Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
176/19.3GBETR.P1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
OMISSÃO DE AUXÍLIO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 11/19/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. É requisito substancial de admissibilidade do recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, a oposição expressa entre a decisão recorrida e o acórdão de fixação de jurisprudência, quanto à mesma questão de direito, perante idêntica situação de facto.

II. É jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça que a oposição expressa referida significa que a decisão recorrida deve ser proferida contra a jurisprudência fixada, isto é, a decisão tem de, na sua fundamentação, questionar a validade de tal jurisprudência, deixando claramente afirmada a posição da sua não aceitação, não bastando, para se ter por verificada a oposição, que a decisão recorrida não convoque a jurisprudência fixada ou não a aplique, v.g., por erro de direito.

III. Não tendo a 1ª instância comunicado ao arguido, nos termos do art. 358º, nº 1, do C. Processo Penal, os factos que entende terem sido acrescentados na sentença proferida, para completarem os elementos em falta, na acusação, quanto ao tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física por negligência por cuja prática foi condenado, é evidente que não usou o mecanismo processual previsto na norma citada, para suprir a apontada omissão, sendo certo que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 20 de Novembro de 2014 fixou jurisprudência no sentido de impedir a utilização da norma em referência com tal finalidade.

IV. Não existindo oposição expressa [nem tácita] de julgados, entre o acórdão recorrido e o Acórdão nº 1/2015, de 20 de Novembro, não se mostra verificado este imprescindível requisito substancial de admissibilidade do recurso extraordinário, o que, nos termos do art. 441º, nº 1 do C. Processo Penal, determina a sua rejeição.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

O recorrente AA, com os demais sinais nos autos vem, nos termos e para os efeitos do art. 446º do C. Processo Penal, interpor recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 10 de Julho de 2024, já transitado em julgado, proferido no processo nº 176/19.3GBETR.P1.

No termo da motivação formulou as seguintes conclusões:

A) Salvo sempre o devido respeito por opinião em contrário, entende o Arguido/Recorrente AA que, a não observância pelos Tribunais de 1ª e 2ª instância da jurisprudência fixada no ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR do STJ n.º 1/2015, constituem decisões contra ela proferida nos termos supostos pelo art. 446.º, n.º 1, do CPP., a fundamentar o presente recurso;

B) Na Sentença proferida pelo Tribunal 1ª instância, o Arguido foi condenado por factos diversos dos que constavam da acusação;

C) Não constava da acusação os factos dados comos provados pelo Tribunal sob o ponto 10 - Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, e 11 - AA apercebeu-se que, em consequência do seu ato, o assistente se estatelou no asfalto, mas não se deslocou junto do mesmo para providenciar alguma ajuda de que precisasse;

D) E, porque a acusação pública não continha total ou parcialmente os elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito é que explica a decisão do Tribunal de 1ª instância, confirmada pela 2ª instância, de fazer constar na decisão sobre a matéria de facto, factos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito imputado ao Arguido/Recorrente AA;

E) Razão pela qual, a respetiva decisão está em oposição com a jurisprudência fixada no Acórdão UNIFORMIZADOR do STJ n.º 1/2015;

F) A factualidade vertida nos mencionados pontos 10 e 11 da decisão sobre a matéria de facto são novos, pois não constava do objeto da acusação/pronúncia, e não são autonomizáveis, razão pela qual, o seu aditamento constitui alteração substancial dos factos;

G) Trata-se, em consequência, de factualidade que, ao nível subjetivo, não tem qualquer coincidência com a que constava a acusação e que traduz uma alteração substancial dos factos não comunicada previamente ao Arguido nos termos prevenidos no artigo 359º, nº 1 e nº 3 do Código de Processo Penal, e, que o Tribunal não podia tomar em conta para o efeito de condenação do Arguido, por violar o princípio do acusatório e, as garantias de defesa do Arguido/Recorrente AA;

H) Não sendo admissível que os elementos subjetivos do tipo, não estando descritos na acusação publica, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos;

I) E, não tendo o Tribunal na fase de saneamento rejeitado a acusação, por manifestamente infundada, não poderia ter integrado aqueles elementos subjetivos do tipo de ilícito no julgamento;

J) Concomitantemente, não deveria ter o Tribunal da Relação do Porto ter confirmado a decisão recorrida, a qual foi proferida contra a jurisprudência fixada no ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DO STJ N.º 1/2015;

K) Pelo exposto, não tendo a decisão recorrida observado a invocada Jurisprudência, nem a aceite, antes a afrontando, deverá o ato recorrido ser reformado em conformidade com a Jurisprudência Fixada.

TERMOS EM, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE O ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA FIXADA PELO ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DO STJ N.º 1/2015, publicado no DR Série I, de 27.01.2015, TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.

*

O recurso foi admitido por despacho de 3 de Dezembro de 2024.

*

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto do Tribunal da Relação do Porto respondeu ao recurso, alegando, em síntese, que o recorrente recorre do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Julho de 2024 que confirmou a decisão sumária do Relator de 4 de Junho de 2024 que, por sua vez, confirmou a sentença da 1ª instância, que o condenou, na parte em que, para o caso releva, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts. 15º, a), 26º, 1ª proposição e 148º, nº 1, todos do C. Penal, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 6, perfazendo a multa global de € 420, que o recorrente entende que os tribunais da 1ª e 2ª instância não observaram a jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 1/2015, pois que na sentença da 1ª instância foi condenado por factos referentes ao elemento subjectivo do tipo que não constavam da acusação, e que não são autonomizáveis pelo que, o seu aditamento, constitui uma alteração substancial dos factos não comunicada nos termos do art. 359º do C. Processo Penal, razões pelas quais não deveria a Relação ter confirmado aquela sentença, que nem a 1ª instância, nem a Relação, afrontaram o Acórdão Uniformizador, pois os factos especificados pelo recorrente constavam, de forma implícita, mas inequívoca, da acusação, sendo aliás, factos meramente instrumentais, acrescendo que a 1ª instância, quanto a eles deu oportuno cumprimento ao disposto no art. 358º do C. Processo Penal e que o recorrente veio a ser condenado pelo crime que lhe era imputado na acusação, e concluiu pelo não provimento do recurso.

*

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Supremo Tribunal de Justiça, na vista a que alude o art. 440º, nº 1, do C. Processo Penal, emitiu parecer onde, além do mais, afirmou que em momento algum a decisão da Relação, ponderando e decidindo a nulidade invocada pelo recorrente, versou sobre a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador, não tendo aquela decisão sido proferida, nem expressa nem tacitamente, contra aquela jurisprudência, o que inviabiliza a formulação de um juízo de oposição entre ambos os julgados, e concluiu,

III Em síntese:

Não foi proferida decisão contra jurisprudência fixada, pois que a decisão recorrida, além de não desaplicar expressamente o AUJ 1/2015 – decidindo, aliás, fora do seu espaço de normatividade –, não versou sobre como o suprir da omissão da narração na acusação dos pressupostos de facto atinentes ao elemento subjectivo do crime, mas, isso-sim, sobre uma mera pormenorização desses factos e doutros:

Motivo por que o presente recurso deve ser rejeitado.

IV Em conclusão:

-Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

Deve ser rejeitado o presente recurso de decisão contra jurisprudência fixada.

Assegurado o contraditório, o recorrente respondeu ao parecer, alegando, em síntese, que não pode concluir-se pela inexistência de oposição de decisões apenas porque o acórdão da Relação não fez referência à existência, ou não, de inobservância do Acórdão Uniformizador, reafirmando, depois, a argumentação essencial levada ao requerimento inicial, e concluiu pela procedência do recurso.

*

*

Foi realizado o exame preliminar referido no nº 1 do art. 440º do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência.

*

Cumpre decidir.

*

*

*

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

Âmbito do recurso

A questão objecto do recurso, tal como é configurada pelo recorrente, consiste em saber se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Julho de 2024, que confirmou a decisão sumária do Exmo. Juiz Desembargador relator de 4 de Junho de 2024 que, por sua vez, havia confirmado a sentença condenatória da 1ª instância de 19 de Dezembro de 2023, violou a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 27 de Janeiro (DR nº 18/2015, I, de 27 de Janeiro de 2015), no sentido de, «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.».

*

Da verificação dos requisitos do recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada

1. O recurso extraordinário de fixação de jurisprudência encontra-se regulado nos arts. 437º a 448º do C. Processo Penal, onde podem distinguir-se três distintas espécies, o recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio, o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada e o recurso no interesse da unidade do direito.

O recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio radica na necessidade de compatibilizar a independência e liberdade do juiz na interpretação da norma, por definição, geral e abstracta, ao caso concreto, e a diversidade de interpretações, dando origem a que casos concretos iguais obtenham diferentes soluções de direito. Visa, pois, alcançar uma interpretação uniforme da lei.

Tendo natureza excepcional, a interpretação das normas que o regulam deve ser feita de acordo com tal natureza, de forma a não se transforme num recurso ordinário (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, Rei dos Livros, 2020, pág. 201).

Já o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada se reconduz a um instrumento de controlo de decisões judiciais contrárias a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de terem tais decisões passado a ser admissíveis, desde que nelas tenha sido observado o especial dever de fundamentação da divergência, previsto no nº 3 do art. 445º do C. Processo Penal.

Na realidade, aqui não encontramos um efectivo recurso para fixação de jurisprudência, pois não existe qualquer conflito a decidir, mas um meio processual vocacionado para a protecção da jurisprudência anteriormente fixada, e que também possibilita o seu reexame, em determinadas circunstâncias (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, op. cit., pág. 227).

2. O regime específico do recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada encontra-se previsto no art. 446º do C. Processo Penal que dispõe:

1 – É admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo.

2 – O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

3 – O Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada.

a. Assim, são requisitos formais de admissibilidade do recurso:

i) A legitimidade do recorrente – pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público;

ii) A tempestividade – deve ser interposto no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida;

iii) O trânsito em julgado da decisão recorrida.

b. E são requisitos substanciais de admissibilidade do recurso:

i) A oposição expressa entre a decisão recorrida e o acórdão de fixação de jurisprudência, quanto à mesma questão de direito, perante idêntica situação de facto;

ii) Terem, decisão recorrida e acórdão de fixação de jurisprudência, sido proferidos no domínio da mesma legislação, portanto, quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

Neste âmbito, cabe deixar claro que a oposição expressa em referência significa que a decisão recorrida deve ser proferida contra a jurisprudência fixada, isto é, deve, na sua fundamentação questionar a bondade de tal jurisprudência, deixando claramente afirmada a posição da sua não aceitação.

Não basta, assim, para se ter como verificada a oposição, que a decisão recorrida não convoque a jurisprudência fixada ou não a aplique, designadamente, por erro de direito (Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de processo Penal, Tomo V, obra colectiva, 2024, Almedina, págs. 492-493 e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Março de 2022, processo nº 1509/16.0PTLSB.L1.S1, de 3 de Novembro de 2021, processo nº 570/19.0T9AGD.P1-A.S1, de 11 de Março de 2021, processo nº 5836716.8T9LSB-A.S1 e de 29 de Outubro de 2020, processo nº 185/19.2T9PTL-E.G1-A.S1, in www.dgsi.pt).

Dito isto.

3. O recurso foi interposto pelo arguido estando, pois, assegurada a legitimidade do recorrente.

Conforme certidão junta aos autos, o acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 10 de Julho de 2024 e notificado electronicamente ao recorrente a 11 de Julho de 2024. O recorrente arguiu a nulidade do acórdão de 10 de Julho de 2024, por omissão de pronúncia, mediante requerimento apresentado a 10 de Setembro de 2024. Esta nulidade foi indeferida por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Outubro de 2024, notificado electronicamente ao recorrente em 24 de Outubro de 2024. Assim, o acórdão de 10 de Julho de 2024 transitou em julgado em 10 de Novembro de 2024.

O presente recurso foi interposto a 28 de Novembro de 2024 [com pagamento de multa], sendo, portanto, tempestivo.

Estão, pois, verificados os requisitos formais de admissibilidade do recurso.

4. Atentemos agora na verificação dos seus requisitos substanciais, começando por fazer referência ao que, de relevante para a questão a decidir, consta do acórdão recorrido [e da decisão sumária que teve por objecto].

a. A matéria de facto provada relevante, resultante da certidão junta, é a seguinte:

A

Por sentença proferida no processo comum singular nº 176/19.3GBETR, foi o recorrente condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts. 15º, a), 26º, 1ª proposição, e 148º, nº 1, todos do C. Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz a multa global de € 420 (quatrocentos e vinte euros);

B

Na acusação deduzida no referido processo comum singular é narrada, além do mais, a seguinte factualidade:

7. O arguido tinha pleno conhecimento que, atento local onde se encontrava e ao ter projetado a cana de pesca à sua retaguarda, esta necessariamente invadiria a faixa de rodagem da EN 327, no sentido São Jacinto para a Torreira, e que ali podiam circular, como circulavam, veículos e mesmo assim não tomou as devidas providências de segurança de forma a evitar que alguém que ali circulasse fosse atingido com a cana de pesca.

8. O arguido não previu, mas podia e devia ter previsto, a possibilidade de, com a sua conduta, poder vir a atentar contra a integridade física das pessoas que circulassem naquela estrada.

(…)

10. O arguido tinha consciência que as lesões de outrem provocada pela sua imprevidência e falta de observância dos deveres de cuidado e de atenção que lhe incumbia e era capaz de observar, não é permitida, antes reprovada e penalmente punida.

11. Sabia o arguido que ao agir da forma descrita, podia vir atingir o assistente que circulava naquela estrada, mas confiou que tal não se verificaria.

C

Na audiência de julgamento de 24 de Outubro de 2023, do referido processo comum, o Mmo. Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:

Nos termos do disposto no art. 358º, 1, do C.P.P., o tribunal comunica aos sujeitos processuais a seguinte alteração não substancial dos factos constantes da acusação: Diferentemente ou para além do que consta da acusação, da audiência de julgamento poderá ter resultado provado que a situação ali descrita terá ocorrido entre as 08:45 horas e as 09:15 horas e que o assistente BB foi atingido pela zona da cana de pesca onde esta comporta a «chumbeira».

D

Na sentença proferida no mesmo processo comum, foi dado como provado que:

1- No dia 30 de junho de 2019, entre as 8:45 horas e as 9:15 horas, o arguido AA encontrava-se na margem da Ria de Aveiro, junto ao Parque de Campismo da Orbitur, sito na Estrada Nacional 327, na Murtosa, a exercer acto piscatório;

2- Nessa ocasião, o arguido projetou a cana de pesca à sua retaguarda, por forma a tomar o necessário balanço para lançar a linha à ria, e, dessa forma, parte daquela cana invadiu a faixa de rodagem da EN 327, no sentido São Jacinto – Torreira;

3- Acontece que, nesse momento, por ali circulava o assistente BB, ao volante da sua bicicleta, a uma velocidade aproximada de 36 km/ hora, o qual foi atingido na cabeça, onde envergava capacete, pela cana de pesca do arguido, na parte onde esta comporta a «chumbeira» ou «chumbada»;

4- Por força daquele impacto, o assistente perdeu o controlo da bicicleta e acabou por se despistar e se estatelar no chão;

5- Como consequência direta e necessária daquela queda, o assistente sofreu os seguintes ferimentos:

- No crânio: uma escoriação com 2 por 1,5 cm, de maiores dimensões na metade esquerda da região frontal do crânio;

- No membro superior direito: uma escoriação com 1 cm na face superior do ombro; uma escoriação com 3,5 por 1,5 cm de maiores dimensões na face posterior do terço distal do antebraço;

- No membro superior esquerdo: uma escoriação com 2 por 1 cm de maiores dimensões na face posterior do cotovelo; uma escoriação com 3 por 1,5 cm de maiores dimensões na face posterior do terço proximal do antebraço; uma escoriação com 1 por 1 cm de maiores dimensões na face posterior do 2º, 3º, 4º e 5º dedos; uma cicatriz hipertrófica rosada com 2 por 1 cm na face póstero-superior do ombro; uma cicatriz rosada com 1 cm no terço distal da face posterior do quarto espaço intermetacárpico;

- No membro inferior direito: várias escoriações milimétricas na face anterior do joelho; mancha cicatricial acastanhada com 5 por 3 cm de maiores dimensões na região trocantérica;

- No membro inferior esquerdo: várias escoriações milimétricas na face anterior do joelho;

6- Destes ferimentos e embora com tendência para atenuar com o passar do tempo, resultaram de forma permanente para o assistente as seguintes lesões:

- Uma cicatriz hipertrófica rosada com 2 por 1 cm na face póstero-superior do ombro;

- Uma cicatriz rosada com 1 cm no terço distal da face posterior do quarto espaço intermetacárpio e mncha cicatricial acastanhada com 5 por 3 cm de maiores dimensões na região trocantérica.

7- Tais lesões determinaram 12 dias para a consolidação médico-legal, com afetação da capacidade de trabalho geral de um dia e com afetação da capacidade de trabalho profissional de 25 dias;

8- O arguido tinha pleno conhecimento que, atento local onde se encontrava e ao ter projetado a cana de pesca à sua retaguarda, esta necessariamente invadiria a faixa de rodagem da EN 327, no sentido São Jacinto – Torreira, e que ali podiam circular veículos, e mesmo assim não tomou as devidas providências de segurança de forma a evitar que alguém fosse atingido;

9- O arguido sabia que, ao agir da forma descrita, poderia atingir qualquer ciclista que circulava naquela via, mas confiou que tal não se verificaria;

10- Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

11- AA apercebeu-se que, em consequência do seu acto, o assistente se estatelou no asfalto, mas não se deslocou junto do mesmo para providenciar alguma ajuda de que precisasse;

12- Em consequência do sobredito embate e da queda que se seguiu, o demandante sofreu os seguintes prejuízos:

- O equipamento de ciclista desfeito, cujo custo orçou no montante global de € 329,00;

- O telemóvel ficou partido, cuja reparação orçou em € 135,00;

- A bicicleta ficou partida, orçando a aquisição de uma nova no valor de € 3.284,10;

13- Devido às lesões sofridas, BB teve de receber assistência no hospital, com o que despendeu € 17,70 em taxas moderadoras;

14- O demandante esteve impossibilitado de desempenhar a sua actividade de técnico de reparação de acordeões e concertinas durante o período de afectação de trabalho profissional aludido em 7);

15- Devido ao acidente sofrido, o demandante sofreu dores e, durante algum tempo, passou a ter receio de praticar ciclismo, seu desporto preferido que lhe permite manter bem-estar físico e psíquico, o que lhe causou desgosto;

16- O arguido trabalhou como trolha/ pedreiro, por conta própria, até há cerca de um ano;

17- Em 12 de maio de 2022 foi acometido de AVC que o impossibilitou de voltar a trabalhar;

18- Aufere pensão de invalidez;

19- É casado e a esposa é reformada;

20- Reside em casa própria;

21- Possui registado a seu favor, desde 1992, um automóvel ligeiro de marca Subaru, com 1361 cm3 de cilindrada;

22- Possui de habilitações literárias a 4ª classe;

23- Do seu CRC nada consta.

E

O recorrente, inconformado com a sentença proferida, dela recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, invocando a nulidade por condenação por factos diversos dos descritos na acusação, a nulidade da acusação por ausência de narração dos factos integradores do crime imputado, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, relativamente às suas condições pessoais e económicas, o erro de julgamento por violação das regras de experiência comum, principio de presunção de inocência e princípio in dubio pro reo.

F.

Por decisão sumária de 4 de Junho de 2024, proferida pelo Exmo. Juiz Desembargador relator, foram indeferidas todas as questões suscitadas pelo recorrente, e confirmada a sentença recorrida.

G

No que respeita à arguição da nulidade da sentença por condenação por facto diversos dos descritos na acusação, escreveu-se na decisão sumária:

Alega o Recorrente que o Tribunal a quo o condenou por factos diferentes daqueles que se

encontravam descritos na acusação pública, violando o disposto no artigo 359.º, n.ºs 1 do Código de Processo Penal.

Ora, constatamos que a acusação imputou ao Recorrente um crime de ofensa à integridade

física simples por negligência, p. e p. pelos arts. 148º, 1, e 15º, a), C. Penal., vindo o mesmo a ser condenado em primeira instância pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelos arts. 15º, a), 26º, 1ª proposição, e 148º, 1, todos do C. Penal, o qual, em função da moldura penal são idênticos.

Os ditos “factos novos” em causa, constam dos pontos 10 e 11 da sentença e que o Recorrente afirma que não foram alegados em sede de acusação.

Vejamos.

Na acusação, está descrito que:

“…7. O arguido tinha pleno conhecimento que, atento local onde se encontrava e ao ter projetado a cana de pesca à sua retaguarda, esta necessariamente invadiria a faixa de rodagem da EN 327, no sentido São Jacinto para a Torreira, e que ali podiam circular, como circulavam, veículos e mesmo assim não tomou as devidas providências de segurança de forma a evitar que alguém que ali circulasse fosse atingido com a cana de pesca.

8. O arguido não previu, mas podia e devia ter previsto, a possibilidade de, com a sua conduta, poder vir a atentar contra a integridade física das pessoas que circulassem naquela estrada…”

Enquanto na sentença, pode-se ler:

“ 9 - O arguido sabia que, ao agir da forma descrita, poderia atingir qualquer ciclista que circulava naquela via, mas confiou que tal não se verificaria;

10 - Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

11 - AA apercebeu-se que, em consequência do seu acto, o assistente se estatelou no asfalto, mas não se deslocou junto do mesmo para providenciar alguma ajuda de que precisasse…”

Ora, o Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, comunicou a seguinte alteração não substancial dos factos constantes da acusação:

“Diferentemente ou para além do que consta da acusação, da audiência de julgamento poderá ter resultado provado que a situação ali descrita terá ocorrido entre as 08:45 horas e as 09:15 horas e que o assistente BB foi atingido pela zona da cana de pesca onde esta comporta a «chumbeira»”.

O arguido, devidamente representado, foi notificado deste despacho, não o tendo impugnado, e no recurso agora interposto, concorda quanto ao horário em que terão ocorrido os factos, bem como quanto à especificação da parte da cana que atingiu o assistente.

Além disso, o Recorrente alega que o Tribunal a quo acrescentou um facto que influencia o elemento subjetivo que encontra descrito na acusação pública, nomeadamente “AA apercebeu-se que, em consequência do seu ato, o assistente se estatelou no asfalto, mas não se deslocou junto do mesmo para providenciar alguma ajuda de que precisasse”.

Ora, na acusação pública encontra-se descrito, quanto ao elemento subjetivo, o seguinte:

“ 7. O arguido tinha pleno conhecimento que, atento local onde se encontrava e ao ter projetado a cana de pesca à sua retaguarda, esta necessariamente invadiria a faixa de rodagem da EN 327, no sentido São Jacinto para a Torreira, e que ali podiam circular, como circulavam, veículos e mesmo assim não tomou as devidas providências de segurança de forma a evitar que alguém que ali circulasse fosse atingido com a cana de pesca.

8. O arguido não previu, mas podia e devia ter previsto, a possibilidade de, com a sua conduta, poder vir a atentar contra a integridade física das pessoas que circulassem naquela estrada.

(…)

10. O arguido tinha consciência que as lesões de outrem provocada pela sua imprevidência e falta de observância dos deveres de cuidado e de atenção que lhe incumbia e era capaz de observar, não é permitida, antes reprovada e penalmente punida.

11. Sabia o arguido que ao agir da forma descrita, podia vir atingir o assistente que circulava naquela estrada, mas confiou que tal não se verificaria”

Por sua vez, na sentença recorrida, quanto ao elemento subjetivo, dá-se como provado o seguinte:

“8 - O arguido tinha pleno conhecimento que, atento local onde se encontrava e ao ter projetado a cana de pesca à sua retaguarda, esta necessariamente invadiria a faixa de rodagem da EN 327, no sentido São Jacinto – Torreira, e que ali podiam circular veículos, e mesmo assim não tomou as devidas providências de segurança de forma a evitar que alguém fosse atingido;

9 - O arguido sabia que, ao agir da forma descrita, poderia atingir qualquer ciclista que circulava naquela via, mas confiou que tal não se verificaria;

10 - Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

Assim, é manifesto que os factos descritos na sentença recorrida são pormenorizadores daqueles que se encontram descritos na acusação pública, atenta a prova produzida em audiência de julgamento, pelo que não sendo aduzidos quaisquer factos novos, não implicam uma alteração substancial da acusação, pois as alterações que, após a produção da prova, o Tribunal a quo introduziu, são, repetimos, a pormenorização dos factos já constantes do despacho de acusação.

Na verdade, a acusação imputou ao Recorrente um crime de ofensa à integridade física simples por negligência, p. e p. pelos arts. 148º, 1, e 15º, a), C. Penal., vindo o mesmo condenado em primeira instância pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelos arts. 15º, a), 26º, 1ª proposição, e 148º, 1, todos do C. Penal, o qual, em função da moldura penal são idênticos.

Quanto ao facto dado como provado pelo Tribunal a quo: “AA apercebeu-se que, em consequência do seu acto, o assistente se estatelou no asfalto, mas não se deslocou junto do mesmo para providenciar alguma ajuda de que precisasse”, que o mesmo “relevam para o elemento subjetivo do tipo legal de crime pelo qual o Tribunal “a quo” condenou o Arguido”, realçamos o seguinte:

Como refere o MP, no crime de ofensa à integridade física por negligência, para preenchimento do tipo subjetivo, devem ser provados factos dos quais resulte a violação do dever objetivo de cuidado, uma conduta descuidada do agente e o juízo de censurabilidade de tal conduta, pelo que o elemento subjetivo, no caso, encontra-se preenchido pelos factos dados como provados, sob os números 8, 9 e 10.

Por outro lado, o facto identificado sob o número 11 dos factos dados como provados, resulta da produção de prova levada a cabo em audiência de julgamento, mas não influi no elemento subjetivo do tipo legal de crime de ofensa à integridade física por negligência, o qual já se encontrava preenchido.

Tal facto, que descreve a atuação do arguido, após a prática do crime pelo qual vem acusado, é revelador da sua personalidade e influencia as exigências de prevenção especial, e, por

conseguinte, a escolha e a medida da pena.

Assim, não existe a invocada nulidade.

H

No que respeita à arguição da nulidade da acusação, escreveu-se na decisão sumária:

Alega igualmente o arguido AA que: “Perante a ausência, na acusação, dos elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito em causa nos autos, ao Tribunal “a quo” estava vedado proceder, na fase de julgamento, à integração dos elementos em falta, como fez através do facto dado como provado sob o ponto 10 - da decisão da matéria de facto”.

Contudo, na acusação pública encontram-se descritos os factos necessários para o preenchimento do tipo subjetivo do crime de ofensa à integridade física por negligência, do qual o arguido AA foi acusado e posteriormente condenado, encontrando-se cumprida, além do mais, a exigência imposta pela norma do artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal, inexistindo qualquer nulidade na acusação, como veremos.

Na verdade, consta na acusação que:

“7. O arguido tinha pleno conhecimento que, atento local onde se encontrava e ao ter projetado a cana de pesca à sua retaguarda, esta necessariamente invadiria a faixa de rodagem da EN 327, no sentido São Jacinto para a Torreira, e que ali podiam circular, como circulavam, veículos e mesmo assim não tomou as devidas providências de segurança de forma a evitar que alguém que ali circulasse fosse atingido com a cana de pesca.

8. O arguido não previu, mas podia e devia ter previsto, a possibilidade de, com a sua conduta, poder vir a atentar contra a integridade física das pessoas que circulassem naquela estrada.

9. As lesões sofridas pelo assistente e as consequências que daí advieram, são exclusivamente devidas à incúria, falta de cuidado e de zelo do arguido.

10. O arguido tinha consciência que as lesões de outrem provocada pela sua imprevidência e falta de observância dos deveres de cuidado e de atenção que lhe incumbia e era capaz de observar, não é permitida, antes reprovada e penalmente punida.

11. Sabia o arguido que ao agir da forma descrita, podia vir atingir o assistente que circulava naquela estrada, mas confiou que tal não se verificaria.”

Por isso, é manifesto que consta do transcrito ponto 10, que “O arguido tinha consciência que as lesões de outrem provocada pela sua imprevidência e falta de observância dos deveres de cuidado e de atenção que lhe incumbia e era capaz de observar, não é permitida, antes

reprovada e penalmente punida.”

Assim, foi consignado que por não ter procedido à observância dos deveres de cuidado e atenção a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado, e de que era capaz, o Recorrente representou como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, atuando sem se conformar com essa realização ou, pelo menos, que não chegou sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

Daqui é fácil concluir-se que acusação é suficiente para caracterizar o elemento subjetivo do tipo, posto que os factos nela descritos, só por si, conduzem a uma condenação por crime negligente.

I

O recorrente reclamou da decisão sumária para a conferência que, por acórdão de 10 de Julho de 2024, transcrevendo-a na parte tida por relevante, a confirmou.

J

O recorrente arguiu a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Julho de 2024, por omissão de pronúncia, quanto às questões da nulidade da acusação e da nulidade da sentença.

L

Por acórdão de 23 de Outubro de 2024, o Tribunal da Relação do Porto julgou improcedente a invocada nulidade.

b. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 20 de Novembro de 2014 (DR, I, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015), fixou a seguinte jurisprudência:

A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal.

Atentemos, brevitatis causa, na argumentação final apresentada pelo Supremo Tribunal de Justiça, na jurisprudência que fixou.

Considerou o nosso mais Alto Tribunal que o princípio do acusatório, na perspectiva da modificação do objecto do processo, tem como limite a alteração substancial dos factos, tal como é definida no art. 1º, f), do C. Processo Penal.

Assim, em face do que opunha acórdão recorrido e acórdão fundamento, o completamento dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do crime, incluindo o tipo de culpa, representa uma alteração essencial que, para alguma jurisprudência significa transformar uma conduta atípica numa conduta típica, o que configurará uma alteração substancial dos factos, não lhe sendo aplicável o procedimento previsto no art. 358º, mas o previsto no art. 359º, ambos do C. Processo Penal.

Sucede que, na situação, nenhum dos preceitos legais é aplicável pois, ainda que a transformação de uma conduta não punível numa conduta punível seja, neste sentido, uma alteração substancial, certo é que tal modificação não implica a imputação de um crime diverso ao agente. Na verdade, os factos acusados, nos exactos termos em que o foram, por não preencherem todos os elementos típicos, não constituem crime, o que necessariamente impõe a absolvição do acusado.

É que o regime que resulta do disposto nos arts. 358º e 359º, do C. Processo Penal tem como pressuposto que na acusação ou na pronúncia se encontrem devidamente descritos os factos integradores de todos os elementos do tipo, objectivo e subjectivo, do crime que determinou a sujeição a julgamento do respectivo agente.

Aqui chegados.

c. Entende o recorrente que as instâncias não observaram o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, ao proferirem decisões – a sentença da 1ª instância e a decisão sumária e o acórdão que a confirmou, do Tribunal da Relação do Porto – que com ela estão em oposição, pois não constava da acusação a matéria que o tribunal considerou provada, integrada nos pontos 10 [Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei] e 11 [AA apercebeu-se que, em consequência do seu ato, o assistente se estatelou no asfalto, mas não se deslocou junto do mesmo para providenciar alguma ajuda de que precisasse] dos factos provados da sentença da 1ª instância, matéria que é nova e não autonomizável, constituindo a sua consideração uma alteração substancial dos factos.

Deste modo, continua o recorrente, a matéria do ponto 10 dos factos provados, que contém a totalidade do tipo subjectivo e do tipo da culpa do crime imputado, não podia ser integrado, em julgamento, pelo recurso ao art. 358º do C. Processo Penal, pois tratando-se de alteração substancial, impunha-se a comunicação e subsequente tramitação prevista no art. 359º do mesmo código, o que não aconteceu.

Assim, a integração, na fase de julgamento, de factos necessários ao preenchimento do tipo subjectivo, que não constavam da acusação, viola o Acórdão nº 1/2015, razão pela qual não devia o Tribunal da Relação do Porto ter confirmado a sentença da 1ª instância.

Já deixámos dito, a propósito dos requisitos substanciais de admissibilidade do recurso, que a imprescindível oposição expressa entre a decisão recorrida e o acórdão de fixação de jurisprudência tem o sentido de decisão proferida contra jurisprudência fixada, e esta contrariedade só existe, quando a argumentação levada à decisão recorrida, nos termos previstos na parte final do nº 3 do art. 445º do C. Processo Penal, questione a validade da jurisprudência fixada, deixando expresso, sem margem para dúvidas, o seu não acatamento. Significa isto que não existirá a necessária oposição expressa, quando a decisão recorrida não convoque a jurisprudência fixada ou quando não a aplique, designadamente, por erro de direito, sendo este entendimento, como também já deixámos referido, pacífico na jurisprudência deste Supremo Tribunal.

In casu, o acórdão recorrido – mantendo a decisão sumária que confirmou a sentença proferida pela 1ª instância –, quando se pronunciou sobre a nulidade da acusação e quando se pronunciou sobre a nulidade da condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, e como resulta dos pontos G e H do factos relevados, não se confrontou com a jurisprudência fixada Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015 e, por maioria de razão, dele não discordou, nem tácita, nem expressamente.

Com efeito, o Tribunal da Relação do Porto, quer na decisão sumária de 4 de Junho de 2024,quer no acórdão recorrido de 10 de Julho de 2024, entendeu que a acusação, relativamente ao tipo subjectivo do crime imputado ao recorrente – ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts. 15º, a) e 148º, nº 1, do C. Penal – se encontrava regularmente deduzida, isto é, entendeu que a matéria constante dos seus artigos 7, 8, 10 e 11 integrava de forma plena o tipo subjectivo do imputado crime negligente.

Na verdade, assim é, pois os referidos artigos, de forma não modelar, diga-se, narram claramente a violação do dever objectivo de cuidado que o recorrente, na qualidade de pescador à linha, estava obrigado a observar e podia ter observado, tendo representado a realização do facto, mas actuado sem se conformar com ela [tais artigos têm a seguinte redacção: 7. O arguido tinha pleno conhecimento que, atento local onde se encontrava e ao ter projetado a cana de pesca à sua retaguarda, esta necessariamente invadiria a faixa de rodagem da EN 327, no sentido São Jacinto para a Torreira, e que ali podiam circular, como circulavam, veículos e mesmo assim não tomou as devidas providências de segurança de forma a evitar que alguém que ali circulasse fosse atingido com a cana de pesca; 8. O arguido não previu, mas podia e devia ter previsto, a possibilidade de, com a sua conduta, poder vir a atentar contra a integridade física das pessoas que circulassem naquela estrada; 10. O arguido tinha consciência que as lesões de outrem provocada pela sua imprevidência e falta de observância dos deveres de cuidado e de atenção que lhe incumbia e era capaz de observar, não é permitida, antes reprovada e penalmente punida; 11. Sabia o arguido que ao agir da forma descrita, podia vir atingir o assistente que circulava naquela estrada, mas confiou que tal não se verificaria], ou seja, traduzem uma actuação com negligência consciente.

É certo que o tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física por negligência que se encontra descrito na matéria de facto provada da sentença da 1ª instância não seguiu, passo a passo, o modelo da acusação, não sendo uma reprodução ipsis verbis dos transcritos artigos desta peça processual.

Esta circunstância não significa, porém, que os factos levadas à sentença, integradores do tipo subjectivo do crime negligente por cuja prática foi o recorrente condenado, sejam diversos daqueles outros narrados na acusação.

Na perspectiva do recorrente, o teor dos pontos 10 [Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei] e 11 [AA apercebeu-se que, em consequência do seu acto, o assistente se estatelou no asfalto, mas não se deslocou junto do mesmo para providenciar alguma ajuda de que precisasse] dos factos provados da sentença proferida pela 1ª instância, que entende estarem referidos ao tipo subjectivo do crime, são factos novos porque não constavam da acusação, e não foram comunicados, fosse nos termos do art. 358º, fosse nos termos do art. 359º, do C. Processo Penal, acrescentando, relativamente ao ponto 10, que a estereotipada referência feita na acusação a que o autor dos factos objectivos tinha conhecimento de que o seu comportamento era proibido e punido por lei se refere às lesões de terceiro, isto é, situa a representação dos factos na esfera patrimonial e não no conhecimento da proibição.

Tem razão o recorrente quando diz que a matéria dos referidos pontos 10 e 11 dos factos provados da sentença da 1ª instância não foi objecto de comunicação, nos termos e para os efeitos dos arts. 358º e 359º, do C. Processo Penal, pois que a única comunicação feita, ao abrigo do referido art. 358º, se reportou à hora em que ocorreram os factos e ao segmento da cana de pesca que atingiu o assistente.

Acontece, porém, e tal como foi entendido pelo Tribunal da Relação, que tais factos não tinham de ser notificados nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 358º e 359º, do C. Processo Penal. Explicando.

O recorrente foi acusado [e pronunciado] pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts. 15º, a) e 148º, nº 1, ambos do C. Penal, e por sentença da 1ª instância, foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts. 15º, a), 26º, 1ª proposição, e 148º, nº 1, todos do C. Penal. A referência ao art. 26º, 1ª proposição, feita na sentença precisa, apenas, que o recorrente agiu como autor [imediato], o que, em todo o caso, é irrelevante para a questão de que nos ocupamos.

Tendo o recorrente sido condenado, precisamente, pela prática do crime pelo qual vinha acusado [e pronunciado], face ao disposto no art. 1º, f), do C. Processo Penal, qualquer modificação de factos que tenha ocorrido não pode ser qualificada como alteração substancial dos factos.

Assim, desde logo carece de fundamento a invocada violação do disposto no art. 359º, do C. Processo Penal.

A matéria que integra o ponto 11 os factos provados da sentença da 1ª instância descreve a perpcepção do recorrente de ter o assistente caído no asfalto, depois de atingido pela sua [do recorrente] cana de pesca, e de não se ter abeirado deste, para o ajudar, o que significa, como bem se refere na decisão sumária do Tribunal da Relação do Porto e no acórdão que a confirmou, do mesmo tribunal, que é um acontecimento cronologicamente ocorrido de pois de se ter tornado perfeito, pela total integração dos elementos do tipo, objectivo e subjectivo, o crime de ofensa à integridade física por negligência cometido, acontecimento que claramente versa uma eventual omissão de auxílio, mas que, seguramente, e contrariamente ao pretendido pelo recorrente, nada tem a ver com os elementos subjectivos do crime por cuja prática se encontra condenado.

A matéria que integra o ponto 10 os factos provados da sentença da 1ª instância, no segmento «Agiu livre, voluntária e conscientemente, …», referida ao recorrente, não constava, já sabemos, da acusação [e da pronúncia].

O recorrente entende que este segmento, sendo inovador em sede de matéria de facto, encerra a totalidade do elemento subjectivo do tipo legal, pois traduz o conhecimento, representação e previsão das circunstâncias da factualidade típica, o conhecimento dos elementos objectivos do tipo, argumentando ainda, de forma redutora, que se a sentença da 1ª instância acrescentou o questionado segmento aos factos narrados na acusação que descreviam os elementos subjectivos do tipo do crime de ofensa à integridade física por negligência, é porque tal descrição era insuficiente para o preenchimento do tipo.

Na verdade, o transcrito segmento corresponde, na praxis judiciária, à forma genérica da descrição do dolo que, depois, é completada com outros elementos concretizadores, designadamente, quando o tipo o prevê, para o seu preenchimento, uma determinada intenção.

Acontece que o crime em causa não é um crime doloso, mas um crime negligente, razão pela qual o dito segmento nada acrescentou ao respectivo tipo subjectivo que, conforme supra dito, se encontrava descrito na acusação e que, com algum aprimoramento, é certo, passou para os factos provados da sentença.

Vale isto dizer que a alteração operada pelo acrescentamento do dito segmento aos factos provados da sentença da 1ª instância não teve interferência no preenchimento do tipo de ilícito em questão e por isso, não teve qualquer relevo para a decisão da causa.

Assim, quer pelas razões que, supra, se deixaram referidas, relativas à não verificação de alteração substancial dos factos, quer pelas que agora deixámos expressas, quanto ao segmento que vimos analisando, carece de fundamento a invocada violação do disposto nos arts. 358º e 359º, do C. Processo Penal.

A matéria que integra o ponto 10 os factos provados da sentença da 1ª instância, no segmento «… bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei», referido ao recorrente, já constava do artigo 10 da acusação [10. O arguido tinha consciência que as lesões de outrem provocada pela sua imprevidência e falta de observância dos deveres de cuidado e de atenção que lhe incumbia e era capaz de observar, não é permitida, antes reprovada e penalmente punida], sendo, aliás, incompreensível, o seu [do recorrente] expresso entendimento de que, a consciência de que se fala na acusação é a das lesões de outrem, ou seja, situa a representação dos factos na esfera patrimonial e não no conhecimento da proibição.

Deste modo, também quanto a este segmento, carece de fundamento a invocada violação do disposto nos arts. 358º e 359º, do C. Processo Penal.

d. Assim, diremos que, contrariamente ao entendido pelo recorrente, a matéria do ponto 10 dos factos provados da sentença da 1ª instância não tinha de ser comunicada, porque, em parte, é irrelevante relativamente ao tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física por negligência, e porque, noutra parte, constava da acusação.

Acresce que a matéria do ponto 11 dos factos provados da sentença da 1ª instância, embora inovatória, descreve um acontecimento posterior à consumação do crime de ofensa à integridade física por negligência, nada tendo a ver com o tipo subjectivo.

Por outro lado, é certo que a 1ª instância não comunicou, nos termos e para os efeitos do art. 358º, nº 1, do C. Processo Penal, a matéria dos pontos 10 e 11 dos factos provados da sentença que proferiu, referida ao tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física por negligência, por cuja prática foi o recorrente condenado, sendo, pois, inquestionável que não usou o mecanismo processual previsto na norma citada, para suprir qualquer falta de descrição na acusação de elementos daquele tipo subjectivo.

Ora, o que a jurisprudência fixada que o recorrente invoca impede é, precisamente, a utilização do nº 1 do art. 358º do C. Processo Penal para sanar esta deficiência, quando presente no despacho de acusação, o que, in casu, não aconteceu.

Com efeito, não foram aditados factos novos, relevantes, para o pleno preenchimento do tipo subjectivo do crime imputado ao recorrente. Contudo, se o tivessem sido, não foram comunicados ao recorrente, o que determinaria a nulidade da sentença, nos termos do art. 379º, nº 1, b), do C. Processo Penal.

Deste modo, nem a sentença da 1ª instância, nem a decisão sumária do Tribunal da Relação do Porto que a confirmou, nem o acórdão deste mesmo tribunal que, por sua vez, confirmou a decisão sumária, contrariaram o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 20 de Novembro de 2014.

Destarte, porque não existe oposição expressa [nem tácita] de julgados, entre o acórdão recorrido e o Acórdão nº 1/2015, de 20 de Novembro, não se mostra verificado este imprescindível requisito substancial de admissibilidade do recurso extraordinário, o que, nos termos do art. 441º, nº 1 do C. Processo Penal, determina a sua rejeição.

*

*

*

*

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal em, nos termos do art. 441º, nº 1, por referência ao art. 446º, nº 1, ambos do C. Processo Penal, rejeitar o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo recorrente AA.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa), a que acresce, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 420º, nº 3, 441, nº 1 e 448º, todos do C. Processo Penal, a condenação no pagamento da quantia de 3 UC.

*

(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).

*

*

Lisboa, 19 de Novembro de 2025

Vasques Osório (Relator)

Ernesto Nascimento (1º Adjunto)

Jorge Gonçalves (2º Adjunto)