Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
330/21.8T8CSC.L1-A.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: JORGE LEAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ERRO DA SECRETARIA JUDICIAL
CITAÇÃO EM PAÍS ESTRANGEIRO
CARTA ROGATÓRIA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
IRRECORRIBILIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Data do Acordão: 02/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ART. º 643º CPC
Decisão: INDEFERIDA
Sumário :
I. Não obsta ao efeito da “dupla conforme” prevista no art.º 671.º n.º 3 do CPC a circunstância de o tribunal da Relação, na apreciação do recurso de apelação, em que confirmou a decisão recorrida quanto à sua fundamentação e dispositivo, ter adicionado, a título de obiter dictum, um outro fundamento para a decisão recorrida.

II. Está fora do âmbito do procedimento previsto no art.º 643.º do CPC a apreciação da aplicação da dispensa da taxa de justiça remanescente prevista no art.º 6.º n.º 7 do RCP.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 330/21.8T8CSC.L1-A.S1

Reclamação (art.º 643.º do CPC)


Acordam, em conferência, os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. INTEVIAL – GESTÃO INTEGRAL RODOVIÁRIA, S.A. intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo a condenação deste no pagamento de uma indemnização, no valor de € 1 126 835,05, decorrente de responsabilidade civil extracontratual do Estado e relativa a danos respeitantes ao exercício da função jurisdicional.

Para tanto alegou, em síntese, que

i) tendo obtido a condenação, num tribunal português (....º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ..., processo n.º 4974/09.8...), da sociedade brasileira P..., S.A., na satisfação de uns créditos sobre esta que lhe haviam sido transmitidos, não pode obter a execução desse valor na ordem jurídica brasileira (foro da situação dos bens da P..., S.A.), por imprestabilidade da forma de citação desta (carta registada) para efeito de homologação da sentença portuguesa no Brasil, pois que aí está fixado, jurisprudencialmente, o entendimento segundo o qual é exigível, como condição da homologação, a citação na ação geradora da sentença através de carta rogatória;

ii) num segundo momento, tentou obter nova condenação da P..., S.A., através da propositura de uma nova ação, exatamente idêntica, em Portugal, mas essa sociedade brasileira foi absolvida da instância, por verificação da exceção de caso julgado (então ....ª Vara Cível de ..., processo n.º 1853/11.2...).

A circunstância geradora da responsabilidade civil delitual do Estado Português, por deficiente atuação da máquina judiciária, decorre, segundo a A., do emprego, por parte da secretaria do ....º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ..., da via postal registada para efeito da citação da P..., S.A. no Brasil naquela primeira ação.

2. O ESTADO PORTUGUÊS apresentou contestação excecionando a incompetência material da jurisdição administrativa (que viria a ser julgada procedente, transitando o processo para a jurisdição comum) e impugnando as razões de facto e de direito invocadas pela A. em fundamento do pedido.

3. Finda a fase dos articulados, foi dispensada a audiência prévia, saneados os autos e proferido o despacho a que alude o artigo 596.º do CPC, que não mereceu reclamação das partes.

4. Foi realizada audiência final, após o que em 05.7.2023 foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu o R. do pedido.

5. A A. apelou da sentença, mas a Relação julgou a ação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

6. A A. interpôs revista do dito acórdão, rematando com as seguintes conclusões:

“1. A revista deve ser admitida, porquanto, nos termos do disposto no artigo 671.º, n.º 1 e n.º 3 (a contrario), ambos do CPC, cabe recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal a quo, uma vez que este decidiu com fundamentação essencialmente diferente, nunca apreciada no processo, na medida em que considerou um novo fundamento para o indeferimento do recurso interposto pela Recorrente.

2. Ainda que assim não se entenda, o que apenas se pondera, sem conceder, mesmo que, na presente situação, não coubesse revista ordinária, sempre caberia revista excecional e, assim, sendo, deverá considerar-se o presente recurso interposto como revista excecional, de forma subsidiária, uma vez que “É legítima a interposição subsidiária de recurso de revista excepcional para prevenir a inadmissibilidade do recurso de revista normal com base em dupla conformidade decisória.”

3. O tribunal português criou um efetivo obstáculo à exequibilidade da decisão proferida, no Brasil.

4. A citação não existe somente para assegurar o direito de defesa do réu, mas sim, também, para assegurar o interesse do autor.

5. As disposições contidas no artigo 20.º, n.´s 1 e 4, da CRP, impõem ao estado a tarefa de assegurar a igualdade de armas entre Autora e Ré nos processos judiciais, bem como que as decisões proferidas pelos tribunais portugueses serão exequíveis, quer em Portugal, quer, pelo menos, no país de residência dos Réus.

6. Ou seja, quando as pessoas intentam uma ação em tribunal português, confiam no Estado Português a tarefa de julgar um litígio, com a legítima expectativa de, proferida uma eventual sentença condenatória, poder executá-la, quer em Portugal, quer no estrangeiro, onde o R. condenado possua bens penhoráveis.

7. Nesse procedimento, as pessoas, como a ora Recorrente, não têm qualquer intervenção no modo, tipo, meios ou forma de realização da citação. A citação é, pois, uma tarefa exclusivamente adstrita ao Tribunal, diga-se Juiz e secretaria.

8. Quando, feita a citação de um Réu estrangeiro, se afirma terem sido cumpridas as normas legais, previstas no CPC então vigente, para a citação, a ali A. tem a legítima expetativa de poder vir a executar a sentença proferida pelo tribunal português no local onde o Réu condenado tiver bens penhoráveis, principalmente no país da respetiva sede/residência.

9. Ora, no caso subjacente a este no processo n.º 4974/09.8..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., verifica-se que a ora Recorrente deu entrada da ação, cumprindo todas as normas legais e processuais aplicáveis, mas viu-se impedida de penhorar, no Brasil (país da sede da R.), bens da ali Ré condenada P..., S.A. por, segundo a lei vigente e a jurisprudência unânime do Supremo Tribunal Federal do Brasil, não ter a citação da Ré P..., S.A. sido feita por carta rogatória.

10. Quer isto dizer que a ora Recorrente e ali Autora, no âmbito do processo de reconhecimento e homologação de sentença estrangeiro processualmente previsto na legislação brasileira, ficou impedida do acesso ao Direito, concretamente, de executar a sentença proferida por um tribunal português, porque a citação feita por esse tribunal – ato da exclusiva responsabilidade do Tribunal português (Juiz e Secretaria)- não cumpriu as normas processuais brasileiras que obrigavam a que a citação de pessoas brasileiras de ações judiciais que correm em tribunais estrangeiros seja feita por carta rogatória, porque só este meio assegura o regular conhecimento da ação pelo Réus brasileiros.

11. Assim, a interpretação feita do artigo 247.º, n.º 2, do CPC anterior à reforma de 2013, no sentido de, caso o Réu seja residente ou tenha sede no estrangeiro, na falta de tratado ou convenção, a citação é feita por via postal, em carta registada com aviso de receção, aplicando-se as determinações do regulamento local dos serviços postais, é violadora do disposto no artigo 20.º, n.´s 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, o que se alega para os devidos efeitos legais.

12. Pelo que, o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 20.º, n.º 1 e n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, o que se alega para os devidos efeitos legais.

13. Além disso, os artigos 233.º, n.º 2, alínea b), 236.º, n.º 1, e 247.º, todos do CPC anterior à alteração de 2013, são inconstitucionais, na interpretação de que a citação feita à R. em cumprimento destas normas se afigura de acordo com a lei, mesmo que inviabilize a exequibilidade da sentença proferida, a final, por falta de citação por carta rogatória exigida pela legislação do estado de origem da sede/domicílio do R., por violação do disposto no artigo 20.º, n.´s 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, o que se alega para os devidos efeitos legais.

14. Verificando-se as referidas inconstitucionalidades, a conduta do tribunal, no âmbito do processo n.º 4974/09.8... afigura-se como ilícita, "(...) pressuposto de que depende a responsabilidade civil extracontratual do Estado”, devendo a ação ser declarada procedente.

15. A decisão proferida no processo n.º 4974/09.8..., que condenou a sociedade P..., S.A. era totalmente favorável à Recorrente.

16. Só as decisões desfavoráveis para certa parte são suscetíveis de recurso. Era o que decorria do disposto no artigo 678.º, n.º 1, do CPC anterior a 2013 e que decorre do atual artigo 629.º, do CPC.

17. Pelo que, não cabia recurso da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Oeiras e, como tal, era impossível à Recorrente recorrer da mesma.

18. Além disso, o próprio tribunal que proferiu a sentença no âmbito do processo n.º 4974/09.8..., esgotou o respetivo poder jurisdicional após a prolação da sentença, sendo-lhe vedada a alteração posterior da decisão tomada. Razão pela qual, esgotado aquele poder, e sendo irrecorrível a decisão, não resta à ora Recorrente outra alternativa que não lançar mão da presente ação de indemnização.

19. Interpretar o disposto no artigo 13.º, n.º 2, do regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, no sentido de que o mesmo é aplicável às situações em que não é possível recorrer da decisão em questão, é manifestamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo no artigo 20.º, n.´s 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, o que se alega para os devidos efeitos legais.

20. Uma qualquer restrição, operada pelo legislador ordinário, do direito de exigir o pagamento de uma indemnização por erro judiciário, ínsito no artigo 22.º, da CRP, terá de obedecer, forçosamente, aos critérios estabelecidos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

21. A ratio do artigo 13.º, n.º 2, do RRCECE, é a de evitar que um tribunal hierarquicamente inferior sindicalize a decisão de um tribunal superior.

22. Porém, numa situação como a dos presentes autos, não existe a possibilidade de um tribunal hierarquicamente inferior poder sindicar- ainda que incidentalmente- a decisão de um tribunal hierarquicamente superior.

23. Assim, não há qualquer motivo que possa justificar a restrição do direito da Recorrente de exigir o pagamento de uma indemnização ao Estado por erro judiciário.

24. Além disso, considerar-se que o artigo 13.º, n.º 2, do RRCECE, seria aplicável à presente situação, em que não há possibilidade de recurso de decisão proferida pela primeira instância, seria violador do princípio da igualdade, ínsito no artigo 13.º, da CRP.

25. Em suma, a interpretação do artigo 13.º, n.º 2, do RRCECE, no sentido de que uma decisão não revogada, proferida por um tribunal de primeira instância, em que não é admissível recurso, não permite a responsabilização do estado por erro judiciário, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 22.º, e 13.º, ambos da CRP, o que se alega para os devidos efeitos legais.

26. Pelo que, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 22.º e 13.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, o que se alega para os devidos efeitos legais.

27. Nos presentes autos deverão as partes ser dispensadas do pagamento da taxa de justiça remanescente, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais.

Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o recurso ser admitido e julgado procedente por provado e, consequentemente, revogado o acórdão, proferindo se acórdão que julgue a ação totalmente procedente, tal como e com os efeitos requeridos na PI;

Só assim se fazendo Justiça!”

7. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, pugnando pela inadmissibilidade deste.

8. Por despacho de 15.7.2024 a revista ordinária não foi recebida, por haver dupla conformidade entre a fundamentação da sentença e a do acórdão. Mais se determinou que, após trânsito do despacho, uma vez que a recorrente interpusera, subsidiariamente, revista excecional, se remetesse os autos ao STJ, para os efeitos previstos no art.º 672.º n.º 3 do CPC.

9. A recorrente reclamou para a conferência, nos seguintes termos:

“Intevial - Gestão, Integral Rodoviária, Sa., Recorrente nos autos à margem indicados e neles melhor identificada, notificada da decisão proferida pela relatora com a ref. CITIUS 21889404, que não admitiu o recurso de apelação, vem dela apresentar reclamação para a conferência e requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão, nos termos do disposto nos artigos 643.º, n.º 1, e 652.º, n.º´s 3 e 4, do CPC, o que faz nos seguintes termos e fundamentos:

1- De acordo com a decisão reclamada:

Assim sendo, verificando-se a dupla conforme que impede a interposição de recurso de revista, rejeita-se o recurso interposto por legalmente inadmissível.”

2- Para sustentar a referida decisão, o Tribunal decidiu que:

Nos termos do art. 671º/1 do CPC, “Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”. Por seu turno, o nº 3 deste preceito refere que “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

A fundamentação é essencialmente diferente quando: «a confirmação da decisão da 1ª instância se processa a partir de um quadro normativo substancialmente diverso, como sucede nos casos em que a uma determinada qualificação contratual se sucede uma outra distinta que implica um diverso enquadramento jurídico»; a 1ª instância aplique um regime contratual e a Relação decida com base não enriquecimento sem causa ou com base na nulidade do referido contrato; quando a Relação decida com base em exceção dilatória diferente da julgada em primeira instância – ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 285.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a densificar o art. 671º/3 do CPC no sentido apontado.

Nos presentes autos, este Tribunal da Relação confirmou a sentença da primeira instância com base nos mesmos factos e, no essencial, com os mesmos fundamentos jurídicos.”

3- Contudo, não assiste razão à referida decisão no que afirma.

4- Devendo o recurso em questão ser admitido e julgado procedente.

Com efeito,

5- O recurso foi interposto nos termos do artigo 671.º, n.º 1 e n.º 3 (a contrario), ambos do CPC.

6- Ora, nos termos destes artigos cabe recurso de revista do acórdão proferido por este tribunal, uma vez que este decidiu com fundamentação essencialmente diferente, nunca apreciada no processo, na medida em que considerou um novo fundamento para o indeferimento do recurso interposto pela Recorrente, conforme acima exposto.

7- Com efeito, a sentença recorrida introduziu o seguinte argumento, nunca discutido no processo (pg. 25 e seguintes):

Ainda que assim não se entendesse e, por hipótese se considerasse estarmos perante um acto ilícito, sempre faltaria o preenchimento do requisito da prévia revogação, que para alguns é considerada requisito de procedência desta acção, constituindo a sua falta excepção dilatória inominada, enquanto que para outros configura um verdadeiro pressuposto processual. Afirma, a este propósito, Teixeira de Sousa, «É discutível que a prévia revogação da decisão danosa seja uma condição de procedência da ação de indemnização contra o Estado e que a ausência dessa revogação determine a improcedência dessa ação; melhor é qualificar essa prévia revogação como um pressuposto processual: perante a falta dessa revogação, a ação deve ser considerada inadmissível» (Blog do IPPC, 30.11.2015).

Seja como for, é inegável que o n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 67/2007 exige a prévia revogação pelo órgão jurisdicional competente da decisão que se considera danosa susceptível de despoletar a ulterior acção de responsabilidade civil do Estado por actos da função jurisdicional, requisito que se prende com a estabilidade e segurança das decisões judiciais e o instituto do caso julgado (neste sentido, v. o referido ac. do TRL de 13/9/2018).

Por conseguinte, o pedido de indemnização deduzido pela autora/ora recorrente teria de se fundar na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, sendo de notar que, pese embora o acto de citação tenha sido praticado pela secretaria, a sentença subsequentemente proferida considerou válida a citação efectuada.

Nas palavras do supra mencionado acórdão desta secção de 28/3/2023, “tem de se demonstrar a existência de um erro judiciário em decisão fixada em última instância.”, explicitando o mesmo aresto sobre este requisito prévio que: “

“(…) pode ler-se no Ac. TRG supra citado [Ac. TRG de 10-03-2022, proc. 2139/20.7T8BRG.G1, relator Maria dos Anjos Nogueira], “Quer isto dizer que, desde que, previamente, em sede de recurso da decisão proferida por tribunal de primeira instância, segunda instância, ou mesmo por um tribunal supremo, respeitados os requisitos de admissibilidade desses recursos, se revogue a decisão danosa, poderá haver lugar à propositura de uma acção tendo em vista a obtenção de uma indemnização por erro judiciário. Daqui decorre uma natural interdependência entre o regime constitucional e legal do direito ao recurso e a hipótese de efectivação da responsabilidade do Estado por erro judiciário – cfr. CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado, 2a Ed., Coimbra Editora, 2011, p. 272/275. Como tal, proferida que seja a revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, o lesado poderá propor uma acção de indemnização destinada à consumação da responsabilidade do Estado pela prática de erro judiciário”.

Decorre do acima exposto que o erro judiciário deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis e não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização. Neste sentido, veja-se, entre outros, e para além da jurisprudência já citada, Ac. STJ de 24-02-2015, proc. 2210/12.9TVLSB.L1.S1, relator Pinto de Almeida, Ac. TRP de 16-10-2017, proc. 379/16.2T8PVZ.P1, relator Manuel Baldaia de Morais e Ac. TRL de 12-10-2021, proc. 2103/19.9T8LRS.L1-7, relator Luís Filipe Sousa.

Em síntese conclusiva, não se mostrando in casu verificados os pressupostos da responsabilidade civil do Estado (v.g. acto ilícito e prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente), nenhuma censura nos merece a sentença recorrida, improcedendo o recurso in totum.”

8- Ora, conforme resulta das alegações de recurso da Recorrente, esta suscitou a Inconstitucionalidade do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, no sentido de que o mesmo é aplicável às situações em que não é possível recorrer da decisão em questão, por violação do disposto no artigo no artigo 20.º, n.´s 1 e 4, da Constituição da República.

9- Sendo que, nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, só após esta questão de Inconstitucionalidade ter sido apreciada pelo Tribunal Judicial, é que a mesma poderá ser suscitada perante o Tribunal Constitucional.

10- Ora, se assim é, à Recorrente tem de ser possibilitado o recurso da decisão proferida por este Tribunal, a ser apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em que se suscita a questão de Inconstitucionalidade acima referida e, se a decisão for confirmada, então a Recorrente poderá recorrer para o Tribunal Constitucional, se assim o desejar.

11- O que, por si só, já evidencia bem que a fundamentação aduzida por este Tribunal no acórdão recorrido é essencialmente diferente da fundamentação da sentença.

12- Pelo que, salvo melhor entendimento, cabe recurso de revista da decisão recorrida.

Além disso, ainda que assim não se entenda, o que apenas se pondera, sem conceder,

3- Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, “Nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.

14- A matéria em análise nos presentes autos não revela especial complexidade.

15. Tendo as partes mantido uma postura de colaboração para com o tribunal e não tendo requerido a realização de diligências dilatórias ou desnecessárias ou alegações prolixas.

16- Assim sendo, requer-se a V. Exas. que, em qualquer caso, determinem a dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente nos presentes autos, caso entendam que a mesma seria, em concreto, devida.

Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a presente reclamação ser julgada procedente, por provada, e o recurso admitido,

Só assim se fazendo Justiça!”

10. O Ministério Público respondeu à reclamação, pugnando pelo seu indeferimento e improcedência.

11. Por despacho proferido em 29.9.2024 a Relatora convolou o requerimento de reclamação para a conferência em reclamação prevista pelo art.º 643.º do CPC, mandando autuar e instruir o respetivo apenso, com remessa para este STJ.

12. Neste STJ, por despacho do relator datado de 09.12.2024 a reclamação foi julgada improcedente.

13. Deste despacho reclamou a reclamante, para a conferência, nos seguintes termos:

“1- De acordo com a decisão reclamada:

Ocorre, pois, a dupla conforme, obstativa da revista ordinária, nos termos do art.º 671.º n.º 3 do CPC.”

2- Para sustentar a referida decisão, o Tribunal decidiu que:

Interposta apelação pela A., a Relação concordou com a sentença recorrida. Para a Relação, não ocorria responsabilidade civil do Estado, pelo exercício da função jurisdicional, na medida em que o tribunal em questão praticou os atos de citação que se impunham, face ao ordenamento jurídico aplicável – o português – pelo que não existe ato ilícito, desencadeador de responsabilidade civil. Em suma, a Relação entendeu, em linha com a 1.ª instância, que a citação efetuada não consubstanciou qualquer ato ilícito, pressuposto da responsabilidade que se pretendia assacar ao R./apelado, o que conduzia necessariamente à improcedência da ação. Assim, as considerações adicionais, a que a Relação procedeu no acórdão, acerca da falta de prévia revogação da decisão danosa, são irrelevantes para o efeito da configuração de dupla conforme. A não verificação desse elemento da responsabilidade em causa foi adiantada em termos de obiter dictum, conforme claramente emerge dos termos em que esse tema adicional foi introduzido no acórdão: “Ainda que assim não se entendesse e, por hipótese se considerasse estarmos perante um acto ilícito, sempre faltaria o preenchimento do requisito da prévia revogação…”

O fundamento essencial do decaimento da ação, na primeira e na segunda instância, foi a inexistência de facto ilícito, imputável ao Estado no exercício da função jurisdicional.”

3- Contudo, com o devido respeito, a Recorrente entende que não assiste razão à referida decisão no que afirma.

4- Devendo o recurso em questão ser admitido e julgado procedente.

Com efeito,

5- O recurso foi interposto nos termos do artigo 671.º, n.º 1 e n.º 3 (a contrario), ambos do CPC.

6- Ora, nos termos destes artigos cabe recurso de revista do acórdão proferido pela segunda instância, uma vez que esta decidiu com fundamentação essencialmente diferente, nunca apreciada no processo, na medida em que considerou um novo fundamento para o indeferimento do recurso interposto pela Recorrente, conforme acima exposto.

7- Com efeito, o acórdão recorrido introduziu o seguinte argumento, nunca discutido no processo (pg. 25 e seguintes):

Ainda que assim não se entendesse e, por hipótese se considerasse estarmos perante um acto ilícito, sempre faltaria o preenchimento do requisito da prévia revogação, que para alguns é considerada requisito de procedência desta acção, constituindo a sua falta excepção dilatória inominada, enquanto que para outros configura um verdadeiro pressuposto processual. Afirma, a este propósito, Teixeira de Sousa, «É discutível que a prévia revogação da decisão danosa seja uma condição de procedência da ação de indemnização contra o Estado e que a ausência dessa revogação determine a improcedência dessa ação; melhor é qualificar essa prévia revogação como um pressuposto processual: perante a falta dessa revogação, a ação deve ser considerada inadmissível» (Blog do IPPC, 30.11.2015).

Seja como for, é inegável que o n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 67/2007 exige a prévia revogação pelo órgão jurisdicional competente da decisão que se considera danosa susceptível de despoletar a ulterior acção de responsabilidade civil do Estado por actos da função jurisdicional, requisito que se prende com a estabilidade e segurança das decisões judiciais e o instituto do caso julgado (neste sentido, v. o referido ac. do TRL de 13/9/2018).

Por conseguinte, o pedido de indemnização deduzido pela autora/ora recorrente teria de se fundar na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, sendo de notar que, pese embora o acto de citação tenha sido praticado pela secretaria, a sentença subsequentemente proferida considerou válida a citação efectuada.

Nas palavras do supra mencionado acórdão desta secção de 28/3/2023, “tem de se demonstrar a existência de um erro judiciário em decisão fixada em última instância.”, explicitando o mesmo aresto sobre este requisito prévio que:

“ (…) pode ler-se no Ac. TRG supra citado [Ac. TRG de 10-03-2022, proc. 2139/20.7T8BRG.G1, relator Maria dos Anjos Nogueira], “Quer isto dizer que, desde que, previamente, em sede de recurso da decisão proferida por tribunal de primeira instância, segunda instância, ou mesmo por um tribunal supremo, respeitados os requisitos de admissibilidade desses recursos, se revogue a decisão danosa, poderá haver lugar à propositura de uma acção tendo em vista a obtenção de uma indemnização por erro judiciário. Daqui decorre uma natural interdependência entre o regime constitucional e legal do direito ao recurso e a hipótese de efectivação da responsabilidade do Estado por erro judiciário – cfr. CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado, 2a Ed., Coimbra Editora, 2011, p. 272/275. Como tal, proferida que seja a revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, o lesado poderá propor uma acção de indemnização destinada à consumação da responsabilidade do Estado pela prática de erro judiciário”.

Decorre do acima exposto que o erro judiciário deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis e não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização. Neste sentido, veja-se, entre outros, e para além da jurisprudência já citada, Ac. STJ de 24-02-2015, proc. 2210/12.9TVLSB.L1.S1, relator Pinto de Almeida, Ac. TRP de 16-10-2017, proc. 379/16.2T8PVZ.P1, relator Manuel Baldaia de Morais e Ac. TRL de 12-10-2021, proc. 2103/19.9T8LRS.L1-7, relator Luís Filipe Sousa.

Em síntese conclusiva, não se mostrando in casu verificados os pressupostos da responsabilidade civil do Estado (v.g. acto ilícito e prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente), nenhuma censura nos merece a sentença recorrida, improcedendo o recurso in totum.”

8- Ora, conforme resulta das alegações de recurso da Recorrente, esta suscitou a Inconstitucionalidade do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, no sentido de que o mesmo é aplicável às situações em que não é possível recorrer da decisão em questão, por violação do disposto no artigo no artigo 20.º, n.´s 1 e 4, da Constituição da República.

9- Sendo que, nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, só após esta questão de Inconstitucionalidade ter sido apreciada pelo Tribunal Judicial, é que a mesma poderá ser suscitada perante o Tribunal Constitucional.

10- Ora, se assim é, à Recorrente tem de ser possibilitado o recurso da decisão proferida pelo Tribunal Recorrido, a ser apreciado por este Tribunal, em que se suscita a questão de Inconstitucionalidade acima referida e, se a decisão for confirmada, então a Recorrente poderá recorrer para o Tribunal Constitucional, se assim o desejar.

11- O que, por si só, já evidencia bem que a fundamentação aduzida pelo Tribunal recorrido é essencialmente diferente da fundamentação da sentença.

12- Com efeito, deve ser possibilitado à Recorrente discutir a bondade deste segundo argumento aduzido pelo Tribunal Recorrido antes de recorrer para o Tribunal Constitucional relativamente ao primeiro argumento aduzido pelo acórdão recorrido.

13- A Assim não ser, mesmo que o Tribunal Constitucional conferisse procedência ao aduzido pela Recorrente, em relação ao primeiro fundamento do tribunal recorrido, sempre faltaria apreciar o segundo argumento, impossibilitando, assim, a revogação da decisão recorrida.

14- Pelo que, salvo melhor entendimento, deverá caber recurso de revista ordinária da decisão recorrida, sob pena de ser impossível, mesmo com uma decisão do Tribunal Constitucional em relação ao primeiro argumento/fundamento do acórdão recorrido, revogar a decisão recorrida.

Além disso, ainda que assim não se entenda, o que apenas se pondera, sem conceder,

15- Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, “Nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.”

16- A matéria em análise nos presentes autos não revela especial complexidade.

17- Tendo as partes mantido uma postura de colaboração para com o tribunal e não tendo requerido a realização de diligências dilatórias ou desnecessárias ou alegações prolixas.

18- Assim sendo, requer-se a V. Exas. que, em qualquer caso, determinem a dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente nos presentes autos, caso entendam que a mesma seria, em concreto, devida.

Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a presente reclamação ser julgada procedente, por provada, o recurso admitido e julgado procedente,

Só assim se fazendo Justiça!”

14. Não houve resposta à reclamação.

15. Colheram-se vistos.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da reclamação para a conferência deduzida nos termos dos artigos 643.º n.º 4, parte final, e 652.º, n.º 3, do CPC, avaliar se deve ou não ser mantida a decisão do relator que confirmou o despacho da Relação que rejeitou a revista ordinária deduzida pela reclamante/recorrente.

Na análise dessa questão reiterar-se-á o aduzido na decisão singular pelo relator, que não merece a discordância deste coletivo.

A decisão reclamada arredou a recorribilidade do acórdão proferido pela Relação com base na dupla conforme, obstáculo ao recurso que considerou verificar-se.

É nesta perspetiva que iremos averiguar do bem fundado do indeferimento do recurso.

Recorde-se, também, que em sede da reclamação prevista no art.º 643.º não cabe apreciar o mérito do recurso, nem questões como as do regime tributário dos procedimentos outros que os da própria reclamação.

2. O factualismo relevante a levar em consideração é o supra exposto no Relatório (I).

3. O Direito

Reportando-nos ao caso destes autos, dúvidas não existem quanto à admissibilidade geral da revista, quanto ao seu objeto, valor e sucumbência (artigos 671.º n.º 1 e 629.º n.º 1 do CPC).

É sabido, porém, que o n.º 3 do art.º 671.º do CPC consagra o obstáculo à revista comummente designado de “dupla conforme”:

Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

A jurisprudência do STJ tem densificado o conceito da dupla conforme no sentido de que apenas inexiste dupla conforme quando se esteja perante “uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância” (acórdão do STJ de 19.02.2015, processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt,– sublinhados nossos).

Isto significa que a verificação de fundamentação essencialmente diferente, “não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que o âmago fundamental do enquadramento jurídico seguido pela Relação seja completamente diverso daquele que foi seguido pela 1.ª instância.” Ou seja, só deixa de existir dupla conforme “quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada” (acórdão do STJ, de 31.3.2022, processo n.º 14992/19.2T8LSB.L1.S1). Por isso, como se diz no mesmo acórdão (STJ, de 31.3.2022), citando-se Abrantes Geraldes,a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representa, efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância”.

Expostas estas premissas, vejamos então o caso a que se reporta esta reclamação.

A 1.ª instância absolveu o Estado Português por ter considerado que os factos provados, atinentes às diligências praticadas tendo em vista a citação da Ré na ação declarativa instaurada pela ora reclamante contra a identificada sociedade brasileira, não constituíam um ilícito. Não havendo convenções internacionais aplicáveis à citação em causa, o tribunal aplicou as regras de direito interno, isto é, procedeu à citação postal, com aviso de receção, para as moradas que se foi conhecendo serem as da R. aí demandada. Sendo certo que a segunda tentativa de citação postal, para a nova morada conhecida, teve sucesso. As autoridades processuais agiram de acordo com o formalismo imposto pela lei portuguesa, única a que, no caso concreto, deviam obediência. Cabia à A., se pretendia mais tarde executar a sentença, assim obtida, no estrangeiro, adotar um comportamento processual tendente a moldar o ato de citação às peculiaridades próprias da justiça brasileira, para tal alertando o tribunal – o que não fez.

Interposta apelação pela A., a Relação concordou com a sentença recorrida. Para a Relação, não ocorria responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional, na medida em que o tribunal em questão praticou os atos de citação que se impunham, face ao ordenamento jurídico aplicável – o português – pelo que não existe ato ilícito, desencadeador de responsabilidade civil. Em suma, a Relação entendeu, em linha com a 1.ª instância, que a citação efetuada não consubstanciou qualquer ato ilícito, pressuposto da responsabilidade que se pretendia assacar ao R./apelado, o que conduzia necessariamente à improcedência da ação. Assim, as considerações adicionais, a que a Relação procedeu no acórdão, acerca da falta de prévia revogação da decisão danosa, são irrelevantes para o efeito da configuração de dupla conforme. A não verificação desse elemento da responsabilidade em causa foi adiantada em termos de obiter dictum, conforme claramente emerge dos termos em que esse tema adicional foi introduzido no acórdão: “Ainda que assim não se entendesse e, por hipótese se considerasse estarmos perante um acto ilícito, sempre faltaria o preenchimento do requisito da prévia revogação…

O fundamento essencial do decaimento da ação, na primeira e na segunda instância, foi a inexistência de facto ilícito, imputável ao Estado no exercício da função jurisdicional.

Ocorre, pois, a dupla conforme, obstativa da revista ordinária, nos termos do art.º 671.º n.º 3 do CPC.

Ao referido obstáculo à revista ordinária não tolhe a circunstância de, na revista, a reclamante ter invocado a inconstitucionalidade de determinadas normas. Essa é matéria que deverá ser apresentada perante o Tribunal Constitucional, nos termos legais.

Note-se que no que concerne à arguição de inconstitucionalidade de normas que, como se referiu, o tribunal a quo invocou a mero título de obiter dictum, ou seja, que não constituíram o real fundamento (ratio decidendi) da improcedência da apelação, dir-se-á que tal situação não é capaz de sustentar um recurso para o Tribunal Constitucional.

A razão é evidente, como decorre da transcrição das próprias palavras do Tribunal Constitucional (TC 15/2019, de 09.01.2019):

“…a exigência de que a norma objeto do recurso de constitucionalidade tenha sido aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, encontra a sua razão de ser na instrumentalidade da intervenção do Tribunal Constitucional no processo, o mesmo é dizer, de que a decisão sobre a conformidade constitucional da norma sindicada se revista de utilidade nos autos. «A exigência, de que a norma aplicada constitua o fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de só nesse caso a decisão da questão de constitucionalidade poder refletir-se utilmente no processo. Sendo a referência à norma questionada mero obiter dictum, a intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade constitucional da norma impugnada não se refletirá utilmente no processo, uma vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada seja declarada inconstitucional» (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 497/99). Com efeito, se a norma objeto do recurso não constituir ratio decidendi da decisão recorrida – isto é, se não integrar o conjunto das suas condições necessárias −, um eventual juízo de inconstitucionalidade seria processualmente inerte, e, nesse exato sentido, inútil. Ora, constitui entendimento sedimentado deste Tribunal que «(…) não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso» (Acórdão n.º 366/96)””.

Se, como a reclamante refere, o Tribunal Constitucional desse razão à recorrente no que se refere às questões de inconstitucionalidade atinentes ao fundamento do acórdão proferido pela Relação a quo, então a recorrente conseguiria que a Relação reapreciasse o caso à luz desse juízo de inconstitucionalidade. E, aí, se a Relação reiterasse, agora a título de ratio decidendi, a formulação do argumento primitivamente chamado a título de obiter dictum, achado estaria o caminho para uma eventual revista ordinária.

Quanto à pretensão formulada pela recorrente/reclamante no que concerne a uma eventual dispensa do pagamento de taxa de justiça remanescente (art.º 6.º n.º 7 do RCP), reitera-se que não cabe no âmbito da reclamação prevista no art.º 643.º do CPC a formulação de juízos ou de decisões atinentes ao regime tributário de procedimentos outros que não os da própria reclamação. Ora, à presente reclamação não se aplica o regime tributário a que se reporta o art.º 6.º n.º 7 do RCP, mas o regime previsto no art.º 7.º, n.ºs 4 e 8 e tabela II anexa ao RCP.

Pelo exposto, a reclamação improcede.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a reclamação improcedente e consequentemente mantém-se o despacho reclamado.

As custas da reclamação são a cargo da reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (art.º 7.º n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais, tabela II).

Lx, 25.02.2025

Jorge Leal (Relator)

Anabela Luna de Carvalho

Nelson Borges Carneiro