Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
931/06.4TBFLG.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: PETIÇÃO DE HERANÇA
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
POSSE
ARROLAMENTO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES (ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA) - DIREITOS REAIS / POSSE / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCEDIMENTOS CAUTELARES - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / RECURSOS.
Doutrina:
- A. Santos Justo, Direitos Reais, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2011, pp. 131 a 134, nota 560.
- Coutinho de Abreu, J.M., Curso de Direito Comercial, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 191 e 192; Da Empresarialidade – As Empresas no Direito, Almedina, Colecção Teses, Coimbra, p. 69 e segs..
- Menezes Cordeiro, António, in Litigância de Má-fé, Abuso do Direito de acção e Culpa “In Agendo, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 104, 130-131.
- Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, coordenado por Francisco Liberal Fernandes, Maria Raquel Guimarães e Maria Regina Redinha, Coimbra Editora, 2012, pág. 272; na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 112.º, p. 107 e segs.; na RLJ, Introdução à Posse, ano 122.º, n.º 3781, p. 105; na RLJ, ano 124.º, n.º 3810, p.261.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º2, 344.º, 360.º, 473.º, N.º1, 1252.º, 1253.º, 1268.º, N.º1, 1413.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 390.º, N.º1, 516.º, 722.º, N.ºS 2 E 3, 729.º, N.º3.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGO 7.º.
DL Nº 54/75, DE 12-2: - ARTIGO 29.º.
LEI N.º 3/99, DE 13-1: - ARTIGO 26.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 18-09-2006, EM WWW.DGSI.PT ; DE 25-10-2007; DE 05-02-2009, PROC. N.º 4092/08, EM WWW.DGSI.PT ; DE 31-03-2009; DE 07-01-2010; DE 02-02-2010; DE 21-09-2010, PROC. N.º 2/03.5TBMNC.G1.S1, EM WWW.DGSI.PT; DE 21-10-2010, PROC. N.º 937/06.3TBCSC.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT ; DE 30-11-2010, PROC. N.º 581/1999.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT ; DE 01-03-2012.
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ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 14 DE MAIO DE 1996, PUBLICADO NO DR, N.º 144, DE 24 DE JUNHO DE 2006.
Sumário :
I - O STJ conhece de matéria de facto apenas nas duas hipóteses da 2.ª parte do n.º 2 do art. 722.º do CPC: quando o tribunal recorrido tiver dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência (1.ª hipótese), ou quando tenham sido desrespeitadas as normas que regulam a força probatória de algum dos meios de prova admitidos no nosso sistema jurídico (2.ª hipótese).

II - O estabelecimento comercial, enquanto universalidade de facto distinta dos bens corpóreos e incorpóreos que a constituem, pode ser objecto de um poder efectivo de posse.

III - Tendo-se apenas provado, em concreto, que a recorrente figurava como detentora do direito de arrendamento e do alvará, e que geria, em termos genéricos, o estabelecimento comercial, efectuando as transacções de mercadorias e bens necessários ao funcionamento do mesmo, mas não estando provado que aqueles actos eram praticados em nome próprio e, sendo-o, na qualidade de proprietária do estabelecimento, tais factos não são expressivos ou reveladores de um exercício possessório em nome próprio e para si.

IV - Se o estabelecimento comercial não pertencia à recorrente, a circunstância de ter sido determinado, em sede de procedimento cautelar, o seu arrolamento, não determinou qualquer restrição e muito menos privação, de qualquer direito, pelo facto de com o decretamento da providência ela ter ficado impedida de transaccionar os seus bens, não sendo tal situação subsumível na previsão do art. 390.º, n.º 1, do CPC.
Decisão Texto Integral:

I. - RELATÓRIO

Em dissensão com o julgado proferido na apelação que havia impulsado da decisão da primeira instância, que havia julgado “[a] acção parcialmente procedente, reconhecendo às Autoras a qualidade de herdeiras de AA e condenando a Ré, BB, a reconhecer que o veículo com a matrícula -0R e a quantia de € 1.550,00 (mil, quinhentos e cinquenta euros) são propriedade da herança deixada por óbito daquele AA e, em consequência, condenar a Ré a entregar aquele veículo e aquela quantia às Autoras, sendo esta acrescida de juros remuneratórios à taxa legal, calculados desde 12 de Abril de 2006 e até integral pagamento, absolvendo a Ré de tudo o mais que vem peticionado”; e “[a]  reconvenção parcialmente procedente e, em consequência, condenar as Autoras, CC e DD, a reconhecerem que a Ré é a exclusiva proprietária do veículo com a matrícula -GT e a absterem-se de qualquer acto perturbador do exercício desse direito, absolvendo as Autoras do mais que vem peticionado”, recorre, de revista, a Ré/reconvinte, BB, havendo a considerar os sequentes,

I.A. – Antecedentes Processuais.

CC e DD, interpuseram, no Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras, 2º Juízo, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra BB e EE, na qual foi peticionaram: “o reconhecimento da sua qualidade sucessória e, em consequência, estes condenadas a entregarem todos os bens que compõem a herança do falecido AA, nomeadamente constantes dos nºs 8, 31, 36 e 41 da Petição Inicial; o ordenamento do cancelamento do registo de propriedade sobre o Renault Clio, com a matrícula -GT e/ou de todos os registos posteriores ao falecimento do mesmo AA, com referência aos veículos que se fazem referência nos autos; a declaração de nulidade da venda de um gerador de corrente ou, caso se prove a boa-fé do comprador, a condenação da R a restituir-lhes a quantia de 400,00 €, assim como a pagarem-lhes a quantia de 1.550,00 € levantada de conta bancária de tal falecido; ser considerada a posse dos RR ilegal e de má-fé; e condenados os RR a uma indemnização pelos prejuízos decorrente da recusa injustificada da entrega dos bens reclamados.”

Alegaram, para tanto, em síntese apertada, serem herdeiras do falecido (filhas), o qual viveu cerca de nove anos em união de facto com a R, tendo esta ficado na posse de todos os bens que integravam a sua herança. Alguns dias depois da sua morte a R entregou alguns dos seus bens mas não lhes entregou vários outros (um veículo Mercedes, com a matrícula -KD, um estabelecimento comercial “A ...”, várias moedas, peças de relojoaria, anéis, fios, pulseiras, o recheio da casa de habitação, um cofre, dinheiro, documentos, registos, apólices, uma máquina fotográfica, um telemóvel, uma mira de carabina telescópica, um veículo marca Nissan, com a matrícula -OR, um veículo marca Renault, com a matrícula -GT e três outros veículos como um de marca Austin, um BMW antigo e um Renault 11 ou 9, quanto a estes, desconhecendo-se se a sua propriedade se encontra devidamente registada a favor do de cujus, ainda a quantia de 1.550,00 € de conta bancária, cujo único titular era o falecido e a soma de 400,00 € relativa à venda, efectuada pela R a terceiro de um gerador de corrente, que era também da propriedade do falecido), e o R mantém em sua posse uma moto BMW com a matrícula …II, também da propriedade do falecido, assim, considerando essas posses ilegítimas e de má-fé.

Regularmente citados, veio o R alegar, sumariamente, que se dedica ao exercício da actividade comercial de compra e venda de veículos motorizados, detinha um crédito sobre o falecido, os negócios da auto-caravana e da moto BMW foram distintos, o primeiro concretizando-se plenamente e, por isso, as AA litigam de má-fé. Em reconvenção, peticionou a condenação das AA a pagarem-lhe uma indemnização a “liquidar em execução de sentença”, mas nunca inferior a 3.000,00 €, devido à privação de disposição plena e livre daquela moto por causa de providência cautelar, assim como, por causa de tal litigância, em multa e indemnização a seu favor em montante igualmente a liquidar em execução de sentença.

Por sua banda, a R alegou, em síntese, a ineptidão da petição inicial, a sua ilegitimidade “material”, por as AA por não poderem peticionarem a nulidade de negócio contra si, e a ilegitimidade das AA.

Em sede impugnatória, afirmaram, em súmula, desconhecer certos factos, que o falecido, quando se divorciou foi viver em sua casa, desde 1998, onde está instalado o dito estabelecimento comercial, sendo ela quem o geria e explorava de forma individual e autónoma, a conta bancária citada tinha dinheiro seu e do falecido, afirmando-se sua “co-titular”. Mais frima que entregou às AA todos os bens que pertenciam ao falecido e alguns dos que são referidos no nº 8 da Petição Inicial, desconhece a sua existência, desconhecia a situação jurídica de veículos comercializados pelo falecido, sendo que era seu o veículo Renault Clio, com matrícula -GT bem como o veículo Nissan com matricula -OR, pelos motivos aduzidos nos nºs 26 a 54 da contestação. Quanto ao que se refere no nº 28 do articulado inicial, atinente com o estabelecimento comercial, os bens móveis do mesmo, mais que não fosse, foram por si adquiridos por usucapião. Adio que estes procedimentos judiciais lhe estão a causar danos patrimoniais e de natureza moral e, finalmente, que as AA litigam de má fé.

Termina deduzindo pedido reconvencional, para as AA sejam condenadas a reconhecerem: “que é única dona e exclusiva possuidora e legitima proprietária do dito estabelecimento comercial, constituído e integrado pelos bens que designou no nº 30 da contestação, abstendo-se de quaisquer actos turbadores do seu exercício; o mesmo acontecendo com o recheio da sua casa de habitação, adquirido por via derivada (dois guarda fatos, mesa de cabeceira, cómoda e cama); com os veículos automóveis com as matrículas -OR (Nissan Navarra), desde 05.03.202, e -GT (Renault Clio), desde Dezembro de 2005, adquiridos por via derivada, no primeiro caso declarando-se ainda a caducidade do respectivo registo; com um telemóvel (Vitamina Sharp, 703); ser legítima contitular da conta nº …; bem como, a pagarem-lhe uma indemnização nunca inferior a 5.000,00 € por litigância de má fé e uma indemnização a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela restrição do direito de propriedade em consequência do decretamento da providência cautelar apensa; igualmente, a título subsidiário; que contribuiu com o montante de 15.000,00 € na aquisição no citado veículo de matricula -OR e a restituírem-lhe esse valor; que foram depositados na aludida conta 2.000,00 € pelo que restituírem-lhe esse valor, em ambos os casos, nomeadamente pelo mecanismo do enriquecimento sem causa; e ser a única e exclusiva possuidora e dona, quer por aquisição derivada quer por aquisição originária, assente na usucapião, de todos os bens móveis que compõem o aludido estabelecimento comercial referidos no citado nº 30.”

Foi apresentada réplica relativamente a ambas as contestações, onde se respondeu à citada nulidade de ineptidão de petição inicial, à excepção de ilegitimidade e às reconvenções, requereu-se a ampliação da causa de pedir quanto à aceitação da herança, ao alegado no nº 5 da contestação e ao pedido de cancelamento de registo de propriedade de veículos, a título subsidiário, no que respeita designadamente à natureza da posse do falecido sobre os bens que se invocaram como dele, e, igualmente subsidiariamente, do pedido. No mais, mantendo a sua posição inicial, referiram também que a coabitação entre o falecido e a R foi iniciada em princípios de 1997 e, desde 24.05.2000, toda a facturação do estabelecimento era apresentada nos Serviços de Finanças em nome do falecido e, não obstante isso, todos os actos necessários à sua abertura foram requeridos pelo mesmo. Aceitaram e aceitam a herança do falecido, e dessume pedindo a qualificação da Ré como litigante de má fé, bem como o R, e que aquela age em abuso de direito.

A ampliação do pedido consistia em os RR serem condenados a reconhecerem que o falecido era o único dono e legítimo proprietário dos bens identificados nos nºs 8, 31, 36 e 42 da Petição Inicial, quer por via derivada quer por via originária assente na usucapião, e para a hipótese de alguns bens cuja restituição se peticiona não serem encontrados, serem condenados também numa indemnização por equivalente, a ser determinado em execução de sentença, assim como serem condenados como litigantes de má fé e considerar-se a R ter agido em abuso de direito na modalidade de venire contra factum próprio.

Os RR treplicaram, ambos persistindo nas suas posições que já haviam assumido nos articulados precedentes.

A fls. 382 a 385, vieram as AA requerer intervenção principal provocada de FF e GG, o que foi indeferido a fls. 443.

Foi proferido despacho saneador (fls. 444 a 460) onde foram admitidas as reconvenções, se rejeitou a ampliação do pedido e da causa de pedir formulados pelas AA, se julgou não haver ineptidão da Petição Inicial e não serem as partes ilegítimas, tendo-se fixado também os factos assentes e a Base Instrutória.

Apensos a estes autos, está a providência cautelar de arrolamento interposta pelas AA contra a R de que resultou o seu provimento (A, fls. 109 a 119) e o Recurso de Agravo, interposto pela R deste, que não obteve provimento (B).  

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, altura em que AA e o R transigiram e foi proferida decisão sobre a matéria de facto, não se constatando qualquer reclamação (fls. 606 a 608, 679/680 e 684 a 697).

Foi prolatada sentença, na qual se julgou a acção e a reconvenção parcialmente procedente, reconhecendo-se às AA a qualidade de herdeiras do citado falecido e condenando-se a R a reconhecer que o veículo com a matrícula -OR e a quantia de 1.550,00 € são propriedade da herança deixada por óbito daquele e, em consequência, condenando-se ainda a mesma a entregar aquele veículo e aquela quantia às AA, sendo esta acrescida de juros remuneratórios à taxa legal, calculados desde 12.04.2006 até integral pagamento, bem como ainda absolvendo-se a R de tudo o mais que contra ela foi peticionado, quanto à reconvenção, condenando-se as AA a reconhecerem que a R é a exclusiva proprietária do veículo com a matrícula -GT e a absterem-se de qualquer acto perturbador do exercício desse direito, e, igualmente absolvendo-se as AA do mais que contra si foi pedido.

Da sentença prolatada interpôs recurso de apelação a R., tendo este vindo a ser julgado, improcedente.

Irresignada com a sorte dada à apelação, recorre, de revista a demandada, tendo dessumido a arenga alegatória com o sequente:

I.B. – Quadro Conclusivo.

1.º) Face à matéria de facto dada como Assente em D); E) e F) em conjugação com as respostas dadas aos quesitos 38.º a 42.º da base instrutória e, ainda, com a resposta positiva que legalmente merece o quesito 53.º da base instrutória, deverá, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 408.º, n.º 1; 879.º, al. a); 1252.º, n.º 2; 1253.º, n.º 1; 1259.º; 1260.º; 1268.º; 1287.º; 1288.º; 1299.º, n.º 1 todos do Código Civil e a Doutrina fixada no Acórdão de uniformização de Jurisprudência de 14.05.2006 publicado DR n.º 144 de 24.061996, ser dado provimento ao pedido formulado a título principal na al. a) da reconvenção ou seja: “Declarar-se ser as Autoras condenadas a reconhecer que a Ré é a única, dona, legitima possuidora e exclusiva proprietária do estabelecimento comercial de bebidas denominada “A ..." composto por um café e uma tasca sito no lugar do Assento, Vila Cova da Lixa, constituído e integrado pelos bens referidos no art. 30° supra, os quais por uma questão de economia processual aqui se dão por reproduzidos, e absterem-se de quaisquer actos turbadores do seu exercício"

2.º) O Tribunal “ad quem" ao decidir manter a resposta negativa ao quesito 53.º da base instrutória, incorreu numa incorrecta interpretação dos preceitos legais relevantes al. a) do art. 1253.º e n.º 1 do art. 1260.º do Código Civil.

É que a conclusão de que existiu posse não exige a prova positiva da existência da intenção de actuar como proprietário. O n.º 2 do artigo 1252.º do Código Civil inverte o ónus da prova quanto à existência de posse, assente na prova da detenção.

No caso, provada a detenção, incumbia à parte contrária, nos termos do n.º 2 do artigo 1252.º e da doutrina fixada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribuna de Justiça de 14.05.2006 publicado no DR n.º 144, de 24.06.1996, ter ilidido a presunção de posse, demonstrando-se estar-se presente uma das situações previstas nas diversas alíneas do artigo 1253.º do Código Civil.

Não havendo qualquer prova de que a recorrente agiu sem intenção de actuar como proprietária, da prova da detenção extrai-se a presunção de posse.

Considera-se assim que a recorrente adquiriu a posse "pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, de acordo e de harmonia com o que dispõe o artigo 1263.º a) do Código Civil", pelo que, contrariamente ao decidido pelo Tribunal" ad quem", a Ré ora Recorrente tem a posse causal do estabelecimento comercial, devendo por isso em consequência ser dado provimento ao pedido reconvencional declarando-se do mesmo ser sua dona e legitima possuidora.

3.º) Com o mesmo fundamento jurídico aduzido para o pedido principal, refere-se que face à matéria dada como assente em D); E) e F) em conjugação com as respostas dadas aos quesitos 38.º a 42.º, 44.º a 48.º da base instrutória, e à resposta positiva que legalmente merece o art. 53.º da base instrutória, deve esse douto Supremo Tribunal de Justiça e atento o disposto nos arts. 408.º, n.º 1; 879.º, al. a); n.º 2 do 1252.º; 1253.º, n.º 1; 1259.º; 1260.º; 1268.º; 1287.º; 1288.º; 1299.º, n.º 1; 1287.º, 1288.º, 1299.º; 1 1316.º e 1317.º, a) do Código Civil, dar provimento ao pedido subsidiário formulada pela Ré/ Reconvinda/Recorrente e, em consequência, declarar ser as Autoras condenadas a reconhecer que a Ré é a única, dona, legitima possuidora e exclusiva proprietária quer por via derivada quer por via originária assente na usucapião, de todos os bens móveis que compõem o estabelecimento comercial referido no art. 8.º da petição inicial e 30.º da contestação e que por uma questão de economia processual aqui se dão por integralmente reproduzidos.

4.º) A matéria dada como assente em O); E) e F)em conjugação com as respostas dadas aos quesitos 38.º a 53.ºe, bem assim, ao quesito 75.º da base instrutória, consubstancia a violação do direito de propriedade num dos seus núcleos e, por isso, tal comportamento é gerador de responsabilidade extra-contratual cuja tutela jurídica advém do art. 483.º e seguintes do Código Civil, tanto mais que na petição inicial não se mostram alegados quaisquer factos sustentadores da titularidade sobre o estabelecimento comercial em questão, mau grado tratar-se de uma acção de natureza real, o que por si só induz e demonstra a falta de possibilidade séria por parte das Autoras, de harmonia com o disposto nos art. 387.º, n.º 1 e 423.º, n.º 1 do C.P. Civil, da verificação da probabilidade da procedência da acção principal, encontrando-se assim preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, pelo que, desse modo, deve proceder na íntegra o pedido formulado pela Ré ora Recorrente a título principal sob a alínea f) da sua reconvenção;

5.º) Da formulação factual e da resposta dada o quesito 62.º da base instrutória dúvidas não restam que a Ré ora Recorrente utilizava o veículo para o transporte de mercadorias, pelo que, nos termos do disposto no art. 1253.º do Código Civil, é a mesma detentora do veículo No entanto caso assim se não entenda sempre deverá esse douto e Venerando Supremo Tribunal de Justiça usar da prerrogativa prevista no n.º 3 do art. 729.º do C.P. Civil ordenando a ampliação da matéria de facto. No que se refere à resposta negativa dada ao quesito 63.º. pelas razões e argumentos já apontadas no presente recurso e que verte dos pontos 1.º, 2.º e 3.º das presentes conclusões as quais que aqui se dão por reproduzidas por uma questão de economia processual, atento as disposições combinadas dos art. 1252.º, n.º 2 e 1253.º do Código Civil e a doutrina fixada no Acórdão de fixação de Jurisprudência publicado no DR 11 Série, n.º 144, de 24.06.1996, tal resposta negativa deverá ser alterada e ao invés deve a mesma ter uma resposta positiva e, em consequência, deverá a Ré/Reconvinte/ Recorrente ser considerada possuidora ou pelo menos compossuidora do veículo automóvel de marca" Nissan Navara 4x4 de matrícula -0R".

6.º) O Tribunal " a quo" na resposta ao referido quesito 62.º da base instrutória, não respeita as regras da repartição do "ónus da prova" na medida em que nos termos das disposições conjugadas dos arts. 1268.º, n.º 1 e 342.º, n.ºs 2 e 3 todos do Código Civil, uma vez gozando da presunção do registo, incumbia-lhes a prova da data do inicio da posse, dado esse facto configurar uma facto extintivo, pelo que deverá esse douto Supremo Tribunal ao abrigo do disposto nos artigos 722.º, n.º 2 e 684.º-A, n.º 2 ambos do C.P. Civil, alterar a resposta dada ao quesito 62.º, ficando, a constar, o alegado dia 5 de Março de 2002, como data do inicio da posse ou composse por parte da Ré ora Recorrente e, em consequência, nos termos do disposto no art. 1268.º, n.º 1 do Código Civil, dando provimento ao pedido formulado pela Ré/Reconvinte/Recorrente na al. c) da reconvenção, declarar ser as Autoras condenadas a reconhecer que a Ré é única dona, legitima possuidora continua e ininterruptamente desde 5 de Março de 2002 e por via derivada exclusiva proprietária do veículo automóvel de marca" Nissan Navara 4 x 4" de cor cinza escura, com a matricula -OR, e absterem-se de quaisquer actos turbadores do seu exercício, devendo em consequência declarar-se a caducidade do respectivo registo.

7.º) Da matéria constante de C) dos factos assentes resulta, nos termos dos arts. 374.º, n.º 1 e 376.º, n.º 2 do Código Civil, a força formal e material, documento de fls. 68 do apenso A, intitulado termo de entrega datado de 7 de Março de 2006", pelo que, as declarações constantes desse documento tem força probatória plena quanto aos factos nela contidas, na medida em que são contrários os interesses da Autora conforme resulta da impugnação à matéria alegada pela Ré nos artes 27.º e 28.º da sua reconvenção. Do referido documento consta além do mais: "a carrinha Navarra foi paga pela D. BB em dinheiro (cerca de 3.000 contos), foi comprada em Lousada na feira do automóvel. Será fornecida cópia do registo de propriedade e Livrete à mandatária das herdeiras, bem como a indicação e o local onde o mesmo se encontra".

No quesito 59.º pergunta-se: Para a ré concretizar a aquisição do OR, a ré entregou ao dono HH € 15.000?

E respondeu-se – Não provado.

Este quesito teve como fonte a matéria alegada pela Ré ora Recorrente nos arts. 27.º e 28.º da sua reconvenção, impugnada pelas Autoras, pelo que, sustentando as Autoras que a Ré ora Recorrente não entregou para pagamento da carrinha a quantia de 3.000 contos ou € 15.000,00, as declarações contidas em tal documento é contrária aos seus interesses, o que implica que seja atribuído nos termos do disposto nos arts. 374.º, n.º 1 e 376.º, n.º 2 do Código Civil força probatória plena aos factos nele contidas, devendo, por isso, o quesito 59.º, da base instrutória, merecer resposta positiva. Assim, deve esse douto Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto nos arts. 722.º, n.º 2 e 684.º-A, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, alterar a resposta dada ao quesito 59.º da base instrutória no sentido de a mesma ser considerada como provada.

8.º) Face ao principio da indivisibilidade da confissão previsto no art. 360.º do Código Civil, a resposta ao quesito 59.º da base instrutória deve considerar-se, nos termos do disposto no art. 649.º do C.P.C, não escrita na medida em que o documento referido na al. C) dos factos assentes tem força probatória plena e não se mostra alegado pelas Autoras factos extintivos referentes à entrega pela Ré ora Recorrente da quantia de 3.000 contos, sendo certo que, o referido quesito 59.º tem por fonte a matéria alegada pela Ré nos arts. 27.º e 28.º da sua reconvenção e impugnada pelas Autoras

9.º) A resposta ao quesito 25.º é suportada na confissão judicial, assim as Autoras Recorridas uma vez herdeiras, face ao disposto nas disposições conjugadas dos arts. 360.º do CC (principio da indivisibilidade da confissão) e 2068.º e 2071.º, n.º 2 do CC (responsabilidade da herança e do herdeiro), para ver reconhecido o peticionado direito à quantia em questão, teriam obrigatoriamente de fazer prova do pagamento das despesas com o funeral, pelo que não se mostrando verificada essa prova de pagamento, ao invés da condenação, o Tribunal deveria isso sim absolver a Ré do pedido peticionado pelas Autoras/Recorridas e consistente na restituição da quantia de €1.550,00 e respectivos juros.

10.º) A presente decisão violou entre outras: Doutrina fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 14.06.96-DR n.º 144 de 24.06.96; arts. 342.º, n.º 2 e 3; 350.º; 363.º; 374.º; 376.º; 483.º; 1260.º; 1287.º; 1299.ª; 1305.º; 2068.º; e 2071.º, todos do Código Civil

Termos em que deve ser dado provimento ao presente Recurso e em consequência, proferir douta decisão a condenar as Autoras Recorridas nos pedidos formulados pela Ré Recorrente na reconvenção a titulo principal sob as alíneas a), c). e), a titulo subsidiário sob as alíneas a) e c)

As demandantes/recorridas não produziram contra-alegações.

I.C. – Questões a merecer apreciação.

Os temas que a recorrente pretende ver apreciados na revista que interpôs do julgado prolatado pelo Tribunal da relação de Coimbra, vêm enunciadas a fls. 1042 – a) propriedade e posse do estabelecimento comercial; b) responsabilidade civil extracontratual; c) Posse e propriedade sobre veículo automóvel; d) pedido de restituição da quantia de € 1.550,00 – sendo que para o desiderato pretendido para o sucesso da sua pretensão pede que este Supremo tribunal faça uso dos poderes contidos no artigo 722.º, n.º 2 e 684.º-A, ambos do Código Processo Civil.

Na economia do quadro conclusivo extractado, tem o tribunal por pertinentes para a solução da revista, as seguintes questões:

a) - Alteração (modificação) da decisão de facto. Poderes do Supremo Tribunal de Justiça;

b) - Posse do estabelecimento comercial;

c) - Detenção e posse sobre um veículo automóvel;

d) - Responsabilidade civil extracontratual (por as AA. haverem formulado na providência cautelar de arrolamento, o arrolamento do estabelecimento comercial “...” e como isso terem privado, eventualmente, a demandada/reconvinte de transaccionar o estabelecimento, limitando, desta forma o seu direito de propriedade);   

e) - Restituição da quantia de mil quinhentos e cinquenta euros (€ 1.550,00).           

II. – Fundamentação.

II.A. – De Facto.

Vem adquirida, pela imodificabilidade que a decisão da Relação consolidou à decisão de facto da 1.ª instância, a sequente factualidade:

“1- No dia 15.02.2006, faleceu AA, no estado de divorciado, sem fazer testamento ou doação por morte, sucedendo-lhe como únicas herdeiras duas filhas, as AA.

2- Encontra-se registado a favor de II o veículo Renault, de matrícula -GT, pela Ap. 2902 de 10.12.2004 (cfr título de registo de cópia a fls. 159 do apenso A).

3- Teor declarado do documento de fls. 68 do apenso A, intitulado termo de entrega e datado de 07.03.2006.

4- Por escrito datado de 13.11.1996, de cópia a fls. 99, cujo teor se dá por repetido, intitulado contrato de arrendamento para comércio, foi consignado que JJ, como senhorio e BB, como inquilina, celebraram um contrato de arrendamento para comércio de café, snack-bar e adega.

5- Declaração de início de actividade em nome da R, apresentada em 14.11.1996 para a actividade de café e snack-bar e adega, de cópia a fls. 100, cujo teor se dá por repetido.

6- Teor declarado do alvará de abertura de estabelecimento de bebidas emitido em Maio de 1997 pelo Governo Civil do Porto em nome da R, de cópia a fls. 110.

7- O falecido AA, há cerca de nove anos, que vivia com a R, como se fossem marido e mulher, partilhando habitação, mesa e leito, no estabelecimento de café, tasca e bebidas denominado a “...”.

8- Após o óbito do AA, a Ré apoderou-se de 1.550,00 € do falecido, da conta bancária à ordem nº…..

9- O falecido, há cerca de quinze anos, exercia a actividade de compra e venda de automóveis.

10- O falecido colocou para venda o seu veículo automóvel com a matrícula DE- no stand M... – Comércio de Automóveis, sito em ..., ..., Vila Meã.

11- O veículo OB- foi acordado ser adquirido pelo falecido a KK.

12- A R, entre 15 e 20.02.2006, levantou da conta do falecido, identificada a fls. 74 do apenso A, a soma de 1.550,00 €.

13- A Ré ajustou e negociou o acordo referido no nº 4 destes factos para si própria, formulando os requerimentos de fls. 100 e 109.

14- As facturas de fls. 111 a 113 e 129 e a vendas a dinheiro de fls. 130 foram emitidas no nome da R.

15- Desde a abertura da ... que a R administra tal estabelecimento, encomendando aos fornecedores todos os víveres e géneros e o gás.

16- A R figura como arrendatária no contrato referido no nº 4 destes factos.

17- As facturas da água, da taxa de resíduos, da luz e da TV cabo são emitidas no nome da R.

18- Requeria as licenças camarárias, a sua renovação periódica e realizou obras.

19- A R pratica os actos referidos nos nºs 13, 14, 15 e 18 destes factos à vista de toda a gente e sem interrupção.

20- O OR era utilizado no transporte de mercadorias e em deslocações à caça.

21- A R movimentava tal conta com o cartão multibanco do falecido.

22- Com a providência do apenso A, a Ré ficou impedida de transaccionar os seus bens.

23- Encontra-se registado a favor de AA o veículo de marca Nissan, de matrícula -OR, pela Ap.0028 de 15.04.2002 (cfr certidão de fls. 407 e segs. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

24- Encontra-se registado a favor de GG o veículo de marca Volkswagen, de matrícula DE-, pela Ap.05246 de 28.04.2006 (cfr certidão de fls. 390 e segs. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

25- Encontra-se registado a favor de GG o veículo de marca Mercedes-Benz, de matrícula OB-, pela Ap.05175 de 28/04/2006 (cfr. certidão de fls. 395 e segs. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

26- Pela Ap. 03531, de 09.06.2006, a R procedeu ao registo da aquisição do veículo marca Renault, com a matrícula -GT (cfr certidão de fls. 406 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

27- Pela Ap.7912 de 20.10.2006, as AA procederam ao registo da acção relativamente ao veículo marca Renault, com a matrícula -GT (cfr certidão de fls. 406 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).”

II.B. – De Direito.

II.B.1. – Alteração (modificação) da decisão de facto. Poderes do Supremo tribunal de Justiça.

O Supremo Tribunal de Justiça é, organicamente um tribunal de revista – cfr. artigo 26.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - pelo que a sua capacidade de cognoscibilidade em matéria de recurso (de revista) está confinada a questões de direito - cfr. artigo 722.º e 729.º, ambos do Código Processo Civil. Essa confinação de cognoscibilidade apenas sofre um “desvio” ou entorse nos casos em que o Supremo, analisada a factualidade adquirida pelas instâncias, verifica não ser compaginável com a assumpção ou eleição de uma arrimada decisão de direito. Neste caso, depois de fixar a questão de direito, o Supremo envia o processo para ampliação da decisão de facto para a 2.ª instância.

Mesmo no campo da possibilidade de censura da decisão de facto os poderes do Supremo Tribunal de Justiça estão confinados aos casos em que tenha havido “[ofensa] de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe força de determinado meio de prova.” - cfr. n.º 3 do artigo 722.º do Código Processo Civil.
A este propósito escreveu-se no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 01-03-2012, relatado pela Conselheira Maria dos Prazeres Beleza: “[como] se observou, por exemplo, nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 4 de Novembro de 2010 (proc. nº 2916/05.9TBVCD.P1.S1), ou de 3 de Fevereiro de 2011 (proc. nº 29/04.0TBRSD.P1.S1), ambos relatados pela presente relatora e disponíveis em www.dgsi.pt, por princípio apenas existe um grau de recurso quanto à decisão sobre a matéria de facto. A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nesse domínio está limitada aos casos previstos no nº 2 do artigo 722º e no nº 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil, ou seja, às situações em que o erro no julgamento de facto resulta, não de uma desajustada ponderação das provas produzidas, à luz do princípio da livre apreciação (artigo 655º do Código de Processo Civil), mas de uma incorrecta aplicação de critérios legalmente definidos relativamente à sua admissibilidade ou ao seu valor (cfr., por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 2 de Novembro de 2006, de 31 de Maio de 2007, de 26 de Junho de 2008, de 18 de Dezembro de 2008 ou de 20 de Janeiro de 2010, disponíveis em www.dgsi.pt. como processos nºs 06B2641, 07B1333, 07B335, 07B3434 e 09B195).
Isto significa que é preciso que o tribunal recorrido tenha ofendido “uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova para que, na revista, o Supremo Tribunal possa corrigir qualquer “erro na apreciação das provas” ou na “fixação dos factos materiais da causa”; ou, ainda, que tenha infringido os limites traçados pelos nºs 1 e 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil para o exercício do poder de reapreciação da decisão de facto da 1ª Instância (neste sentido ver, por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Setembro de 2009, www.dgsi.pt.  proc. nº 374/09.8YFLSB).
Estão assim subtraídos à sua apreciação os meios de prova sem valor tabelado, relativamente aos quais a última palavra pertence à 2ª Instância; e também o controlo da interpretação de declarações negociais, no que se refere à determinação do sentido da vontade real dos intervenientes, por se tratar de questão ainda situada no domínio dos factos; apenas lhe é permitido avaliar a aplicação dos critérios legais de interpretação (assim, e apenas como exemplo, cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Setembro de 2008, 18 de Novembro de 2008, 16 de Abril de 2009 ou 11 de Março de 2010, www.dgsi.pt. procs. nºs 697/1000.S1, 08B2748, 08B2346, 77/07.8CTB.C1.S1).” [[1]]

Resulta, assim, limitada e de efeitos cingidos a possibilidade de o Supremo Tribunal em sede recurso de revista sindicar ou escrutinar a decisão de facto laborada pelas instâncias. Valendo-se, como tribunal que atina, primacialmente, como aferidor da decisão em matéria de direito, o Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá sindicar a decisão da matéria de facto se esta revelar uma incompletude ontológica para sustentar uma decisão arrimada ao direito ou nos já apontados casos ineridos nos artigos 722.º, n.º 2 e 729.º, n.º 3, ambos do Código Processo Civil. Desta competência residual, em matéria de sindicância da decisão de facto, resulta que ao Supremo tribunal está vedada a possibilidade de sindicar a decisão de facto quando o tribunal inferior toma como referente decisional prova não vinculada ou não ofenda regras de produção de prova que a lei prescreva. Vale por dizer que tendo as instâncias laborado a decisão de facto num conspecto de livre apreciação da prova escapa ao Supremo Tribunal sindicar a percepção e a compreensão dos meios de prova captados e utilizados, ou seja o sentido e a inteligibilidade que desses meios de prova o julgador captou e razoou para obter o resultado probatório que consignou na decisão de facto. A decisão de facto fundada em meios de prova que devam ser apreciados livremente pelo tribunal, pelo razoamento e capacidade de inteligibilidade pessoal-institucional a que estão sujeitos, desde que não violem as regras estipuladas para a sua produção em tribunal, não podem ser escrutinadas pelo Supremo Tribunal. De facto, o distanciamento que da prova produzida por meios não vinculados e que possam ser percepcionados, directamente, pelo Supremo Tribunal ou que não possam decorrer directamente da lei, conduziria a criar uma volatilidade nos mecanismos de produção e aquisição de prova para o processo que tornariam as decisões infinitamente sindicáveis e sem certeza relativa quanto a um dos suportes decisórios, ou seja uma decisão de facto performativa da aplicação do direito. A criação de um espaço de certeza e de segurança para a aplicação do direito pelo Supremo Tribunal impõe que se confira á decisão de facto, consolidada pelas instâncias numa livre apreciação da prova não vinculada, um valor de certeza probatória e de pressuposto referencial incontornável.

Decorre do que fica explanado que, no âmbito do julgamento da matéria de facto, cabe, quase em exclusivo ou numa dimensão quase total, às instâncias fixaram os parâmetros em que o Supremo Tribunal terá de se movimentar e orientar para aplicar o direito que ao caso couber. A esta instância o papel residual de sindicar a forma e o modo como as instâncias procederam à aplicação das normas de direito probatório de que se serviram para obtenção dos juízos e veredictos a que chegaram por aplicação das referidas normas. Esta função, capacidade cognoscente atina com o já referido enquadramento estatutário que a lei orgânica lhe inculca e ao qual o vincula, de conhecer tão só de matéria de direito deixando para quem tem a obrigação de estar em contacto directo com as testemunhas e demais modos de obtenção de prova o poder-dever de formular os juízos, extrair conclusões fácticas e justificar os resultados das provas apresentadas pelos sujeitos processuais. Desta injunção normativa extrai-se, com meridiana linearidade intelectiva, que o Supremo estaria capacitado e poderia intervir na operação de reapreciação da decisão de facto estabelecida pela 2.ª instância e criticar a forma como aceitou ou modificou a decisão de tacto que lhe vinha aportada da 1.ª instância. Tal seria possível se o recorrente traz a terreiro um comportamento inibitório ou perverso que a 2.ª instância omitiu ou malverteu na aplicação das mencionadas norma de direito probatório material. [[2]
Vale por dizer, em jeito de remate, que o Supremo conhece de matéria de facto apenas nas duas hipóteses da 2ª parte do n.º 2 do art. 722º: quando o tribunal recorrido tiver dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência (1ª hipótese), ou quando tenham sido desrespeitadas as normas que regulam a força probatória de algum dos meios de prova admitidos no nosso sistema jurídico (2ª hipótese).

Fixada a questão da modificabilidade da decisão de facto nos termos enunciados, passar-se-á à questão de saber se a ré/reconvinte, em face da matéria de facto provada pode ser considerada proprietária do estabelecimento comercial “P...”, sobre o qual exercia efectivos poderes de gestão corrente e corrente. 

O que se deixa dito serve para balizar o que, na apreciação a fazer das questões enunciados para cognoscibilidade, se dirá quanto à pretendida alteração da decisão de facto, nomeadamente quanto à modificabilidade (fornecendo uma resposta positiva em vez de negativa ou por ampliação) da resposta fornecida aos quesitos 62.º e 63.º atinente à posse do veículo com a matricula -OR – Nissan Navara 4X4); bem como o quesito 59.º – cfr. fls. 1057 - que pretende ver respondido afirmativamente, em vez da resposta negativa que obteve por parte das instâncias. 

II.B.2. – Estabelecimento comercial. Posse.

Em antelação à questão concreta equacionada pela recorrente relativamente à aplicação ao caso da doutrina inserta no acórdão de uniformização do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Maio de 1996, publicado no DR, n.º 144, de 24 de Junho de 2006, [[3]] haverá que tecer algumas considerações quanto à possibilidade de exercício de um poder possessório sobre o estabelecimento comercial, enquanto universalidade de facto distinta dos bens corpóreos e incorpóreos que a constituem. 

A questão da possibilidade de exercício de um poder possessório relativamente ao estabelecimento comercial digladiou-se na doutrina e jurisprudência, com duas teses que pugnaram, respectivamente, pela possibilidade de um poder possessória sobre o estabelecimento comercial e outra que negava essa possibilidade.

Para a primeira, o argumento primacial assentava na heterogeneidade doe elementos compósitos do que faziam parte ou constituíam um estabelecimento comercial. Um estabelecimento comercial era formado por elementos ou coisas corpóreas e elementos incorpóreos ou imateriais. Constituindo-se como um aglutinado (compósito) de bens materiais e imateriais, não poderia ser individualizado como coisa em si mesma, pela impossibilidade que ocorre de as coisas imateriais serem objecto de um poder materializado sobre elas. O estabelecimento não poderia entrar na classificação de coisa sobre que fosse possível exercer um poder efectivo, real e materializado. Já a tese que se lhe opõem, ou seja a que considera poder ser o estabelecimento comercial objecto de um poder efectivo de posse, estima e defende que o estabelecimento comercial deve ser tida como uma entidade ou realidade em si mesma e distinta dos seus elementos compósitos. Para os defensores desta tese, o estabelecimento comercial emerge como uma unidade distintiva de cada um dos elementos que a constituem, formando uma unidade de fim, por, na congregação dos elementos, materiais e corpóreos e imateriais ou incorpóreos, que a compõem se enuclearizarem para formar um fim económico e social distinto de cada um dos elementos, individualmente considerados, vindo deles a acendrar-se uma verdadeira, própria e distinta realidade. [[4]/[5]]

Os autores, designadamente, Coutinho de Abreu, refere uma cópia de disposições legais que atestam a individualidade, ou consideração como unidade incindível e susceptível de exercício possessório, pela faculdade de exercício de direitos específicos que a lhe atribui ou que sobre o mesmo podem ser exercitados. Assim na área do comércio locatício o estabelecimento comercial pode ser objecto (autónomo) de locação – cfr. artigos 1109º (locação de estabelecimento; e 1112º, transmissão da posição do arrendatário, no caso de trespasse do estabelecimento comercial ou industrial e direito de preferência do senhorio - sendo que, no âmbito dos direitos reais os (“os proprietários e os donos de estabelecimentos industriais, que tenham o direito ao uso de águas particulares existentes em prédio alheio, podem fazer neste prédio as obras necessárias ao represamento e derivação da respectiva água, mediante o pagamento da indemnização correspondente ao prejuízo que causarem”) - cfr. artigo 1559.º do Código Civil - só podendo os proprietários de estabelecimento comercial aproveitar da servidão de presa para aproveitamento de águas públicas , nos termos do artigo1560º nº 1, alínea a), ainda no campo da alienação, oneração ou locação de estabelecimento comercial o artigo 1682º-A, nº 1, alínea b) estipula que carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime da separação de bens, ou ainda no dominio do exercício de direitos por intervenção ou intermédio de outrem, se estipula a necessidade de autorização do tutor para continuar a exploração do estabelecimento comercial ou industrial que o menor haja recebido por sucessão ou doação - 1938º nº 1, al. f)).

Para a segunda tese, defendem os seus cultores, que o Código Civil português assumiu a teoria unitária pelo que a solução do problema de saber se as partes componentes poderão ser objecto de relações jurídicas de natureza real distinta das que incidem sobre o todo “deve resolver-se em sentido negativo, salvo quando a lei admita expressamente, permitindo a autonomização de certos elementos.” [[6]

A primeira das posições recortadas configura-se como sendo a mais consentânea com a doutrina mais abalizada e que decorre, inclusive, de plúrimas disposições normativas que contemplam a possibilidade de se realizarem negócios jurídicos sobre estabelecimentos comerciais, como se procurou demonstrar. [[7]

Recortada a questão possibilidade de um poder efectivo de posse relativamente ao estabelecimento comercial, vejamos o que se provou quanto ao efectivo exercício possessório de que a demandada/reconvinte faz derivar o seu direito à titularidade do estabelecimento “...”.

Ficou provado, parafraseando a decisão recorrida, que: a recorrente figurava como inquilina no contrato de arrendamento celebrado, em 13.11.1996, do café, snack-bar e adega; a declaração de início de actividade foi efectuada em seu nome, bem como o alvará da abertura do estabelecimento, emitido em Maio de 1997 pelo Governo Civil do Porto; as facturas e vendas dinheiro emitidas eram em nome da mesma; desde a abertura do estabelecimento, era a recorrente, que administrava o estabelecimento, encomendando aos fornecedores todos os víveres géneros e o gás; as facturas da água, da taxa de resíduos, da luz e da tv cabo eram emitidas em seu nome; era a recorrente quem requeria as licenças camarárias, a sua renovação periódica e a realização de obras e a pratica desses actos, à vista de toda a gente sem interrupção.

Pretende a recorrente que os actos praticados inculcavam uma actuação compatível com um poder de facto que deveria constituir uma presunção de um efectivo poder possessório compatível com a possibilidade de aquisição do direito de propriedade, sendo que existindo esse exercício de poder de facto (causal) a seu favor caberia ao reivindicado o ónus de provar a existência de qualquer das situações contempladas nas alíneas do artigo 1253.º do Código Civil. Estar-se-ia perante uma situação em que se torna ao detentor ser possuidor em nome próprio, sendo que nestes caos deve figurar a hipótese legal contida no n.º 2 do artigo 1252.º do Código Civil e consagrada no já citado acórdão uniformizador.   

Para que exista uma situação passível de ser compaginada com a previsão expressa no n.º 2 do artigo 1252.º do Código Civil torna-se necessário que o detentor da coisa aja sobre a ela com uma intenção ou propensão intelectual voluntarística compatível com um exercício de direito em nome próprio e para seu interesse pessoal e patrimonial, isto é, que alguém actue e/ou faça incidir o exercício de posse com o chamado “animus possidendi”.    

Reiterando aqui a lição citada no acórdão recorrido, citando o Professor Orlando de Carvalho de que o poder de facto sobre a coisa, em que se traduz o corpus, “é menos um contacto com a coisa do que uma imissão desta na zona de disponibilidade empírica do sujeito”. E “a intenção de domínio em sentido amplo não tem de explicitar-se e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou de utilização (lato sensu). Na dúvida quanto aos termos em que se processa, ao direito em termos do qual se possui – sabido que é em termos de um direito real, em termos de domínio pleno ou de uma derivação desse domínio –, deve entender-se que é em termos de propriedade, já que esta envolve no seu licere toda a «lógica da coisa» e, por isso, qualquer tipo de manifestação empírica” (Introdução à Posse, na RLJ, 122º, nº 3781, pág 105).

O mesmo autor reitera, mais adiante, esta relevante asserção, repetindo que, “(n)a dúvida, sendo seguro que há a intenção de se exercer um direito real (sobre isto, ou seja, sobre o carácter real do direito que os factos «intendem», não pode haver dúvidas, pois a ausência total do animus possidendi é insuprível), deve concluir-se que se quer possuir em termos de direito de propriedade …” (Estudo cit., na Revista decana, ano 124º, nº 3810, pág 261).”

Do que está provado apenas se comprova que a recorrente figurava como detentora do direito de arrendamento, do alvará e geria, em termos genéricos, o estabelecimento, efectuando as transacções de mercadorias e bens necessários ao funcionamento do estabelecimento. Não está provado que os actos praticados o eram em nome próprio e sendo-o na qualidade de proprietária do estabelecimento.

Na verdade as respostas restritivas fornecidas aos factos que se encontravam perguntados, e que tinham sido alegados pela ré, para demonstrar o exercício de um direito compatível com o direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial “...”, contidos nos quesitos 44.º, 45.º, 46.º e 47.º nomeadamente, se era a ré BB quem, desde a abertura do estabelecimento administrava e tomava as decisões de tal estabelecimento e pagava aos fornecedores ou ainda se pagava a renda do estabelecimento, bem como as contas da água, luz eléctrica, taxa de resíduos e TV cabo, todas no sentido de amputar a actuação da ré quanto aos pagamentos e à tomada de decisões e de confinar essa actuação à administração e gestão do estabelecimento são reveladoras de que o tribunal de 1.ª instância ficou convencido de que a ré/reconvinte cingia ou confinava a sua acção a actos de gestão ou de administração alargada do estabelecimento. Na verdade, se atentarmos nas respostas restritivas que foram dadas aos quesitos pertinentes com a alegação de um direito de propriedade dessumimos a convicção de que a ré/reconvinte se limitava a exercer um direito em nome de outrem ou para outrem. Ao figurar como arrendatária, mas não pagando a renda, ao encomendar os bens e mercadorias necessárias ao giro comercial, mas não pagando as respectivas facturas, não pagando as licenças camarárias, bem como ao não fazer o apuramento da caixa, “guardando os lucros e fazendo-os seus, sem nunca os repartir com quem quer que seja” (quesito 49.º - não provado), ao não ser ela quem dava as ordens ao colaboradores e empregados do estabelecimento e instrução aos fornecedores - quesitos 50.º e 51.º (este respondido de acordo com o respondido ao quesito 45.º), todo este acervo probatório, pela negativa - sendo que á ré/reconvinte incumbia a prova dos factos em que fazia radicar o direito reivindicado - inculca a ideia que a ré/reconvinte exercia a posse em nome de outrem e para outrem. A ré/reconvinte limitava-se a praticar actos compatíveis com a de uma gerência corrente do estabelecimento, fazendo encomendas, requerendo licenças, etc. É incontestável que figurava como arrendatária e o alvará estava emitido em seu nome, mas estes dois facto não são, por si só e desligados de todo o acervo factual em que fundeava um putativo poder de facto, expressivos ou reveladores de um exercício possessório em nome próprio e para si. O que revela é que o decesso ter+a querido, quiçá, por razões fiscais ou tributárias escapulir-se a figurar, formalmente, como titular (oficial) do estabelecimento, sendo que, da ausência de prova por banda da ré/reconvinte ressuma uma atonia ou inanidade dela relativamente aos actos expressivos e impressivos de uma posse em nome próprio.

Do que se deixa dito concluiríamos como na sentença onde se conclui que “[administrar]um estabelecimento não é o mesmo que dele dispor de qualquer forma e de beneficiar dos respectivos rendimentos, em termos de ser seu dono exclusivo.

Com efeito, a marca distintiva do domínio efectivo e material de um estabelecimento comercial está na obtenção dos respectivos rendimentos que não na respectiva gestão, o que mais se torna evidente quando não é provado que tal gestão é feita em nome próprio.”

Concluímos, pois, como nas instâncias, pela improcedência do pedido reconvencional, nesta parte, tanto no que se refere ao estabelecimento como as bens móveis que faziam parte integrante do estabelecimento, pelas razões que, basicamente, são aduzidas na argumentação antecedente.             

II.B.3. – Detenção e posse sobre um veículo automóvel.

A recorrente pretende ver proceder o pedido que formulou de é dona, por estar na posse, desde 5 de março de 2002, do veículo com a matrícula -OR, com a marca “Nissan Navara”.

Para a pretensão que formulou, e viu rejeitada pelas instâncias, a demandante estima serem fulcrais a respostas fornecidas aos quesitos 62.º e 63.º, onde se perguntava se desde 5 de Março de 2002 que tinha as chaves do OR e o utilizava no dia a dia, nas suas deslocações pessoais e transporte de mercadorias – quesito 62.º – e se praticava os actos referidos no quesito antecedente à vista de toda a gente, sem interrupção e na convicção de que agia em coisa sua e sem violar o direito de quem quer - quesito 63.º. As respostas fornecidas pelo tribunal de 1.ª instância e mantida pelo tribunal da Relação foram restritiva relativamente ao quesito 62.º - Provado apenas que o OR era utilizado no transporte de mercadorias e em deslocações á caça - e não provada ao quesito 63.º.

Refere a recorrente que da resposta ao quesito 62.º se extrai que era a recorrente quem utilizava o veículo no transporte de mercadorias. A menos que o tribunal se tivesse esquecido de interpolar um sujeito concreto e pessoalizado entre “utilizado” e “no transporte de mercadorias e em deslocações à caça”, nada habilita a compreensão intelectiva que a recorrente pretende sacar da proposição fáctica em que se consubstancia a resposta fornecida ao mencionado quesito. O que se extrai da resposta, com toda a segurança e sem ambiguidades e ou equivocidade de sentido é que o veículo era utilizado, não se apurou por quem ou que concreto sujeito, para transporte de mercadorias e em deslocações à caça. Pretender extrair uma compreensão teleológica de feição individual ou pessoal é querer ir além do texto e do que a literalidade da resposta comunica e desprende na sua função de inteligibilidade e capacidade de transmissão de um estado de coisas que ocorria com a utilização do veículo. É abusado e violador de regras mínimas de compreensão do teor propositivo de um texto pretender extrair um sentido prenunciativo indicador de um exponente subentendido com função indicativa de um sujeito que por estar contido na formulação propositiva interrogante se teria que, necessariamente, transportar para a resposta. A interrogativa formulada inculca a indicação nominativa de um sujeito que a resposta, certamente por carência ou ausência de alor probatório de quem competia provar essa nominação, não mereceu referência positiva e expressa na resposta.

Não o tendo merecido de quem competia avaliar a prova produzida e não tendo a recorrente alegado que tenha sido qualquer regra de direito probatório fica vedado a este tribunal a modificação da resposta.

Maior clamor evocativo merece a pretensão de modificabilidade da resposta ao quesito 63.º. A resposta é definitiva e taxativa. À interrogativa contida na proposição proposta para prova da recorrente, o tribunal disse que a recorrente não tinha logrado induzir material probatório que convencesse o tribunal de que a reconvinte utilizava o veículo nos termos e condições que estavam contidos no quesito. Aliás em coerência com o que havia sido respondido ao quesito antecedente. Se no quesito antecedente se não havia logrado identificar o utilizador do veículo, não poderia responder-se na resposta a um quesito interdependente e subordinado na compreensão totalizante, que era a demandada/reconvinte que detinha o veiculo nas condições, modo e pela forma como era perguntado no quesito 63.º.

A alusão ao acórdão 14 de Maio de 2006, resulta perfeitamente despropositada e descabida. Não se tendo provado a materialidade fáctica contida na proposição interrogativa proposta é manifesto o despautério invocativo da doutrina que fez vencimento no citado acórdão.

Acresce que, como se asseverou na decisão em sindicância que: “[quanto] à questão da propriedade do veículo automóvel de matrícula -OR ou do reconhecimento pelas Apeladas de que a Apelante contribuiu com o montante de 15.000,00 € na aquisição desse veículo, devendo restituir-lhe esse montante, em consonância com os pedidos acima sublinhados.

Verdade é que existe uma presunção registral a favor das Apeladas, que a Apelante não logra ilidir (fls. 407 e arts. 7º do CRP e 29º do DL nº 54/75, de 12.02), pelo que era a esta que incumbia a prova da factualidade sustentadora da aquisição, por si e em exclusividade, da respectiva propriedade, mesmo considerando a resposta à base nº 62.

Para além disto, improvado ficou que a Apelante tivesse pago qualquer quantia pela sua aquisição.

Somente, portanto, se pode concluir, como se fez na sentença, que aquela o detinha sem qualquer título que a legitimasse, para além de que não tem que ser compensada nesse valor como subsidiariamente formulou pretensão, fazendo apelo ao instituto do enriquecimento sem causa (art. 473º, nº 1, do CC, para além do que consta no art. 1413º, do CC), porque também não se demonstrou que o património da herança obteve vantagem de modo injustificado à custa da Apelante.

É matéria de excepção no confronto com o correspectivo direito afirmado pelas Apeladas (arts 342º, nº 2 e 344º do CC), não se estando perante situação de inversão do ónus de prova (art. 516º, do CPC).

Para tanto não é bastante o disposto no art. 1268º, nº 1, do CC, já que desde logo, sem aqui se discutir sequer o confronto com a outra presunção legal (segunda parte desse nº 1), pressuposto da sua aplicação, é que se invoque e prove a própria circunstância de que deriva a mesma posse, o seu início, aqui ónus de qualquer forma da Apelante (art. 342º, nº 2), mantendo-se enquanto facto extintivo do direito alegado pelas Apeladas, o que não ocorre no caso concreto.

(…) Sobre a restituição do valor de 15.000,00 € será de qualquer forma anódino afirmar-se que o documento de fls. 68 a 73 do apenso da providência, só porque nele se afirmou pela Apelante que esse veículo foi pago pela Apelante em dinheiro com cerca de 3.000 contos (…), assinado, além do mais, pela Apelada CC e pela própria Apelante, nessa parte tem força probatória plena, nos termos do art. 360º do CC.

Logo porque não constatamos na acção que quem o tenha oferecido, como demonstram as posições em confronto, não o quisesse repudiar nessa parte assim como outras declarações aí constantes, que concorressem contra os seus interesses processuais.

Aliás as Apelantes no que descrevem nos pontos 6 e 7 da Petição Inicial para isso apontam.

Mas mesmo que assim não fosse sempre restaria acrescentar que o documento faz somente prova quanto às declarações do autor e quanto aos factos compreendidos na declaração só se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (art. 376.º, nºs 1 e 2, do CC).”

Falece, sem outras considerações, por totalmente impérvio e impróvido o argumentado pela recorrente, desatende-se a pretensão alçapremada neste apartado.     

II.B.4. – Responsabilidade civil extracontratual.

Pretende a recorrente ser indemnizada por eventuais prejuízos (patrimoniais e não patrimoniais) que lhe hajam advindo do facto de o estabelecimento comercial ter sido objecto de uma providência de arrolamento (antecipatória da acção de petição de herança) decretada e por virtude da qual teria ficado impedida de a transaccionar, ou seja de ter estado privada durante algum tempo de exercer em plenitude os direitos de propriedade sobre o mencionado imóvel.

Ficou provado que com o decretamento da providência, a ré/reconvinte ficou impedida de transaccionar os seus bens.

 A sentença de primeira instância é irrepreensível na análise que faz deste item do petitório da ré/reconvinte – cfr. fls. 724 a 729 - pelo que bastaria, em nosso juízo para deter ou travar a ré/reconvinte de impulsar novamente um pedido de reanálise da questão. Porque não assim, e pouco mais havendo que dizer, precisaremos algumas nótulas ao aduzido na douta sentença.  

Preceitua o artigo 390.º, n.º 1 do Código Processo Civil que “se a providência for injustificada ou vier a caducar por facto imputável ao requerente, responde este pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal.”

A prestação de uma conduta processual passível de censura e reprovação ético-jurídica do sujeito interveniente numa demanda judicial, no sentido que lhe é conferido por Menezes Cordeiro, pode configurar-se e precipitar-se em três vertentes ou injunções, subjectivas e objectivas essenciais, a saber: “o exercício danoso inútil; dolo agit petit quod statim redditurus est; e desproporção grave entre o beneficio do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem.” “Em todas as três hipóteses, podemos considerar que o titular, exercendo embora o seu direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra valores fundamentais do sistema, com relevo para a materialidade subjacente.” [[8]]     

Socorrendo-nos da lição deste Ilustre Professor, “[a] boa-fé age através de dois princípios mediantes já expostos: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente. Ambos se concretizam numa constelação de situações típicas, acima ponderadas: desde o venire ao desequilíbrio no exercício.” “[As] acções judiciais intentadas contra a confiança previamente instilada ou em grave desequilíbrio, de modo a provocar danos máximos a troco de vantagens mínimas: há abuso de direito de acção judicial.”     

Ainda para este autor “o regime de abuso de direito assenta em duas vertentes: a cessação da conduta e a reparação dos danos perpetrados. Também assim será no campo em que o abuso respeite a situações processuais.” [[9]]

Transportando estes ensinamentos para o caso em apreço, e muito brevemente, dado que uma mais detalhada análise foi proficientemente elaborada na sentença de primeira (1.ª) instância, dir-se-á que não se enxerga a razão da continuação do pedido, ou só se almeja se a ré/reconvinte estivesse à espera de obter sucesso no recurso interposto para este Supremo, pois que ficou demonstrado que o estabelecimento comercial arrolado não lhe pertence, como ficou decidido supra. Não lhe pertencendo, não ocorreu qualquer restrição, e muito menos privação, de qualquer direito. Ao não ter sido efectuado o arrolamento a ré/reconvinte arriscava-se a transaccionar (vender) coisa que lhe não pertencia, ou seja venderia coisa alheia, com as consequências que desse acto pudessem advir para a responsabilização por eventuais danos causados, desta vez á autores/reconvindas.

As autoras/reconvindas não intentaram acção que atentasse de qualquer forma contra os direitos materiais da ré/reconvinte e não causaram qualquer desequilíbrio susceptível de ser havido como desequilibrante dos direitos subjectivos em confronto.         

Falece, também nesta parte, este fundamento do recurso. 

II.B.5. – Restituição da quantia de mil quinhentos e cinquenta euros (€ 1.550,00).

Cabe, por derradeira, a apreciação da questão da restituição da quantia de mil quinhentos e cinquenta euros (€ 1.550,00) que a ré/reconvinte faz assentar na, chamemos-lhe assim, sem quebra de respeito, na “peregrina” tese de que sendo a resposta ao quesito 25.º suportada pela confissão, deveriam, em contraponto e como corolário, provar que tinham efectuado o pagamento das despesas com o funeral, atenta a sua qualidade de herdeiras e para verem reconhecido o seu direito à quantia em questão.

Se a ré/reconvinte pagou o funeral deverá, em acção própria, ou podê-lo-ia ter feito em reconvenção, nesta mesma acção, onde foi pródiga a pedir, à herança, nas pessoas das autoras, que lhe paguem, ou lhe pagassem, a quantia que, eventualmente, tenha despendido. Não tem cabimento, na presente acção, onde a questão não foi colocada, a ré/reconvinte dizer que as autoras tinham que fazer prova de um facto que não está controvertido ou sequer foi alegado. A prova efectua-se relativamente a factos que hajam sido alegados e que careçam de prova para que o tribunal defina o direito e não de factos ou situações que estão plasmadas nas normas jurídicas e que enquanto não serviram de pressuposto de uma petição de direito, por via da acção ou de reconvenção.

Itera-se, o pedido, tal como se mostra argumentado, não tem a mais leve aragem de fundamento.          

III. - DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes, nesta 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Negar a revista;

- Condenar a recorrente nas respectivas custas.

Lisboa, 19 de Fevereiro de 2013

Gabriel Catarino (Relator)

António Joaquim Piçarra

Sebastião Póvoas                                                          

___________________________________

[1] Quanto aos poderes de sindicância do Supremo Tribunal de Justiça da reapreciação efectuada pelo Tribunal veja-se o acórdão desta secção de 31-03-2009, relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas, em que se sumariou:”1. Nos termos do artigo 712.º do Código de Processo Civil, a Relação só pode tocar na matéria de facto apurada na 1.ª instância alterando-a; determinando a renovação dos meios de prova; anulando o julgado; determinando a sua fundamentação.2) Do uso de qualquer destes poderes não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, mas este Supremo Tribunal pode sobre eles exercer censura directa ou indirecta. 3) A censura directa consiste em apurar se a Relação excedeu os limites do artigo 712.º do Código de Processo Civil. Exerce censura indirecta – ou tácita – quando verificando o não uso pela Relação dos poderes de alteração ou de anulação da decisão de facto, manda ampliá-la para que constitua base suficiente para a decisão de direito ou determina a eliminação de contradições impeditivas da solução jurídica. 4) A faculdade da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º, do Código de Processo Civil pressupõe que a matéria de facto tenha sido impugnada nos termos do artigo 690-A (hoje 685-B) ou que do processo constem todos os elementos de prova que fundamentaram o julgado em 1.ª instância.5) A faculdade da alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 712.º pressupõe que os elementos constantes dos autos apontem inequivocamente – e sem possibilidade de ser contrariado por quaisquer outras provas – para uma decisão diversa.6) Embora a Relação possa fazer uso de presunções judiciais (simples, de experiência ou de primeira aparência) não pode utilizá-las para alterar um facto dado por provado pela 1.ª instância, e alcançar outro diferente, mas tão-somente, dele se servir como fundamento base do raciocínio lógico-discursivo que conduziu à conclusão presumida.7) E o Supremo Tribunal de Justiça pode sindicar se foram respeitadas as normas jurídicas que regulam o uso (e a base de que partiu) a presunção judicial.” Ou ainda do mesmo Relator o acórdão de 02-02-2010 em que se escreveu: “1) O Supremo Tribunal de Justiça está limitado nos seus poderes sobre a matéria de facto, âmbito em que, de harmonia com o disposto nos artigos 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - e 722.º, n.º 2 e 729.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, só lhe é lícito intervir em questão de prova vinculada ou perante desrespeito de norma reguladora do valor legal das provas. 2) Tratam-se de questões de direito, já que, em tais hipóteses, não há que apreciar as provas segundo a convicção de quem julga (artigo 655.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) mas apenas determinar se para a prova de certo facto a lei exige, ou não, determinado meio de prova insubstituível, ou de decidir se determinado meio de prova tem, ou não, face à lei, força probatória plena. 3) Fora do âmbito da prova vinculada, cuja apreciação é pura matéria de direito, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos da causa, isto é, a decisão da matéria de facto, é de livre apreciação do julgador nas instâncias no seu papel de apuramento da factualidade relevante, cabendo à Relação a última palavra. E mesmo a Relação só pode censurar o respondido à base instrutória através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil. 4) E só se, na fase de julgamento do mérito, o Supremo Tribunal de Justiça deparar com insuficiência de matéria de facto para decidir de direito, ou se o acervo factual contiver contradições inviabilizadoras dessa decisão, é que deve devolver o processo ao tribunal recorrido para ampliar a decisão de facto, desde que nos limites da matéria alegada (artigo 729.º, n.º 3, ainda do Código de Processo Civil).”

[2] Cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 05-02-2009, Proc. n.º 4092/08; de 21-09-2010 Proc. n.º 2/03.5TBMNC.G1.S1; de 21-10-2010, Proc. n.º 937/06.3TBCSC.L1.S1; e de 30-11-2010, Proc. n.º 581/1999.P1.S1, in www.stj.pt

[3] Queda transcrito a parte doutrinária do mencionado aresto, relatado pelo Conselheiro Amâncio Ferreira, “Mas a posse como caminho para a dominialidade é a posse stricto sensu, não, a posse precária ou detenção. Esta só é susceptível de levar à dominialidade se houver inversão do título de posse, como resulta do artigo 1290, que corresponde ao artigo 510 do Código Civil de Seabra.

Foi precisamente por configurar a actuação de E sobre o imóvel, no período de tempo compreendido entre finais dos anos 40, inícios dos anos 50, e a data da sua morte, ocorrida em 1968, como um caso de detenção, nunca invertida, que o acórdão recorrido recusou a possibilidade de aquisição do imóvel por usucapião.

São havidos como detentores ou possuidores precários os indicados no artigo 1253, ou seja, todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real correspondente.

Como já acontecia com o Código Civil de 1867, o actual ordenamento jurídico português adopta a concepção subjectiva da posse.

Daí ser esta integrada por dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi.
Define-se o corpus como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se caracteriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados (2).

O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter os dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insusceptível de conduzir à dominialidade.

Por ser difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o n. 2 do artigo 1252, como já o fazia o parágrafo 1 do artigo 481 do Código de 1867, uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus) (2).
Donde, e tendo em conta o que se dispõe no n. 1 do artigo 350, competir àqueles que se arrogam a posse provar que o detentor não é possuidor.”
[4] “Como distinguível bem jurídico nos aparece o estabelecimento comercial, portanto. Mas bem complexo, feito de vários bens ou elementos. Quais sejam não é possível dizê-los com precisão. Variam consoante os tipos ou formas de estabelecimentos, variam de empresa para empresa, dentro do mesmo grupo tipológico, variam num e mesmo estabelecimento, consoante as fases porque passe… Em termos gerais, podemos, no entanto, apontar alguns desses elementos: coisas corpóreas (v g. prédios, máquinas, ferramentas, mobiliário, matérias primas, mercadorias), coisas incorpóreas (v. g. invenções patenteadas, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimento), bens coisificáveis (jurídico-realmente), como as prestações de trabalho e de serviços e certas situações de facto de valor económico – o saber-fazer (ou tecnologia, no sentido de conhecimentos não patenteados e/ou não patenteáveis de carácter cientifico, técnico ou empírico aplicadas na prática empresarial, incluindo os segredos da indústria e comércio). – cfr. Coutinho de Abreu, J.M., in “Curso de Direito Comercial”, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 191 e 192.
“Digamos que a empresa ou estabelecimento comercial é uma unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui um instrumento de exercício relativamente estável e autónomo da actividade comercial” – Coutinho de Abreu, J. M, in ”Da Empresarialidade – As Empresas no Direito”, Almedina, Colecção Teses, Coimbra, págs. 69 e segs. (Em volta da “natureza jurídica” do estabelecimento comercial.”                           
[5] Cfr. De forma mais impressiva refere Orlando de Carvalho, in “Direito das Coisas”, coordenado por Francisco Liberal Fernandes, Maria Raquel Guimarães e Maria Regina Redinha, Coimbra Editora, 2012, pág. 272, que “O estabelecimento mercantil, independentemente da sua determinação precisa, que é o seu grande problema, é visto, universalmente como objecto de posse, de tal sorte que essa intuição do comércio se impôs ao nível jurídico. Outra questão é a de saber se a constituição de garantia sobre ele deve, nos habituais termos do penhor de coisas, implicar o desapossamento do devedor.” Depois de asseverar um parecer negativo sobre esta temática, prossegue o autor que “[acrescente-se] que o estabelecimento, constituindo um bem incorpóreo, é um bem que assente num lastro, maior ou menor, de valores ostensivos, ou seja, com relevo jurídico-económico fora do próprio estabelecimento, valores que quase sempre incluem valores materiais, o que torna ainda menos inverosímil o exercício de poderes empíricos sobre o complexo.” Prossegue este saudoso e preclaro Mestre a lição insurgindo-se contra a noção errónea, que alguns pretendem fazer, entre poder físico e poder empírico. “[Poder] empírico não é necessariamente poder físico: é, sim, poder não jurídico, isto é, não formal-jurídico, possível e só possível mediante a intervenção reguladora da norma. Pode tratar-se de actuações que, em regra, entrem no conteúdo do exercício de um direito - como ordinariamente acontece com os poderes de transformação e de gestão de uma coisa, cujo carácter empírico, e até físico, nunca ninguém pôs em causa. Desde impliquem disponibilidade fáctica dessa, constituem manifestações possessoriamente relevantes. E, todavia, o objecto em questão pode nada ter de material.” Este mesmo Mestre escreveu na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 112.º, págs. 107 e segs., que: “Objectos passíveis de posse”: “Passíveis de posse são todos os bens passíveis de domínio, ou seja, e genericamente, todas as coisas. Na possessio rei, como sabemos, só o eram as coisas corpóreas e simples as – unitae corporales – mas a sensibilidade dominial evoluiu, e hoje, salvo nos direitos alemão e suíço, o conceito de coisa estende-se às coisas incorpóreas e complexas (mormente às coisas compostas funcionais, em que se inclui o estabelecimento mercantil). ...O estabelecimento mercantil, independentemente da sua determinação precisa, que é o seu grande problema, é visto universalmente como objecto de posse, de tal sorte essa intuição do comércio se impôs ao nível jurídico...”.                                   
[6] Cfr. A. Santos Justo, in “Direitos Reais”, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2011, págs. 131 a 134, nota 560.
[7] Cfr. na jurisprudência o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 18 de setembro de 2006, relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos, in www.stj.pt.
[8] Cfr. Menezes Cordeiro, António, in Litigância de Má-fé, Abuso do Direito de acção e Culpa “In Agendo, Almedina, Coimbra, 2011, pág. 104. Cfr. ainda a jurisprudência citada pelo Ilustre Professor, especialmente os acórdãos deste Supremo Tribunal de 25-10-2007 e de 07-01-2010.
[9] Cfr. Menezes Cordeiro, António, in op. loc. cit, págs. 130-131.