Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTERO LUÍS | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM CÚMULO JURÍDICO NULIDADE DE SENTENÇA OMISSÃO DE PRONÚNCIA PERDÃO MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA ÚNICA PREVENÇÃO ESPECIAL PREVENÇÃO GERAL | ||
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Data do Acordão: | 07/03/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I. Estando o perdão previsto no artigo 3º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, sujeito, além do mais, à condição resolutiva “de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado”, a sua aplicação deve, salvo situações em que esteja em causa a liberdade do arguido, ser materializada ao momento de execução da pena, concedendo, previamente, prazo ao condenado para satisfazer a referida condição; II. Nos termos do artigo 14º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, não compete ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar e decidir sobre a aplicação do perdão, o qual deverá ser ponderado e decidido pela 1.ª instância; III. Uma diferente valoração da prova produzida em audiência por parte do arguido e por arrastamento a alteração da matéria de facto, não se confunde com o vício da insuficiência da matéria de facto provada; IV. Sendo o elemento volitivo do dolo um acto interno do agente que se materializa pelos demais factos externos anteriores ou contemporâneos do ilícito, não pode o mesmo deixar de ser dado como provado, a partir do momento em que são dados como provados os factos imputados, ou seja, o elemento objectivo do ilícito, salvo se existirem circunstâncias que afastem o dolo ou a culpa; V. O dolo (elemento intelectual e volitivo) é dado por provado a partir das circunstâncias de facto dadas por assentes, analisadas à luz das regras da experiência comum, tal como resulta do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório 1. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Criminal de ..., Juiz 6, por acórdão de 11 de Janeiro de 2024, foram os arguidos, AA e BB, condenados, nos seguintes termos: a) O AA, pela prática, em co-autoria material e concurso efectivo de: - um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Cód. Penal, sendo ofendido CC, na pena de seis meses de prisão; - um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º todos do Cód. Penal e pelo art.º 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, sendo ofendido DD, na pena de três anos e quatro meses de prisão; - um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º todos do Cód. Penal e pelo art.º 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, sendo ofendido EE, na pena de três anos e quatro meses de prisão; - um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigos 2.º, n.º 1, alíneas p) e v), 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea l), 4.º, n.º 1, e 86.º, n.º 1, alínea c), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de um ano e oito meses de prisão; - em autoria material, e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro, por referência ao disposto nos artigos 121.º, n.ºs 1 e 4 e 123.º, ambos do Cód. da Estrada, na pena de quatro meses de prisão; - Em cúmulo jurídico das penas anteriores, resultou o arguido AA condenado na pena única de cinco anos e oito meses de prisão. b) O BB pela prática, em co-autoria material e concurso efectivo de: - um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Cód. Penal, sendo ofendido CC, na pena de seis meses de prisão; - um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º todos do Cód. Penal e pelo art.º 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, sendo ofendido DD, na pena de quatro anos de prisão; - um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º todos do Cód. Penal e pelo art.º 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, sendo ofendido EE, na pena de quatro anos de prisão; - um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigos 2.º, n.º 1, alíneas p) e v), 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea l), 4.º, n.º 1, e 86.º, n.º 1, alínea c), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de dois anos e oito meses de prisão; - Em cúmulo jurídico destas penas, o arguido BB condenado na pena única de sete anos de prisão. c) Os arguidos AA e BB foram ainda condenados a pagar, solidariamente, ao ofendido DD, a quantia de € 6.000,00, e ao ofendido EE, a quantia de € 3.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento. 2. Inconformados com tal decisão, os arguidos AA e BB interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o primeiro e para o Supremo Tribunal de Justiça, o segundo. Posteriormente, o arguido AA veio requerer que o seu recurso fosse apreciado por este Supremo Tribunal de Justiça, e após convite e notificação para o efeito, por determinação do Conselheiro relator, em sede de despacho preliminar, veio a apresentar novas conclusões. Em sede de conclusões, os recorrentes apresentaram as seguintes: (transcrição) AA, a) A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, estabeleceu que relativamente a crimes praticados até 19 de Junho de 2023, por pessoas com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, sendo ainda perdoadas: as penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão; a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa; a pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e as demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova, excluindo-se os crimes expressamente previstos no artigo 7.º do diploma (artigos 2.º, 3.º e 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto). b) No caso, o arguido, à data da prática dos factos – 11.12.2020 – contava com 25 anos de idade (cf. art.º 2.º) e que os crimes pelos quais veio a ser a ser condenado não integram as exceções previstas no artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, nomeadamente os crimes de condução sem habilitação legal, o crime de ofensa à integridade física e o crime de detenção de arma proibida. c) Sendo os crimes cometidos suscetíveis de perdão e a pena é perdoável (artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1 a contrario da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto. d) Atento o exposto, à luz das normas legais citadas e do artigo 8.º do mesmo diploma, deve declarar-se perdoado parcialmente a pena de 1 ano de prisão aplicada nestes autos (5 anos e 8 meses) - sob condição resolutiva de não ter praticado, nem vir a praticar, crime doloso entre 1 de setembro de 2023 a 1 de setembro de 2024, tendo o arguido de cumprir 4 anos e 8 meses de prisão (menos um ano). e) Pelo que, no tocante à pena de prisão com a qual foi condenado reúne as condições legais de beneficiar daquele perdão, devendo aquela norma que impõe o perdão ser aplicada, o que o acórdão não o fez, o que aqui se invoca, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 412 do CPP. f) Como acima se disse o acórdão enumera as circunstâncias e factos pessoais referentes ao arguido no se ponto 3: “Não levou o acórdão recorrido em consideração a inserção familiar e profissional do arguido, pois: (…) à data da sua prisão, AA, encontrava-se a residir e a trabalhar numa empresa ..., na Holanda, onde permaneceu seis meses de Janeiro a Junho 2022, altura em que veio a ser preso neste país, tendo aqui permanecido até Outubro 2022 quando veio extraditado para Portugal. g) Refere ter-se deslocado para aquele país para fazer face às dificuldades financeiras justificando falta de trabalho e gravidez da companheira, não assumindo qualquer tentativa de se furtar ao presente processo e às consequências do seu comportamento, evidenciando pouca consciência crítica e desvalorização quanto à sua situação jurídico-penal. (…) Mantém, há cerca de três anos, um relacionamento afetivo com a atual companheira fruto do qual tem um filho de um ano e quatro meses, referindo que a mesma trabalha num ... e habita no ... (desconhece a morada), passando o seu futuro por regressar ao seu agregado constituído e procurar trabalho na ... mantendo em paralelo o seu negócio de .... (…) h) Devendo esses fatos ser considerados na fixação da pena aplicada ao arguido em concreto, impondo-se decisão diversa da ora recorrida, na escolha da pena e da medida concreta da pena. i) Pois são factos que permitem ao julgador verificar que estão reunidas todas as condições para uma plena ressocialização do arguido, podendo condená-lo em pena de prisão de duração inferior à decidida pelo acórdão e aplicar-lhe uma pena suspensa na sua execução. j) Admitindo a pena a suspensão da execução, por força do artigo 50.º, n.º 1, do CP, medida expressamente solicitada pelo arguido e que sempre teria de ser ponderada, por força da mesma disposição legal e estando preenchida a condição formal da suspensão da pena de prisão (não ser superior a 4 anos e oito meses). k) Sendo que estariam reunidos os elementos necessários ao preenchimento da condição material, ou seja, podemos concluir, no caso do recorrente, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam as finalidades das penas. l) Com efeito, perante o grau de ilicitude dos factos praticados, o passado criminal do arguido – 3 condenações averbadas no seu CRC – 1 por consumo de estupefacientes,, outra por resistência e coação sobre funcionário, e 1 por tráfico de menor gravidade) e a personalidade que assim se revela (a seu favor, pesa a circunstância de ainda ser jovem e o teor do relatório social, o arrependimento, a inserção social e profissional e um projeto de vida assente na mudança e de continuar a laborar, ter sido pai, e o afastamento do local onde pretende residir), parece evidente que “a simples censura do facto e a ameaça da prisão” realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição consagradas no artigo 40.º, n.º 1 do CP. m) Resulta dos fatos dados como provados e dos antecedentes criminais e da motivação da decisão foi dada como assente que o arguido confessou parcialmente dois dos crimes: ofensa à integridade física simples e o crime de condução sem habilitação legal, sendo que no caso em apreço, e não tendo antecedentes criminais por crimes da mesma natureza, e os crimes tendo sido cometidos há pelo menos 4 anos antes da prática dos fatos ilícitos em causa, sempre se dirá que a pena de multa em cada um dos crimes seria de aplicar a cada um dos crimes. n) Aliás, decorre dos fatos dados como provados 1.7. 1.8 e 1.9 que do crime de ofensa à integridade física cometida pelo ora recorrente na pessoa do ofendido CC resultou apenas dores no maxilar e na cabeça e nenhum tratamento hospitalar, sem internamento, sem período de doença, sem fetação de capacidade para o trabalho, etc., pelo que não sendo um dos visados pelos disparos, e tendo em consideração da confissão integral e sem reservas do arguido e o arrependimento da conduta, apesar de pouco valorada pelo tribunal, não se considera adequado e proporcional a pena de prisão aplicada ao arguido, sendo que deveria ter sido aplicada ao invés uma pena de multa. o) Mutatis mutandis, o mesmo raciocínio se aplica no que tange ao crime de condução sem habilitação legal, tendo sido o mesmo confessado pelo recorrente, sendo primário quanto ao mesmo, e sem qualquer acidente rodoviário, haverá de ser-lhe aplicada pena de multa. p) Há, pois, a alterar as penas parcelares fixadas. q) Caso o cúmulo da pena aplicada seja inferior ou igual a 5 anos, poderá, em termos de juízo prognose, a natureza do instituto e as finalidades de política criminal que prossegue e as condições e pressupostos de aplicação, permitem concluir, que a suspensão da pena é adequada à situação do recorrente, pois verificam-se, no caso concreto, os pressupostos do artigo 50° do Código Penal, uma vez que, nas condições que vêm provadas, a simples censura do facto e a ameaça da execução, se prefiguram suficientes para prevenir a prática de futuros crimes, sendo certo que também razões de prevenção geral e especial não a afastam a aplicação no caso em apreço. r) Pelo que o doseamento da pena arbitrada pelo tribunal a quo denuncia uma violação do princípio da proporcionalidade das penas; tendo sido violadas as normas vertidas no n.º 2 do artº 32º, nº 6 do artº 29º e nº 4 do artº 30 º da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ter provimento nos termos promovidos, ASSIM SE CUMPRIRÁ O DIREITO E SERÁ FEITA JUSTIÇA! BB 1. O crime de ofensa à integridade física simples e o crime de detenção de arma proibida, não se encontram excluídos pelo art.º 7.º, da Lei 38-A/2023, de 02.08 e, o n.º 3, dispõe que a exclusão do perdão não prejudica a sua aplicação, relativamente a outros crimes cometidos. 2. Os ilícitos em causa ocorreram em 11/12/2020 e o Recorrente nasceu em .../.../1994, pelo que, na data dos factos tinha 26 anos de idade, o que impunha que o Tribunal se pronunciasse e aplicasse a Lei 38-A/2023, de 02.08, o que não fez. 3. Não tendo o Tribunal a quo conhecido da aplicação da Lei 38-A/2023, de 02.08, verifica-se a nulidade do acórdão, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, nulidade essa que ora se arguí e para todos os legais efeitos. 4. Não se provou que as lesões dos Ofendidos DD e EE fossem sequer determinantes de dias de doença, além dos dois dias de internamento para o primeiro, e não foi afetado qualquer órgão vital. 5. O resultado com que o Recorrente se conformou, não pode ir além do resultado efetivo, não podendo, em direito penal do facto, ser outro diverso daquele cuja possibilidade também previu e que efetivamente se verificou. 6. Em relação aos Ofendidos e no que respeita às consequências que resultaram da atuação do Recorrente, este apenas poderá, nos quadros do dolo eventual, ser considerado autor de um crime de ofensas corporais p. e p. no artigo 143.º, do CP. 7. A não ser assim, alargar-se-iam exponencialmente os pressupostos do dolo eventual, considerando-se, não já o facto concreto, preciso e consequencialmente determinado com que o agente se conforma, mas a indiferença do agente em relação a possíveis, mas contingentes e hipotéticos resultados em registo subjetivo contrário ao direito penal do facto. 8. Face à insuficiência da matéria de facto provada, para a subsunção da conduta do Recorrente à prática de dois crimes de homicídio, na forma tentada, relativamente aos ofendidos DD e EE, deve o mesmo ser absolvido da prática dos mesmos e com todas as legais consequências (art.º 410.º, n.º 2, al. a), do CPP). 9. Em obediência ao disposto no art.º 71.º, nos. 1 e 2, do CP, impõem-se uma redução das penas parcelares aplicadas, para um quantum próximo dos seus mínimos, porquanto, o Recorrente beneficia de atenuantes da sua conduta, que não foram ponderas na determinação da medida da pena. 10. A determinação da pena única, nunca deverá exceder os 5 anos de prisão, por este quantum se mostrar suficiente para assegurar as exigências de prevenção geral e especial. 11. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, quer na fixação das penas parcelares, quer na determinação da pena única, violou, por erro de interpretação, o disposto no art.º 71.º, do CP. 12. Sendo justa, proporcional e suficiente para assegurar as exigências de prevenção geral e especial, a fixação de uma pena que não exceda os cinco anos de prisão, deve a mesma ser suspensa na sua execução. 13. Tendo em conta toda a factualidade e circunstâncias que avultam dos autos e porque se evidencia a possibilidade séria de fazer um juízo de prognose favorável relativamente à inserção do Recorrente na sociedade, é de suspender a execução da pena de prisão em que venha a ser condenada, em obediência ao disposto no art.º 50.º, do CP. 14. No que tange aos crimes de homicídio na forma tentada, na procedência do invocado vício do ponto IV deste recurso (art.º 410.º, n.º 2, al. a), do CPP), deixa de existir fundamento legal para o arbitramento de indemnização, pelo que, o acórdão recorrido deverá ser revogado nesta parte. 15. Caso se mantenha a condenação do Recorrente, pela prática de dois crimes de homicídio na forma tentada, entende-se como adequada, justa e equitativa a fixação de uma indenização correspondente a € 3.000,00, para DD e € 1.500,00 para EE, pelo que, ao decidir de forma diversa, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 494.º e 496.º, do CC. NESTES TERMOS e nos mais e melhores de direito, que V. Excelências, Colendos Juízes Conselheiros doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente, com todas as legais consequências. Assim se fazendo a habitual JUSTIÇA! (fim de transcrição) 3. O Ministério Público na 1ª instância apresentou resposta aos recursos, concluindo, nos seguintes termos: (transcrição) Em relação ao recurso de AA, 1. A fundamentação do acórdão recorrido cumpre exemplarmente os respectivos requisitos legais, nele se encontrando muito bem explicitado e explicado o processo de formação da convicção do tribunal e o exame crítico das provas que o alicerçou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido e o porquê, a medida e a extensão da credibilidade que mereceram (ou não mereceram) os depoimentos prestados em audiência de julgamento. Fundamentação que, de resto, se acha também muito bem alicerçada nas regras da experiência e em adequados juízos de normalidade, não se perfilando a violação de qualquer regra da lógica ou ensinamento da experiência comum. 2. Provou-se que os arguidos, munidos com uma caçadeira, regressam ao local do confronto e, com a viatura em andamento, a uma distância de 10/15 metros, disparam na direcção das pessoas que nessa ocasião ali se encontravam, tiveram que necessariamente se conformar com a possibilidade de atingir uma delas e de lhes causar a morte. Aliás, tal resultado apenas não ocorreu devido à rápida assistência hospitalar prestada ao ofendido DD e ao posicionamento deste em relação ao ofendido EE que, no exacto momento do disparo, acabou por protegê-lo, fazendo com que os chumbos não tivessem atingido partes vitais. 3. A prova produzida em julgamento, a que não são alheias as regras da lógica e da experiência, permitiram imputar aos arguidos a prática do crime de homicídio, na forma tentada, cometido sob a forma de dolo eventual, sendo irrelevante a ausência de confissão destes. 4. A decisão de cometer o crime, a que se reporta o artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal quando define a tentativa, é compatível com qualquer das modalidades de dolo e, portanto, também com a decisão de se conformar com o resultado própria do dolo eventual; este também implica, como as outras modalidades de dolo, representação e vontade, mesmo que esbatidas ou enfraquecidas. 5. O Tribunal a quo optou por fixar as penas parcelares e única próximo dos limites mínimos da moldura abstracta aplicável, não obstante a elevada gravidade e ilicitude e a gravidade dos factos pelos quais foi condenado, o que, apesar de benevolente, reflecte que, ao invés do propugnado pelo Recorrente, foi devidamente ponderada a sua juventude e condições de vida, afigurando-se-nos o respectivo quantum correcto. 6. À cautela sempre se dirá que, perante as elevadas exigências de prevenção especial e de prevenção geral, não é possível concluir por um juízo de prognose favorável, mormente, quando o arguido, pese embora tenha admitido parcialmente os factos (os menos graves), adoptou uma postura de vítima e de desresponsabilização, negando, num primeiro momento, contra todas as evidências, o conhecimento da existência da espingarda caçadeira, e num segundo momento, escudando-se na ausência de domínio do facto, quando era ele o condutor da viatura. 7. Na medida em que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto não é de aplicação automática, mostrando-se dependente quer do tipo de crime quer da moldura penal, o tribunal a quo relegou para a fase da execução da pena a aplicação do aludido diploma. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se dessa forma a decisão recorrida, só assim se fazendo JUSTIÇA! Relativamente ao recorrente BB, 1. A Lei n.º 38-A/20203 não tem aplicação automática. 2. Para o perdão, são pressupostos objectivos da sua aplicação, para além da idade do condenado e data da prática dos factos, o tipo de crime, a pena e a medida da pena, pelo que somente com o trânsito em julgado, e a execução da pena, existem condições para se determinar (ou não) a aplicação do perdão de 1 ano. 3. Provou-se que os arguidos, munidos com uma caçadeira, regressam ao local do confronto e, com a viatura em andamento, a uma distância de 10/15 metros, disparam na direcção das pessoas que nessa ocasião ali se encontravam, tiveram que necessariamente se conformar com a possibilidade de atingir uma delas e de lhes causar a morte. Aliás, tal resultado apenas não ocorreu devido à rápida assistência hospitalar prestada ao ofendido DD e ao posicionamento deste em relação ao ofendido EE que, no exacto momento do disparo, acabou por protegê-lo, fazendo com que os chumbos não tivessem atingido partes vitais. 4. A prova produzida em julgamento, a que não são alheias as regras da lógica e da experiência, permitiram imputar aos arguidos a prática do crime de homicídio, na forma tentada, cometido sob a forma de dolo eventual, sendo irrelevante a ausência de confissão destes. 5. A decisão de cometer o crime, a que se reporta o artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal quando define a tentativa, é compatível com qualquer das modalidades de dolo e, portanto, também com a decisão de se conformar com o resultado própria do dolo eventual; este também implica, como as outras modalidades de dolo, representação e vontade, mesmo que esbatidas ou enfraquecidas. 6. Entendemos, pois, que o que o recorrente pretende verdadeiramente impugnar é, na verdade, o processo de formação da convicção do tribunal a quo que levou à fixação da matéria de facto dada como provada. Porém, neste contexto haverá que afirmar que a fundamentação do acórdão recorrido cumpre exemplarmente os respectivos requisitos legais, nele se encontrando muito bem explicitado e explicado o processo de formação da convicção do tribunal e o exame crítico das provas que o alicerçou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido e o porquê, a medida e a extensão da credibilidade que mereceram (ou não mereceram) os depoimentos prestados em audiência de julgamento. Fundamentação que, de resto, se acha também muito bem alicerçada nas regras da experiência e em adequados juízos de normalidade, não se perfilando a violação de qualquer regra da lógica ou ensinamento da experiência comum 7. Não colhe a argumentação do recorrente no que respeita a uma eventual desproporção e desadequação da medida concreta da pena de prisão em que foi condenado e bem assim na possibilidade de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão no caso concreto, tendo em conta a própria fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo, a qual se mostra irrepreensível. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se dessa forma a decisão recorrida, só assim se fazendo JUSTIÇA! (fim de transcrição) 3. Neste Supremo o Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu o seu douto parecer e após análise dos recursos, concluiu “acompanhando a posição do Ministério Público na 1ª instância, emite-se parecer no sentido de deverem ser julgados improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos AA e BB” 4. Notificado os recorrentes, os mesmos não responderam. Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos, cumpre decidir. II. Fundamentação 5. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3 Da leitura dessas conclusões, os recorrentes colocam a este Supremo Tribunal, as seguintes questões: O AA Aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto; Medida da pena e suspensão na sua execução da pena única. O BB Nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, por ter omitido a aplicação da Lei 38-A/2023, de 02.08; Verificação do vício da insuficiência da matéria de facto provada, do artigo 410º, nº 2 al. a) do Código de Processo Penal, em relação aos dois crimes de homicídio na forma tentada; Medida da pena e suspensão na sua execução da pena única; Montante da indemnização arbitrada. Vejamos, antes de mais, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados. 5.1. Resultaram provados, os seguintes factos: (transcrição) 1.1 Os arguidos AA e BB e CC, DD e EE residem em ... e conhecem-se, alguns, há vários anos. 1.2 No dia ...-12-2020, o arguido BB e CC encontravam-se no café “R... .....” existente no Centro Comercial ..., sito na Avenida ... ... em ..., quando o segundo desferiu um “calduço” na cabeça do primeiro, como forma de cumprimento, tendo este retribuído o gesto. 1.3 Nessa noite, ainda no mesmo café, o arguido BB confrontou CC com o referido gesto, ao que este retorquiu dizendo que estavam “quites”. 1.4 No dia ...-12-2020, pelas 19h00, o arguido BB deslocou-se no veículo automóvel Renault Clio, de cor branca, com a matrícula ..-QE-.., propriedade da sua mãe e por este conduzido, para a zona do Centro Comercial ... e estacionou-o na artéria onde o referido centro comercial se situa. 1.5 Nessa ocasião, o arguido BB levava consigo, no interior do referido veículo, uma caçadeira de canos paralelos cortados. 1.6 Uma vez no exterior do Centro Comercial ..., o arguido BB acompanhado do arguido AA, perguntou a DD, acerca do paradeiro de CC, que, sem saber das suas intenções, lhe disse não saber onde este último se encontrava. 1.7 Alguns minutos depois, o arguido BB, nas imediações do referido centro comercial e de forma não concretamente apurada, desferiu, pelo menos, um soco no CC que ali se encontrava com vários amigos e conhecidos, que o atingiu na cara e que motivou a sua queda no solo. 1.8 Nestas circunstâncias, o arguido AA aproximou-se de CC e desferiu-lhe, pelo menos, um murro que o atingiu na zona do maxilar. 1.9 Da actuação dos arguidos, CC sofreu, directa e necessariamente, dores, designadamente no maxilar e na cabeça. 1.10 Entretanto, aproximaram-se cerca de dez jovens que ali se encontravam, que afastaram os arguidos BB e AA do local onde CC se encontrava caído. 1.11 Logo de seguida, os arguidos BB e AA saíram a correr do local, dirigindo-se para o veículo automóvel acima referido, indo alguns daqueles jovens no seu encalço. 1.12 Acto contínuo, o arguido BB agarrou numa caçadeira de canos paralelos cortados que transportava no interior do referido veículo e apontou-a em direcção aos indivíduos, que se afastaram. 1.13 Nessa ocasião, o arguido AA ocupou o lugar do condutor e o arguido BB sentou-se no lugar do passageiro da frente, após o que fecharam as portas respectivas. 1.14 Acto seguido, o arguido AA colocou em marcha o veículo automóvel em apreço, o qual conduziu pela Avenida ..., no sentido da rotunda ali existente circundando-a e voltando a entrar na citada Avenida onde, mais adiante, inverteu o sentido de marcha em direcção à Praça de Táxis ali existente. 1.15 E, quando se encontravam a cerca de cinco/dez metros do passeio onde estavam ainda alguns dos jovens que momentos antes os haviam perseguido e próximos de DD e EE, o arguido BB, abriu a janela do veículo, através da qual apontou a caçadeira de canos cerrados na sua direcção e, em acto contínuo, realizou, pelo menos, um disparo com a referida arma. 1.16 O projéctil deflagrado atingiu DD e EE. 1.17 Seguidamente, os arguidos BB e AA colocaram-se em fuga. 1.18 EE e DD foram imediatamente transportados para o Hospital ... pelo irmão do daquele, FF, no veículo deste, onde deram entrada Serviço de Urgência. 1.19 Como consequência directa e necessária do disparo, DD sofreu múltiplos orifícios cutâneos da região cervical/ombro tórax até à região inguinal à esquerda; lâmina de pneumotórax à esquerda, atingindo no ápice pulmonar esquerdo espessura de 9 mm, no seio costofrénico anterior esquerdo espessura de 10 mm, em topografia retrocardíaco espessura 12 mm; densificação focal subpleural anterior do segmento anterior lobo superior esquerdo com 12 mm, sugestiva de foco de contusão pulmonar, associada a lâmina de pneumotórax de 4 mm; abdómen com pelos menos 1 chumbo intra abdominal; mínima lâmina de líquido no recesso pélvico peritoneal posterior inespecífico, na parede abdominal anterior bolhas de enfisema e densificações focais e dores nas zonas atingidas, que demandaram o seu internamento até ao dia 14-12-2020. 1.20 Por sua vez, como consequência directa e necessária do disparo, EE sofreu múltiplas cicatrizes hipercrómicas desde a face lateral da região nadegeura ao terço proximal da face lateral da perna, numa área medindo 54 cm, por 26 cm, a maior na região da união dos quadrantes laterais da nádega, medindo 3 cm de comprimento por 1 cm de largura. 1.21 Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA não se mostrava habilitado para conduzir veículos a motor na via pública. 1.22 Os arguidos AA e BB conheciam as concretas características da arma que transportavam e que utilizaram, nas circunstâncias de tempo, lugar e modo acima mencionadas, mais sabendo que, por via delas, a sua detenção lhes estava absolutamente proibida. 1.23 Os arguidos AA e BB actuaram conjugadamente e de acordo com um plano por ambos gizado, cada um ciente e aceitando o resultado da conduta do outro, o que fizeram motivados por despeito e pelo que tinha acabado de suceder, tendo agido com o objectivo de dispararem projécteis de arma de fogo sobre as pessoas que se encontravam no passeio. 1.24 Os arguidos AA e BB bem sabiam e tinham capacidade para avaliar que naquele local se encontravam inúmeras pessoas e que, dada a distância dos disparos, o tipo de arma e munição utilizada, podiam atingir alguma delas numa parte vital do corpo, e, desse modo, causar-lhes a morte, tendo, mesmo assim, disparado, acertando nos ofendidos EE e DD, cujas lesões não foram mortais por circunstâncias externas à vontade daquele, actuando com consciência dos possíveis resultados da sua conduta, e conformando-se com o resultado. 1.25 Sabiam ainda que a utilização de uma caçadeira com os canos serrados, encerrava um potencial de perigosidade muito superior aos meios normalmente utilizados para atentar contra a integridade física e que, pelas suas características, diminuía significativamente as possibilidades de reacção e defesa das vítimas. 1.26 Os arguidos AA e BB agiram em união e conjugação de esforços e objectivos, com expressa intenção de atingir o corpo de CC, no qual desferiam vários murros na cara e na cabeça, da forma supra descrita, o que lograram. 1.27 Os arguidos AA e BB tinham conhecimento das características da referida arma de fogo, cujos canos foram previamente cortados, não sendo, por isso, passível de ser legalizada, mais sabendo que não a podiam ter em seu poder e, apesar disso, fizeram-se dela acompanhar, utilizando-a depois nas circunstâncias descritas. 1.28 Mais agiu o arguido AA com intenção concretizada de conduzir um veículo ligeiro de passageiros na via pública, bem sabendo que, para o efeito, tinha de estar dotado de carta de condução, o que, na ocasião, não dispunha. 1.29 Agiram em tudo e sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. Mais se provou: 1.30 O arguido BB endereçou uma carta ao ofendido DD, pedindo-lhe desculpas pelo sucedido, assumindo a forma conflituosa com que lidou com a situação. 1.31 Os arguidos verbalizaram arrependimento e apresentaram um discurso vitimizante, autocomplacente, demonstrativo de ausência de espírito crítico e de consciência de gravidade das suas condutas. 1.32 O arguido AA nega qualquer participação nos factos relacionados com a detenção e utilização da caçadeira de canos serrados, no dia ...-12-2020. 2. Das condições pessoais e socioeconómicas do arguido BB: “BB nasceu em Portugal, sendo os progenitores oriundos de ..., tendo a mãe vindo para Portugal em 1992. O arguido nunca viveu com o pai, apesar de se relacionar com o mesmo. O pai, atualmente vive no ... e é proprietário de um salão de ..., local onde exerce essa mesma profissão. O arguido foi criado pela mãe, que era ... e que atualmente é ... num restaurante em .... BB é o único filho da relação dos seus progenitores. Tem um irmão uterino com 30 anos de idade e duas irmãs consanguíneas com 23 e 6 anos de idade. Quando tinha cerca de 3/4 anos de idade, a mãe iniciou um novo relacionamento que perdurou até aos 11 anos de idade do arguido. O relacionamento terminou devido à violência doméstica exercida pelo padrasto em relação à mãe do arguido. BB ficou a viver com a progenitora, em casa propriedade da mesma, localizada em .... É referido um bom relacionamento entre os elementos do agregado, arguido, mãe e irmão. Apesar de algumas dificuldades económicas no seio do agregado, o mesmo sempre conseguiu suprir as suas necessidades. BB iniciou o percurso escolar em idade regulamentar, tendo concluído o 12º ano de escolaridade com 19 anos de idade. Reprovou uma vez no 3º ano de escolaridade por ter sido operado ao apêndice, tendo sido referido pelo próprio bem como pela mãe, que o arguido tinha um bom desempenho escolar. Quando o arguido tinha 15 anos de idade, a mãe retornou a ..., onde surgiu uma boa oportunidade de trabalho, ficando nesse país cerca de oito anos, tendo BB e o seu irmão ficado a residir no apartamento do agregado, em companhia de uma jovem amiga da sua mãe e ligeiramente mais velha que o arguido, para apoiar o agregado nas tarefas domésticas. Com a ausência de controle parental, o arguido iniciou o convívio com pares com comportamentos desviantes, pautando a sua atitude pela rebeldia, iniciando o consumo de haxixe em contexto de pares. Quando frequentava o 12º ano de escolaridade, optou pelo ensino noturno, trabalhando no período diurno para a “V.......”, fazendo contratos para essa empresa porta a porta e posteriormente trabalhou na entrega de pizzas, com o auxílio de uma motorizada. Em novembro de 2014, já com 20 anos de idade, rumou para o Reino Unido, procurando melhores condições de vida, instalando-se em .... Aí arrendou um quarto e posteriormente um apartamento, tendo iniciado ocupação laboral em diferentes cadeias de supermercados, referindo que não tinha problemas económicos. Em 2015, iniciou uma relação afetiva, com uma companheira, sua antiga namorada que residia em Portugal. A companheira rumou ao Reino Unido, ao encontro do arguido, iniciando o casal uma vivência em comum. Deste relacionamento o casal tem um filho, atualmente com ... anos de idade. Após o nascimento do filho, em 2016, o casal terminou a relação, ficando o filho com a progenitora que regressou a Portugal. O arguido refere que ficou acordado que o filho passa com o pai um fim-de semana quinzenalmente, tendo o arguido que contribuir com 100,00 euros mensais, para a educação do filho. BB refere que vinha a Portugal uma ou duas vezes por ano, nas férias e no período do natal. BB refere que mantinha os consumos de haxixe, nunca em excesso e pontualmente consumia cocaína em convívios sociais. Este não se trata do primeiro contacto com o aparelho de justiça, verificando-se uma ocorrência em 01-10-2012, no âmbito do processo nº 1859/12.4..., nomeadamente condução sem habilitação legal. O arguido refere que no Reino Unido nunca teve qualquer contacto com o aparelho da justiça. À data dos factos subjacentes à presente acusação, o arguido residia na habitação constante do presente documento, um apartamento propriedade da sua mãe, em companhia desta. BB tinha vindo a Portugal para passar o Natal com a sua família, quando se deu o confinamento devido à pandemia da Covid 19, não podendo regressar ao Reino Unido. Manteve-se em casa da progenitora, subsistindo com o seu dinheiro e com a ajuda da progenitora. O arguido mantinha uma relação de proximidade com o seu filho. Convivia com amigos e mantinha os consumos de haxixe ocasionalmente. O arguido compunha músicas de estilo “...”, com o intuito de publicá-las no “Youtube”. Após os factos subjacentes à presente acusação, BB, regressou ao Reino Unido, à cidade de ..., trabalhando na “A.....”, desde 2021, com vínculo contratual, auferindo cerca de 550,00/630,00 Libras por semana, até ser detido pela Interpol, vindo para Portugal, no âmbito do presente processo. Em termos de características pessoais, BB, denota lacunas ao nível da consciência crítica e pensamento consequencial, com dificuldade em reconhecer o impacto das suas ações nos outros e com aparentes défices ao nível do controlo de impulsos. O arguido encontra-se preso preventivamente no EP de ... no âmbito do presente processo desde ...-08-2022, tendo inicialmente dado entrada no EP de ... em ..-08-2022, sendo transferido para o EP junto da PJ em ...-08-2022. O arguido bem como a sua progenitora aguardam com expetativa o epílogo do presente processo. No EP, o arguido é acompanhado, pontualmente, em consultas de psicologia e refere que, com a actual reclusão, aprendeu a controlar melhor os seus impulsos. Enquanto recluído, BB averba uma repreensão escrita por altercações entre reclusos, factos ocorridos em ...-...-2023. No EP de ..., o arguido não exerce qualquer atividade escolar ou laboral, frequentando o ginásio, jogando xadrez, com hábitos de leitura e frequentando o pátio. O arguido tem visitas regulares da sua mãe, e visitas do seu irmão, padrasto, de um amigo e de um primo.” 3. Do arguido AA: “À data da sua prisão, AA, encontrava-se a residir e a trabalhar numa empresa de ..., na Holanda, onde permaneceu seis meses de Janeiro a Junho 2022, altura em que veio a ser preso neste país, tendo aqui permanecido até Outubro 2022 quando veio extraditado para Portugal. Refere ter-se deslocado para aquele país para fazer face às dificuldades financeiras justificando falta de trabalho e gravidez da companheira, não assumindo qualquer tentativa de se furtar ao presente processo e às consequências do seu comportamento, evidenciando pouca consciência crítica e desvalorização quanto à sua situação jurídico-penal. Ao nível do seu desenvolvimento, o arguido refere ser filho de pais angolanos tendo nascido no ..., onde pouco habitou, mudando-se o agregado, pais e irmã mais nova, para ... ..., zona onde se desenrolou todo o seu processo de socialização. Os pais vieram a separar-se quando o arguido tinha oito anos de idade, salientando a existência de um ambiente desestruturado pautado por violência doméstica da parte do progenitor para com a sua mãe. Permaneceu à guarda da progenitora, mas aos 16 anos foi deixado em Portugal a viver às suas custas (a mãe ter-lhe-á pago três meses de renda) uma vez que ambos os progenitores regressaram ao seu país de origem, ..., onde vivem presentemente. Passou a viver à sua responsabilidade referindo trabalhar na construção civil com um tio paterno, mantendo convívio com jovens da sua zona de residência com comportamentos desajustados, pares onde se incluía o co-arguido bem como os ofendidos do presente processo. Ainda antes dos 16 anos, o arguido teve contacto com o sistema tutelar da justiça tendo-lhe sido aplicada medida de acompanhamento e, mais tarde, iniciou os seus contactos com o sistema da justiça tendo cumprido seis meses de pena no EP ..., tendo também sido condenado numa pena de trabalho a favor da comunidade por ofensa à integridade física. Mantém, há cerca de três anos, um relacionamento afetivo com a atual companheira fruto do qual tem um filho de um ano e quatro meses, referindo que a mesma trabalha num restaurante e habita no ... (desconhece a morada), passando o seu futuro por regressar ao seu agregado constituído e procurar trabalho na restauração mantendo em paralelo o seu negócio de venda digital. Refere não sofrer de problemas de saúde, não se conhecendo a associação do arguido a comportamentos aditivos. AA encontra-se preso à ordem do presente processo desde julho 2022 na Holanda e em Portugal desde outubro 2022, mantendo um comportamento de acordo com as regras institucionais. Recebe visitas da companheira e de um tio. Recorrendo a um discurso autocentrado, o arguido elenca repercussões negativas da presente situação judicial, nomeadamente o facto de, à data das circunstâncias, se encontrar na Holanda a trabalhar para proporcionar um equilíbrio financeiro à sua família, receando que em termos futuros tal não se concretize. O arguido não se revê nos factos de que está indiciado apresentando uma postura de vitimização perante o presente processo desvalorizando os seus anteriores contactos com o sistema da justiça.” 4. Dos antecedentes criminais do arguido BB: 4.1 O arguido foi condenado por sentença proferida em 25.06.2013, transitada em julgado em 10.09.2013, nos autos de processo especial abreviado n.º 1859/12.4..., do 2.º Juízo, 3.ª Secção, do Juízo Pequena Instância Criminal de ..., pela prática em 28.09.2012, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no total de € 500,00 (quinhentos euros). Por despacho de 10.10.2018, esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento. 4.2 O arguido foi condenado no Reino Unido, por decisão de 17.09.2015, transitada em julgado em 01.10.2015, no âmbito do processo n.º 15/..31/...38K, pela prática de um crime de posse ou uso não autorizado de armas, armas de fogo, suas peças e elementos, munições e explosivos, um crime de furto, ambos praticados em 20.05.2015 e por um crime de infracção contra o Estado, ordem pública, a realização da justiça ou pessoa que exerce um cargo público, em 16.06.2015. 4.3 O arguido foi condenado no Reino Unido, por decisão de 20.01.2016, transitada em julgado em 20.01.2016, no âmbito do processo n.º 16/1731/29646Q, pela prática de um crime de infracção contra o Estado, ordem pública, a realização da justiça ou pessoa que exerce um cargo público, praticado em 17.11.2015. 4.4 O arguido foi condenado por sentença proferida em 22.02.2018, transitada em julgado em 13.03.2018, nos autos de processo especial sumaríssimo n.º 679/17.4... do Juiz 1, do Juízo Pequena Criminalidade de ..., pela prática em 15.11.2017, de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 200,00 (duzentos euros). Por despacho de 24.02.2022 esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento. 5. Dos antecedentes criminais do arguido AA: 5.1 O arguido foi condenado por sentença proferida em 27.06.2012, transitada em julgado em 24.09.2012, nos autos de processo especial abreviado n.º 2308/11.0... do Juiz 1, do Juízo Pequena Instância Criminal de ..., pela prática em 20.11.2011, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída por 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 900,00 (novecentos euros). Por despacho de 15.07.2014 foi revogada a pena de multa e ordenado o cumprimento de pena de prisão. Esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento, por despacho de 09.09.2015. 5.2 O arguido foi condenado por sentença proferida em 21.05.2015, transitada em julgado em 22.06.2015, nos autos de processo comum n.º 259/14.6..., do Juiz 13, do JL Criminal de ..., pela prática em 18.04.2014, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena de 7 (sete) meses de prisão, substituída por 210 horas de trabalho a favor da comunidade. Por despacho de 15.07.2014 foi revogada a pena de multa e ordenado o cumprimento de pena de prisão. Esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento, por despacho de 07.09.2017. 5.3 O arguido foi condenado por sentença proferida em 17.11.2016, transitada em julgado em 19.12.2016, nos autos de processo especial sumário n.º 1381/16.0..., do Juiz 2, do JL Pequena Criminalidade de ..., pela prática em 17.10.2016, de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no total de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros). Esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento, por despacho de 19.04.2021. 6. Da Contestação do arguido AA provou-se que: 6.1 No dia ...-12-2020, o arguido AA não esteve na área de serviço localizada no Km 12, da ..., onde pediu comida no McDrive, às 21H37m39s. (fim de transcrição) 6. Apreciando 6.1 Nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia e aplicação da Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto. Ambos os recorrentes suscitam a não aplicação do perdão da Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto, às penas parcelares a que foram condenados pelos crimes de ofensa à integridade física (simples) e de detenção de arma proibida, qualquer dos arguidos, e ainda pelo crime de condução sem habilitação legal, o arguido AA [cfr. conclusões a) a e), deste recorrente, e conclusões 1 a 3 do recorrente BB, caracterizando este tal omissão, como nulidade por omissão de pronúncia. Não têm razão os recorrentes. Importa, antes de mais, realçar que o tribunal recorrido na sua douta decisão começa e bem, como questão prévia, por afastar a aplicação da referida lei ao crime de condução sem habilitação legal, nos seguintes termos: (transcrição) “Questão Prévia: Cumpre, desde já, analisar a requerida aplicação da Lei n.º n.º 38-A/23, de 02 de Agosto, ao crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro, por referência ao disposto nos artigos 121.º, n.ºs 1 e 4 e 123.º, ambos do Cód. da Estrada, pelo qual vem o arguido AA, acusado. Por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações, abrangendo as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (cfr. artigos 1º e 2º da Lei). A sobredita Lei, entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2023 (cfr. artigo 15.º). Nos presentes autos, o arguido AA, nascido a ........1995, foi acusado, entre o mais, da prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro, por referência ao disposto nos artigos 121.º, n.ºs 1 e 4 e 123.º, ambos do Código da Estrada. Estabelece esta disposição legal que “1 - Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.” Nos termos do art.º 4º da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08: “São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.” É verdade que, à data da prática dos factos – 11.12.2020 - o arguido AA contava 25 anos de idade (cfr. art.º 2.º) e que o crime de que vem acusado não integra as exceções previstas no artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08. Todavia, atenta a moldura penal aplicável (pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias) ao crime pelo qual vem o arguido acusado, constata-se que, desde logo, se mostra afastada a aplicação da amnistia. Face ao exposto, ao abrigo dos normativos acima mencionados, indefere-se a aplicação da amnistia ao crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro, por referência ao disposto nos artigos 121.º, n.ºs 1 e 4 e 123.º, ambos do Código da Estrada, requerido pelo arguido AA.” (fim de transcrição) Do que acaba de ser transcrito, resulta inequívoco que o Tribunal recorrido apreciou a questão da eventual aplicação da Lei de amnistia aos crimes imputados os arguidos. Nenhuma omissão existe nesta parte. No que respeita ao perdão de penas, previsto no artigo 3º da referida lei, e do qual os recorrentes reclamam, o Tribunal recorrido nada diz. Porém, tal omissão não se traduz em qualquer nulidade, por ausência de obrigatoriedade de conhecimento, naquele momento. Estando o perdão previsto no artigo 3º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, sujeito, além do mais, à condição resolutiva “de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado”, a sua aplicação deve, salvo situações em que esteja em causa a liberdade do arguido, ser materializada ao momento de execução da pena, concedendo, previamente, prazo ao condenado para satisfazer a referida condição. Acresce que o artigo 14º da referida lei, sob a epígrafe “Aplicação”, estatui que “Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.” Tendo em conta esta norma legal, não compete a este Supremo Tribunal apreciar e decidir sobre a questão ora suscitada, a qual deverá ser ponderada e julgada pela 1.ª instância.4 Ainda que se entendesse, estarmos em presença de uma nulidade por omissão de pronúncia, a mesma não é sanável por este Tribunal ad quem, sob pena de supressão do direito constitucional ao recurso e ao duplo grau de jurisdição, sobre questão tão relevante como a da aplicação da lei da amnistia.5 Assim, inexiste qualquer nulidade insanável, devendo, contudo, a aplicação do perdão ser apreciado na 1ª instância, improcedendo esta conclusão dos recorrentes. 6.2 Verificação do vício da insuficiência da matéria de facto provada. Como ficou referido, o arguido BB veio suscitar o vício da insuficiência da matéria de facto provada do artigo 410º, nº 2 al. a), do Código de Processo Penal, em relação aos dois crimes de homicídio na forma tentada, alegando não ser a matéria de facto dada por assente suficiente para se poder concluir pela imputação de tais ilícitos. Os vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, podem ser suscitados pelos sujeitos processuais e são de conhecimento oficioso6 (artigo 432º, nº1). Os vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum, sem recurso a outros elementos estranhos ao texto da decisão, pois trata-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.7 Dito isto, para que se verifique o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é necessário, tal como se alcança do texto legal, que a matéria de facto dada por provada seja insuficiente para a decisão que o Tribunal proferiu, isto é, não possa permitir o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais e os demais requisitos necessários a uma decisão de direito. Normalmente este vício anda associado à não consideração pelo Tribunal, ao nível dos factos provados ou não provados, de factos alegados pela acusação ou pela defesa ou “de que possa e deva conhecer, nos termos do art.358, nº1, CPP, se esse facto for relevante para a decisão da questão da culpabilidade, ou quando, podendo fazê-lo, não tiver apurado factos que permitam uma fundada determinação da sanção”8. Estamos em presença daquilo que o direito civil considera não caracterização suficientemente dos “(...) factos constitutivos do direito alegado” (artigo 341º do Código Civil). Como referem Simas Santos e Leal Henriques "Trata-se de uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher"9. O recorrente alega, invocando para tanto um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Julho de 200510, que apenas estão preenchidos os elementos típicos do crime de ofensas corporais simples. Não tem razão o recorrente. Como resulta do texto da decisão e muito bem salienta o Ministério Público, na sua resposta ao recurso, “não se tratam de situações fácticas idênticas” (…), “no caso objecto dos presentes autos ficou provado que o recorrente apontou a caçadeira a pessoas, premindo de seguida o gatilho. No aludido acórdão de 13-07-2005, não se provou que o agente do crime tivesse apontado a arma em direcção ao ali ofendido ou, mesmo, a outra pessoa. Com efeito, os factos provados nestes autos demonstram que os arguidos, munidos com uma caçadeira, regressam ao local do confronto e, coma viatura em andamento, a uma distância de 10/15 metros, disparam na direcção das pessoas que nessa ocasião ali ainda se encontravam. Salvo devido respeito, estes os factos, por si só, permitem concluir que os arguidos, ao actuar da forma como actuaram, tiveram que necessariamente se conformar com a possibilidade de atingir alguma pessoa e de lhe causar a morte. Aliás, tal resultado apenas não ocorreu devido à rápida assistência hospitalar prestada ao ofendido DD e ao posicionamento deste em relação ao ofendido EE que, no exacto momento do disparo, acabou por protegê-lo, fazendo com que os chumbos não tivessem atingido partes vitais.” A este propósito no douto acórdão recorrido é possível extrair, além do mais, que, “O elemento subjectivo assente de 1.22 a 1.29 decorre da aplicação das regras de experiência comum aos demais factos dados como provados, conhecimento e vontade esta atingível por qualquer homem médio, sendo sobejamente conhecido que o disparo de uma arma é altamente perigoso quer para o ser humano, podendo tirar-lhe a vida, quer para os bens atingidos que ficam danificados. Não restam quaisquer dúvidas ao tribunal que os arguidos conheciam todas estas circunstâncias e, mesmo assim quiseram agir da forma como agiram, contra pessoas desarmadas e que não lhes tinham feito mal nenhum, conformando-se com o resultado do que pudesse vir a suceder-lhes.” (…) “O depoimento do senhor perito em balística da Polícia Judiciária, GG, que exerce estas funções há 23 anos, foi importante no sentido de permitir ao tribunal concluir que a distância do disparo, supra dada como provada é entendida como curta distância, o que torna mais perigoso o disparo, com potencial para causar maiores danos, sendo certo que se deve considerar que cada situação concreta é diferente e na avaliação do perigo concorrem diversos factores. Todavia, das suas palavras ficou o tribunal ciente dos perigos causados por um disparo de uma caçadeira de canos serrados, a curta distância, na direcção de pessoas e, no caso dos autos, com potencial para poder causar a morte (cinco a dez metros do passeio onde se encontravam, os ofendidos), caso tivessem sido atingidos órgãos importantes, sendo este um resultado previsível e um cenário colocado por qualquer pessoa de mediano discernimento, o que permitiu ao tribunal concluir pelo preenchimento do elemento subjectivo, como supra se dá como provado.” Como se pode constatar desta transcrição, no que respeita à fundamentação da matéria de facto e dos factos dados como provados na decisão do Tribunal a quo, não vislumbramos que o mesmo tenha, por um lado omitido qualquer facto que tivesse sido alegado ou que tivesse de conhecer ou, por outro, que aqueles que foram dados por assentes sejam insuficientes para a decisão proferida. O que o recorrente verdadeiramente reclama é uma diferente valoração da prova produzida em audiência, e por arrastamento a alteração da matéria de facto, o que não se confunde com o vício da insuficiência da matéria de facto provada a qual, no caso dos autos, é bastante para a qualificação jurídica dos factos. A valoração de prova efectuada pelo Tribunal recorrido, por força do princípio da livre apreciação do artigo 127º do Código Processo Penal e naquilo que é possível sindicar por via deste recurso, limitado a matérias de direito ou de conhecimento oficioso, não merece censura. Por último, importa salientar, contrariamente ao que defende o recorrente, que o elemento subjectivo do ilícito, o dolo (elemento volitivo), “(…) pertence à vida interior de cada um, é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”.11 Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, “(…) o ânimo ou intenção, embora seja um acto interno revela-se pelos factos externos que precedem ou acompanham o facto criminoso”12 Sendo o elemento volitivo do dolo um acto interno do agente que se materializa pelos demais factos externos anteriores ou contemporâneos do ilícito, não pode o mesmo deixar de ser dado como provado, a partir do momento em que são dados como provados os factos imputados, ou seja, o elemento objectivo do ilícito, salvo se existirem circunstâncias que afastem o dolo ou a culpa. O dolo (elemento intelectual e volitivo) é assim dado por provado a partir das circunstâncias de facto dadas por assentes, analisadas à luz das regras da experiência comum, tal como resulta do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal. Assim, tendo em conta os factos dados por provados, não podemos deixar de concluir, tal como o Tribunal recorrido, que os arguidos actuaram dolosamente em relação aos crimes de homicídio na forma tentada. O tipo subjectivo deste tipo legal é compatível com qualquer das formas de dolo do artigo 14º do Código Penal, relevando as mesmas, apenas, em sede de medida da pena. Em resumo, improcede esta conclusão do recorrente. 6.3 Medida das penas e suspensão na sua execução das penas únicas. Ambos os recorrentes reclamam a redução das penas em que foram condenados e a suspensão na sua execução das penas únicas. Na douta decisão recorrida, a propósito da medida das penas, considerou-se: (transcrição) «2. Da medida da pena: O art.º 143.º do Código Penal pune o crime de ofensa à integridade física com pena de prisão até 3 (três) anos ou com pena de multa. Nos termos dos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal, o crime de homicídio simples é punido com uma pena de 8 (oito) a 16 (dezasseis) anos de prisão. Por força da tentativa a pena é especialmente atenuada (cfr. arts.º 23.º, n.º 2 e 73.º, ambos do Código Penal). Logo o limite máximo é reduzido de um terço e o limite mínimo é reduzido a um quinto, ou seja, a moldura abstractamente aplicável oscila entre o limite mínimo de 1 (um) ano, 7 (sete) meses e 6 (seis) dias e o limite máximo de 10 (dez) anos e 8 (oito) meses de prisão. Por força da agravação prevista no art.º 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, aumentam os limites mínimo e máximo um terço, no que a este crime se reporta, porquanto o crime foi praticado com o uso de uma arma de fogo, pois” as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”. Logo, o máximo é de 13 (treze) anos, 6 (seis) meses e 20 (vinte) dias de prisão e o mínimo de 2 (dois) anos, 1 (um) mês e 18 (dezoito) dias de prisão. O art.º 86.º, n.º 1, al. c) do Regime Jurídico das Armas e Munições é punido com pena de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos ou com pena de multa até 600 (seiscentos) dias. O crime de condução sem habilitação legal, é punível com pena de prisão até 2 (dois) anos ou pena de multa até 240 (duzentos e quarenta) dias. Havendo que optar, entre a prisão e a multa, importa ter presente o seguinte: o direito à liberdade é um direito fundamental de todo o cidadão e, como tal, apenas é restringível quando a sua privação consistir na última ratio para assegurar as finalidades da punição previstas no n.º 1 do art.º 40.º do Cód. Penal – art.º 27.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Assim, sempre que um facto seja sancionado pela lei com pena de prisão ou pena não privativa da liberdade, deve dar-se primazia a esta última, por imperativo constitucional, quando a mesma se revele adequada e proporcional às circunstâncias do caso – n.º 1 do art.º 18.º da CRP. É o que resulta, aliás, em sede de legislação ordinária, do art.º 70.º, n.º 1, do Cód. Penal. Vejamos. Os arguidos BB e AA registam ambos antecedentes criminais. O primeiro pela prática de um crime de condução sem habilitação legal em 2012, um crime de posse ou uso não autorizado de armas, armas de fogo, suas peças e elementos, munições e explosivos, um crime de furto, ambos praticados em 20.05.2015, um crime de infracção contra o Estado, ordem pública, a realização da justiça ou pessoa que exerce um cargo público, praticado em 17.11.2015 e um crime de consumo de estupefacientes, praticado em 15.11.2017. O segundo pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, em 20.11.2011, um crime de resistência e coacção sobre funcionário em 18.04.2014, revogada e ordenado o cumprimento de pena de seis meses de prisão e um crime de consumo de estupefacientes, em 17.10.2016. Também não se pode ficar indiferente à informação vertida nos relatórios sociais dos arguidos e no que concerne ao aguido BB, o mesmo denota lacunas ao nível da consciência crítica e pensamento consequencial, com dificuldade em reconhecer o impacto das suas ações nos outros e com aparentes défices ao nível do controlo de impulsos, averba uma repreensão escrita por altercações entre reclusos, factos ocorridos em 27.02.2023 e denota um comportamento ocioso e propenso a vícios, referindo que no Reino Unido nunca teve qualquer contacto com o aparelho da justiça, o que contraria a informação constante do seu certificado de registo criminal. No que diz respeito ao arguido AA, o mesmo apresenta um discurso autocentrado uma postura de vitimização perante o presente processo desvalorizando os seus anteriores contactos com o sistema da justiça, inclusive a pena detentiva da liberdade a que foi sujeito. Mais se diga que os arguidos não colaboraram voluntariamente com a justiça, na medida em que bem sabendo das consequências das suas condutas, designadamente as lesões provocadas nos ofendidos DD e EE que demandaram assistência hospitalar e até internamento do ofendido DD, saíram de Portugal, furtando-se à acção da justiça, apenas regressando a Portugal porque detidos por conta dos presentes autos. Estas circunstâncias demonstram, em ambos os arguidos, no mínimo, uma personalidade avessa ao direito, que se acentua com a tentativa dos arguidos de convencer o tribunal, de uma dinâmica totalmente diferente da que efectivamente ocorreu, o que denota falta de consciência e espírito crítico, acompanhada de uma certa sensação de impunibilidade. Acresce que, as circunstâncias do caso em apreço são extremamente censuráveis, na medida em que os arguidos, ignorando a zona residencial onde se encontravam, ignorando a quantidade de pessoas que ali se encontravam e em total desrespeito pela integridade física e vida, mais concretamente de pessoas jovens e com a quais não tinham qualquer diferendo, não se coibiram de as atacar, de forma desprezível, com uma caçadeira de canos serrados, disparada de um carro em andamento, causando-lhes lesões que apenas não resultaram nas suas mortes, por motivos alheios às suas vontades. As suas condutas são ainda mais gravosas na medida em que os ofendidos DD e EE nada tinham a ver com a contenda que existia entre o arguido BB e o ofendido CC, até nem o arguido AA, em bom rigor tinha alguma coisa a ver com isso, mas manteve-se na defesa do arguido BB, participando com ele na prática dos factos que ora se julgam. Entende-se que (excepcionando os crimes de homicídio, na forma tentada, agravado, apenas punível com pena de prisão), no que respeita aos crimes de ofensas à integridade física, detenção de arma proibida e condução sem habilitação legal, este apenas quanto ao arguido AA, deve considerar-se o circunstancialismo das condutas dos arguidos revestirem elevada perigosidade, porque associadas a uma personalidade avessa às regras da sociedade e altamente desrespeitadora da integridade e vida humanas, os valores mais sagrados da humanidade. O Tribunal conclui, assim, pela necessidade da prisão em detrimento da multa, importando fazer sentir à sociedade e a estes arguidos que tal actuação não apenas é punida como o é severamente, mostrando-se a pena de prisão a única medida apta a afastar os arguidos da prática de novos crimes que se entende continuarão a praticar, se colocados em liberdade porquanto se crê que as suas personalidades e posturas, associadas à sensação de impunibilidade, constituem a combinação ideal para uma tragédia prestes a acontecer. Ou seja, e em síntese, o Tribunal aplicará aos arguidos BB e AA, quanto aos crimes de ofensas à integridade física, detenção de arma proibida e condução sem habilitação legal uma pena de prisão, mostrado que fica que as anteriores penas de multa, aplicadas a ambos os arguidos, não tiveram a virtualidade de os demover da prática de ulteriores ilícitos criminais. Aqui chegados, deve ter-se em consideração que a pena a aplicar há-de ser fixada por forma a servir as finalidades de protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, tendo sempre como limite, a medida da culpa – art.º 40.º, n.os 1 e 2 do Código Penal. Para determinação da medida concreta da pena deverá atender-se aos critérios constantes do art.º 71.º do Código Penal. Assim, há que ponderar: -As exigências de prevenção geral que são muito elevadas, uma vez que os tipos penais em apreço tutelam, respectivamente, a integridade física, incluindo a integridade corporal e psíquica da pessoa humana e a sua saúde e o bem jurídico supremo que é a vida humana, o alarme social que este tipo de condutas encerra, atentatórias da paz e tranquilidades públicas, face à facilidade com que são adquiridas armas de forma ilícita e com que as mesmas são utilizadas, à mínima contrariedade, não só para demonstração de força, como para imposição da vontade do agressor. -As exigências de prevenção especial, não são despiciendas atento o facto dos arguidos BB e AA registarem antecedentes criminais, com data anterior a este processo, tendo o primeiro (BB), entre outras, uma condenação por detenção de armas no Reino Unido e o segundo (AA), entre outras, cumpriu seis meses de prisão, pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, tendo sido ambos condenados pela prática, respectivamente, em 2017 e 2016, de um crime de consumo de estupefacientes e toda a sua postura assumida em julgamento, demonstrativa de ausência de espírito crítico e de assimilação da gravidade das suas condutas porquanto pretenderam manipular a dinâmica dos acontecimentos, com vista a não assumirem a total responsabilidade na prática dos factos, com um discurso vitimizante e autcocomplacente, o que significa que a verbalização de arrependimento não é genuína, mas apenas decorrente das consequências que as suas condutas tiveram nas suas vidas, designadamente que os levou à reclusão, aliás persistem numa atitude de minimização das consequências das respectivas condutas, sendo que, apesar de todas as evidências, insistem em afastar e participação do arguido AA nos factos, demonstrando pouco ou nenhum apreço pela vida, segurança e bem estar do próximo, demonstrando um sentimento de impunidade que apenas os motiva a manter este tipo de actuação. A determinação da medida concreta da pena será efectuada segundo os critérios consignados no art.º 71.º, do Código Penal, onde se explicita que a medida da pena se determina em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, no caso concreto, a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem contra o agente e a favor dele. Há que considerar no caso concreto quanto às primeiras: - O grau de ilicitude, que se considera particularmente elevado, atento o modo de execução e gravidade das consequências dos factos, a ausência de motivos para a sua actuação, relevando o facto de, depois de terem conseguido escapar incólumes à perseguição dos amigos do ofendido CC, inverteram a marcha do veículo e regressaram ao local e, num carro em andamento, o arguido BB ter apontado directamente a caçadeira de canos serrados, às pessoas que se encontravam no passeio, não se importando quem pudesse atingir, onde estavam os ofendidos DD e EE, por forma a fazer vingar a sua vontade, quando estes se encontravam desarmados e onde foram surpreendidos com o tiro que os atingiu, tendo necessidade de recorrer a assistência hospitalar, com necessidade de internamento em relação ao aofendido DD cujo corpo ficou cravado de chumbos, alguns dos quais ainda ali permanecem no dia de hoje, o que, tudo conjugado, revela considerável energia criminosa e aumenta a censurabilidade ínsita à globalidade das suas condutas; -A intensidade do dolo, que é elevada e revelada na violência das agressões prévias ao ofendido CC, pelos dois arguidos, que deixaram o ofendido no solo e, naturalmente, estando em inferioridade numérica, sem grandes hipóteses de defesa, persistindo os arguidos depois com a vontade de retaliar contra quem acorreu na defesa do ofendido CC, procurando atingir o máximo de pessoas possível, por isso dispararam sobre as pessoas que estavam no passeio, sendo certo que tinham na sua disponibilidade uma arma de fogo de que previamente se muniram e levaram para o local e que não se coibiram de utilizar contra aqueles, representando como possível a ocorrência de lesões graves e até da morte dos atingidos, conformando-se com aquela realização, agindo assim com dolo eventual de homicídio; a pesistência do arguido BB em deter armas que sabe não poder, não sendo esta a primeira vez que é condenado pela prática deste crime e a elevada ilicitude da atitude do arguido AA no que toca à condução do veículo automóvel sem habilitação legal, nas circunstâncias em que o fez, cometendo com a sua actuação vários crimes e aumentando de forma exponencial o perigo de lesar vários bens jurídicos (com a condução sem habilitação legal); - Os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins ou motivos que o determinaram, relevando a este propósito a circunstância de, subjacente aos factos, estar um “calduço” desferido no dia anterior pelo ofendido CC no arguido BB que, pelos vistos, este não tolerou, munindo-se, com a ajuda do arguido AA que tomou as suas dores, de uma caçadeira de canos serrados para ripostar, numa atitude de pura afirmação das respectivas masculinidades e superioridade pelo uso da arma, agindo da forma que se deu como provada, irracional e ignorando todas as normas de segurança e conduta social. -As condições pessoais e económicas dos arguidos, modestas, mas que, no entanto, e atentas as suas jovens idades, não os motivam a investir na sua formação, ao invés demonstram uma atitude despreocupada, displicente e ociosa, permeável a vícios e à companhia de pares com tendências para a criminalidade, inseridos numa comunidade pautada pela pertença a grupos com rivalidades entre si; -A conduta posterior aos factos, sendo de atender neste âmbito à circunstância dos arguidos não terem assumido, a prática dos factos, com excepção das óbvias ofensas à integridade física ao ofendido CC e que culminaram com o tiro de caçadeira, tentando – sem sucesso – fazer querer que a dinâmica dos acontecimentos, não é a relatada na acusação e que a participação de cada um deles é muito menos censurável, por forma a afastar do arguido AA a prática dos crimes que lhe vêm imputados (com excepção do crime de condução sem habilitação legal) e diminuindo as consequências nefastas da conduta do arguido BB que, pese embora a carta dirigida ao ofendido DD e ter verbalizado arrependimento, a sua postura demonstra apenas que esse arrependimento decorre da situação em que se encontra e ausência de assimilação da gravidade das suas condutas por ambos os arguidos e das consequências que as mesmas têm nos outros o que, mais não demonstra do que vitimização, autocomplacência e uma personalidade centrada em si mesmos; - Acresce que, os arguidos não se apresentarm voluntariamente à justiça e não colaboraram para a descoberta da verdade material, desde logo porque, depois da prática dos factos, cada um dos arguidos abandonou o país e apenas regressaram porque foram detidos e trazidos para responder pelos actos que haviam praticado, responsabilidade da qual pretendiam eximir-se, bem sabendo das consequências que as suas condutas tiveram na vida dos ofendidos, não se importaram, desde logo, de procurar as respectivas famílias e oferecer as suas desculpas e/ou apoio, mas sim procurar fugir à acção da justiça. Daqui ressalta, mais uma vez que a carta do arguido BB ao ofendido DD mais não é do que, mais uma tentativa de manipulação do sistema a seu favor, pois a mesma só é enviada, depois do arguido BB ser detido no âmbito dos presentes autos; - a frequência, na actualidade, com que nos deparamos com a prática destes tipos de crimes; - o facto de constar dos certificados de registo criminal dos arguidos várias condenações anteriores, por factos da mesma natureza, em relação à detenção de arma proibida, no que se refere ao arguido BB, cometido em 20.05.2015, no Reino Unido, e da prática de um crime de resistência e coação pelo arguido AA em 18.04.2014 que terminou com o cumprimento de uma pena de seis meses de prisão, o que é denotativo de personalidades avessas à Lei e ao Direito e de total indiferença para as condenações anteriores sofridas, bem como de absoluto desprezo perante a confrontação com o sistema penal e de Justiça, o que agrava as necessidades de prevenção especial, pois, requer maior energia criminógena e acentua a ausência de interiorização do desvalor da conduta e de indiferença absoluta pelos bens jurídicos violados, bem como, e manifestamente, revela que as condenações anteriores não surtiram o efeito dissuasor, nem ressocializador pretendido; - o discurso autocomplacente, autocentrado e desculpabilizador assumido pelos dois arguidos, com nítidas dificuldades de descentração, revelando falta de sentido crítico e ausência de interiorização do desvalor das suas condutas; - a falta de integração laboral, a ausência de inserção social, a inactividade profissional e/ou académica, o que acentua as necessidades de prevenção especial. - a tendência para o consumo de estupefacientes de ambos os arguidos e pertença a grupos de pares associados à prática de crimes. Quanto às segundas: - a juventude dos arguidos; - o reconhecimento, por parte dos dois arguidos, embora parcial, segmentado e com reservas, dos factos, verbalizando arrependimento, mas simultaneamente revelam um discurso autocentrado e desculpabilizante, e de indiferença para com as repercussões que os seus comportamentos – mesmo quanto àqueles que admitem ter praticado – comportam para terceiros; - o acompanhamento familiar de que dispõem, embora frágil e incipiente, visto que já existia antes d aprática dos factos e, mesmo assim, não foram suficientes para os dissuader de os cometer. Ora, atendendo aos factores já elencados, e aos limites mínimo e máximo, da pena de prisão abstractamente aplicável, considera-se ajustado fixar as penas: 1. Do crime de ofensas à integridade física, praticado contra o ofendido CC: - Ao arguido BB, a pena de 6 (seis) meses de prisão; - Ao arguido AA, a pena de 6 (seis) meses de prisão; 2. Dos crimes de homicídio, na forma tentada, agravados pelo uso da arma, contra os ofendidos DD e EE: - Ao arguido BB, a pena de 4 (quatro) anos de prisão, por cada um dos ofendidos; - Ao arguido AA, a pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, por cada um dos ofendidos. A diferenciação das penas entre os arguidos decorre da circunstância de se ter provado que o arguido BB levou a arma para o local da prática dos factos, dentro do veículo em que se fez transportar e correu para alcançá-la com vista a intimidar o grupo que os perseguia o que logrou fazer, dando-lhe tempo de entrar para o carro e sentar-se no banco do pendura com a arma na mão, pronta a disparar, enquanto o arguido AA se sentou ao volante do veículo automóvel que não era seu, nem de qualquer familiar seu e que se encontrava sob a responsabilidade do arguido BB, iniciando a sua marcha sem ter habilitação legal para o fazer, denotando esta actuação dos arguidos uma premeditação quanto ao domínio da arma de fogo, revelando a imagem global dos factos, uma atitude mais desvaliosa e com um maior grau de ilicitude e energia criminosa na conduta do arguido BB, o que deve traduzir-se na medida da pena. 3. Do crime de detenção de arma proibida: - Ao arguido BB, a pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão; - Ao arguido AA, a pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão; Aqui a diferenciação das penas entre os arguidos decorre do facto do arguido BB já ter sido condenado pela prática de crime de idêntica natureza e, não obstante, persiste na mesma conduta, revelando que a censura e a pena que lhe foi aplicada não serviu para a afastá-lo da prática deste tipo de crime. 4. Do crime de condução de habilitação legal: - apenas ao arguido AA, a pena de quatro meses de prisão. 2.1 Do cúmulo jurídico das penas aplicadas aos arguidos: Importa, agora, nos termos do artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, apreciar o concurso de penas impostas aos arguidos e absorvê-las numa pena unitária, graduada de acordo com a ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente. Com efeito, o artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal (“Regras da punição do concurso”) estabelece que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”. Como refere Figueiredo Dias, na avaliação da pena unitária “Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, entretanto, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 291 e 292). Assim, na consideração dos factos (do conjunto de factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso. O conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos concorrentes. Na consideração da personalidade deve ser ponderado o modo como a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes, se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente. Assim, na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. Nestes termos, e em conclusão, o modelo de fixação da pena no concurso de crimes rejeita uma visão atomística dos vários crimes e obriga a olhar para o conjunto, para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse pedaço de vida criminosa com a personalidade do seu agente. Aplicando as considerações teóricas acabadas de tecer ao caso concreto, importa, em primeiro lugar, começar por definir os limites da moldura penal do cúmulo. Ora, nos termos do artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Significa isto que a moldura abstracta da pena única a aplicar: - Ao arguido BB tem como limite mínimo 4 (quatro) anos de prisão e como limite máximo 11 (onze) anos e 2 (dois) meses de prisão; - Ao arguido AA tem como limite mínimo 3 (três) anos e 4 (quarto) meses de prisão e como limite máximo 9 (nove) anos e 2 (dois) meses de prisão. Importa, assim, considerar, no seu conjunto, a gravidade dos factos, tal como ponderada aquando da determinação da medida concreta das penas parcelares, o número de crimes praticados, bem assim como a personalidade dos arguidos. As circunstâncias do caso apresentam, como vimos, um acentuado grau de ilicitude global. Com efeito, no caso dos autos, analisando os factos verifica-se que todos eles se encontram, espacial e temporalmente, conexionados entre si, apresentando-se numa relação de estreita afinidade, quer formal, quer substancial, reflectindo um comportamento delituoso com gravidade que permite concluir pela existência de personalidades com tendência criminosa, revelada na sua forma de actuação que ultrapassa a mera pluriocasionalidade de factos, o que naturalmente deverá ser tido em consideração na graduação da medida da pena única a aplicar. Nesta medida, a pena única deve reflectir a razão de proporcionalidade entre as penas parcelares e a dimensão global do ilícito, na ponderação e valoração comparativas com outras situações similares às dos autos. Para além disso, na fixação desta pena unitária, tem o Tribunal de relevar, não só, as exigências de prevenção especial de socialização do arguido, as quais resultam já salientadas a propósito da valoração da medida concreta da pena, para cujos fundamentos se remete, e, bem assim, de prevenção geral, fixando uma pena que seja entendida pela sociedade como necessária à tutela do direito e adequada à confiança na aplicação da justiça. Em particular, no que concerne às exigências de prevenção especial, as mesmas são, como vimos, elevadas, uma vez que da imagem global dos factos resulta uma personalidade avessa ao direito e às normas sociais e um profundo desrespeito pela integridade, dignidade e vida humanas, agindo por impulso, tirando desforra numa situação para a qual não foi chamado e nada tinha a ver com a sua pessoa e muito menos com a sua vida, utilizando para tanto uma arma de fogo para demonstrar superioridade e vergar os ofendidos à sua vontade, sem demonstrar qualquer tipo de arrependimento. Nesta conformidade, tendo presentes todas estas circunstâncias concorrentes, julga-se adequado fixar a pena unitária: Ao arguido BB, em 7 (sete) anos de prisão; Ao arguido AA, em 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão. (fim de transcrição) Vejamos. O legislador estatui como parâmetros de determinação da pena, que a mesma deve ser fixada - “(…) dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” visando a aplicação das penas “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e levando ainda em conta “(…) todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” considerando, nomeadamente, os factores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (artigos 71º, nº1 e nº2 e 40º, nº1 e nº2, ambos do Código Penal. A densificação jurisprudencial destes critérios tem sido feita, por este Supremo Tribunal, de modo a considerar e ponderar o equilíbrio entre “exigências de prevenção geral”, a “tutela dos respectivos bens jurídicos” e a “socialização do agente”, tendo sempre em conta e como limite a culpa do agente. Como refere o Supremo Tribunal de Justiça, ponderando os referidos equilíbrios, “(...) Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente”,13 ou “(...) a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todo exigível”14. A medida da pena "(...) há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (...) a protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida".15 Tendo em conta os critérios de fixação da medida da pena e o que fica transcrito sobre esta matéria na douta decisão recorrida, não logramos descortinar, como reclamam os recorrentes, qualquer excesso ou desproporcionalidade das penas parcelares ou penas únicas. De igual modo, não resulta da referida transcrição, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, que o Tribunal recorrido não tenha ponderado as circunstâncias pessoais de cada um deles em sede de fixação das respectivas penas. Na verdade, o Tribunal recorrido, em função dos critérios elencados, apesar da gravidade dos factos, os antecedentes criminais de ambos os arguidos, as suas condições pessoais, grau de ilicitude elevado, dolo eventual e graus de culpa, não despiciendos, fixou as penas parcelares, em relação a cada um dos ilícitos, abaixo dos limites médios das penas abstractamente estabelecidos. Se tivermos em consideração toda a factualidade e ainda as fortes exigências de prevenção geral, dado o forte contributo deste tipo de crimes para o sentimento de insegurança na população, entendemos adequadas e proporcionais as penas parcelares em que os arguidos foram condenados. O mesmo se diga em relação aos cúmulos jurídicos efectuados. No cúmulo jurídico deverá ter-se em conta o conjunto dos factos e a gravidade dos mesmos ou, na expressão do legislador, são “considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 05 de Junho de 2012, a “ pena única deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação ente si, mas sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente. (…) Com a pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e da gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda considerar, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.”16’17 Assim, tendo em consideração, que a pena única deve ser encontrada tendo em conta a gravidade global do comportamento delituoso dos arguidos, pois tem de ser considerado e ponderado o conjunto dos factos e as suas personalidades “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, entendemos, igualmente, que as penas únicas aplicadas aos mesmos estão dentro dos limites das suas culpas e mostram-se adequadas e proporcionais às mesmas, satisfazendo as demais exigências de prevenção geral e especial e, por isso, nenhuma censura merecem. Na verdade, ambos os arguidos têm antecedentes criminais, alguns conexos com os crimes destes autos, revelam um profundo desrespeito pela integridade e dignidade da vida humanas, atenta forma como dispararam sobre os ofendidos, agindo por impulso, tirando desforra numa situação anterior de pouca gravidade, utilizando para tanto uma arma de fogo alterada, o que demonstra personalidades avessas aos valores jurídicos tutelados pelas normas, sendo igualmente demonstrativos de acentuados graus de culpa. Assim, nenhuma censura merecem as penas parcelares e penas únicas, as quais se confirmam, improcedendo, também nesta parte os recursos. Mantendo-se as penas únicas, ficam prejudicadas as reclamadas suspensões de execução das penas por parte dos arguidos. 6.4 Indemnização arbitrada. O recorrente BB, de uma forma meramente conclusiva e sem qualquer justificação de facto ou de direito, veio requerer a redução das indemnizações arbitradas aos ofendidos, entendendo, “como adequada, justa e equitativa a fixação de uma indenização correspondente a € 3.000,00, para DD e € 1.500,00 para EE”. O Tribunal recorrido fixou, ao abrigo dos artigos 16º, nº 2 e 82º-A, nº 1 do Código de Processo Penal, as indemnizações aos ofendidos “DD, a quantia de € 6.000,00 e ao ofendido EE, a quantia de € 3.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos desde a presente data e vincendos até integral pagamento”, condenando solidariamente os arguidos recorrentes no pagamento das mesmas. Para fixação de tais montantes o Tribunal recorrido considerou o seguinte: (transcrição) «4. Arbitramento oficioso de indemnização às vítimas DD e EE: Os crimes de ofensas à intgridade físicia e de homicidio, na forma tentada, agravado pelo uso de arma de fogo, integram o conceito de criminalidade violenta a que se refere a alínea j) do n.º 1 do artigo 1.º do Código de Processo Penal, pelo que, tendo os ofendidos DD e EE, ope legis, o estatuto de vítima (cfr. n.º 1, al. a), subal. i) do artigo 67.º-A daquele Código, deve-lhe ser arbitrada oficiosamente uma indemnização (n.º 2 do artigo 16.º do Estatuto da Vítima – aprovado pelo artigo 5.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro). Ademais, estabelece o n.º 1 do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal que “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos arts. 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação dos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.”. Citando o Acórdão do STJ, de 02.05.2018, relatado pelo Senhor Conselheiro Lopes da Mota e disponível em www.dgsi.pt, diz que “impõe-se seja feita distinção quanto às consequências jurídicas do crime, entre as de natureza civil, que geram o dever de indemnizar, pela prática de acto ilícito, em conformidade com as disposições aplicáveis do Código Civil (artigos 483.ºss e 562ss) e com o artigo 129.º do Código Penal, sempre dependente de pedido do lesado (artigos 71.º, 73.º e 74.º do CPP), como supra se analisou e as consequências de natureza penal, em que se inclui o arbitramento oficioso de reparação à vítima pelos prejuízos causados, como efeito penal da condenação, nos termos do artigo 82.º-A do CPP, sempre que particulares exigências de protecção o requeiram (cfr. Simas Santos/Leal Henriques, Código de Processo Penal anotado, 2008, p. 550). Esta “reparação” da vítima, saliente-se, requer a determinação dos “prejuízos causados” que mereçam ser compensados (indemnizados) mediante uma soma em dinheiro, como se evidencia da própria letra do preceito, o que obriga a convocar conceitos da lei civil, mas o seu quantitativo não tem que corresponder ao montante desses prejuízos (da “indemnização”), como resulta do respectivo n.º 3, segundo o qual a quantia arbitrada é levada em conta na indemnização. Participando das finalidades das penas (protecção do bem jurídico ofendido e reintegração – artigo 40.º do Código Penal), a “reparação”, que impõe uma obrigação de pagar uma quantia monetária à vítima, terá de considerar as “particulares exigências de protecção” da vítima do crime praticado que, por essa via, se visa realizar, tendo em conta os danos patrimoniais e não patrimoniais que esta sofreu em resultado do concreto facto típico, nas suas próprias circunstâncias, e os critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade que presidem à determinação das reacções criminais (que resultam do artigo 18.º da Constituição. Cfr. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português III, Verbo, 1999, p. 24). A “reparação” a que se refere o artigo 82.º-A do CPP situa-se, assim, numa zona de intercepção de fronteiras do direito civil e do direito penal, visando efeitos de natureza penal – contribuindo para a realização dos fins das penas, em particular pelo seu efeito ressocializador, que obriga o autor a enfrentar as consequências do crime e a reconhecer os interesses da vítima (ROXIN, apud “A Suspensão Parcial da Pena de Prisão e a Reparação do Dano”, J. A. Vaz Carreto, Almedina, 2017, nota 251) – através da compensação da vítima pelos danos causados. Daí que, como de há muito se vem sublinhando na jurisprudência deste Tribunal (ainda que a propósito da suspensão da execução da pena de prisão), se deva considerar que a “reparação não constitui uma verdadeira indemnização, mas uma compensação destinada principalmente ao reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena e dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”, o que justifica “que o montante arbitrado não tenha de corresponder ao que resultaria da fixação da indemnização segundo os critérios estabelecidos na lei para a responsabilidade civil e para a obrigação de indemnizar (artigos 483.º e segs. e 562.º e segs. do Código Civil” (acórdão de 11.6.1997, Colectânea de Jurisprudência, acórdãos do STJ, ano V, T. 2, pp. 226ss). Foi dado o contraditório em sede de audiência de julgamento, nada tendo sido requerido. Os crimes cometidos pelos arguidos assumem inequívoca gravidade. Atente-se no medo, pânico e horror vividos pelos ofendidos, apanhados completamente desprevenidos e sem saber concretamente o que os tinha atingido, sentindo dores e vendo o corpo cheio de sangue, sem conseguir perceber a gravidade da situação, em audiência o arguido EE referiu ter desmaiado e só ter acordado no Hospital, como resulta da prova produzida que o ofendido DD esteve vários dias internado e, ainda hoje, passados quase três anos, tem chumbos no corpo. Descorre das regras de experiência comum que o medo, o pânico e o horror que sentiram e bem assim as dores, os incómodos e dificuldades que sentiram, como consequência da conduta dos arguidos BB e EE têm dignidade penal e merecem, por isso, a tutela do direito. Mostram-se, pois, verificadas as particulares exigências de protecção a que faz referência a citada norma adjectiva penal. Assim, sendo manifesto que as condutas dos arguidos descritas preenchem ainda os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (cfr. n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil) e tendo também em consideração a situação económica de cada um deles, o respectivo grau de culpabilidade, o grau de desprotecção da vítima do crime e demais circunstancialismo com relevância para o efeito (em conformidade com o previsto nas normas dos artigos 494.º e 496.º, n.º 3, ambos do Código Civil), entende este tribunal fixar, equitativamente (n.º 3 do artigo 566.º do mesmo diploma) a título de reparação oficiosa dos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de € 6.000 (seis mil euros), ao ofendido DD e de € 3.000,00 (três mil euros) ao ofendido EE, condenando-se aos arguidos, solidariamente (n.º 1 do artigo 497.º do mesmo diploma), ao pagamento de tais quantias.» (fim de transcrição) Como ficou referido, o recorrente limita-se a questionar os montantes indemnizatórios fixados e não os pressupostos de fixação. Na verdade, como resulta da douta decisão, os pressupostos de arbitramento das indemnizações, resultam directamente da análise conjugada dos artigos 67º-A, nº 3 e nº1 al. b), 1º, nº1, al. j) ambos do Código de Processo Penal e 5º e 16º, nº2 da Lei 130/2015 de 4 de Setembro e artigo 131º do Código Penal. De igual modo, o artigo 82-A do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei 59/98 de 25 de Agosto, repristinando, em parte, as anteriores soluções legislativas do 34º do Código de Processo Penal de 1929 e artigo 13º do DL 605/75 de 3 de Novembro de 1975, veio permitir a “reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham”. Sem entrar na discussão sobre a natureza da indemnização reparatória prevista na norma,18 é pacifico que a mesma se deve orientar pelos princípios da indemnização decorrente da responsabilidade civil extracontratual, prevista no artigo 483º e seguintes do Código Civil. Assim, tendo em conta os factos dados como provados, nomeadamente no que respeita às circunstâncias em que as vítimas foram surpreendidas com o disparo, as consequências físicas (1.19 e 1.20 dos factos provados), a culpa dos arguidos e os critérios para indemnizar, previstos nos artigos 496º, 497º e 566º, nº 3, todos do Código Civil, são justas e proporcionais as indemnizações arbitradas, as quais são de manter. Em resumo, confirma-se integralmente o acórdão recorrido, improcedendo ambos os recursos. III. Decisão Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, em julgar totalmente improcedentes os recursos dos arguidos, AA e BB e confirmar o acórdão recorrido. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, por cada um deles, em 5 (cinco) UC’s - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais). Lisboa, 03 de Julho de 2024. Antero Luís (Relator) M. Carmo Silva Dias (1ª Adjunta) Lopes da Mota (2º Adjunto) _____
1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267. 2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. 3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995. 4. Neste sentido, vejam-se acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Dezembro de 2023, Proc. Nº 429/21.0SYLSB.L1.S; 22 Novembro 2023, proc.º n.º 632/21.3PCRGR.L1.S1; 19 de Dezembro de 2023, proc.º n.º 23417/22.0JGLSB.L1.S1; 27 de Setembro de 2023, proc.º n.º 179/22.0PSLSB.S1; 14 de Dezembro de 2023, proc.º n.º 130/18.2JAPTM.2. S1, disponíveis em www.dgsi.pt 5. Neste sentido, Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, 2ªed., Coimbra 2016, pág. 1134: «Por efeito da alteração introduzida ao texto do nº 2 pela lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro, passou a constituir um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida (…), razão pela qual sobre o tribunal de recurso impende a obrigação de suprir as nulidades de que padeça a sentença recorrida, a menos, obviamente, que a nulidade só seja susceptível de suprimento pelo tribunal recorrido, situação que será a comum, visto que na grande maioria dos casos de suprimento pelo tribunal de recurso redundaria na supressão de um grau de jurisdição». 6. Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP. 7. Neste sentido, vejam-se Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339, e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.) e ao nível jurisprudencial, por todos, sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça In Proc. nº 4375 in www.dgsi.pt 8. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011, Proc. 288/09.1GBMTJ.L1-5, in www.dgsi.pt 9. In Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 61 10. Proc. nº 05P2122, disponível em www.dgsi.pt 11. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/02/1993, in, BMJ, 324º-620. 12. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/1988, citado pelo Prof. Carlos Lopes, in, Guia de Perícias Médico-Legais, pág. 294. 13. In sumário do acórdão de 31-01-2012, Proc. Nº 8/11.0PBRGR.L1.S 14. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2004, Proc. n.º 1636/04 - 3.ª ambos in www.dgsi.pt No mesmo sentido Prof. Figueiredo Dias (“O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187). 15. Professor Figueiredo Dias "Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime" - Noticias Editorial, pág. 227). 16. Proc. nº 202/05.3GBSXL.L1.S1, disponível em: www.dgsi.pt 17. Neste sentido também, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 421e segs. 18. Veja-se, a este propósito, acórdão do Tribunal Constitucional nº 187/90 de 6 de Junho disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900187.html |