.º da LAP dispõe que: “Aos titulares do direito de acção popular é reconhecido o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1.º que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respectivo processo, nos termos previstos nos artigos 68.º, 69.º e 70.º do Código de Processo Penal”. Como dita o art.º 9.º, n.º 3 do Código Civil, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. No labor interpretativo, o julgador não deve cingir-se à letra da lei (e, contudo, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso), mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada — art.º 9.º, nºs. 1 e 2 do Código Civil. Sucede que, salvo melhor entendimento, a interpretação constante do douto Acórdão — de que o exercício da ação popular1 para obter uma indemnização para o lesado ou os lesados, é sempre exercido autonomamente, ainda que a violação dos interesses previstos no artigo 1.º revista natureza penal — não tem a mínima correspondência na letra da lei e, em especial, nos preceitos invocados (artigo 52.°, n.º 3, da CRP e os artigos 1.° e 12.°, n.º 2, da LAP). Colocadas perante essa falta de correspondência, percetível por qualquer declaratário normal, é manifesto que a fundamentação encontrada não permite às partes compreender os motivos de direito que sustentam a decisão, até porque aqueles comandos normativos não expressam ou sequer apontam para que o exercício da ação popular para obter uma indemnização para o lesado ou os lesados, deva ser sempre exercido autonomamente ou que o deva ser quando esteja em causa a violação dos interesses previstos no artigo 1.º revista natureza penal. Por outro lado e do ponto de vista da interpretação sistemática, como afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 31.10.2024 (Proc. n.º 39/14.9TASCF.L1.S1, publicado em https://juris.stj.pt), “[o] artº 71º CPP, consagra o principio da adesão da acção civil ao processo penal, fazendo jus ao principio da suficiência do processo penal (artº 7º CPP), de acordo com o qual a indemnização pelos danos causados pela prática de um crime (calculados nos termos da lei civil – artº 129ºCP) devem ser pedidos no processo crime, só podendo sê-lo em separado (na jurisdição/ tribunal normalmente competente) nos casos expressos lei” (negrito da Recorrente). Assim se entende que, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.10.2023 (processo n.º 898/22.1T8VRL.S1, publicado no www.dgsi.pt) — o qual apreciou, em caso semelhante ao presente, a competência do tribunal cível para conhecer de acção popular intentada pela mesma Autora com vista à condenação em pagamento de indemnização fundada na prática de crime —, se tenha entendido que “[p]or força do princípio da adesão obrigatória fixado no art. 71º do CPPenal, o pedido de indemnização cível fundado na alegada prática de crimes deve ser deduzido no 1 Sem prejuízo de, como alegado pela Ré na Contestação e sustentado pelo Parecer de PAULO MOTA PINTO e MARIA JOSÉ CAPELO junto aos autos, ser manifesta nesta ação a falta de interesse em agir, por inadequação e inutilidade do mecanismo da ação popular. processo crime”. Reitere-se que, nessa ação e tal como no caso sub judice, a Autora alegadamente exercia o direito de ação popular e pedia a condenação da Ré no pagamento de indemnizações fundadas na prática de dois crimes (um deles, o de especulação, como nestes autos). Acresce que, contrariamente à afirmação contida no Acórdão de que o direito de acção popular é “exercido sempre nos termos daquela lei, correspondendo-lhe uma tramitação própria”, no nosso ordenamento jurídico não está prevista qualquer tramitação autónoma, uma vez que “a ação popular não é, pois, um meio processual, mas uma forma de legitimidade que permite desencadear os diversos tipos de ações ou providências cautelares que se tornem necessárias à defesa de interesses difusos” (AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2021, 5.ª edição, apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.3.2024, publicado em www.dgsi.pt). Com efeito, o que distingue a ação popular das restantes modalidades de ações é a amplitude dos critérios determinativos da legitimidade para a respectiva propositura, conforme referido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 16.11.2023 (Proc. n.º 6390/22.7T8VNG.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt), e não a respetiva tramitação (salvaguardadas as especificidades ditadas pela LAP),pois a lei é expressa em determinar que a mesma se processe por qualquer das formas de processo previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (ação popular administrativa) ou qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil (ação popular civil) — art.º 12.º, n.ºs 1 e 2 da LAP —, assistindo aos titulares do direito de ação popular o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1.º que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respectivo processo (ação popular penal) — art.º 25.º da LAP —, aí devendo deduzir o pedido de indemnização civil fundado na prática do crime (art.º 71.º do CPP). Não existe, pois, qualquer suporte legal que sustente a afirmação de que exercício da ação popular para obter uma indemnização para o lesado ou os lesados, deva ser sempre exercido autonomamente, ainda que a violação dos interesses previstos no artigo 1.º revista natureza penal, o que convoca para o princípio ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. Assim, do ponto de vista da interpretação que tenha em conta a unidade do sistema, se impõe também concluir que a interpretação produzida no douto Acórdão carece de fundamentação, pelo que violou os artºs. 205.º, n.º 1 da CRP e 154.º do CPC, estando, em consequência, inquinados com a nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, se é que não se está perante uma situação de ambiguidade (tendo em conta a falta de correspondência da interpretação com os textos legais nos quais se suporta), tendo sido cometida, nesse caso, a nulidade prevista no art.º 615.º, n,º 1, al. c) do CPC. Por último, concluiu-se, ainda, no douto Acórdão objeto da presente reclamação que “a acção popular tem uma natureza que não se presta a ou que se mostra mesmo incompatível com a adesão do pedido de indemnização civil ao processo-crime, pelo que a hipótese da incompetência do tribunal cível com fundamento na sua violação é uma hipótese que deve ser rejeitada”. Tal afirmação, não sustentada em qualquer norma legal e não estando sequer demonstrado o caminho lógico do raciocínio percorrido para se chegar essa conclusão, não cumpre ostensivamente o dever de fundamentação (art.º 205.º, n.º 1 da CRP e art.º 154.º do CPC), traduzindo-se numa mera apreciação ou conclusão opinativa, sem possibilidade de ser juridicamente escrutinada, pelo que o douto Acórdão enferma de nulidade (artºs. 615.º, n.º 1, als. b) e c) do CPC). O entendimento vertido no douto Acórdão, segundo o qual a dedução do pedido de indemnização civil em processo penal “não se presta” ou “se mostra mesmo incompatível” com o exercício do direito de ação popular, tem de ser fundamentado, não só porque tais afirmações carecem de ser explicadas, mas também porque parecem presumir que o legislador não consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (violando-se, assim, o art.º 9.º, n.º 3 do Código Civil). Acresce que, a posição assumida no douto Acórdão, parece divergir da orientação seguida pela Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que a indemnização deduzida em processo penal é regulada, quantitativamente e nos seus pressupostos, pela lei civil, sendo as questões processuais reguladas na lei adjetiva (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.7.2016, Proc. n.º 256/10.0GARMR.E1.S1, publicado em www.dgsi.pt), sem prejuízo dos casos em que é admitida a dedução do pedido em separado ou quando o juiz da causa entenda remeter as partes para os tribunais civis (quando verificadas as condições previstas pelo art.º 82.º, n.º 3 do CPP). No mesmo sentido e de forma lapidar, também no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 22.3.2021 (Proc. n.º 1155/13.0TAVCT-A.G1, publicado em https://jurisprudencia.pt) se fez constar que “[d]o ponto de vista das leis penal e processual penal, a indemnização civil fundada na prática do crime é encarada como um instituto de natureza estritamente civilístico, e como tal deve ser substantivamente visto e tratado”. Deste modo se resolve “no processo penal todas as questões que envolvem o facto criminoso em qualquer uma das suas vertentes, sem necessidade de recorrer a mecanismos autónomos. Por outro lado, sublinha-se a manifesta economia de meios, uma vez que os interessados não necessitam de despender e dispersar custos quando afinal o tribunal a quem se atribuiu competência para conhecer do crime oferece as mesmas garantias quando ela é alargada ao conhecimento de uma matéria que está intimamente ligada a esse crime” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.10.2008, Proc. 08P3638, publicado em www.dgsi.pt, negrito da Recorrente). Com efeito e como referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2015 (Processo nº 28/07.0TAPRD.P2.S1, publicado em www.dgsi.pt), “Nos termos do artigo 71 do Código de Processo Penal o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado perante o tribunal civil nos casos previstos na lei. Na teleologia do mesmo normativo o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime, ou seja, tem de ter na sua base uma conduta criminosa que determina o funcionamento do princípio da adesão. Como refere Germano Marques da Silva, «Sucede é que o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso da absolvição da responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil que é daquela autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgados contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo». Com a consagração do princípio da adesão resolvem-se no processo penal todas as questões que envolvem o facto criminoso em qualquer uma das suas vertentes sem necessidade de recorrer a mecanismos autónomos. Por outro lado, salienta-se a manifesta economia de meios uma vez que os interessados não necessitam de despender e dispersar custos quando afinal o tribunal a quem se atribuiu competência para conhecer do crime oferece as mesmas garantias quando ela é alargada ao conhecimento de uma matéria que está intimamente ligada a esse crime. Finalmente importa salientar razões de prestígio institucional, o qual poderia ser posto em jogo se houvesse que enfrentar julgados contraditórios acerca do ilícito criminal a julgar, um no foro criminal com determinado sentido e outro no foro cível, eventualmente com expressão completamente contrária ou oposta. Como se refere em acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Julho de 2008 interdependência das acções significa que mantêm a independência nos pressupostos e nas finalidades (objecto), sendo a acção penal dependente dos pressupostos que definem um ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção penal, e a acção civil dos pressupostos próprios da responsabilidade civil; a indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil(artigo 129º do Código Penal) nos respectivos pressupostos e só processualmente é regulada pela lei processual penal. A interdependência das acções significa, pois, independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da acção cível ao processo penal. Com o exercício da acção civil o que está em causa no processo penal é o conhecimento pelo tribunal de factos que constam da acusação e do respectivo pedido de indemnização e que, consequentemente, são coincidentes no que refere á caracterização do acto ilícito. Atributo próprio do pedido cível formulado será o conhecimento e a definição do prejuízo reparável. O itinerário probatório é exactamente o mesmo no que toca aos factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, havendo, apenas, que acrescentar que, em relação a esta, há, ainda, que provar os factos que indicam o dano e o nexo causal entre o dano e o facto ilícito”. Deste modo, para além da crítica de fundo ao sentido daquela conclusão, afigura-se evidente para a Recorrente que não está vertida, com clareza, objetividade e discriminadamente, a necessária base legal e o raciocínio lógico percorrido pelo Tribunal para se concluir que “a acção popular tem uma natureza que não se presta a ou que se mostra mesmo incompatível com a adesão do pedido de indemnização civil ao processo-crime, pelo que a hipótese da incompetência do tribunal cível com fundamento na sua violação é uma hipótese que deve ser rejeitada”. E não cumpre a imposição legal de fundamentação a invocação do Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro, pois, para além de este regime não ser aqui aplicável (cf. artigo 24.º), tampouco pretendeu disciplinar, nem disciplina, o processamento das ações coletivas previstas naquele diploma, as quais, tal como a presente, continuam a regular-se pelo disposto na LAP (ex vi artigo 21.º), não havendo, pois e ao contrário do afirmado no Acórdão reclamado, nenhuma novidade legislativa que permita entender aquele diploma como uma “atualização” do regime aplicável às ações populares. Por fim, do ponto de vista teleológico, é sabido que o princípio da adesão é “uma opção de política legislativa que foi consagrada no nosso sistema jurídico-penal, atenta a complexidade do facto material(infração penal)que dá origem à ação penal e à ação cível e a necessidade de assegurar uma posição de equilíbrio entre os interesses públicos de segurança e certeza jurídicas, de celeridade e de proteção das vítimas, que ditaram a regra da adesão obrigatória da ação civil à ação penal, e os interesses dos lesados, permitindo-lhes, nas situações taxativamente previstas nas alíneas a) a i) do nº1 do artigo 72º do Código de Processo Civil, a dedução do pedido de indemnização civil, em separado, ou seja, a instauração, perante o tribunal civil, de ação de responsabilidade civil fundada na prática de um crime” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.5.2020, Proc. n.º 900/19.4T8CTB-A.C1.S1, publicado em www.dgsi.pt). Introduzindo agora pelo Acórdão recorrido uma interpretação, que constitui uma excepção àquele princípio, é claramente insuficiente justificá-la com vagas referências à natureza da ação popular, sem sequer procurar evidenciar a fundamentação da decisão em face dos princípios e equilíbrio entre eles, que foi prosseguido pelo legislador. Desta sorte, entende a Recorrente que o acórdão enferma da nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, por falta de fundamentação do segmento em que interpretou que a acção popular tem uma natureza que não se presta à aplicação estrita do princípio da adesão, pelo que não pode julgar-se verificada a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria do tribunal cível com fundamento na violação do artigo 71.° do CPP. Nestes termos e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser verificada a nulidade do douto Acórdão, por falta de fundamentação, quando não por obscuridade da fundamentação, devendo, em consequência, ser proferida nova decisão sobre o objeto do recurso subordinado da Ré”. 3. Respondeu a autora / recorrente independente Citizens’Voice – Consumer Advocacy Association nos seguintes termos: “Dispõe o artigo 616 (2), do CPC que: Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz: a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; O primeiro requisito processual imposto pela norma supra transcrita consiste na ausência de recorribilidade da decisão que se pretende reformar. Ora, no caso em apreço, sem dúvida, estamos perante uma decisão que, proferida em última instância, por acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, não admite recurso. Portanto, está preenchido tal requisito. Em seguida, cumprirá determinar se estamos perante qualquer dos casos elencados nas alíneas (a) e (b) do preceito em análise, pois só nesses casos (e apenas nesses) será admitida a reforma da decisão. Refira-se, a título introdutório, que o incidente de reforma da decisão – uma impugnação do decidido – consagrado pelo legislador no artigo 616 do CPC visa precisamente os casos em que, não cabendo recurso da decisão, é necessário proceder à reforma da decisão, nomeadamente, por nela ter ocorrido um erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos. Este específico fundamento do incidente de reforma, foi introduzido pelo legislador no Ordenamento Jurídico – como, aliás, expressamente, enunciou no preâmbulo do diploma legal que o consagrou (decreto lei 329-A/95, de 12 de Dezembro): sempre na preocupação de realização efetiva e adequada do direito material e no entendimento de que será mais útil, à paz social e ao prestígio e dignidade que a administração da Justiça coenvolve, corrigir que perpetuar um erro juridicamente insustentável, permite-se, embora em termos necessariamente circunscritos e com garantias de contraditório, o suprimento do erro de julgamento mediante a reparação da decisão de mérito pelo próprio juiz decisor, ou seja, isso acontecerá nos casos em que, por lapso manifesto de determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica, a sentença tenha sido proferida com violação de lei expressa Ou como ensina o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 24.10.2026, processo 06A2735, em que foi mui ilustre relator o Colendo Juiz Conselheiro, Senhor Dr. Sebastião Póvoas (destaque nosso): [d]izendo buscar maior economia processual, no evitar a interposição de recursos, ou suprir a impossibilidade legal de recorrer, o legislador conferiu ao juízo “a quo” a possibilidade de corrigir uma situação de erro notório e, assim, repor a legalidade. Ora, no caso sub judice, não se verifica qualquer erro, muito menos grosseiro, mas sim, apenas um desacordo da ré, quanto à interpretação da lei. Mesmo que, sem conceder, mas por mero exercício, se considerar-se que o acórdão inculca numa qualquer interpretação errada da lei, tal nunca seria um erro judiciário, mas apenas um erro de julgamento, o que não é suficiente para permitir tal reforma. Dispõe o artigo 2 da CRP, estatui o princípio do Estado de direito democrático, que tem com uma das vertentes o princípio da segurança jurídica, tal como deduzido pelo Tribunal Constitucional, acórdão 294/2003: [a] segurança jurídica consiste num princípio inerente ao Direito e que supõe um mínimo de certeza, previsibilidade e estabilidade das normas jurídicas de forma que as pessoas possam ver garantida a continuidade das relações jurídicas onde intervêm e calcular as consequências dos atos por elas praticados, confiando que as decisões que incidem sobre esses atos e relações tenham os efeitos estipulados nas normas que os regem. Existem várias dimensões dessa segurança jurídica, tanto objetivas, como subjetivas. Uma delas, subjetiva, é a do princípio da proteção da confiança (vide acórdãos 287/90 e 188/2009 do Tribunal Constitucional), que censura alterações súbitas, arbitrárias e altamente gravosas de normas em cuja continuidade os cidadãos tenham depositado expectativas legítimas que tenham sido alimentadas pelos poderes públicos. E nesse sentido, em decorrência do referido princípio constitucional, que deveremos apreciar o acórdão reformando e, nessa perspectiva, não se pode apontar ao mesmo um manifesto e grosseiro erro, que afronte os direitos fundamentais ou direito da União Europeia ou qualquer outro direito que ferido se traduzisse num erro judiciário. Existe, sim, um mero desacordo da ré, o que se entende, porquanto saiu vencida (e não gostou) na questão apreciada. Salvo o devido respeito, pois não nos cabe apreciar o trabalho do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, mas não podendo deixar de dizer que o acórdão reformando mais do que aplicar corretamente a lei e alcançar uma decisão justa - fim último -deveria convencer todas as partes, mesmo a vencida, pela robustez e clareza da decisão. Por fim, o que parece que pretende a ré com a reforma era aclaração da sentença prevista no artigo 669 do anterior Código de Processo Civil, porquanto, segundo melhor se percebe do pedido de reforma, o que reclama é de uma alegada ambiguidade / obscuridade da decisão. Ora, tal cai, atualmente, por força do artigo 616, na reforma por cia da nulidade prevista no artigo 615 (1) do CPC, pelo que aí andou bem a ré. Contudo, para que tal nulidade possa operar, terá de se verificar tal ambiguidade / obscuridade de tal forma gritante que torne a decisão ininteligível. Como se defendeu supra, o acórdão para além de justo tem a qualidade de convencer (deveria) mesmo a parte vencida pela qualidade doa argumentos e interpretação da lei, como na forma clara como transmite a decisão. A interpretação do conteúdo do texto do acórdão, é claro, linear, completo e fácil de entender para qualquer pessoa média, mesmo que sem formação em direito. Destarte, não se verifica qualquer causa de nulidade. Termos ex vi supra, deve a presente reforma ser considerada inadmissível”. * Aprecie-se as arguições de nulidade contidas na presente reclamação. * A) “[q]uanto à excepção da falta de personalidade judiciária da Ré” 1. Da(s) “nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC [quando não a nulidade revista pela al. d)]” – por ambiguidade ou obscuridade e falta de pronúncia Diz a reclamante, no essencial, o seguinte: - “no Relatório, não consta qualquer materialidade fáctica, mas sim a citação do teor do despacho saneador e das conclusões do recurso da Autora e do recurso subordinado da Ré” - “na fundamentação da decisão sobre a personalidade judiciária, é feita uma apreciação sobre apenas parte do alegado pela Autora, omitindo, por exemplo, qualquer referência a outros excertos das peças processuais da Autora e atinentes à “sucursal” como ente demandado”, sendo que certas “afirmações categóricas da Autora quanto à “sucursal”, as quais não permitem outra interpretação que a constante da douta sentença recorrida, não foram apreciadas pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça aquando da prolação do douto Acórdão, o que é evidente em face da total omissão no texto àquelas afirmações da Autora”. - “Considera, assim, a Recorrente, que se impõe, nos termos do art.º 616.º, n.º 2 do CPC, reformar o douto Acórdão, ponderando-se também aqueles pontos e sopesando o conjunto da factualidade, confirmando-se a sentença recorrida”. - “Sem prescindir, afigura-se que, ao não apreciar aquela factualidade, o douto Acórdão não compatibilizou toda a matéria de facto adquirida, como se impunha (art.º 607.º, n.º 4 do CPC), não ficando assim claro por que razão sopesou apenas as passagens que citou e não também as supratranscritas, as quais apontam para o sentido contrário da decisão”. Conclui a reclamante que “a fundamentação [se] tornou[] ambígua, quando não obscura, tornando a decisão ininteligível em face da posição que a própria Autora vinha tomando nos autos, pelo que se verifica o vício da nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC (quando não a prevista pela al. d), porquanto não há verdadeira pronúncia quando a decisão apenas contém uma apreciação dos factos favoráveis para a decisão, não revelando o conhecimento e qualquer juízo sobre os factos contrários)”. Deve circunscrever-se a alegação à arguição de nulidades pois é isso – e só isso – que é possível apreciar na presente reclamação (cfr. artigo 613.º, n.º 2, do CPC). Diga-se, de qualquer forma (para que conste), que o Supremo Tribunal de Justiça não conhece – não pode nem deve conhecer – da matéria de facto ou, pela positiva, a regra é a de que apenas conhece de matéria de direito, excepto nos casos previstos na lei (cfr. artigo 46.º da LOTJ). Veja-se, então, da(s) alegada(s) nulidade(s). Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, als. c) e d), do CPC: “1 - É nula a sentença quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. No Acórdão ora reclamado a questão a decidir que havia sido suscitada no recurso independente da autora era a de saber se a demandada carece de personalidade judiciária. Decidiu-se que a intenção da autora era de demandar a ré por isso não podia julgar-se verificada a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária. E decidiu-se isto porque, como é por todos sabido, a legitimidade processual dos sujeitos da relação controvertida é aferida pela relação controvertida tal como a configura o autor (cfr. artigo 30.º, n.º 3, do CPC) e da leitura das peças relevantes, designadamente a petição inicial, resultou a convicção deste Tribunal de que a autora pretendia demandar a ré Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A. Resulta esta motivação, de forma clara, escorreita e lógica, da fundamentação expendida no Acórdão. Há nulidade por ambiguidade ou obscuridade geradora da ininteligibilidade da decisão – só há nulidade por ambiguidade ou obscuridade geradora da ininteligibilidade da decisão – quando a decisão não seja compreensível perante um declaratário normal (cfr. artigos 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC), ou seja, quando este não possa retirar da decisão um sentido unívoco, nem por recurso à fundamentação. Há nulidade por falta de pronúncia – só há nulidade por falta de fundamentação – quando alguma ou algumas das questões que devessem ser respondidas não obtenham resposta. É manifesto que não existe a ambiguidade ou obscuridade de que se fala no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, nem muito menos a falta de pronúncia prevista na al. d), 1.ª parte, da mesma norma. A reclamante pode ou não – como parece – concordar com o resultado da ponderação retirado por este Supremo Tribunal e com a decisão daí resultante, mas isso já não é questão que ela possa, nesta altura, suscitar. 2. Da “nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. d), segunda parte, do CPC” – por excesso de pronúncia Relativamente a este ponto, o raciocínio da reclamante é, no essencial, o seguinte: - “refere-se no douto Acórdão que «mesmo que entendesse que a autora havia demandado exclusivamente a "sucursal" e não - nem sequer adicionalmente -a Pingo Doce Distribuição Alimentar, S.A., o juiz deveria, em observância do princípio da economia processual, da necessidade de evitar a realização de actos inúteis (cfr.artigo130.°doCPC)e, acima de tudo, do seu dever de gestão processual [cfr., em especial, os artigos 6.°, n.° 2, e 590.°, n.° 2, al. a), do CPC], considerar a hipótese de suprimento da falta da legitimidade processual nos termos legais aplicáveis»”. - “não podia o Mm.º Juiz de Direito considerar a hipótese de suprimento da falta da legitimidade processual, com o apelo ao dever de gestão processual, pois tal vício não pode ser suprido, como assinalado no supra citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e pelo Mm.º Juiz de Direito”. Conclui a reclamante que “a amplitude conferida pelo douto Acórdão sob reclamação ao dever de gestão processual não tem cabimento legal, pelo que o entendimento vertido no Acórdão enferma da nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. d), segunda parte, do CPC”. Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC: “1 - É nula a sentença quando: (…) d) O juiz [] conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Há nulidade por excesso de pronúncia – só há nulidade por excesso de pronúncia – quando o tribunal conheça de questões que, não tendo sido suscitadas pelas partes, tão-pouco sejam de conhecimento oficioso. Como se disse atrás, a questão a decidir proveniente no recurso independente da autora era a de saber se a demandada carece de personalidade judiciária. E foi esta – e apenas esta – a questão suscitada no recurso independente da autora – que foi respondida, nos termos igualmente vistos atrás. Visivelmente, este Supremo Tribunal não conheceu de qualquer questão de que não pudesse tomar conhecimento. Não tendo o Tribunal conhecido de qualquer questão de que não pudesse tomar conhecimento, não há nulidade por excesso de pronúncia. Se bem se compreende, aquilo com que a reclamante não se conforma é com o facto de este Supremo Tribunal ter feito uso de um poder-dever que legalmente lhe está atribuído e de o resultado deste exercício não ter sido o que mais a favorece. Por isso a reclamante põe em causa a oportunidade daquele exercício no caso em concreto. A reclamante pode ou não – como parece – considerar oportuno exercício do poder-dever de gestão processual por este Supremo Tribunal e com o seu resultado, mas isso já não é questão que ela possa, nesta altura, suscitar (cfr. artigo 613.º, n.º 1, do CPC). B) “Quanto ao recurso subordinado da Ré” 3. Da(s) “nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, se é que não se está perante [ ] a nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC” – por falta de fundamentação e ambiguidade ou obscuridade da decisão Sustenta, mais precisamente, a reclamante que: - “as normas invocadas não permitem fundamentar a interpretação realizada e, inclusive, algumas asserções carecem da necessária fundamentação, clara e objetiva, do entendimento e decisão deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça”. - “Não existe, pois, qualquer suporte legal que sustente a afirmação de que exercício da ação popular para obter uma indemnização para o lesado ou os lesados, deva ser sempre exercido autonomamente, ainda que a violação dos interesses previstos no artigo 1.º revista natureza penal, o que convoca para o princípio ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”. - “a interpretação produzida no douto Acórdão carece de fundamentação, pelo que violou os artºs. 205.º, n.º 1 da CRP e 154.º do CPC, estando, em consequência, inquinados com a nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, se é que não se está perante uma situação de ambiguidade (tendo em conta a falta de correspondência da interpretação com os textos legais nos quais se suporta), tendo sido cometida, nesse caso, a nulidade prevista no art.º 615.º, n,º 1, al. c) do CPC”. - “concluiu-se, ainda, no douto Acórdão objeto da presente reclamação que ‘a acção popular tem uma natureza que não se presta a ou que se mostra mesmo incompatível com a adesão do pedido de indemnização civil ao processo-crime, pelo que a hipótese da incompetência do tribunal cível com fundamento na sua violação é uma hipótese que deve ser rejeitada’”. -“Tal afirmação, não sustentada em qualquer norma legal e não estando sequer demonstrado o caminho lógico do raciocínio percorrido para se chegar essa conclusão, não cumpre ostensivamente o dever de fundamentação (art.º 205.º, n.º 1 da CRP e art.º 154.º do CPC), traduzindo-se numa mera apreciação ou conclusão opinativa, sem possibilidade de ser juridicamente escrutinada, pelo que o douto Acórdão enferma de nulidade (artºs. 615.º, n.º 1, als. b) e c) do CPC)” - “O entendimento vertido no douto Acórdão, segundo o qual a dedução do pedido de indemnização civil em processo penal “não se presta” ou “se mostra mesmo incompatível” com o exercício do direito de ação popular, tem de ser fundamentado, não só porque tais afirmações carecem de ser explicadas, mas também porque parecem presumir que o legislador não consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (violando-se, assim, o art.º 9.º, n.º 3 do Código Civil)”. - “Acresce que, a posição assumida no douto Acórdão, parece divergir da orientação seguida pela Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (…)”. - “afigura-se evidente para a Recorrente que não está vertida, com clareza, objetividade e discriminadamente, a necessária base legal e o raciocínio lógico percorrido pelo Tribunal para se concluir que ‘a acção popular tem uma natureza que não se presta a ou que se mostra mesmo incompatível com a adesão do pedido de indemnização civil ao processo-crime, pelo que a hipótese da incompetência do tribunal cível com fundamento na sua violação é uma hipótese que deve ser rejeitada’”. - “E não cumpre a imposição legal de fundamentação a invocação do Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro, pois, para além de este regime não ser aqui aplicável (cf. artigo 24.º), tampouco pretendeu disciplinar, nem disciplina, o processamento das ações coletivas previstas naquele diploma, as quais, tal como a presente, continuam a regular-se pelo disposto na LAP (ex vi artigo 21.º), não havendo, pois e ao contrário do afirmado no Acórdão reclamado, nenhuma novidade legislativa que permita entender aquele diploma como uma “atualização” do regime aplicável às ações populares”. - “Introduzindo agora pelo Acórdão recorrido uma interpretação, que constitui uma excepção àquele princípio, é claramente insuficiente justificá-la com vagas referências à natureza da ação popular, sem sequer procurar evidenciar a fundamentação da decisão em face dos princípios e equilíbrio entre eles, que foi prosseguido pelo legislador”. - “Desta sorte, entende a Recorrente que o acórdão enferma da nulidade prevista pelo art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, por falta de fundamentação do segmento em que interpretou que a acção popular tem uma natureza que não se presta à aplicação estrita do princípio da adesão, pelo que não pode julgar-se verificada a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria do tribunal cível com fundamento na violação do artigo 71.° do CPP”. Como se disse, deve circunscrever-se a alegação à arguição de nulidades (cfr. artigo 613.º, n.º 2, do CPC). Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, als. b) e c), do CPC: “1 - É nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”. A questão suscitada no recurso independente da ré era a de saber se o tribunal cível (in casu: o Juízo Central Cível de Braga) carecia de competência material para a presente acção. Decidiu-se esta questão (re)afirmando-se a competência material do tribunal. A fundamentação foi a seguinte: “(…) do disposto no artigo 52.º, n.º 3, da CRP1 e nos artigos 1.º e 12.º, n.º 2, da Lei n.º 83/95, de 31.08 (direito de acção procedimental e de acção popular) resulta que o exercício da acção popular para alguma das finalidades que lhe estão assinaladas, entre as quais a de obter uma indemnização para o lesado ou os lesados, é sempre exercido autonomamente, ainda que, como se diz no artigo 25.º da referida lei, a violação dos interesses previstos no artigo 1.º revista natureza penal. Nesta medida, é possível dizer que a hipótese a que se dirige o artigo 71.º do CPP (princípio de adesão) é a de um pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, enquanto o que está em causa na acção popular (e ainda que o único pedido nela deduzido seja a indemnização baseada na violação dos interesses previstos no n.º 1 da Lei n.º 83/95 que revista natureza penal) é o exercício de um direito de natureza distinta – o direito de acção popular. Este é exercido sempre nos termos daquela lei, correspondendo-lhe uma tramitação própria e, em certa medida, autónoma. Confirma esta leitura o recente regime das acções colectivas para protecção dos interesses dos consumidores – o DL n.º 114-A/2023, de 5.12 –, onde se regulam as numerosas especificidades que as caracterizam2. Ora, estas acções colectivas são, incontestavelmente, próximas da acção popular, podendo dizer-se que a disciplina delas consubstancia, de certa forma, uma “actualização” da disciplina desta última. Para isto apontam as palavras de Teixeira de Sousa quando diz: “A primeira observação que importa fazer respeita ao âmbito sectorial da transposição. O que se pretende dizer, enfim, é que a acção popular tem uma natureza que não se presta a ou que se mostra mesmo incompatível com a adesão do pedido de indemnização civil ao processo-crime, pelo que a hipótese da incompetência do tribunal cível com fundamento na sua violação é uma hipótese que deve ser rejeitada”. Quer isto dizer, em suma, que, interpretada a legislação relevante, este Supremo Tribunal concluiu que o princípio da adesão não tinha aplicabilidade no quadro da acção popular e que a acção podia e devia prosseguir no tribunal cível. Apresentaram-se, na fundamentação do Acórdão, os argumentos de forma clara, escorreita e lógica, destacando-se: - a natureza específica do direito de acção popular, ao qual corresponde tramitação própria e autónoma; e - a proximidade das acções populares com as acções colectivas, em que a questão é tratada e cuja disciplina pode ser vista – é vista por este Supremo Tribunal – como sendo aplicável às primeiras. Há nulidade por falta de fundamentação – só há nulidade por falta de fundamentação – quando há uma total ausência dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Há nulidade por ambiguidade ou obscuridade geradora da ininteligibilidade da decisão – só há nulidade por ambiguidade ou obscuridade geradora da ininteligibilidade da decisão – quando a decisão não seja compreensível perante um declaratário normal (cfr. artigos 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC) ou seja, quando este não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar. É manifesto que não há uma nem outra nulidade. Depois de tudo, reforça-se a convicção de que aquilo que a reclamante pretende é impugnar o mérito de mais esta decisão do Supremo Tribunal e obter uma nova decisão, que lhe seja mais favorável. Mas isso, como se vem dizendo, é coisa que não pode ter lugar (cfr. artigo 613.º, n.º 2, do CPC). Aqui chegados, deve dizer-se que, tendo sido analisadas, uma a uma, as causas de nulidade da decisão por ela arguidas (ou, como pedia, a final, a reclamante, “a nulidade do douto Acórdão, por falta de fundamentação, quando não por obscuridade da fundamentação”), se dá por inverificada qualquer nulidade do Acórdão. * DECISÃO Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação. * Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. * Lisboa, 28 de Maio de 2025 Catarina Serra (relatora) Maria da Graça Trigo Ana Paula Lobo ______
1. Dispõe-se nesta norma: “É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”. 2. Cfr., sobre este regime e as suas especificidades, Maria José Capelo, “Ações coletivas para defesa dos interesses dos consumidores — Primeiras impressões sobre a transposição portuguesa da Diretiva (EU) 2020/1828”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 2024, n.º 4045, pp. 250 e s. 3. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, “A transposição da Diret. 2020/1828 pelo DL 114-A/2023, de 5/12: dúvidas e perplexidades” (https://blogippc.blogspot.com/2023/12/a-transposicao-da-diret-20201828-pelo.html). |