Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
688/21.9T8LRA.C1.A.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
NULIDADE DO CONTRATO
ANULAÇÃO
OBJETO OFENSIVO DOS BONS COSTUMES
VÍCIOS DA VONTADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE PROCESSUAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
OBJETO DIVERSO DO PEDIDO
PRINCÍPIO DO PEDIDO
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
PODERES DO TRIBUNAL
PRINCÍPIO DA OFICIOSIDADE
Apenso:

Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O princípio da oficiosidade na aplicação do direito, consagrado no nº3 do art. 5º do CPC, deve ser compatibilizado com outros princípios estruturantes do processo civil, como do dispositivo (art. 3º/1), do contraditório ou do pedido (art. 609º);

II – Tendo o autor pedido a declaração de nulidade de contrato-promessa por ofensivo dos bons costumes, a sentença, que sem prévia audição das partes, declara a anulabilidade do contrato por vícios de vontade está ferida de nulidade nos termos do art. 615º, nº1, alíneas d) e e) do CPCivil).


III – A não arguição da nulidade processual por inobservância do contraditório (art. 3º/3) perante o tribunal em que foi cometida, não sana a nulidade, sendo tempestiva a arguição de nulidade da sentença no recurso de apelação, nos termos do nº4 do art. 615º do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, instaurou ação declarativa com processo comum contra BB, CC, DD, EE, FF e GG, sendo objeto do litígio a invalidade, resolução ou redução do contrato promessa intitulado “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE QUOTAS DO CAPITAL DE UMA SOCIEDADE” [a sociedade “MST – Investimentos Imobiliários, Lda.”], datado de 01 de Setembro de 2006, consubstanciados nos seguintes pedidos:

«1. Declarar a nulidade do contrato-promessa em causa nos presentes autos por ofensa aos bons costumes, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 280.º do Código Civil e, em consequência, condenar os Réus, a título solidário, a devolver ao Autor o montante de € 121.800,00 (cento e vinte e um mil e oitocentos euros), acrescido de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento;

2. (Subsidiariamente) Declarar a nulidade do contrato-promessa em causa nos autos por falta de forma prevista no n.º 3 do artigo 410.º do Código Civil e, em consequência, condenar os Réus, a título solidário, a devolver ao Autor o montante de € 121.800,00 (cento e vinte e um mil e oitocentos euros), acrescido de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento;

3. (Subsidiariamente) Declarar a resolução do contrato-promessa por perda objetiva do interesse do credor, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 808.º do Código Civil e, em consequência, condenar os Réus, a título solidário, a devolver ao Autor o montante de € 121.800,00 (cento e vinte e um mil e oitocentos euros), acrescido de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento;

4. (Subsidiariamente) Reduzir equitativamente o sinal previsto na cláusula 7.ª do contrato-promessa em causa nos autos e, em consequência, condenar os Réus, a título solidário, a devolver ao Autor o montante de € 97.440,00 (noventa e sete mil e quatrocentos e quarenta euros), acrescido de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.»

Foram apresentadas duas contestações, a primeira delas subscrita pelos RR. BB, CC, DD e EE conjuntamente e a segunda pelos RR. FF e GG, ambas pugnando pela improcedência da acção.

Foi proferida sentença que julgou a acção procedente, com o seguinte dispositivo:

Condena-se os Réus BB, CC, DD, EE, FF e GG, a entregarem ao Autor AA a quantia de €121.800,00 (cento e vinte e um mil e oitocentos euros), acrescido de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.

Interposto recurso de apelação pelos RR, a Relação de Coimbra, com um voto vencido, decidiu:

“Anula-se a decisão recorrida, devendo na 1ª instância dar-se observância ao preterido exercício do contraditório pelas partes quanto à possibilidade de conhecimento/aplicação, na sentença, do instituto da anulabilidade do contrato promessa, tendo como fundamento o erro na declaração ou o erro quanto ao objeto.

Custas pelo A/recorrido.”

Inconformado, o Autor interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso de revista interposto do douto Acórdão de 25 de fevereiro de 2025, através do qual o Tribunal a quo decidiu que a douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância padeceria de nulidade por violação do princípio da proibição de decisão-surpresa, a qual originaria uma “nulidade da própria sentença, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte do mesmo normativo”, suscetível de ser invocada em sede recursória, e, consequentemente, decidiu anular a “decisão recorrida, devendo na 1.ª instância dar-se observância ao pretenso contraditório pelas partes quanto à possibilidade de conhecimento / aplicação, na sentença, do instituto da anulação do contrato-promessa, tendo como fundamento o erro na declaração ou o erro quanto ao objeto

2. Porém, e salvo o devido respeito, que é muito, e melhor opinião, ao contrário do que sustenta odoutoAcórdãorecorrido,anulidadedeumadecisãojudicialporpretensaviolaçãodoprncípio daproibiçãodedecisão-surpresa geraumanulidade processual subsumível ao regime previsto no disposto no n.º 1 do artigo 195.º do CPC (e não uma nulidade ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC), razão pela qual essa pretensa nulidade deve ser arguida, através de reclamação perante o Tribunal a quo, no prazo de 10 (dez) dias (por força do disposto nos artigos 149º e 199.º do CPC) a contar da notificação da decisão em questão sendo que, findo esse prazo, se a nulidade não tiver sido arguida, considera-se a nulidade sanada;

3. No caso concreto, os Recorridos – mais concretamente os Recorridos FF e GG – apenas arguíram a pretensa nulidade por alegada violação do princípio da proibição de decisão-surpresa (sempre sem conceder), em sede de alegações de recurso de apelação apresentadas em 2 de setembro de 2024, isto é, num momento em que (há muito) já havia decorrido o prazo de 10 (dez) dias (por força do disposto nos artigos 149º e 199.º do CPC) para apresentação de reclamação de putativas nulidades processuais, pelo que, in casu, a pretensa nulidade por alegada violação do princípio da proibição de decisão-surpresa (sempre sem conceder) já se encontraria sanada, incorrendo, assim, o douto Acórdão Recorridonum errodejulgamentode Direitoao anularadouta sentença proferidapelo Tribunal de 1.ª Instância com base no disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC

4. De resto, note-se que, na sequência da prolação da douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, o ora Recorrente instaurou, em 3 de dezembro de 2024, ação executiva contra os Recorridos, a qual corre termos no Juízo de Execução de Ansião – Juiz 2 – sob o processo n.º 2280/24.7T8ANS;

5. Em primeiro lugar, o presente recurso de revista é admissível, na medida em que o douto Acórdão recorrido se encontra em contradição com vários outros Acórdãos proferidos pelas Relações (já transitados em julgado), no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC;

6. Concretamente, e para efeitos de sustentação da contradição do douto Acórdão recorrido com outro Acórdão proferido pelas Relações, o ora Recorrente aponta o douto e recente Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27 de janeiro de 2025 no âmbito do processo n.º 2511/22.8T8AGD.P1 e já transitado em julgado (cfr. certidão com expressa menção ao trânsito em julgado do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27 de janeiro de 2025, já junta como Doc. 1);

7. Na realidade, o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27 de janeiro de 2025 (já transitado em julgado) decidiu, em sentido oposto ao do douto Acórdão recorrido, que a “nulidade da decisão-surpresa, por violação do princípio do contraditório, no âmbito do disposto no art.º 3.º, n.º 3, deve ser objeto de reclamação perante o tribunal a quo, nos termos dos artigos 195.º, n.º 1, parte final, 196.º, parte final e 199.º, n.º 1, do C.P.C., pelo que se apenas foi invocada em sede recursiva, tem-se por sanada” (cfr. Doc. 1, já junto).

8. Assim, o douto Acórdão Recorrido – que decidiu que a violação do princípio da proibição de decisão-surpresa originaria uma “nulidade da própria sentença, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte do mesmo normativo”, suscetível de ser invocada em sede recursória, e não uma nulidade processual, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195.º do CPC – encontra-se em contradição com o douto Acórdão proferido pelo TribunaldaRelação do Portoem27 dejaneirode2025e já transitado emjulgado,cujacertidão já foi junta como Doc. 1, o que legitima a interposição do presente recurso de revista, ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC (não se encontrando o douto Acórdão Recorrido em conformidade com acórdão de uniformização de jurisprudência que tenha sido proferido quanto a esta questão fundamental de direito);

9. Em segundo lugar, e sem prejuízo do supra exposto (e sempre sem conceder), o presente recurso de revista sempre seria admissível por força do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC;

10. No caso concreto, não há a menor dúvida de que o douto Acórdão recorrido se encontra em contradição com outro Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 29 de fevereiro de 2024 no âmbito do processo n.º 19406/19.5T8LSB.L1.S1 e já transitado em julgado (cfr. certidão com expressa menção ao trânsito em julgado do douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 29 de fevereiro de 2024, já junta como Doc. 2);

11. Efetivamente, o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 29 de fevereiro de 2024 (já transitado em julgado) decidiu, em sentido oposto ao do douto Acórdão recorrido, que a “decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é nula, mas a nulidade de que padece não está prevista na 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (decisão que conhece de questão de que não podia tomar conhecimento); está prevista n.º 1 do artigo 195.º do CPC” (cfr. Doc. 2, já junto);

12. Assim, o douto Acórdão Recorrido – que decidiu que a violação do princípio da proibição da decisão-surpresa originaria uma “nulidade da própria sentença, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte do mesmo normativo”, suscetível de ser invocada em sede recursória, e não uma nulidade processual, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195.º do CPC – encontra-se em contradição com o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 29 de fevereiro de 2024 e já transitado em julgado, cuja certidão já foi junta como Doc. 2, o que legitima a interposição do presente recurso de revista, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2doartigo 671.º do CPC (não se encontrandoo douto Acórdão Recorrido em conformidade com acórdão de uniformização de jurisprudência que tenha sido proferido quanto a esta questão fundamental de direito);

13. Em terceiro lugar, e sem prejuízo do supra exposto (e sempre sem conceder), o presente recurso de revista sempre seria admissível por força do disposto nas alíneas a) e b) do artigo 673.º do CPC;

14. Desde logo, relegar a impugnação do douto Acórdão recorrido apenas para a impugnação de um eventual recurso de revista que venha a ser interposto nos termos do n.º 1 do artigo 671.º do CPC seria absolutamente inútil, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do artigo 673.º do CPC;

15. Por outro lado, a alínea b) do artigo 673.º do CPC remete para o disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, razão pela qual, e pelos motivos já supra expostos a propósito do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, e para onde se remete por uma questão de economia processual, sempre o presente recurso de revista seria admissível por força do disposto nessa alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, aplicável ex vi alínea b) do artigo 673.º do CPC, dada a existência de contradição do Acórdão recorrido com o Acórdão proferidopeloTribunaldaRelaçãodoPortoem27dejaneirode2025.

16. Em face do supra exposto, e salvo o devido respeito e melhor opinião, não há a menor dúvida de que o presente recurso de revista relativamente ao douto Acórdão recorrido de 25 de fevereiro de 2025 é admissível, devendo, por isso, ser admitido;

17. Salvo o devido respeito, que é muito, e melhor opinião, ao contrário do que sustenta o douto Acórdão recorrido, a violação do princípio da proibição de decisão-surpresa gera uma nulidade processual, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 195.º do CPC, e não uma nulidade da sentença, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC

18. Em primeiro lugar, a nulidade por preterição do contraditório (na modalidade de proibição de decisão-surpresa) subsume-se à regra geral de nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na medida em que não há norma especial que sancione a omissão desta formalidade (proporcionar o contraditório);

19. Assim, quando a decisão (no caso concreto, a douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância) é notificada, as partes tomam conhecimento de que teria sido cometida a nulidade por preterição de contraditório previsto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, razão pela qual, a partir desse momento, inicia-se o prazo de 10 (dez) dias para a arguição de nulidade através de reclamação junto do Tribunal a quo, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 149.º e no n.º 1 do artigo 199.º, ambos do CPC;

20. Em segundo lugar, o disposto no n.º 2 do artigo 630.º do CPC também depõe no sentido de que a nulidade por preterição de contraditório constitui uma nulidade subsumível ao regime geral previsto no n.º 1 do artigo 195.º do CPC, conforme decidiu o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de fevereiro de 2024 (cfr. Doc. 2, já junto);

21. Em terceiro lugar, e ao contrário do que sustenta o douto Acórdão recorrido, a preterição de contraditório não gera a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, pois a nulidade por preterição do contraditório ocorre num momento anterior à prolação de uma determinada decisão através“omissão de umato” quepode “influir no exameou na decisão da causa”, nada tendo que ver com a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a qual se prende, em rigor, com o próprio teor da decisão (onde o decisor teria tomado conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento)

22. Emquartolugar,seanulidadeporpreteriçãodocontraditóriosesubsumisseaoregimeprevisto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, então essa nulidade daria lugar à eliminação da parte em que o Tribunal teria conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento;

23. Mas não é isso que sucede com a nulidade por preterição do contraditório, na medida em que a procedência desta nulidade leva à anulação da decisão para exercício do contraditório e, posteriormente, o Tribunal profere nova decisão sobre a questão, o que demonstra que não se está perante a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;

24. Em facedo supraexposto,esalvoodevido respeitoemelhoropinião,anulidade por preterição do contraditório e consequente violação do princípio da proibiçãode decisão-surpresa constitui uma nulidade processual subsumível ao disposto no n.º 1 do artigo 195.º do CPC e não à segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;

25. Assim sendo, a nulidade por preterição do contraditório e consequente violação do principio da proibição de decisão-surpresa deve ser invocada, através de reclamação, perante o Tribunal a quo (e não em sede recursória), no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de sanação, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 195.º do CPC (cfr. neste sentido, e a título de mero exemplo, os seguintes Acórdãos: (i) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de abril de 2024, Processo n.º 5223/19.6T6STB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt); (ii) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de novembro de 2024, Processo n.º 3231/16.8T8AVR.P1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt); (iii) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de dezembro de 2024, Processo n.º 319/22.0T8PCV.C1.S1, disponível e www.dgsi.pt); (iv) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de fevereiro de 2024, Processo n.º 19406/19.5T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt); (v) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de outubro de 2015, Processo n.º 389/12.9TBPCV-A.C1, disponível em www.dgsi.pt); (vi) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 27 de janeiro de 2025, Processo n.º 2511/22.8T8AGD.P1, disponível em www.dgsi.pt); (vii) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3 de maio de 2021, Processo n.º 1250/20.9T8VIS.C1, disponível em www.dgsi.pt); (viii) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2003, Processo n.º 04B4031, disponível em www.dgsi.pt);

26. No caso concreto, a pretensa nulidade por violação do princípio do contraditório encontra-se, em qualquer caso, sanada, na medida em que nenhum dos ora Recorridos, Réus na ação em questão, apresentaram reclamação junto do Tribunal de 1.ª Instância, no prazo de 10 (dez) dias, após terem sido notificados da douta sentença, por alegada preterição do contraditório (e consequente prolação proibida de decisão-surpresa), nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 149.º,non.º 1 do artigo 195.º e no n.º 1 do artigo 199.º do CPC. Se não, veja-se

27. Assim, o douto Acórdão Recorrido – ao considerar procedente a nulidade por violação do contraditório invocadaapenasemsededealegaçõesde recursocombasenaalínea d)don.º 1 do artigo 615.º do CPC – incorreu num erro de julgamento de Direito, violando o disposto nos artigos 149.º, 195.º, 196.º e 199.º do CPC, na medida em que essa pretensa nulidade sempre se encontra sanada (por não ter sido objeto de reclamação, no prazo de 10 (dez) dias, perante o Tribunal a quo;

28. Sem prejuízo de,conforme se referiu supra, a pretensanulidade por preterição de contraditório e consequente violação do princípio da proibição de decisão-surpresa se encontrar, em qualquer caso, sanada, a verdade é que, no caso concreto, nem sequer existe violação do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, na medida em que, para que se imponha a audição das partes, não basta que o Tribunal pretenda mobilizar uma norma não invocada pelas partes, sendo ainda necessário que o enquadramento jurídico amobilizar seja manifestamentedistinto do que foi sustentado pelas partes;

29.Nocasoconcreto,esalvoodevidorespeitoemelhoropinião,asentençaproferidapeloTribunal de 1.ª Instância, ao aplicar o regime da anulabilidade por erro na declaração negocial do ora Recorrente, e por erro sobre o objeto, causados por dolo, não constituiu a mobilização de um enquadramento jurídico manifestamente distinto do que foi sustentado pelas partes;

30. Na realidade, a demonstração inequívoca de que inexistiu qualquer pretensa decisão surpresa consiste no facto de apenas os Ilustres Mandatários dos Recorridos FF e GG, os quais apenas entraram no processo já após a prolação da sentença recorrida, terem arguido a pretensa nulidade processual por decisão surpresa;

31. De facto, os Recorridos BB e OUTROS, que continuam representados pelo mesmo IlustreMandatárioqueacompanhou todoopresenteprocessodesdeo seu início,nãoarguiram qualquer nulidade processual relacionada com uma alegada violação do princípio da proibição da decisão surpresa;

32. Aliás, nas alegações de facto e de direito apresentadas pelo Ilustre Mandatário dos Recorridos BB e OUTROS,mais concretamente na sessão de julgamento de9 de maio de 2024, ficheiro áudio n.ºDiligencia_688-21.9T8LRA_2024-05-09_14-08-25, entre os minutos 01:04:10 e 01:04:48, foi referido o seguinte:

“…não me parece, não nos parece, que, de facto, o autor fosse a tal pessoa ingénua que não tinha, tinha só a 4.ª classe, que não conhecia nada, enfim, que foi, digamos que, enganado relativamente a este negócio”;

33. Comefeito,bastalerafactualidadedescritanapetiçãoinicial,emparticularovertidonosartigos 34.º a 41.º da petição inicial, assim como nos artigos 94.º a 97.º da petição inicial, para se constatar que o cenário de vício da vontade por engano do representante dos Recorridos, isto é, o Senhor HH, se encontrava definido na petição inicial;

34. Por conseguinte, a discussão subjacente aos presentes autos e a produção de prova incidiu sobre o engano astuciosamente provocado pelo representante dos Recorridos ao ora Recorrente que levou este último a assinar o contrato-promessa em causa nos autos, quando, na realidade, pretendia apenas adquirir os terrenos em questão;

35. Em face do supra exposto, inexiste, além do mais, qualquer violação do princípio da proibição de decisão-surpresa, em violação do princípio do contraditório por parte do Tribunal de 1.ª Instância, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC.

Na resposta os Recorridos, além do mais, pugnam pela inadmissibilidade do recurso.

O Exmº Senhor Desembargador relator não admitiu a revista, decisão que foi revogada por despacho do relator no STJ que deferiu a reclamação apresentada e admitiu o recurso de revista, ao abrigo do disposto no art. 671º, nº2, b) do CPCivil.

Fundamentação.

Vêm provados os seguintes factos:

1. O Autor AA nasceu em 6 de setembro de 1949.

2. O Autor possui a 4.ª classe.

3. Em 1974 o Autor emigrou para o Canadá para trabalhar no sector da construção civil.

4. O Autor reside há mais de 40 anos no Canadá.

5. Em 19 de Janeiro de 1974, o Autor casou-se com II, a qual veio a falecer em 13 de novembro de 2011.

6. Após o falecimento da sua esposa, o Autor enfrentou uma depressão, da qual apenas recentemente recuperou totalmente.

7. Os Réus BB, CC, DD e EE, são herdeiros do falecido JJ.

8. JJ, contribuinte n.º ... ... .27, com última residência habitual na Rua..., n.º ..., ...., Pombal, faleceu no dia 10 de janeiro de 2011.

9. Na sequência do falecimento de JJ, os Réus BB, CC, DD e EE, foram habilitados como herdeiros da herança do falecido JJ.

10. A Ré BB foi designada cabeça-de-casal da herança do falecido JJ.

11. Segundo a certidão permanente da sociedade MST – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., sociedade comercial por quotas, pessoa coletiva n.º ... ... .69, com sede na Avenida ... n.º 2, 3100-.90 Pombal (“MST”), o falecido JJ ainda hoje consta como sócio da mesma.

12. O falecido JJ consta como sendo o proprietário de duas quotas no valor de € 25.000,00 cada uma (num total de € 50.000,00) do capital social de € 75.000,00 da MST.

13. A participação social na MST no valor de € 50.000,00 (duas quotas de € 25.000,00), originariamente pertencente ao falecido JJ, permanece ainda no ativo da herança indivisa de JJ.

14. O Réu FF foi sócio da MST desde a sua constituição, possuindo uma quota de € 12.500,00.

15. Em 6 de janeiro de 2010, o Réu FF alienou a sua quota de € 12.500,00 à sociedade CONSTRUÇÕES ALIMENDES, LDA., pessoa coletiva n.º ... ... .76.

16. O Réu FF é casado segundo o regime da comunhão de adquiridos com a Ré GG.

17. A Ré GG foi sócia da MST desde a sua constituição, possuindo uma quota de € 12.500,00.

18. Em 6 de janeiro de 2010, a Ré GG alienou a sua quota de € 12.500,00 na MST à sociedade CONSTRUÇÕES ALIMENDES, LDA., pessoa coletiva n.º ... ... .76.

19. A Ré GG é casada segundo o regime da comunhão de adquiridos com o Réu FF.

20. A MST foi constituída em 27 de janeiro de 2005 pelo falecido JJ e pelos Réus FF e GG

21. O objeto social da MST é o seguinte: “[c]ompra e venda de bens imóveis, promoção imobiliária e construção de edifícios”.

22. Originariamente, a estrutura societária da sociedade MST era a seguinte:

- JJ – duas quotas de € 25.000,00 (num total de € 50.000,00);

- Réu FF – uma quota de € 12.500,00; e

- Ré GG – uma quota de € 12.500,00.

23. Atualmente a estrutura societária da MST é a seguinte:

- JJ – duas quotas de € 25.000,00 (num total de € 50.000,00);

- CONSTRUÇÕES ALIMENDES, LDA. – duas quotas de € 12.500,00 (num total de € 25.000,00).

Atualmente, a MST tem como gerente única a Ré BB e sede social na Avenida ...., n.º..., ... Pombal.

24. No decurso do verão de 2006 o Autor foi apresentado a HH, por intermédio de KK.

25. Na sequência desta apresentação, HH explicou ao Autor que a sociedade MST era proprietária do imóvel misto descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra, sob o n.º ..90/19530508, o qual incluía os prédios identificados com os seguintes números de matriz: ..... ..... .... . ...5, do imóvel urbano descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra, sob o n.º ..46/19910208 e com a matriz n.º ...52; e do imóvel rústico descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra, sob o n.º .94/19870317 e com a matriz n.º ...35.

26. Foi ainda referido por HH ao Autor que os imóveis acima mencionados estariam associados a dois projetos de construção, os quais compreendiam, pelo menos, 13 fogos e cinco lojas.

27. Perante a potencialidade dos aludidos imóveis e os projetos de construção associados aos mesmos, localizados em Coimbra, o Autor ficou interessado na aquisição desses mesmos imóveis.

28. Durante as negociações com HH o Autor sempre deixou claro que pretendia adquirir os prédios acima identificados sitos na freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, por força da potencial rentabilização associada aos projetos de construção descritos por HH.

29. Nestas conversações, o Autor não teve acompanhamento ou assessoria de advogado ou outro tipo de representante.

30. Nesse mesmo verão de 2006, apesar do Autor já ter transporte combinado, HH insistiu em levar o Autor de ... ao aeroporto de Lisboa para que este último pudesse apanhasse um avião de regresso ao Canadá.

31. Quando chegaram ao aeroporto de Lisboa, ainda no estacionamento, HH apresentou ao Autor uma minuta de um contrato-promessa, tendo referido ao Autor que deveria assinar imediatamente o contrato, sob pena de perder a oportunidade de negócio.

32. Perante a pressão que lhe foi explicitada por HH, o Autor, convencido de que dizia respeito à aquisição dos imóveis acima referidos, assinou a minuta do contrato-promessa sem ler as condições.

33. A minuta do contrato-promessa que foi apresentada ao Autor não foi consigo negociada.

34. Apesar de ter assinado o contrato-promessa acima referido, o Autor, na altura em que o assinou, de boa fé e confiando, julgou que estaria a prometer adquirir os imóveis detidos pela MST e não quotas sobre a própria MST, como, mais tarde, e já com assessoria de advogado, se veio a aperceber.

35. As conversações e contactos existentes foram sempre entre o Autor e HH, o qual actuou sempre em nome e em representação dos Réus.

36. O contrato-promessa foi celebrado entre o Autor, na qualidade de promitente-comprador e o falecido JJ e os Réus FF e GG, na qualidade de promitentes-vendedores.

37. A alínea c) do contrato-promessa dispõe o seguinte:

A SOCIEDADE é proprietária dos prédios urbanos ..... ..... ..... ..55 e dos rústicos ..34 e ..35, da freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra”.

38. A alínea d) do contrato-promessa estipula o seguinte:

A SOCIEDADE entregou na Câmara Municipal de Coimbra dois projectos de Arquitectura para Construção de dois blocos com um total de 5 espaços comerciais, 6 apartamentos T3, 5 apartamentos T2 e 2 apartamentos T0, a realizar nos prédios identificados em c), cuja apreciação camarária decorre actualmente” (cfr. Doc. 6, já junto).

39. Estipulava a Cláusula 1.ª do Contrato-Promessa:

Os Primeiro, Segundo e Terceiro Outorgantes comprometem-se a vender as quotas que possuem no capital da SOCIEDADE e o Quarto compromete-se a comprar” (cfr. Doc. 6, já junto).

40. O primeiro, segundo e terceiro outorgantes do contrato promessa correspondiam, respetivamente, ao falecido JJ, ao Réu FF e à Ré GG.

41. E o quarto outorgante do contrato-promessa correspondia ao ora Autor.

42. Segundo a Cláusula 2.ª do contrato-promessa, o ora Autor pagaria ao falecido JJ o montante de € 102.500,00 por cada uma das duas quotas de € 25.000,00 que possuía no capital social da MST

43. E ao Réu FF o montante de € 51.250,00 pela quota de € 12.500,00 no capital social da MST.

44. E à Ré GG o montante de € 51.250,00 pela quota de € 12.500,00 no capital social da MST.

45. Segundo o teor literal do contrato-promessa, o Autor obrigou-se a liquidar o montante total de € 307.500,00 para adquirir a totalidade do capital social da MST ao falecido JJ e aos Réus FF e GG.

46. E a título de “sinal e início de pagamento”, o Autor obrigou-se a pagar € 25.000,00 ao falecido JJ, € 6.250,00 ao Réu FF e € 6.250,00 à Ré GG.

47. Segundo a cláusula 6.ª do contrato-promessa, o Autor teria assumido os compromissos da MST identificados na alínea e) do contrato-promessa, “devendo garantir o cumprimento dos respetivos prazos, nomeadamente a reforma da livrança de 58.000 €, respetivos juros, juros dos outros dois empréstimos e encargos com a garantia bancária, cujos montantes, até 31 de Janeiro de 2007 se estimam em 20.000 € em Setembro de 2006 e 20.000 € em Dezembro de 2006”.

48. O considerando vertido na alínea e) do contrato-promessa estipulava o seguinte:

A SOCIEDADE deu os prédios referidos na alínea c) como garantia hipotecária, para obtenção de financiamento bancário e garantia, junto do Crédito Agrícola Mútuo de Pombal cujos montantes e vencimentos são: Livrança de 58.000 € com vencimento a 23 de Setembro de 2006; empréstimo de 201.000 € com pagamento de juros a 23 de Setembro de 2006 e vencimento a 23 de Março de 2008; Empréstimo de 124.199 € com pagamento de juros a 2 de Dezembro de 2006 e vencimento a 2 de Junho de 2008 e Garantia Bancária de 124.199 € com pagamento de juros a 16 de Setembro de 2006” (cfr. Doc. 6, já junto).

49. Ficou exarado na Cláusula 7.ª do contrato-promessa em causa nos autos que se a escritura definitiva “não se realizar por razão imputável a qualquer um dos primeiros três outorgantes [o falecido JJ e os Réus FF e GG], o quarto [o Autor] terá direito a receber o sinal em dobro de cada um daqueles, e se a escritura definitiva não se realizar por razão imputável ao quarto outorgante, este declara, expressamente, renunciar aos sinais entregues e verbas depositadas na conta da SOCIEDADE”.

50. Consta na parte final do contrato-promessa que as partes teriam renunciado “expressamente ao reconhecimento notarial das assinaturas”.

51. Quando assinou o contrato-promessa, o Autor não tinha a menor noção de que sequer o contrato-promessa continha este clausulado, jamais negociado entre as partes.

52. Quando assinou a minuta do contrato-promessa o Autor nem sequer compreendeu o alcance da parte final do contrato-promessa, em particular a alegada renúncia ao reconhecimento notarial das assinaturas.

53. O Autor liquidou aos Promitentes-Vendedores, directamente ou por intermédio de HH, o montante total de €121.800,00 (cento e vinte e um mil e oitocentos euros), correspondente ao seguinte:

 € 6.250,00 pagos, em 5 de setembro de 2006, ao Réu FF, a título de sinal;

 € 6.250,00 pagos, em 5 de setembro de 2006, à Ré LL, a título de sinal;

 € 25.000,00 pagos, em 6 de setembro de 2006, ao falecido JJ, a título de sinal;

 € 45.000,00 pagos, em 5 de setembro de 2006, para alegada liquidação de responsabilidades bancárias da MST, as quais se encontravam pessoalmente avalizadas pelo falecido JJ e pelos Réus FF e GG;

 € 20.000,00 pagos, em 5 de janeiro de 2007, para alegada liquidação de responsabilidades bancárias da MST, as quais se encontravam pessoalmente avalizadas pelo falecido JJ e pelos Réus FF e GG;

 € 2.500,00 pagos, em 23 de janeiro de 2007, ao Réu FF, a título de reforço de sinal;

 € 4.300,00 pagos, em 17 de janeiro de 2007, à Ré GG, a título de reforço de sinal; e

 € 12.500,00 pagos, em 17 de janeiro de 2007, ao falecido JJ, a título de reforço de sinal.

54. Por volta de março / abril de 2007, o Autor tomou conhecimento de que a Câmara Municipal de Coimbra teria reprovado os projetos de urbanização previstos para os imóveis acima referidos.

55. Através de cartas datadas de 10 de julho de 2020 e endereçadas ao falecido JJ (o Autor desconhecia que JJ havia falecido) e aos Réus FF e LL – com avisos de receção (a mesma carta em três vias) – o Autor efetuou a seguinte interpelação:

Faço referência ao contrato intitulado “Contrato-Promessa de Compra e Venda de Quotas do Capital de uma Sociedade” (“Contrato-Promessa”) – datado de 1 de setembro de 2006 – e celebrado entre V.as Ex.as, na qualidade de promitentes-vendedores (“Promitentes-Vendedores”), e o ora subscritor, na qualidade de promitente-comprador (“Promitente-Comprador”).

Através do Contrato-Promessa, os Promitentes-Vendedores obrigaram-se a vender as quotas que possuíam no capital social da sociedade MST – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. (“MST”) e o Promitente-Comprador obrigou-se a comprar essas mesmas quotas.

Contudo, e como V.as Ex.as não ignoram, o ora subscritor jamais pretendeu adquirir as quotas da sociedade MST. Na verdade, o ora subscritor pretendia adquirir os prédios urbanos ..... ..... .... . ..55 e os prédios rústicos ..34 e ..35, sitos na freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, os quais eram propriedade da MST.

Com efeito, e como V.as Ex.as bem sabem, o Promitente-Comprador pretendia construir apartamentos para comercialização nos imóveis acima identificados, tendo sido informado por V.as Ex.as – antes de o ora subscritor ter assinado o Contrato-Promessa – que já teriam a informação da Câmara Municipal de Coimbra que seria possível, do ponto de vista urbanístico, construir nos aludidos imóveis e que apenas faltaria a emissão da licença para construção, mas que seria uma mera formalidade.

Aliás, foi referido ao ora subscritor que os imóveis acima mencionados estavam associados a dois projetos de construção, os quais compreendiam 13 apartamentos e cinco lojas (contendo diversos T2, T3 e T1).

No entanto, a verdade é que o ora subscritor assinou o Contrato-Promessa a caminho do aeroporto de Lisboa, sem ter tido sequer possibilidade de o analisar em conjunto com o seu advogado.

De facto, o Contrato-Promessa foi-lhe apresentado pelo Senhor HH no caminho de Pombal até ao aeroporto de Lisboa, tendo o Senhor HH referido ao ora subscritor que deveria assinar imediatamente o Contrato-Promessa, sob pena de perder a oportunidade de negócio, pois os Promitentes-Vendedores lhe haviam referido que, se o ora subscritor não assinasse o Contrato-Promessa, celebrariam o negócio com um terceiro.

Atendendo à pressão imposta pelos Promitentes-Vendedores, o ora subscritor, convencido de que iria adquirir os imóveis para construção acima referidos, assinou o Contrato-Promessa no caminho entre Pombal e o aeroporto de Lisboa.

Todavia, em momento posterior, o ora subscritor apercebeu-se que o Contrato-Promessa incidia – não diretamente sobre os imóveis que pretendia adquirir –, mas sobre as quotas relativas ao capital social da sociedade MST.

De facto, o ora subscritor, fruto da sua reduzida escolaridade e de residir há mais 40 anos no estrangeiro, teve sempre dificuldade em compreender o clausulado do Contrato-Promessa, mas assinou-o na base da confiança em V.as Ex.as.

Aliás, e após a devida análise, o ora subscritor foi recentemente informado de que o Contrato-Promessa, para ser válido e eficaz, devia, inclusivamente, ter tido o reconhecimento presencial de assinaturas, o que não sucedeu, pelo que, desde já, expressamente o ora subscritor reserva os seus direitos quanto a esta matéria.

De resto, fui igualmente informado que o Contrato-Promessa é usurário e ofensivo dos bons costumes.

Em todo o caso, a verdade é que, em cumprimento do aludido Contrato-Promessa, o ora subscritor liquidou aos Promitentes-Vendedores os seguintes montantes:

€ 6.250,00 pagos ao Senhor FF, a título de sinal;

€ 6.250,00 pagos à Senhora GG, a título de sinal;

€ 25.000,00 pagos ao Senhor JJ, a título de sinal;

€ 45.000,00 pagos para alegada liquidação de responsabilidades bancárias da sociedade MST, as quais se encontravam pessoalmente avalizadas pelos Promitentes-Compradores;

€ 20.000,00 pagos para alegada liquidação de responsabilidades bancárias da sociedade MST, as quais se encontravam pessoalmente avalizadas pelos Promitentes-Compradores;

€ 2.500,00 pagos ao Senhor FF, a título de reforço de sinal;

€ 4.300,00 pagos à Senhora GG, a título de reforço de sinal; e

€ 12.500,00 pagos ao Senhor JJ, a título de reforço de sinal.

Ou seja, o ora subscritor liquidou o montante total de € 121.800,00 (cento e vinte e um mil e oitocentos euros), a título do cumprimento do Contrato-Promessa.

Contudo, e por volta de março / abril de 2007, o ora subscritor tomou conhecimento de que, afinal de contas, a Câmara Municipal de Coimbra reprovou os projetos previstos para os imóveis acima referidos, razão pela qual não seria possível construir nos mesmos, em particular nos termos em que assentou a vontade de contratar do ora subscritor e a fixação do preço.

Assim, e com base nesta informação superveniente, o ora subscritor perdeu objetivamente o interesse no cumprimento do Contrato-Promessa, visto que – por razões supervenientes – os imóveis que pretendia adquirir não permitiam a construção nos termos que estiveram subjacentes à contratação.

Por conseguinte, e ainda em 2007, o ora subscritor transmitiu a V.as Ex.as que, atendendo à reprovação dos projetos pela Câmara Municipal de Coimbra, tinha perdido o interesse no Contrato-Promessa, considerando o mesmo terminado, e que, consequentemente, não iria liquidar mais nenhuma obrigação adveniente do Contrato-Promessa.

Todavia, em dia 13 de novembro de 2011, a esposa do ora subscritor faleceu, vítima de um acidente de viação fatal, e desde essa data até recentemente, o ora subscritor enfrentou uma severa depressão, sendo que apenas recentemente conseguiu retomar este assunto, com vista à sua resolução.

À luz da perda do interesse – por força da impossibilidade de se construir nos imóveis acima referidos de acordo com o que as partes haviam pressuposto – e da resolução do Contrato-Promessa, é evidente que V.as Ex.as se encontram obrigadas a devolver o que ora subscritor liquidou ao abrigo do Contrato-Promessa.

De resto, e sem prejuízo do supra exposto, a verdade é que o ora subscritor liquidou o montante total de € 121.800,00 (cento e vinte e um mil e oitocentos euros) ao abrigo do aludido Contrato-Promessa, o que se sempre se afigurará, em qualquer caso, manifestamente excessivo.

Em face do supra exposto, e com total reserva – num cenário de litígio judicial – de todos os direitos acima explanados, incluindo o direito de suscitar a invalidade do Contrato-Promessa, vem o ora subscritor interpelar V.as Ex.as para, no prazo de 10 dias a contar da receção da presente missiva, devolverem o montante de € 121.800,00 (cento e vinte e um mil e oitocentos euros) para a seguinte conta bancária: Caixa Geral de Depósitos, Ansião - IBAN PT.....................52.

Caso V.as Ex.as não cumpram o supra referido, o ora subscritor não deixará de recorrer aos meios judiciais para obter a integral satisfação dos seus direitos. Ademais, o ora subscritor declara que a presente missiva foi redigida com o auxílio do seu advogado, sendo que qualquer comunicação da vossa parte sobre este assunto deverá – de ora em diante - ser dirigida ao advogado MM, através do e-mail ...@adv.oa.pt” (cfr. doc. 9).

56. As três cartas – com o mesmo teor, mas em três vias – foram rececionadas no respetivo destino.

57. Nem a herança indivisa do falecido JJ, nem os Réus FF e GG procederam à devolução ao Autor do aludido montante de € 121.800,00 (cento e vinte e um mil e oitocentos euros).»

*

Foi julgado não provado:

«a) Em 2007 o Autor transmitiu oralmente ao falecido JJ e aos Réus FF e GG que, atendendo à reprovação dos projetos pela Câmara Municipal de Coimbra, tinha perdido o interesse no contrato-promessa em causa nos autos, considerando o mesmo terminado.

b) HH não tinha quaisquer poderes ou mandato para ter actuado em nome dos Réus.

c) O falecido JJ, bem como os outros Réus, ainda se deslocaram à localidade de Brinços – ... – Pombal, no sentido de conhecer e estabelecer conversações com o ora Autor, em especial, para que, se formalizasse a prometida escritura de cessão de quotas, porém, não lograram os ora Réus obter sucesso nessa sua demanda, porquanto, na verdade, o ora Autor, era desconhecido naqueles lugares e redondezas.»

De direito.

O acórdão recorrido, por maioria, concluiu que a sentença está ferida de nulidade, “por excesso de pronúncia”, (art. 615º, nº1º, alínea d)), por não ter dado às partes “a possibilidade de conhecimento/aplicação, na sentença, do instituto da anulabilidade do contrato promessa, tendo como fundamento o erro na declaração ou o erro quanto ao objeto.”

O Recorrente, com apoio no voto de vencido, sustenta que a pretensa nulidade cometida deveria ter sido arguida no prazo de 10 dias e não o tendo sido, encontra-se sanada. Sustenta também que o tribunal se limitou a qualificar diversamente os factos alegados e provados, como o permite o nº3 do art. 5 do CPCivil.

Vejamos se lhe assiste razão.

O Autor deduziu como pedido principal o de nulidade do contrato-promessa de cessão de quotas datado de 01 de Setembro de 2006 por “ofensa aos bons costumes” (art. 280º, nº2 do CCivil); a título subsidiário, o de nulidade do contrato nos termos do nº3 do art. 410º do CCivil.

Na sentença considerou-se que em face da factualidade apurada não havia motivo para concluir pela nulidade do contrato-promessa por qualquer dos fundamentos invocados, mas que a matéria de facto revelava vício na formação da vontade, susceptível de conduzir à anulação do contrato, e que lhe era possível apreciar a anulabilidade do contrato, pois que:

“apesar do Autor não ter formulado expressamente este pedido de anulação, o mesmo resulta do pedido de declaração de nulidade do contrato promessa, uma vez que os factos alegados pelo Autor subsumem-se aos pressupostos da anulabilidade, sendo evidente que o resultado material que pretende pode ser alcançado quer pela via da nulidade quer da anulabilidade, ou seja, está sempre em causa a invalidade do negócio, por isso, pode o Tribunal, sem violar o disposto no art. 609.º, n.º 1, do CPC, interpretar o pedido formulado de forma a considerar que também está pedida a anulabilidade.”

E assim sucedeu, vindo o Sr. Juiz a decidir:

“Em suma, impõe-se anular o contrato promessa por erro na declaração do Autor causado dolosamente por HH, em representação dos Réus, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 247.º, 251.º, 253.º e 287.º, do Código Civil e, em consequência, os Réus estão obrigados solidariamente a restituir ao Autor a quantia global de €121.800,00 (cento e vinte e um mil e oitocentos euros), acrescido de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, ao abrigo do disposto no art. 289.º, n.º 1, do Código Civil.”

A primeira questão que nos cabe apreciar é se o Sr. Juiz podia fazer esta convolação, sem previamente ouvir as partes.

E a resposta é inequivocamente negativa.

É verdade que segundo o art. 5º, nº3, do CPC, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”

No entanto, como bem acentuou o acórdão do STJ de 04/04/2024, P. 16989/22, desta secção “há que moderar a liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente da visada e atentatória dos princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa.

A liberdade de apreciação da matéria de direito por parte do juiz – pese embora o que consta no art. 5º, nº3 do CPC (…) – tem limites, como sejam as que decorrem do princípio do dispositivo (art. 3º/1, do CPC), do princípio do contraditório (art. 3º), do princípio da estabilidade da instância (arts. 264º e 265º do CPC), das regras da preclusão (art. 573º do CPC) ou do princípio do pedido (art. 609º do CPC).

No mesmo sentido decidiu o Acórdão do STJ de 05/04/2018, P. 1123/10:

I - O princípio do oficiosidade na aplicação do direito, que pode até envolver requalificação jurídica da pretensão deduzida pelo autor (art. 5º/3 do CPC), não pode sobrepor-se à necessidade que decorra da disposição legal segundo a qual determinado vício ou efeito jurídico, para que seja apreciado, deve ser invocado pelo interessado.

II – Tal restrição impõe-se sobremaneira naqueles casos em que a qualificação jurídica resultante da convolação oficiosa corresponda a uma pretensão, como a da anulabilidade, cujo exercício está sujeito prazo de caducidade.

Foi justamente este o vício em que ocorreu a sentença, na medida em que o objecto da acção consistia em saber se o contrato promessa estava ferido de nulidade por ofensa aos bons costumes, e a sentença veio a declarar a anulação do contrato-promessa por vícios da vontade, a saber erro na declaração (art. 247º) , erro sobre o objecto do negócio (art. 251º) e dolo (art. 253º).

Ora, embora de acordo com o art. 289º do CC os efeitos da declaração de nulidade e da anulabilidade sejam idênticos quanto à noção de retroactividade e aos deveres de restituição, o regime de arguição é substancialmente diferente: a nulidade é invocável a todo o tempo e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286º); a anulabilidade deve ser arguida dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento, e pelas pessoas em cujo interesse foi estabelecida (art. 287º).

Nas conclusões 33 e 34, defende o Recorrente que o “cenário” de vícios da vontade foi alegado nos artigos 34 a 41 e 94 a 97 da petição.

Recordemos o que alegou nos referidos pontos:

34. No verão de 2006, o Senhor HH levou o Autor de ... ao aeroporto de Lisboa, para que este apanhasse avião de regresso ao Canadá.

35. No percurso entre ... e o aeroporto, o Sr. HH apresentou ao A. uma minuta de contrato-promessa, tendo o Sr. HH referido ao ora subscritor que deveria assinar imediatamente o contrato, sob pena de perder a oportunidade de negócio, pois o falecido JJ e os RR FF e LL lhe haviam referido que se o Autor não celebrasse o contrato-promessa, celebrariam o negócio com um terceiro.

36. Perante a pressão que lhe foi explicitada pelo Sr. HH, o Autor, convencido de que iria adquirir os imóveis acima referidos, assinou a minuta do contrato-promessa no caminho entre ... e o aeroporto.

37. Conforme o acima referido, o A. apenas possui a 4ª classe, tendo, por isso, reduzida escolaridade…

38….além disso, o A. reside há mais de 40 anos no estrangeiro, concretamente no Canadá, pelo que tem dificuldade em ler Português, em particular clausulados jurídicos, como é o caso do contrato-promessa.

39. A minuta do contrato-promessa que foi apresentada ao A., em particular o teor do seu clausulado, não foi negociada com o Autor, tendo-lhe sido apresentada como “facto consumado”; ou o A. assinava o que lhe era apresentado pelo falecido JJ e pelos RR FF e NN ou não haveria negócio.

40. Assim, apesar de ter assinado o contrato-promessa acima referido, a verdade é que o Autor, na altura em que assinou, de boa fé e confiado no JJ e nos RR FF e LL, julgou que estaria a adquirir os imóveis detidos pela MST e não as quotas sobre a própria MST, como mais tarde, e já com assessoria de advogado, se veio a aperceber.

41. Saliente-se que, aquando da assinatura do contrato-promessa, o A. jamais teve acompanhamento ou assessoria de advogado ou outro tipo de representante.

Art.94. Tanto mais que a minuta do contrato-promessa foi apresentada ao Autor a caminho deste último para o aeroporto de Lisboa...

Art. 95. … tendo o Autor sido pressionado para assinar a minuta do contrato-promessa imposta pelo falecido JJ e pelos RR FF e LL, sob pena de alegada perda de oportunidade de negócio…

Art. 96. …não tendo o Autor – à luz da sua escolaridade e fraco domínio da Língua Portuguesa – logrado entender o teor da minuta contrato – promessa em causa nos autos.

Art. 97. Aliás, conforme se explicou supra, apesar de ter assinado o contrato-promessa acima referido, a verdade é que o Autor, na altura em que o assinou, de boa fé e confiando no falecido JJ e nos RR FF e LL, julgou que estaria a adquirir os imóveis detidos pela sociedade MST e não quotas sobre a própria MST, como, mais tarde, e já com assessoria de advogado, se veio a aperceber.

Embora se possa ver aqui a alegação de factos que indiciam erro sobre o objecto do negócio, o que é facto é que o Autor não enquadrou a acção como de anulabilidade por vício de vontade, mas sim como nulidade por ofensa aos bons costumes, de modo que a sentença ao declarar a anulabilidade procedeu a uma requalificação jurídica que se traduziu numa “transmutação” do fundamento do objecto do processo.

Aqui chegados coloca-se a questão de saber se estamos perante uma nulidade por violação da proibição da decisão surpresa (art. 3º, nº3), regulada no art. 195º, ou de nulidade da sentença (art. 615º, nº1, alíneas d) e e), todas estas disposições do CPC.

Em nossa opinião, trata-se de uma nulidade da sentença.

Ao apreciar a anulabilidade do contrato por vício de vontade a sentença violou directamente o nº2 do art. 608º do CPC, na parte em que proíbe ao juiz conhecer de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes e que a lei lhe não permita conhecer, e ao declarar a anulabilidade do contrato quando o pedido era declaração de nulidade, a sentença é nula duplamente: por ter conhecido de questão de que não podia conhecer e por condenar em objecto diverso do pedido (art. 615º, nº1, alíneas d) e e) do CPC).

Já a nulidade processual regulada genericamente no art. 195º é uma nulidade de natureza diferente das chamadas “nulidades da sentença”, como se exprimiu o Ac. STJ de 12.12.2024, P. 319/22.

Quando o tribunal decide sem cumprimento do princípio do contraditório omite, no processo de decisão, uma formalidade que a lei prescreve. Nas palavras de OO, estamos perante um desvio de formalismo processual seguido, em relação ao formalismo prescrito na lei (Noções Elementares de Processo Civil Coimbra Editora, p. 176). A esta nulidade aplica-se a regra geral do art. 195º, devendo ser arguida perante o tribunal onde foi cometida.

Cita-se em abono desta interpretação, o acórdão do STJ de 12.11.2024, P. 3231/156, citado nas conclusões do recurso, que decidiu:

O facto de o recorrente não ter sido chamado a pronunciar-se sobre a caducidade invocada pelo recorrido, fez com que a decisão proferida viole o princípio do contraditório (art. 3º/3 do CPC). Tal falha ao nível dos pressupostos em que assenta o processo decisório, por não haver ponderação explícita da posição que o recorrente tinha o direito de exprimir, torna a decisão nula e atacável nos termos do art. 195º, mas não nos termos do art. 615º, nº1, d), por em tal hipótese não existe um excesso de pronúncia no sentido mais restrito, que é pressuposto por esta última norma, ou seja, no sentido da decisão estatuir para além do objecto decisório, conhecendo de questão que ninguém suscitou e que também não é de conhecimento oficioso.”

Em suma, a sentença incorreu na nulidade do art. 615º, nº1, d) e e) do CPC, que os RR podiam arguir no recurso de apelação (art. 615º, nº4), soçobrando assim a pretensão do Recorrente de ver na nulidade cometida uma nulidade processual, que deveria ter sido arguida no prazo de 10 dias perante o tribunal onde foi cometida.

Com o que improcedem as conclusões da revista.

Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 02/10/2025

Ferreira Lopes (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Arlindo Oliveira

Sumário (art. 663º, nº7, do CPC):