Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
805/10.4TBPNF.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
COLISÃO DE VEÍCULOS
INFRACÇÃO ESTRADAL
ULTRAPASSAGEM
MUDANÇA DE DIRECÇÃO
MOTOCICLO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Data do Acordão: 04/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL; DIREITO DAS OBRIGAÇÕES; RESPONSABILIDADE CIVIL.
Doutrina: - Oliveira Matos, Código da Estrada Anotado, 1991, p. 88
- Eurico Heitor Consciência, Sobre Acidentes de Viação e Seguro Automóvel, 2a ed., 2002, p. 132-133);
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed, p. 886;
Legislação Nacional: CÓDIGO DA ESTRADA: ARTIGO 20.º, N.º 1; 35.º; 38.º, N.ºS 1, 2 E 3; 41.º, N.OS 1, AL. C), 3 E 4; 44.º; 146.º, AL. E).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 21-10-2010, REVISTA N.º 4487/04.4TBSTB.E1.S1 - 2.ª SECÇÃO, REL. JOÃO BERNARDO, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT ;
- AC. 17-05-2011, REVISTA N.º 500/06.9TBTND.C1.S1 - 6.ª SECÇÃO, REL MARQUES PEREIRA, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT.

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
- DE 13-11-2007, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.DGSI.PT.

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
-DE 18-09-2008, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A simultaneidade da execução de manobras de ultrapassagem e de mudança de direcção para a esquerda suscita, nos acidentes entre os veículos envolvidos nessas manobras, um conflito que, segundo um critério temporal, deve ser resolvido a favor do condutor que, em primeiro, iniciou uma dessas manobras.

II - Assim acontece se, por um lado, seguindo um motociclo junto à berma da metade direita da faixa de rodagem (considerando o seu sentido de marcha), precedendo um auto-ligeiro, o condutor deste decide ultrapassá-lo e, depois de fazer os sinais regulamentares e de se certificar da segurança da manobra, passa a rodar pela metade esquerda da faixa de rodagem, nas imediações de um entroncamento e se, por outro, o condutor do motociclo, decidindo mudar de direcção para a esquerda nesse entroncamento e, sem previamente se certificar da segurança da manobra nem fazer qualquer sinal, vira a direcção, súbita e inesperadamente, e, atravessando a metade direita da faixa de rodagem, entra na metade esquerda desta, indo colidir com ou cortar a linha de marcha do auto-ligeiro que nesse momento o ultrapassava.

III - Ocorrendo o acidente entre essas duas viaturas no momento em que os respectivos condutores efectuavam manobras de condução, ambos violando preceitos regulamentares de trânsito, não podem ambos deixar de ser civilmente responsabilizados, a título de culpa, pelo mesmo acidente.

IV - A proibição de ultrapassagem imediatamente antes e nos entroncamentos visa prevenir acidentes entre veículos na zona de intersecção de vias, dada a especial perigosidade destes espaços.

V - Não obstante a ultrapassagem constituir, nesses locais, uma manobra proibida, o condutor que pretende mudar de direcção para a esquerda nesse entroncamento não está dispensado de observar as prescrições que regulamentam a execução de tal manobra, designadamente em sede de certificação prévia da segurança da respectiva execução e sinalização.

VI - Logo, está-lhe vedado, a ele que rodava junto à berma, guinar subitamente para a esquerda, sem qualquer sinal e sem se certificar previamente da segurança dessa manobra, e entrar na metade esquerda da fixa de rodagem onde nesse momento já circulava o auto-ligeiro em plena manobra de ultrapassagem.

VII - Para além da decorrente da inobservância das regras estradais quanto à mudança de direcção pata a esquerda, a sua culpa agrava-se também pela violação do dever geral de cuidado que deve presidir a toda a condução e à prevenção de acidentes, porquanto o condutor que pretende executar tal manobra quando está a ser - ou está prestes a ser - ultrapassado é o único que tem a derradeira oportunidade de evitar o acidente (olhando para trás ou para o lado...).

VII - Em tal caso, considera-se adequada a repartição de culpas na proporção de 70% para o condutor que muda de direcção e de 30% para o condutor que ultrapassa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


RELATÓRIO

No dia 29-07-2006, pelas 16,50 horas, nas imediações do entroncamento formado pela Avª ... com a Rua ..., na freguesia de ..., concelho de Penafiel, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes os veículos auto-ligeiro -BF, conduzido pelo seu dono, AA – cuja responsabilidade civil automóvel emergente dos danos causados pela circulação de tal viatura se encontrava transferida para a BB, Companhia de Seguros, S.A. – e o ciclomotor -PRD-, conduzido pelo Autor e proprietário, CC, do qual resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais para este último.

Imputando a responsabilidade pela eclosão de tal acidente a culpa exclusiva do condutor do auto-ligeiro, intentou CC contra a dita Seguradora, acção de processo ordinário no Tribunal de Penafiel, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a indemnização de 33.577,00 bem como a importância que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença quanto ao dano biológico, tudo acrescido de juros de mora desde a citação.

A Ré contestou por impugnação, negando a responsabilidade do seu segurado no acidente e alegando ainda que o Autor conduzia o ciclomotor com uma taxa de alcoolemia (TAS) de 1,25 g/l.

O Autor replicou.

Teve lugar a audiência preliminar e foi proferido despacho saneador com selecção da matéria fáctica relevante, discriminando-se a já assente da ainda controvertida.

Após audiência de julgamento e decisão da matéria de facto, foi proferida sentença que, com fundamento na responsabilidade objectiva, e na proporção do risco de 70% com que o auto-ligeiro contribuiu para o acidente, julgou a acção parcialmente procedente e condenou a Ré a pagar ao Autor:

a) a quantia de € 53,90, relativa à indemnização pelos danos patrimoniais (dano emergente) por si sofridos, com juros de mora à taxa de 4% desde a data da citação e até efectivo pagamento;

b) a quantia de € 14.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros de mora à taxa de 4% desde a citação e até integral pagamento;

c) a quantia proveniente do por si alegado em 68 a 71 da petição inicial (relativamente ao dano biológico em função da IPG de que ficou a padecer por via da sequela das lesões físicas causadas pelo acidente), na proporção de 70%, cuja liquidação se relega ppara momento ulterior em incidente de liquidação de sentença.

A Ré apelou desta sentença, impugnando também a decisão proferida sobre a matéria de facto.

E, por acórdão de 12-11-2013, a Relação do Porto, depois de alterar a decisão sobre a matéria de facto, julgou procedente a apelação e absolveu a Ré do pedido, por entender o acidente imputável a culpa exclusiva do Autor.

Novo recurso, desta feita de revista para este STJ, interposto pelo Autor, sustentado, apesar da alteração da matéria de facto, a exclusividade da culpa do condutor do auto-ligeiro e, subsidiariamente, a repartição de culpas ou a repartição do risco entre os intervenientes.

A Ré contra-alegou em defesa da subsistência do acórdão recorrido.

Remetido o processo a este STJ, após a distribuição e o exame preliminar, foram corridos os vistos legais.

Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.


FUNDAMENTAÇÃO

Matéria de Facto:

Na Relação ficaram definitivamente assentes os seguintes factos:

1.         A Ré, “BB, Companhia de Seguros, S.A.”, no exercício da sua actividade seguradora, celebrou com AA, um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º …, o qual garantia a responsabilidade civil inerente à circulação do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula -BF (...), em vigor no dia 29.07.2006.

2.         No dia 29.07.2006, cerca das 16:50 horas, na Av. ..., freguesia de ..., Penafiel, ocorreu uma colisão entre o veículo automóvel ligeiro com a matrícula -BF (...), conduzido pelo proprietário, AA, e o ciclomotor com a matrícula -PRD-, conduzido pelo Autor e proprietário, CC.

3.         Ambos os veículos seguiam na Avenida ..., no sentido de ... para ..., seguindo à frente o ciclomotor com a matrícula -PRD-.

4.         Na Avenida ..., a largura da faixa de rodagem é de 6,30 metros e no sentido de ... para ..., existe do lado esquerdo o entroncamento da Rua ....

5.         O Autor pretendia seguir pela Rua ... (resposta ao facto 1º da BI).

6.         O veículo -BF (...) seguia pela metade direita da Avenida ..., a uma velocidade de 40 a 50 km/h, e imediatamente à sua frente seguia o ciclomotor -PRD-, o qual circulava junto à sua berma direita, e a velocidade inferior, pelo que o condutor do -BF (...) decidiu proceder à sua ultrapassagem (resposta aos factos 79º a 84º da BI).

7.         Ligou o sinal luminoso da esquerda e certificou-se que nenhum veículo circulava em sentido contrário (resposta aos factos 85 e 86 da BI).

8.         E iniciou tal manobra, passando a circular pela metade esquerda da via (resposta ao facto 87 da BI).

8.A      Sem que nada o fizesse prever, o condutor do ciclomotor -PRD- virou à esquerda.

                                              

8.B      (…) invadindo a metade esquerda da via.

                                              

8.C      (…) cortando a linha de marcha do -BF (...).

                                              

8.D      (…) a menos de 5 metros do veículo.

                                              

8.E      (…) impossibilitando o condutor do veículo -BF (...) de accionar os travões.

                                  

8.F      O condutor do ciclomotor -PRD- efectuou a manobra de virar à esquerda sem efectuar qualquer sinal.

9.         Tendo ocorrido o embate referido em 2. entre a parte lateral esquerda do ciclomotor do Autor e a frente do veículo -BF (...) (resposta aos factos 7 e 9 e 88 a 92 da BI).

10.      e atingiu o Autor na perna esquerda (resposta ao facto 10 da BI);

11.      e provocou a sua queda no chão (resposta ao facto 11 da BI);

12.      e na sequência desse embate e queda, o Autor sofreu fractura exposta dos ossos da pena esquerda (grau I G-A) (resposta ao facto 12 da BI);

13.      e foi transportado ao Serviço de Urgência do Hospital Padre Américo onde foi submetido, nesse dia, a intervenção cirúrgica à perna esquerda para encavilhamento estático com ETN e aí esteve internado até ao dia 31.07.2006, altura em que teve alta hospitalar com orientação para a consulta externa (resposta aos factos 13 a 16) da BI).

14.      Sempre que sentado ou deitado tinha necessidade de permanecer com a perna esquerda imobilizada e levantada (resposta ao factos 17 e 18 da BI).

15.      No seguimento da consulta externa, verificou-se um atraso de consolidação da fractura com desvio do fragmento distal, cujo tratamento implicava nova cirurgia à perna esquerda (resposta ao factos 20 e 21 da BI).

16.      No dia 28.02.2007 o Autor foi internado no Hospital Padre Américo para a realização dessa cirurgia, o que não veio a suceder por falta de tempo operatório, e devido ao Autor se encontrar em estado febril (resposta aos factos 22 a 24 da BI).

17.      E por isso teve alta hospitalar no dia 1-03-2007 (resposta ao facto 25 da BI).

18.      No dia 07.03.2007 foi novamente internado no Hospital Padre Américo para a realização dessa cirurgia (resposta ao facto 26 da BI).

19.      O que não veio a suceder devido ao Autor padecer de intercorrência infecciosa (resposta ao facto 27 da BI);

20.      E por isso teve alta hospitalar no dia 08.03.2007 (resposta ao facto 28 da BI).

21.      No dia 04.07.2007 foi novamente internado no Hospital Padre Américo para a realização dessa cirurgia (resposta ao facto 29) da BI).

22.      E no dia 05.07.2007 foi submetido a cirurgia com anestesia geral (resposta aos factos 30 e 31 da BI).

23.      Nessa intervenção cirúrgica procedeu-se à extracção de ETN, descorticação, encavilhamento estático com ETN rimada, colocação de enxerto ósseo autólogo do ilíaco e sistema GPS (resposta ao facto 32 da BI).

24.      E aí esteve internado até ao dia 09.07.2007, altura em que teve alta hospitalar com orientação para a consulta externa de ortopedia (resposta ao facto 33 e 34 da BI).

25.      Manteve descarga do membro inferior até 26.11.2007 (resposta ao facto 35 da BI);

26.      Ao menos quando sentado ou deitado manteve a perna esquerda imobilizada e levantada (resposta ao facto 36 da BI).

27.      Teve nesse período as seguintes consultas: em 13.07.2007, em 06.08.2007, em 17.09.2007 e 26.11.2007 (resposta ao facto 39 da BI).

28.      E depois desse período teve as seguintes consultas: em 24.03.2008, em 28.05.2008, 23.06.2008, 07.07.2008 e 01.09.2008 (resposta ao facto 40 da BI);

29.      No dia 17.04.2008 o Autor foi submetido a nova cirurgia na perna esquerda (resposta ao facto 41 da BI).

30.      E nessa intervenção cirúrgica procedeu-se à dinamização da vareta endomedular que lhe havia sido colocada na primeira cirurgia e permanecerá durante toda a vida do Autor (substituição da platina) (resposta aos factos 42 a 44 da BI).

31.      Aí esteve internado até ao dia 18.04.2008, altura em que teve alta hospitalar (resposta aos factos 45 e 46 da BI).

32.      Teve alta médica em 27.10.2008 (resposta ao facto 50 da BI).

33.      Durante este período o Autor sofreu dores o que o impedia de dormir (resposta aos factos 52 e 53 da BI).

34.      As dores que sentia eram muito fortes (resposta ao facto 54 da BI).

35.      As dores agravaram-se nos períodos seguintes às intervenções cirúrgicas (resposta ao facto 55 da BI).

36.      Ainda hoje sofre dores (resposta ao facto 56 da BI).

37.      No futuro sofrerá também dores (resposta ao facto 57 da BI).

38.      No referido período de incapacidade só podia mover-se com a utilização de canadianas (resposta ao facto 58 da BI).

39.      E teve de utilizar, até Dezembro de 2007, duas canadianas para se mover (resposta ao facto 59 da BI).

40.      E desde então até Dezembro de 2008, teve de utilizar uma canadiana para se mover (resposta ao facto 60 da BI).

41.      Toda esta situação provocou no Autor angústia, desespero e abatimento psicológico (resposta ao facto 61 da BI).

42.      E por isso foi submetido a tratamento com medicamentos ansiolíticos (resposta ao facto 62 da BI).

43.      Teve despesas com medicamentos no montante de 77,00 € (resposta ao facto 63 da BI).

44.      Antes do acidente, o Autor era membro do Rancho Folclórico de ... onde tocava acordeão (resposta ao factos 64 e 65 da BI).

45.      Participava em todos os concertos activamente (resposta ao facto 66 da BI).

46.      Deslocava-se ao café e assistia a jogos de futebol do clube da terra (resposta aos factos 67 e 68 da BI).

47.      Era pessoa alegre e bem disposta (resposta ao facto 69 da BI).

48.      Devido ao acidente o Autor não pode acompanhar o Rancho Folclórico de ... em viagem ao ..., o que era uma oportunidade única (resposta aos factos 70 e 71 da BI).

49.      Após o acidente o Autor deixou de poder fazer esforços, sente-se fisicamente debilitado, ansioso, abatido e triste (resposta aos factos 72 e 73 da BI).

50.      Na data do acidente, o Autor encontrava-se aposentado (resposta ao facto 74 da BI).

51.      Ocasionalmente efectuava uns serviços da área da construção civil (resposta ao facto 76 da BI).

52.      O Autor conduzia com taxa de álcool no sangue superior a 1,25 g/l (resposta ao facto 93 da BI).

53.      O Autor nasceu em ……..19….

Direito:

Entrando agora na apreciação do recurso, importa, antes de mais, conhecer o respectivo objecto que, como se sabe, resulta das conclusões propostas pelo recorrente no final da sua alegação.

E são as seguintes as conclusões com que o recorrente finaliza a sua alegação::

A - Constitui fundamento do recurso a impugnação do douto acórdão do tribunal da Relação do Porto que revogou a decisão proferida pelo tribunal judicial de Penafiel e absolveu a ré do pedido.

B - Não obstante a alteração da matéria de facto que foi efectuada pelo tribunal da Relação do Porto, esses novos factos quando conjugados com todos os demais já anteriormente provados imporiam decisão distinta da proferida pelo tribunal de segunda instância.

C - Há a considerar que a largura da faixa de rodagem é de 6,30 metros; existe do lado esquerdo o entroncamento da Rua ..., para onde o autor pretendia seguir; o -BF (...) seguia pela metade direita da Avenida ..., a uma velocidade de 40 a 50 Km/h, e imediatamente à sua frente seguia o ciclomotor -PRD-, o qual circulava junto à sua berma direita, e a velocidade inferior; o condutor do -BF (...) decidiu proceder à sua ultrapassagem; ocorreu um embate entre a parte lateral esquerda do ciclomotor do autor e a frente do veículo -BF (...).

D - É inegável a existência de um entroncamento para onde o autor pretendia seguir e inegável que o segurado da ré efectuou manobra de ultrapassagem ao autor; com embate ocorrido já na metade esquerda da via.

E - Não deve merecer acolhimento a tese do tribunal da Relação que considerou o local do embate como a cerca de 30 metros do entroncamento} mas mesmo que assim sucedesse não se deveria deixar de considerar a manobra do automobilista como uma manobra perigosa, imprudente e proibida.

F - Há a considerar a posição dos veículos após o embate que consta do croqui da entidade policial. Ambos os veículos estão em frente à Rua ....

G - Não seria crível que o ciclomotor percorresse sem condutor, desgovernado 30 metros até se projectar no chão; ao mesmo tempo não seria crível que o automóvel percorresse esses mesmos 30 metros com o autor supostamente projectado no capot para evitar que caísse ao chão quando se encontra provado que caiu ao chão com o embate; trata-se de um conjunto de situações que são manifestamente improváveis de ocorrer e admitir-se a ocorrência em simultâneo das duas é ainda menos razoável.

H - Há a considerar que o embate ocorreu entre a frente do automóvel ... e a parte esquerda do ciclomotor e atingiu a perna esquerda do autor} bem como há a considerar que o ciclomotor já estava numa posição perpendicular em relação ao eixo da via.

I - O Tribunal da Relação não considerou nem atendeu a esses factos que imporiam decisão diversa da que proferiu.

J - A circunstância do autor seguir na berma direita da faixa de rodagem e ter sido embatido na metade esquerda da via torna razoável o entendimento que já seguia junto ao entroncamento e de frente para a via onde pretendia entrar, na Rua ..., quando foi embatido pelo veiculo automóvel; tendo em conta o entendimento do tribunal da Relação seria difícil conjugar a circunstância do autor seguir na berma e ter sido embatido na faixa esquerda da via atendendo à largura da estrada (6,30 metros) e à reduzida velocidade dos veículos.

L - A manobra efectuada pelo automobilista violou o dever de cuidado e de prudência que era exigido a quem circulava naquelas especificas circunstâncias de modo e lugar; ser-lhe-ia exigível que não efectuasse manobra de ultrapassagem naquele local e perante a existência de ciclomotor à sua direita, já flectido à esquerda, e existência de um entroncamento na via; segurado da ré não se certificou que aquela manobra não - realizava perigo para quem transitava no mesmo sentido por forma a evitar colisão, o que infelizmente veio a suceder.

M - A dinâmica do acidente não permite imputar a responsabilidade exclusivamente ao autor, pelo que se deverá considerar pela concorrência de culpas entre ambos os intervenientes para a sua ocorrência, ou, quando muito, como considerou o tribunal de primeira instância, pela resolução no âmbito da responsabilidade pelo risco.

N - Tendo em conta a diferente natureza dos veículos e proporção do risco de cada um deles deve ser considerada adequada a proporção do risco fixada pelo tribunal de primeira instância e repristinada a decisão deste tribunal.

O - Violou o douto acórdão recorrido o disposto nos art.º 487º n.º 2, S06º e S03.º n.º 1 do código Civil, o disposto nos art.e 61Sº n.º 1º alo d) (ex.vi art. 666º n.º 1 CPC, bem como o disposto nos art.s 3Sº n.ºl, 38º e 41º n.º 1 do Código da estrada.

Conclui, pedindo a revogação do acórdão recorrido.

Apreciação:

O acórdão recorrido imputou a responsabilidade pelo acidente a culpa exclusiva do lesado, o ora Autor.

Escreveu-se no acórdão recorrido:

“A Ré alegou, na contestação, a culpa exclusiva do lesado na produção do acidente, apoiada em diversos factos descritivos do evento.

Àquele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação, pois que a prova dos factos constitutivos da culpa do lesado são modificativos ou extintivos do direito deste – artigos 342º, n.º 1, e 572º do CC.

Ora, os factos que a Ré logrou provar, na sequência da alteração acima tratada, influenciam decisivamente o resultado desta acção.

Com efeito, tendo ficado provado que o Autor não sinalizou, como devia, a manobra de mudança de direcção para a esquerda, verifica-se clara infracção à regra do artigo 21º do Código da Estrada, segundo a qual:

“1.       Quando o condutor pretender reduzir a velocidade, parar, estacionar, mudar de direcção ou de via de trânsito, iniciar uma ultrapassagem ou inverter o sentido de marcha, deve assinalar com a necessária antecedência a sua intenção.

2.         O sinal deve manter-se enquanto se efectua a manobra e cessar logo que ela esteja concluída.”

O sinal de mudança de direcção tem, tal como muitos outros, a função de exprimir a intenção do condutor e avisar os restantes utentes da via dessa mesma intenção.

A omissão desse sinal pelo condutor no ciclomotor (o Autor) foi, no caso concreto, causal do acidente. De facto, encontrando-se o condutor do Honda a iniciar a manobra de ultrapassagem a esse ciclomotor, com observância de todas as cautelas regulamentares, não era de modo algum previsível que o Autor manobrasse para a esquerda, de forma repentina, o seu ciclomotor, a cerca de 30 metros da via para onde se queria dirigir, cortando a linha de progressão do referido ligeiro de passageiros. A manobra encetada pelo Autor, além de não sinalizada e efectuada bem antes do local onde entroncava a via à esquerda por onde queria seguir, corresponde a uma prática muito generalizada na condução de ciclomotores e que se traduz na invasão e corte, na diagonal, da hemifaixa esquerda até ao ponto de entroncamento da via por onde se pretende depois transitar.

Provada a culpa do lesado na produção do acidente, corporizada na omissão de um procedimento imposto por lei, é também o momento de afirmar a inexistência de qualquer responsabilidade do condutor desse veículo ligeiro, na medida em que actuou, no exercício da condução que empreendia, com observância de todos os cuidados exigíveis, como resulta dos factos dos pontos 6. a 8.

A causa exclusiva do acidente radicou, portanto, no comportamento culposo do Autor.

E é precisamente pelo facto de o acidente se ter ficado a dever unicamente ao lesado que nem sequer se coloca como hipótese para análise o concurso do risco do veículo ligeiro Honda com a culpa do ciclomotorista[1] – artigos 505º e 570º do CC”.

Face à matéria de facto provada, tal como resultou da modificação operada na Relação – derradeira instância em sede de matéria de facto – e aos termos em que o recorrente se insurge contra tal acórdão, não podemos deixar de concordar com a conclusão a que chegou o acórdão recorrido.

Com efeito, o recorrente sustenta a culpa exclusiva ou concorrente do condutor do condutor do -BF na ultrapassagem que este lhe fazia quando mudava de direcção para a esquerda, bem patente no facto de o veículo automóvel haver colidido com a sua frente na parte lateral esquerda do ciclomotor; logo, circulando ambos os veículos no mesmo sentido de marcha, o ciclomotor precedendo o auto-ligeiro, aquele encetou uma manobra de mudança de direcção para a esquerda e, quando virava já na metade esquerda da via, foi colidido pelo auto-ligeiro que saíra da sua mão de trânsito e, pela dita metade esquerda da via, pretendia ultrapassá-lo, no pressuposto de ele prosseguir a sua marcha em frente e não virar à esquerda.

A frequência de acidentes envolvendo veículos que mudam de direcção para a esquerda e veículos que, nesse momento, os pretendem ultrapassar justifica algumas considerações.

Assim, para além dos princípios gerais que obrigam todos os condutores a sinalizar todas as manobras que façam na condução, avisando os demais utentes da via, com a necessária antecedência, da sua intenção (art. 20º nº1 do Cód. Estrada) e a efectuá-las em local e por forma a que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito (art. 35º do Cód. Estrada), no caso da ultrapassagem condutor do veículo não deve iniciá-la sem se certificar previamente que a pode realizar sem perigo de colidir de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário, devendo, em especial, certificar-se de que:

a) A faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança;

b) Pode retomar a direita sem perigo para aqueles que aí transitam;

c) Nenhum condutor que siga na mesma via ou na que se situa imediatamente à esquerda iniciou manobra para o ultrapassar;

d) O condutor que o antecede na mesma via não assinalou a intenção de ultrapassar um terceiro veículo ou de contornar um obstáculo;

e) Na ultrapassagem de velocípedes ou à passagem de peões que circulem ou se encontrem na berma, guarda a distância lateral mínima de 1,5 m e abranda a velocidade;

e só depois de todas estas certificações, é que o condutor deve ocupar o lado da faixa de rodagem destinado à circulação em sentido contrário ou, se existir mais que uma via de trânsito no mesmo sentido, a via de trânsito à esquerda daquela em que circula o veículo ultrapassado e efectuar a ultrapassagem (art. 38º nº 1, 2 e 3 do Cód. Estrada)

Há, porém, locais onde tal manobra é proibida; assim, entre outros, imediatamente antes e nos cruzamentos e entroncamentos, a menos que na faixa de rodagem sejam possíveis duas ou mais filas de trânsito no mesmo sentido, desde que a ultrapassagem se não faça pela parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido oposto ou que o condutor transite em via que lhe confira prioridade nos cruzamentos e entroncamentos e tal esteja devidamente assinalado ou a ultrapassagem se faça pela direita (art. 41º nº1-c) e nº3 e 4 do Cód. Estrada).

Por sua vez, quanto à manobra de mudança de direcção para a esquerda, prescreve o art. 44º do Cód. Estrada que o condutor que pretenda efectuá-la deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afecta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e realizar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação (nº1).

Obviamente sem prejuízo do apontado dever de sinalização prévia e da certificação de inexistência de que da mesma nãp resulta perigo ou embaraço para o trânsito.

No caso dos autos, apurou-se que o condutor do auto-ligeiro iniciou, depois de prévia sinalização, a execução da manobra de ultrapassagem e quando a executava o tripulante do ciclomotor inflectiu, súbita e inesperadamente para a esquerda pretendendo seguir por uma artéria que entroncava naquela por onde seguia, sem qualquer sinalização prévia e cortando a linha de marcha do auto-ligeiro, ocorrendo assim o sinistro.

A Relação imputou a eclosão do acidente a culpa exclusiva do condutor do ciclomotor por haver iniciado a manobra de mudança de direcção para a esquerda sem prévia certificação da inexistência de perigo para o trânsito e sem qualquer sinalização prévia.

Sem dúvida que, por este motivo, a sua condução não pode escapar ao juízo de censura ético-jurídica.

Com efeito, ao condutor que muda de direcção para a esquerda são impostos os cuidados enunciados no nº 1 do art. 44° do CE - aproximação com a necessária antecedência do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afecta a um ou a ambos os sentidos de trânsito e efectuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação - observando também, se for caso disso, o nº 2 - efectuar a manobra de modo a dar a esquerda ao centro de intersecção das duas vias, se tanto na via que vai abandonar como naquela em que vai entrar, o trânsito se efectuar nos dois sentidos.

Tudo isto, obviamente depois de assinalar, com a necessária antecedência a sua intenção (art. 20° nº 1 CE), utilizando a sinalização luminosa adequada e de se certificar que pode realizar a manobra por forma que da mesma não resulte perigo ou embaraço para o trânsito (art. 35° nº 1 CE).

“As cautelas que o condutor que vai mudar de direcção deve tomar dirigem-se tanto ao tráfego em sentido oposto como aos condutores que vêm na sua esteira" e, em caso de mudança de direcção para a esquerda de condutor de veículo que está a ser ultrapassado, a responsabilidade pela eclosão do acidente deve incidir totalmente sobre este se não fez sinal de mudança de direcção ou se o fez tardiamente (Cfr. Oliveira Matos, Código da Estrada Anotado, 1991, p. 88).

Mas o recorrente sustenta a proibição de ultrapassar no local, questão esta que não foi apreciada pela Relação.

E, quanto a nós, a Relação omitiu a apreciação da questão da proibição de ultrapassagem em entroncamento, pois – recordemos - tratava-se. de um entroncamento e, muito embora nada se saiba quanto ao número de filas de trânsito possíveis no mesmo sentido da faixa de rodagem nem se a via era prioritária, o certo é que foi demonstrado que na ultrapassagem o auto-ligeiro passou a circular pela metade esquerda da via, destinada ao trânsito em sentido contrário; logo, face ao disposto no art. 41º nº1-c) e nº3 do Cód. Estrada, tratava-se, pois, em princípio e porque nada consta da matéria de facto em sentido contrário, de uma ultrapassagem em local proibido.

Por conseguinte, sendo inquestionável a culpa do Autor, será que ao condutor do veículo que efectuava a ultrapassagem também pode imputada culpa no acidente por efectuar tal manobra num entroncamento em local onde ela era proibida - pela eclosão do acidente?

Não é pacífica a definição de responsabilidades no caso de acidentes de viação ocorridos no decurso de manobras simultâneas de mudança de direcção e de ultrapassagem efectuadas pelos condutores intervenientes: será a culpa do condutor que começou a manobra depois de ter sido encetada a manobra do outro; do que começa a ultrapassar o veículo que já se aproximara do eixo da faixa de rodagem e ligara os "pisca-pisca" esquerdos ou do que virou para a esquerda quando o outro condutor já acendera os pisca-pisca esquerdos e/ ou já rodava pela metade esquerda da faixa de rodagem, próximo do veículo que mudou de direcção.

Não falta quem, nestas circunstâncias, reparta a culpa, mais ou menos irmãmente, pelos dois condutores; todavia, com razão se observa que o condutor que vira para a esquerda é normalmente o único que poderá evitar o acidente - se olhar para trás (ou para o retrovisor) imediatamente antes de virar (Cfr. Eurico Heitor Consciência, Sobre Acidentes de Viação e Seguro Automóvel, 2a ed., 2002, p. 132-133).

A culpa pela eclosão do acidente caberá, segundo esta orientação, a quem teve the last clear chance de o evitar, “corrigindo assim com um ingrediente de sentido ético-pragmático o rigor naturalístico da pura proximidade (temporal) da causa” (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10^ed, p. 886).

Mas esta doutrina da the last clear chance – variante anglo-saxónica da tese que restringe o nexo causal à causa próxima, desenvolvida por Francis Bacon no século XVI e segundo a qual a causa seria a condição ou o factor que apareceria em último lugar no processo cronológico que conduziu ao dano – imputando a culpa ao interveniente que poderia ter actuado sobre essa última condição, deve ser rejeitada porque, por um lado, ignora que a causa poderá não estar nesse último mas em outro que o antecede e responsabilizando exclusivamente aquele acaba por fazer pagar o justo pelo pecador e, por outro, porque reduz o nexo de causalidade a uma mera questão cronológica, desonerando a responsabilidade de quem desencadeou esse processo; assim, no caso vertente imputaria a causa do acidente à actuação do Autor, desconsiderando a responsabilidade do condutor do auto-ligeiro ao realizar a ultrapassagem em local proibido.

Por outro lado, também não falta quem preconize, como princípio normativo orientador da delimitação subjectiva da responsabilidade, o critério temporal e o princípio de confiança que deve presidir à circulação rodoviária.

Nesta ordem de ideias, segundo aquele critério, o conflito entre a ultrapassagem e a manobra de mudança de direcção deverá ser resolvido a favor do primeiro que iniciou uma dessas manobras. A este propósito escreveu-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 13-11-2007 (texto acessível na Internet, através dehttp://www.dgsi.pt):

"0 "critério temporal", como princípio geral de orientação, é o que se extrai da conjugação de diversas normas do Código da Estrada (…), vigentes à data do acidente) e o que melhor se adequa com o princípio da confiança, inerente ao tráfego rodoviário.

Desde logo, pressupondo ambas as manobras a prévia sinalização, ela deve ser feita com a "necessária antecedência", antes mesmo do início da execução, de modo a revelar a pertinente" intenção" (art.20 nº 1). do CE). Por outro lado, também ambas exigem a prévia certificação do perigo ou embaraço para o trânsito (art.35 nº 1 do CE), sendo que este dever geral de cuidado é concretizado em face da especificidade de cada uma delas (arts. 38 nº 1 e 2, art. 44 nº 1). do CE).

Mudar de direcção é tomar uma via confluente daquela em que se segue e o condutor deve fazer o sinal regulamentar com a necessária antecipação, bem visível e significativo, de modo a não deixar dúvidas sobre a sua intenção aos restantes utentes da estrada, aproximar-se do eixo da via e realizar a manobra em sentido perpendicular aquele em que seguia.

Em caso algum deve iniciar tal manobra sem previamente se assegurar que da sua realização não resulta perigo ou embaraço para o trânsito (artº 20º; 35 e 44 do CE)". (cfr. também o Ac Rel. Évora de 18-09-2008, igualmente acessível através de http://www.dgsi.pt).

Poderá sustentar-se que a proibição de ultrapassar imediatamente antes e nos entroncamentos se justifica pela necessidade de prevenir acidentes entre veículos que nele se apresentem por uma das vias e pretendam seguir por outra e veículos que por esta circulem.

Em apoio desta perspectiva, poderá argumentar-se que a proibição de tal manobra não é absoluta: em certas condições a ultrapassagem é permitida nos entroncamentos, como acontece se. por exemplo, a via por onde transita o veículo ultrapassante for prioritária, relativamente à que nela entronca e tal prioridade estivesse devidamente assinalada (art. 41° nº 4-a) CE) - o que nos autos não está demonstrado – concedendo-se que, dada a largura da via no local - 6,30 m – apenas eram consentidas uma fila de trânsito em cada sentido de marcha.

Daí se infere que, na proibição de realizar ultrapassagens em entroncamentos, o fim ou propósito da norma é prevenir o risco de acidentes com veículos que, apresentando-se no entroncamento, pretendam circular pela via por onde rodam os veículos ultrapassante e ultrapassado, e não com os veículos que aí pretendem mudar de direcção para a esquerda; a protecção da norma dirige-se, para além do condutor que ultrapassa, aos que se apresentem no entroncamento e não aos que pretendem mudar de direcção...

O que in casu significaria que, ainda que a via por onde circulavam fosse prioritária e estivesse, como tal, assinalada, o acidente sempre ocorreria.

Logo, a violação pelo condutor do auto-ligeiro do art. 41° nº 1-c) CE - que, no mais, observou todo o preceituado na legislação rodoviária para a realização da ultrapassagem (art. 20° nº1 e 38° nº1 e 2 CE) - não terá sido, concausal do acidente.

Esta perspectiva peca, a nosso ver, por restringir a finalidade de proibição de ultrapassagem nos entroncamentos à prevenção de acidentes entre veículos que neles se apresentem por uma das vias para seguir por uma das outras que aí entroncam, como se o condutor que muda de direcção à esquerda também não se “apresentasse” no entroncamento para seguir por uma das outras vias…

A razão é, quanto a nós, diversa: os entroncamentos, como os cruzamentos e, de modo geral, qualquer zona de intersecção de vias, são espaços de risco acrescido de acidente, razão pela qual se proíbem aí as manobras de condução normalmente propiciadoras desses riscos.

Como já entendeu este STJ, “a razão de ser de tal proibição radica na possibilidade de inopinadamente surgir da ou das vias que cruzam ou entroncam outros veículos, o que poria em perigo manifesto uma manobra delicada como a ultrapassagem”, abrangendo a ratio da proibição em causa “ainda todas as situações que ponham em causa a segurança; daí que nela se inclua a necessidade de evitar que, com o aproximar do cruzamento ou do entroncamento, o veículo ultrapassando pretenda mudar de direcção para a esquerda, podendo dar-se o embate com o veículo ultrapassante” (cfr. Ac STJ de 21-10-2010, Revista n.º 4487/04.4TBSTB.E1.S1 - 2.ª Secção, Rel. João Bernardo).

E, nesta conformidade, o condutor do auto-ligeiro ao efectuar – e por efectuar - uma ultrapassagem em local onde ela não era permitida, não pode ser desresponsabilizado do acidente; não tivesse ele iniciado a ultrapassagem e a colisão não teria lugar…

Logo, o acidente foi o resultado da acção conjugada dos condutores intervenientes: o do auto-ligeiro porque realizava uma ultrapassagem num entroncamento - local onde tal manobra era proibida - e o do ciclomotor porque, quando estava prestes a ser ultrapassado virou, súbita e inesperadamente para a esquerda, mudando de direcção, e entrando na metade esquerda da via por onde rodava em plena ultrapassagem o auto-ligeiro.

Já atrás se referiu a opinião do Dr. Oliveira Matos que, nestas circunstâncias, aliás replicadas no caso sub judicio, a culpa seria exclusiva do condutor que, irregularmente, muda de direcção para a esquerda.

Concordamos mas, com todo o respeito, ousamos restringir esta regra aos casos em que a ultrapassagem é permitida no local; caso seja proibida, e sem prejuízo da culpa do condutor que muda de direcção para esquerda com inobservância dos preceitos estradais atinentes, a infracção estradal de quem ultrapassa onde não deve não pode deixar de relevar no contexto da distribuição de responsabilidades entre os intervenientes, afastando a exclusividade da culpa do condutor que muda de direcção.

Repensamos, assim, a nossa posição constante do acórdão da Relação de Évora de 18-09-2008 - subscrito pelos aqui Relator e 1º Adjunto nessas mesmas qualidades quando ali exercíamos funções.

No caso em apreço, está provado que o lesado, sem se certificar previamente da segurança da manobra, iniciou a mudança de direcção para a esquerda inesperadamente e sem qualquer sinalização prévia quando já se iniciara e estava prestes a ser concluída a manobra de ultrapassagem e, entrando na metade esquerda da faixa de rodagem por onde já circulava, em plena execução da ultrapassagem, o auto-ligeiro, cortou-lhe a linha de marcha deste, ocorrendo assim a colisão.

Logo, mudou de direcção para a esquerda no momento em que estava a ser ultrapassado, violando, desde logo, o dever geral de cuidado que lhe impunha certificar-se previamente da segurança de tal manobra e abster-se de a efectuar se da mesma resultasse o perigo de acidente; significa isto que o referido critério temporal permite imputar-lhe responsabilidade pela eclosão do acidente; a obrigação de certificação prévia da segurança da manobra parece consagrar o dever de aproveitamento da última oportunidade (the last clear chance…) de evitar o acidente.

Mas a infracção rodoviária cometida pelo condutor do auto-ligeiro ao ultrapassar em local proibido também contribuiu para o acidente, como já dissemos.

Poderemos, assim, formular o princípio normativo geral de que se a proibição de ultrapassagem imediatamente antes e nos entroncamentos visa prevenir acidentes entre veículos na zona de intersecção de vias, a responsabilidade fundada na culpa por qualquer colisão de veículos que aí se verifique não pode deixar de ser assacada ao condutor que ai realiza a manobra de ultrapassagem, sem prejuízo da culpa do outro interveniente.

Isto porque, como se escreveu no sumário do Ac STJ de 21-10-2010, “podendo e devendo o (…) condutor do veículo ultrapassante, ter previsto a possibilidade de o réu, condutor do veículo ultrapassado, efectuar a manobra de mudança de direcção para a esquerda no entroncamento por onde circulavam, como acabou por executar, ainda que de modo de modo inesperado, sem qualquer sinalização e sem que a faixa que atravessou estivesse livre, dando-se então o embate entre os veículos, deve concluir-se que ambos os condutores contribuíram para o sinistro”.

Sendo inequívoca a concorrência de culpas dos intervenientes, porque ambas as infracções estiveram na origem do acidente, justifica-se a repartição de culpas entre ambos os intervenientes.

Confrontando as condutas de ambos os intervenientes, deparam-se-nos duas manobras, uma proibida e outra permitida, se bem que esta realizada em violação das respectivas normas regulamentares.

Dir-se-ia ser igual a proporção das culpas de ambos os condutores (50% + 50%) porque ambos praticaram infracções causais de gravidade similar – cf.

art. 146.º, al. e) do CEst – e ambos poderiam ter evitado o acidente se tivessem

observado as pertinentes regras estradais” (cfr. Ac. 17-05-2011, Revista n.º 500/06.9TBTND.C1.S1 - 6.ª Secção, Rel Marques Pereira).

         Mas, se bem atentarmos, nas concretas condições em que o acidente ocorreu, a “guinada” súbita, inesperada e sem qualquer sinalização prévia do condutor do motociclo para a esquerda, atravessando a metade direita da faixa de rodagem (pois circulava junto à berma direita) e entrando na metade esquerda da via (contra-mão) sem atentar à sua retaguarda (configurando toda esta actuação uma evidente violação do princípio da confiança no tráfico rodoviário) é merecedora de maior censura que a do condutor do auto-ligeiro que, nesse momento, o ultrapassava.

         Por isso, graduando as culpas concorrentes de ambos os intervenientes, é de manter, agora reportada à culpa e não (como na 1ª instância) ao risco, a proporção de 70% e 30%, respectivamente para o condutor do motociclo e para o condutor do auto-ligeiro (cfr. se bem que em proporção de 80% e 20% e em caso semelhante o citado Ac. STJ de 21-10-2010).

         Assim sendo, não tendo o Autor impugnado os valores arbitrados na 1ª instância, é ele credor da indemnização de € 23,10 euros por danos patrimoniais (dano emergente) por si sofridos, com juros de mora à taxa de 4% desde a data da citação e até efectivo pagamento, de € 6.000,00 euros por danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros de mora à taxa de 4% desde a citação e até integral pagamento e da quantia proveniente do por si alegado em 68 a 71 da petição inicial (relativamente ao dano biológico em função da IPG de que ficou a padecer por via da sequela das lesões físicas causadas pelo acidente), na proporção de 30%, cuja liquidação se relega para momento ulterior em incidente de liquidação de sentença


ACÓRDÃO

Pelo exposto, acorda-se neste STJ em, revogando o acórdão recorrido, conceder parcialmente a revista e condenar a BB, Companhia de Seguros, S.A., tendo em conta a proporção de 30% da culpa do seu segurado, a pagar a CC:

a) a quantia de € 23,10 euros, relativa à indemnização pelos danos patrimoniais (dano emergente) por si sofridos, com juros de mora à taxa de 4% desde a data da citação e até efectivo pagamento;

b) a quantia de € 6.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros de mora à taxa de 4% desde a citação e até integral pagamento;

c) a quantia proveniente do por si alegado em 68 a 71 da petição inicial (relativamente ao dano biológico em função da IPG de que ficou a padecer por via da sequela das lesões físicas causadas pelo acidente), na proporção de 30%, cuja liquidação se relega para momento ulterior em incidente de liquidação de sentença.

Custas por ambas as partes na proporção de 70% para o Autor e 30% para a Ré.

Lisboa e STJ, 10-04-2014

Os Conselheiros

Fernando Bento (Relator)

João Trindade

Tavares de Paiva