Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1654/21.0T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
CLÁUSULA PENAL
INDEMNIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
AUTONOMIA PRIVADA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
DESCARACTERIZAÇÃO DA DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A proporcionalidade da cláusula penal indemnizatória segundo a qual a locatária financeira inadimplente, além de pagar as prestações vencidas, tem de pagar 20% das prestações vincendas à data da resolução, acrescido do valor residual, deve ser aferida atendendo ao “quadro negocial padronizado” [cfr. artigo 19.º, al. c), do Regime Juridico das Cláusulas Contratuais Gerais], sendo desproporcionada apenas quando se detecte uma desproporção sensível entre a pena e os danos previsíveis.

II. Na perspectiva dos interesses típicos das partes em contratos de locação financeira, e considerando, em particular, a obrigação que de outro modo impenderia, ex vi legis, sobre a locatária, de ressarcir os danos, aquela pena, incluída no contrato ao abrigo da autonomia contratual, não é desproporcionada nos termos daquela norma.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: Transmorro Transportes, Unipessoal, Lda.

Recorrida: Cofidis, Sucursal da Sociedade Anónima Francesa Cofidis, S.A.

1. Cofidis, Sucursal da Sociedade Anónima Francesa, Cofidis, SA., intentou a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra Transmorro Transportes, Unipessoal, Lda., e AA, pedindo a sua condenação na entrega dos veículos locados e a pagar-lhe a quantia de € 121.967,15 acrescida dos respectivos juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento, bem como da totalidade da indemnização devida pela mora na devolução dos veículos, que deverá ser contabilizada até à sua entrega efectiva.

Alegou, em resumo, que celebrou com a ré três contratos de locação financeira mobiliária com fiança, incidindo, cada um deles, sobre um veículo automóvel, constituindo-se o réu como fiador e principal pagador.

A ré não pagou a totalidade das rendas vencidas desde 25/07/2019, relativamente a um dos contratos, 25/08/2019, relativamente a outro contrato e 25/09/2019, relativamente ao terceiro contrato. Apesar de interpelados para pagamento das rendas em falta, os réus não o fizeram até ao momento, nem procederam à entrega dos veículos locados.

2. Os réus contestaram alegando que os contratos de locação financeira contêm cláusulas contratuais gerais cujo teor é pré-elaborado, sem discussão prévia do respectivo teor. O estipulado no n.º 2 e nas alíneas b) e c) do n.º 4 do artigo 10.º dos contratos de locação financeira celebrados entre as partes são cláusulas proibidas abusivas e violadoras da boa fé que se traduzem na oneração excessiva para com os réus e que não foram suficientemente esclarecidas. O que significa que os valores peticionados designadamente a título de indemnização por incumprimento do contrato, correspondente ao pagamento de 20%, das rendas vincendas à data da resolução e a título de cláusula penal, não são devidos.

Concluíram pedindo que:

- Sejam declaradas nulas as cláusulas do n.º 2 e as alíneas b) e c) do n.º 4 do artigo 10.º dos contratos de locação financeira acima enumerados;

- Serem os réus absolvidos dos demais pedidos.

3. A autora respondeu à invocada nulidade, alegando que as condições dos contratos foram expressamente negociadas, sendo que as cláusulas não são abusivas ou contrárias à boa fé.

4. Proferiu-se sentença em que se consignou na parte dispositiva:

Julgo a acção procedente por provada, condenando os Réus Transmorro Transportes Unipessoal Lda e AA a pagar à Autora, solidariamente:

- A quantia de 3570,32 € (5.772,95 € + 7051,73 € +8245,64 € -17.500,00 €) acrescendo a esse valor os juros moratórios (taxa anual nominal acrescida da sobretaxa de 3%) sobre o capital em dívida, desde 14 de Outubro de 2019 até efectivo e integral pagamento;

- A quantia de 20.556, 22 € a título de cláusula penal (20% das rendas vincendas e valor residual - 5.639,32 € + 6.188,95 € + 5.677,95 € + 900,00 € + 1000 € + 1150,00 €);

- O valor das prestações vencidas e vincendas após 14 de Outubro de 2019 até entrega de cada um dos veículos, acrescendo a esse valor os juros moratórios (taxa anual nominal acrescida da sobretaxa de 3%) sobre o capital em dívida, contados desde a data de vencimento de cada uma das rendas, caso os contratos se mantivessem

5. Inconformada com a sentença, a ré Transmorro Transportes, Unipessoal, Lda., interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto decidido a final:

Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, e em consequência confirmam a sentença”.

6. Vem, novamente, a ré Transmorro Transportes, Unipessoal, Lda., interpor recurso de revista, pugnando pela revogação deste Acórdão.

A terminar as suas extensas alegações, apresenta as extensas conclusões que a seguir se transcrevem:

I – Da delimitação do objeto do recurso:

1. A presente REVISTA EXCECIONAL representa o profundo inconformismo da Recorrente quanto ao teor do douto Acórdão exarado pelo Tribunal a quo, que julgou improcedente a Apelação deduzida, confirmando in integrum a Sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, o que configura um erro de julgamento cometido pelo Tribunal a quo em matéria de Direito.

Aqui chegados,

2. a Recorrente não se conforma com o Acórdão proferido a quo, que assim coloca em crise, pretendendo com a presente via recursal a sua total revogação, a culminar na improcedência da ação deduzida.

Pelos motivos expostos e pelas razões que infra se irão expor,

3. a Revista (Excecional) interposta é legal, admissível e tempestiva, dispondo a Recorrente de legitimidade para o efeito, devendo o mesmo ser conhecido e, a final, julgado integralmente procedente.

II – DA ADMISSIBILIDADE DA PRESENTE REVISTA:

4. A douta decisão a quo coloca termo ao litígio, sendo dela admissível Revista nos termos do art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Ademais, atendendo ao valor em que se cifra a presente causa e ao decaimento da Recorrente, encontram-se simultaneamente verificados os requisitos da alçada e da sucumbência.

Veja-se agora que:

5. dispõe o art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”, pelo que um dos expressos obstáculos legais à interposição do Recurso de Revista é a existência da designada dupla conforme entre as instâncias inferiores.

No entanto,

6. a existência de uma dupla conforme não arreda, de todo, a possibilidade de interposição de Recurso de Revista, que nesse caso assume a fisiologia de uma Revista Excecional, como aliás preceitua o art. 672.º, n.º 1, do Código de Processo Civil:

“1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”

7. Conforme se logrará provar, encontram-se verificados hic et nunc TODAS AS ALÍNEAS acima contempladas, pelo que deve a presente Revista Excecional ser admitida, conhecendo-se do seu mérito.

Ora vejamos, em estrito cumprimento do ónus do art. 672.º, n.º 2, do Código de Processo Civil:

A. DA MELHOR APLICAÇÃO DO DIREITO:

8. Primeiramente, a lei processual civil permite a interposição do Recurso de Revista Excecional quando estiver a ser debatida uma questão cuja apreciação, pela sua relevância, seja necessária para uma melhor aplicação e interpretação do Direito.

In casu,

9. um perscrutar pelos autos revela que nestes se debatem um conjunto bastante diversificado de questões a carecer de jurisprudência solidificada, deforma a franquear-se o desenvolvimento da ciência jurídica.

10. Como se passará a desenvolver, o caso sub judice contende, entre outros aspetos, com a nulidade ou não de cláusulas amiudadas vezes impostas pela contratante, suscitando-se em concreto saber se as cláusulas são ou não nulas, bem como se são ou não admissíveis.

11. Vem-se sedimentando o entendimento de que a relevância jurídica de uma questão, apresentando-se como autónoma, deve revelar-se pelo elevado grau de complexidade que apresenta, pela controvérsia que gera na doutrina e/ou na jurisprudência ou ainda quando, não se revelando de natureza simples, se revista de ineditismo ou novidade que aconselhem a respetiva apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, com vista à obtenção de decisão suscetível de contribuir para a formação de uma orientação jurisprudencial, tendo em vista, tanto quanto possível, a consecução da sua tarefa uniformizadora.

12. Se analisarmos alguns contratos de adesão atualmente difundidos, e as cláusulas contratuais gerais que os compõem, concluímos que não raras vezes as partes estipulam que, em caso de resolução do contrato com fundamento em incumprimento pelo locatário financeiro, este se obriga, para além de a restituir o bem locado e a pagar as rendas vencidas até à resolução, a pagar uma importância, a título de cláusula penal, igual a 20% do valor global que resulta da soma das rendas ainda não vencidas com o valor residual e juros, como sucede no caso em apreço.

13. É uma prática instituída no mundo hodierno, em várias áreas de negócio. Certo é que a questão da natureza da indemnização que, nos termos do artigo 801.º, n.º 2 do Código Civil, se cumula com a resolução do contrato, continua a ser muito discutida, adotando a maior parte da doutrina e da jurisprudência a tese de que, se o locador financeiro opta pela resolução do contrato, a indemnização que lhe é devida fica circunscrita ao interesse contratual negativo ou dano da confiança, o qual tem em vista colocar o credor na situação em que se encontraria no caso de não ter celebrado o contrato, abrangendo os danos emergentes (por exemplo, as despesas do contrato) e os lucros cessantes (por exemplo, os juros).

14. Certo é também ainda que determinada jurisprudência tem considerado que a cláusula mencionada está ferida de nulidade, entre o mais porque "os preceitos injuntivos dos artigos 433º e 434º do Cód. Civil, ao determinarem a destruição da relação contratual por virtude de resolução pelo credor, não lhe concedem outros direitos senão os da restituição do equipamento e do reembolso das rendas vencidas, comos respetivos juros moratórios."

15. Ora, atendendo ao entendimento que perfilha esta corrente jurisprudencial, optando o locador pela resolução do contrato, este penas terá direito a peticionar uma indemnização pelo interesse contratual negativo, o chamado dano da confiança.

16. Portanto, na medida em que é fixada nos contratos de locação financeira uma indemnização que engloba valores que se enquadram no interesse contratual positivo e que não se cumulam com a resolução do contrato pretendida, tinge-se, desde logo, esta estipulação de invalidade à luz do princípio da proporcionalidade que se encontra consagrado, designadamente, no artigo 19.º alínea c) do Decreto-lei 446/85, de 25 de outubro, preceito que aqui visa ser densificado.

17. O locador não pode pretender resolver o contrato e, simultaneamente, receber valores que apenas teria recebido se o contrato fosse pontualmente cumprido, como é o caso das rendas vincendas.

18. Contudo, num outro sentido, emerge jurisprudência que tem aceitado a validade da demanda da resolução do contrato de locação financeira conjuntamente com uma indemnização calculada em função das rendas vincendas e do valor residual. Considera-se que uma indemnização nestes moldes visa ressarcir danos que não são de alguma forma cobertos pelos demais efeitos da resolução, na medida em que os contratos de locação financeira acarretam elevados riscos para o locador financeiro, inerentes ao elevado investimento feito, ao desgaste e desvalorização dos bens que sejam recuperados por força da extinção antecipada do contrato e à impossibilidade de obter os lucros que o cumprimento do contrato produziria, não podendo asseverar-se que os danos sofridos em consequência da resolução são ressarcidos pela restituição do bem locado.

19. Como se influi do que acabamos de expor, a (in)validade das cláusulas que consagram esta solução não é uma questão pacífica entre a doutrina e a jurisprudência, pelo que é uma problemática que carece de uma densificação e estreitamento que só a pronúncia do Supremo tribunal de justiça poderá lograr.

20. Decorrem assim questões que, por serem controvertidas e não encontrarem na jurisprudência e na doutrina uma solução imediata e consensual, importam à melhor compreensão do sistema jurídico, o que apenas se logrará mediante o douto pronunciamento do Supremo Tribunal de Justiça.

1. Devendo, nessa conformidade e com tal fundamento, ser admitida a presente Revista Excecional, o que expressamente se requer para todos os devidos efeitos legais.

Mesmo que assim não se entenda, ad cautelam,

B. DO RELEVANTE INTERESSE SOCIAL:

22. Dando-se por integralmente reproduzido tudo quanto acima se expôs, mutatis mutandis se conclui pela relevância social os assuntos sub judice, assim se preenchendo a previsão do art. 672.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.

23. Os interesses em discussão nos presentes autos, ao contenderem com a delimitação da fronteira entre as faculdades das partes em matérias contratuais, ultrapassam em muito os limites do caso julgado. Efetivamente, a vulgarização de cláusulas penais, exige naturaliter uma melhor aclaração dos seus contornos, permitindo-se uma estabilização das expetativas dos contratantes e a promoção da paz jurídica num domínio tão passível de conflituosidade.

24. Os interesses no caso em análise prendem-se com a delimitação da fronteira entre as faculdades das partes em matérias contratuais e o respetivo poder negocial, pelo que ultrapassam em larga medida os limites subjetivos do caso julgado.

25. Como é sobejamente sabido, os contratos de adesão e as cláusulas contratuais gerais são ferramentas geradoras de grandes desequilíbrios nas relações contratuais, que se pretendem, idealmente, harmoniosas e paritárias, já que estes instrumentos cerceiam e limitam brutalmente o poder negocial de um dos lados da relação, que logo à partida é colocada numa posição de sujeição, frequentemente por necessidade, e não por vontade.

26. De facto, uma das partes encontra-se investida de todo o poder normativo, de fixação das condições contratuais, ao passo que a outra está adstrita às estipulações impostas, sem qualquer prerrogativa de influenciar a determinação do conteúdo contratual.

27. Este desnível, que se se verifica, como se disse, imediatamente na génese da relação contratual, deverá ser temperado, nomeadamente, pelos princípios da boa-fé e da proporcionalidade.

28. Uma das ferramentas mais relevantes de que se pode munir a parte mais débil e vulnerável desta relação, para garantir a sua proteção, é o Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de outubro, que consagra, entre outros, um elenco de cláusulas absoluta e relativamente proibidas de serem integradas em contratos deste tipo.

29. Importa em especial observar o disposto no artigo 19.º alínea c) do referido diploma que dispõe que: “São proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que: consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir”.

30. Este preceito utiliza um conceito que carece de concretização doutrinal e jurisprudencial em cada momento histórico e social: a proporcionalidade. Tem sido esse, defacto, o papel da doutrina e da jurisprudência ao longo do tempo. Não é, portanto, um preceito com um conteúdo e significado estanques.

31. Durante muito tempo, foi validamente aceite, a título de exemplo, que, a resolução do contrato de locação financeira por incumprimento por parte do locatário, conferia ao locador uma indemnização equivalente à totalidade das rendas vincendas. Atualmente, tal disposição não é admissível, por ser perspetivada (e bem) como manifestamente desproporcional.

32. Desta factualidade se intui que a concretização da conceção de proporcionalidade está em constante mutação e, por isso, as perceções do que é ou não proporcional também.

33. Não nos podemos agarrar afincadamente ao que em certo momento foi tido por justo e proporcional, o que certamente seria um atropelo ao dinamismo social que o Direito pretende servir. É missão primeira da jurisprudência e da doutrina continuarem a investir na densificação na densificação destas conceções cuja liquidez se deixa verter pela mudança do tempo e das vontades.

34. Ademais, o recurso e a utilização de contratos de adesão e de cláusulas contratuais gerais têm-se difundido cada vez mais, quer pela facilitação do comércio jurídico que permite, quer pela economia de custos e esforços que possibilita, entre outros vantagens que se poderiam aqui enunciar.

35. Não se vislumbra qualquer dúvida de que esta tendência tem pontos positivos, mas tem também um lado negro, que deve ser iluminado através de uma cuidada apreciação e delimitação dos contornos em que deve ser consentida, a fim de prevenir distorções intoleráveis pelo sentimento ético-jurídico dominante.

36. Em concreto, cláusulas que fixam esta indemnização na soma de 20% das rendas vincendas com o valor residual têm-se tornado cada vez mais comuns e generalizadas, como supramencionado, pelo que a apreciação da sua validade extravasará certamente a fronteira do presente caso e servirá de bitola na apreciação futura de casos semelhantes.

37. É, portanto, evidentemente uma problemática de elevada relevância jurídica e, sobretudo social, cuja aquilatação é absolutamente essencial para uma melhor aplicação do direito, e da noção de Direito e justiça que em cada momento obtém chancela da comunidade que esse Direito pretende organizar.

38. É essencial que esta problemática ganhe contornos mais definidos, visto que a indefinição e a vagueza acentuam a discrepância numa relação contratual que, apesar de tudo, se quer controlada para salvaguarda do reduto mínimo da autonomia contratual, na sua vertente de liberdade de estipulação (artigo 405.º do Código Civil).

39. É aqui que se entrelaçam os pressupostos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º. Apenas uma correta concretização jurídica consente uma sã aplicação social.

40. Em suma, para além da salvaguarda da boa aplicação do direito, o recurso de revista excecional vem proteger a segurança jurídica e a estabilidade social, na medida em que se pretende assegurar uma maior confiança dos indivíduos nas decisões judiciais, não só por zelar por uma melhor aplicação do direito (alínea a)), por proteger os interesses de relevância social (alínea b)), mas também porque é fortemente vocacionado para uniformizar jurisprudência (alínea c)).

E em face de tudo o que vem sendo exposto,

41. o presente caso obtém consagração de todos os pressupostos de que depende a admissibilidade da Revista excecional.

Por fim, mesmo que assim não se entenda:

C. DA CONTRADIÇÃO DE JULGADOS:

42. Embora bastasse o acima exposto para legitimar a presente via recursória, refira-se ainda, por estrito dever de patrocínio, que se verifica adicionalmente a previsão da al. c) do n.º 1 do art. 672.º do Código de Processo Civil.

43. Conforme tem sido o entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça, a contradição de julgados prevista no art. 671.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, exige três requisitos: (iv) identidade da questão de direito sobre que incidiram os acórdãos em confronto, a qual tem pressuposta a identidade dos respetivos pressupostos de facto; (v) oposição emergente de decisões expressas e não apenas implícitas; e (vi) oposição com reflexos no sentido da decisão tomada (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.02.2017, proc. n.º 128081/11.8YIPRT.L1.S1, in www.dgsi.pt).

NOS PRESENTES AUTOS,

44. considerou o Tribunal a quo, conforme sumariado, que “Nos contratos de locação financeira, a cláusula penal que estipula o pagamento de uma quantia correspondente a 20% das rendas vincendas à data da resolução do contrato acrescida do valor residual não é desproporcionada face ao quadro objectivo dos interesses económicos envolvidos neste tipo de contrato de locação financeira de veículos pesados, destinados a serem usados na actividade rodoviária da sociedade locatária.”

45. O Acórdão a quo permite, destarte, este tipo de cláusulas.

TODAVIA,

46. veja-se o que doutamente asseverou o Tribunal da Relação do Porto a 02-04-2002:

“O uso dos equipamentos locados, mesmo por prazo diminuto, como aliás acontece neste caso, faz logo deflagrar o pagamento de todas as rendas vencidas e vincendas e respectivos juros, o que exorbita, desmedidamente, o preço de tais equipamentos e quaisquer possíveis danos decorrentes do incumprimento, PARA NÃO FALAR DA INJUSTIFICADA E ABERRANTE EXIGÊNCIA DE JUROS DAS RENDAS VINCENDAS.

E não se diga, em contrário, que a validade da cláusula em apreço sempre se justificaria tendo em consideração o risco assumido pela locadora, derivada do facto de ter que aceitar o bem locado se o locatário, decorrido o prazo do contrato, o não adquirir, como produtos em valor ou de reduzido valor comercial, mercê do desgaste nele verificado em consequência do uso prolongado (Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Março de 1993, in Colectânea - Acordãos do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo II, página 10 e seguintes).

É que esse risco está sempre incluído no valor das rendas e não constitui um elemento a valorar autonomamente (cfr. Maria Teresa Veiga de Faria, Leasing e Locação Financeira, in Cadernos de Ciências e Técnica Fiscal, página 480; Acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de Junho de 1992, Tomo III, página 178 e seguintes).”

(…)

“interessa agora realçar que se a lei elege como critério para a determinação da excessividade da pena a sua desproporção em face dos danos a ressarcir(artº19, c) do D.L. 446/85) o que tem como subjacente a noção de que pretende medir pelo valor do dano o montante da pena, então, perante isto e tendo em conta as demais premissas postas, forçoso é considerar que tal desproporção se verifica neste caso, de modo particularmente CHOCANTE, inculcando a ideia de que a cláusula em apreço tem aqui uma função meramente coercitiva e não indemnizatória - que é obviamente a pensada naquele preceito - sendo, portanto, nula de acordo com as disposições combinadas do artigo enfocado e do preceituado no artº12 do mesmo diploma.

47. O Tribunal da Relação do Porto, na decisão transcrita que se opõe à dos presentes autos, não teve dúvidas em considerar uma Cláusula desta natureza como aberrante! CONTUDO, aquilo que no Acórdão referido foi considerada como uma cláusula ABERRANTE, foi nos presentes autos tida como… NORMAL.

48. A decisão tomada encontra-se em CLARA E INCONCILIÁVEL CONTRADIÇÃO com o julgado pelo Tribunal da Relação do Porto no seu Acórdão de 02-04-2002, proc. n.º 0220160, relatado por Fernando Beça in www.dgsi.pt, que ora serve como Acórdão-fundamento, e em cujo sumário se referiu:

“A cláusula do contrato de locação financeira segundo a qual em caso de resolução do contrato tem o locador o direito de exigir o valor do capital financeiro em dívida é nula.”

49. Tal Acórdão – do qual, em cumprimento do ónus do art. 672.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil, se junta cópia – já transitou em julgado, não sendo assim suscetível de impugnação ordinária, estabilizando-se na ordem jurídica.

50. Entre o Acórdão a quo e o Acórdão-fundamento existe uma clara, frontal, explícita e incomportável contradição de julgados, a qual clama pela intervenção do Supremo Tribunal de Justiça com o fito de uniformizar a jurisprudência.

51. Em ambos se verifica, mutatis mutandis, a mesma identidade fática, relacionada com a cláusula em questão.

52. A frontal oposição de julgados abre assim porta à presente via recursória, legitimando a Revista Excecional ao abrigo do art. 672.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil.

Para além desse,

53. existem ainda outros Acórdãos já transitados em julgado em frontal oposição com o Acórdão recorrido. Ora veja-se:

1 - Tribunal da Relação de Lisboa 19-05-1992 Processo n.º 0051241

IV - A cláusula contratual que, dispondo sobre a resolução por falta de pagamento da renda, concede ao locador o direito a 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual tem natureza de cláusula penal.

V - Tal cláusula, que reveste a natureza de cláusula contratual geral, na medida em que não visa um encargo indemnizatório, sendo apenas coercitiva, é nula.

(…)

“O n.º 21 das Condições Gerais do contrato em apreço não se limita a facultar ao locador, em caso de resolução com fundamento no incumprimento definitivo por parte do locatário, o recebimento das rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros, e, ainda, a manter as rendas vencidas e pagas e, bem assim, a determinar a restituição imediata do equipamento locado.

Vai mais longe: concede também ao locador o direito a um montante indemnizatório igual a 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual, montante esse que, no caso sub judice atingiria 1477231 escudos e que a Autora, ora apelante, igualmente reclama, acrescido de juros, desde a data da resolução do contrato (29/VI/90), calculados pelo modo já atrás indicado.

Não se duvida que esta cláusula assume a natureza de uma verdadeira cláusula penal (cfr. artigo 810.º do Código Civil).

Todavia, face à severidade das demais consequências decorrentes da resolução do contrato de locação financeira, por incumprimento do locatário, há pouco descritas, não se alcança que tal cláusula tenha aqui qualquer finalidade indemnizatória.

De resto, não se mostra, nem a Autora diligenciou sequer nesse sentido que algum prejuízo, depois de viabilizadas as demais consequências decorrentes da resolução, ficasse ainda a descoberto.

Neste contexto, e uma vez que, dentro deste tipo de contrato, tal condição reveste a fisionomia duma verdadeira cláusula contratual geral, para os fins do Decreto-Lei n. 446/85 de 25 de Outubro (cfr. sup. art. 1), forçoso é concluir que, não visando, como vimos um encargo indemnizatório, a sua função meramente coercitiva e, daí, que se deva considerá-la como ferida de nulidade, nos termos das disposições combinadas dos artigos 12 e 19 alínea c) daquele mesmo diploma (cfr. Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pag. 592 e segs. e ainda 1626, a pag. 726 - onde se dá conta de várias tentativas ensaiadas pela doutrina francesa, sem apoio normativo expresso, em ordem a combater o abuso e flagrante injustiça a que conduzem cláusulas contratuais idênticas à aqui enfocada).”

2 - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-02-1997 no Processo n.º 0009732:

É nula, por violação dos arts. 12 e 19 al. c) do Decreto-Lei 446/85 de 25/10, a cláusula de um contrato de locação financeira que estabeleça o pagamento de uma indemnização de 20% da soma do valor das rendas vincendas com o valor residual e respectivos juros moratórios, para o caso de incumprimento das rendas por parte do locatário.

3- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-10-1993 proferido no âmbito do Processo n.º 084002:

É nula a cláusula de locação financeira que estabelece, para o caso de incumprimento do contrato por falta de pagamento de rendas pelo locatário, o pagamento de uma indemnização consistente na soma de 20% das rendas vincendas com o valor residual dos equipamentos locados e respectivos juros moratórios, face ao disposto nos artigos 12, 19 alínea c e 21 alínea f do Decreto-Lei 446/85, de 25/10.

4 - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8 de novembro de 2011, proferido no Processo: 103/08.3TMDA-A.C1:

“In casu, encontramo-nos perante um contrato designado por “Contrato locação financeira. Este contrato, na sua essência e atentos os documentos juntos aos autos define-se como aquele em que o locador, mediante um valor a título de renda mensal concede ao locatário, durante um período certo de tempo, uso e fruição de um equipamento (máquina) ficando o locatário, no final do contrato e mediante o pagamento do valor residual, com a opção de compra.

Releva determinantemente no caso sub Júdice a clausula 20ª das condições gerais, que prevê os direitos do locador em caso de resolução do contrato, com o seguinte teor: quando o locador resolver o contrato nos termos do artigo anterior, terá direito (…) ao pagamento, à data da resolução, das rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos respectivos juros de mora, encargos e portes, de acordo com o preçário em vigor na Banif Leasing, S.A., do montante do capital financeiro em dívida e de uma indemnização igual a 20% deste”.

Ou seja temos uma clausula padronizada no qual se preveem, mas com possibilidade de cumulação entre si, uma série de garantias e, acima de tudo, de indemnizações, eventualmente motivadas por diversos motivos: mora e incumprimento.

Mas, perante o teor de tal clausula, temos que o locador, no caso de cessação do contrato antes do terminus do seu respectivo prazo, acabaria por conseguir uma indemnização consideravelmente superior à contrapartida que retiraria do seu normal cumprimento.

O que é tanto mais de atentar quanto é certo que o contrato cessa por sua vontade e iniciativa, e porque, como é consabido, no caso de resolução, esta apenas concede direito pelo ressarcimento do dano negativo - ie. aquele que não se teria se não fosse a realização do contrato – e não já pelo dano positivo correspondente ao benefício que poderia ser obtido com o seu cumprimento.

É evidente que toda esta plêiade de vinculações por parte do locatário – e não obstante sendo de conceder a existência de alguns riscos neste tipo de negócio por parte do locador, aos quais, muitas vezes, ele não obvia e até os assume mais ou menos conscientemente em virtude da sua vontade de querer fazer negócio – se revela demasiada e intoleravelmente pesada e onerosa para o mesmo.

No âmbito das quais sobressai, com grande relevância, a indemnização de 20% sobre o capital financeiro em dívida à data da resolução.

Valor este que - maxime se se considerara sua cumulação com outras garantias e direitos conferidas ao locador previstas nas restantes clausulas - se apresenta desproporcionado aos danos a ressarcir, visto que, repete-se, por via de regra, proporcionará ao locador maior proveito do que resultaria do cumprimento do contrato, violando nitidamente o referido equilíbrio contratual de interesses de ambas as partes e atribuindo ao contrato um cariz de negócio leonino – cfr. Acs. do STJ de 28-05-2002 e de 05-11-2002, dgsi.pt, ps. 02B274 e 02A3025.

A cláusula em causa subsume-se, pois, na previsão do citado segmento normativo – al. c) do artº 19º.

E mesmo que assim não fosse ou não se entenda - na consideração de que o mesmo apenas se reporta às clausulas penais hoc sensu -sempre seria de chamar à colação, por verificação dos seus pressupostos fácticos, os princípios da boa fé: artigo 762º, nº 2 do CC, do abuso do direito: artigo 334º nos termos supra explanados, quer a figura dos negócios usurários.

O que, tudo, poderia levar à declaração de nulidade ou anulabilidade da dita clausula, com os mesmos efeitos da posição que supra se expendeu no âmbito do artº 19º al.c) do RCCG – cfr. Ac. do STJ de 21-01-93 , dgsi.pt, p. 084138.

Importa, porém, delimitar ou reduzir o âmbito da nulidade de tal clausula.

O qual se deve restringir à parte que, inequivocamente, ultrapassa os benefício oriundos para o proponente/recorrente do normal cumprimento do contrato, qual seja, a indemnização de 20% sobre as rendas vincendas.”

54. Com efeito, os Acórdãos referidos, cujos excertos transcritos deixam antever, estão em evidente contradição com o douto Acórdão de que se recorre, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto.

Vejamos:

55. Primeiramente, é desde logo patente a identidade da questão de direito, a qual tem pressuposta a identidade dos respetivos pressupostos de facto. A questão de direito é, in casu, a (in)validade das cláusulas contratuais gerais que preveem uma indemnização, por incumprimento do contrato, correspondente ao pagamento de 20% das rendas vincendas à data da resolução bem como os valores residuais.

56. Por sua vez, também se descortina uma semelhança no que respeita aos pressupostos de facto em que a questão de direito assenta. Sublinha-se, nomeadamente, a prévia celebração de um contrato de adesão, com recurso a cláusulas contratuais gerais; em concreto, um contrato de locação financeira; um alegado posterior incumprimento no pagamento das rendas por parte do locatário; que desencadeia o direito de resolução do locador, englobando este certos valores cuja proporcionalidade se discute.

57. A contradição de julgados carece ainda que as questões em análise pelos Acórdãos em confronto se situem no mesmo campo normativo, requisito que de resto se identifica no caso sub judice com facilidade, na medida em que a norma cujo teor se discute e da qual partem as considerações sobre a validade ou invalidade da cláusula contratual é o artigo 19.º alínea c) do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro.

58. No que tange à oposição emergente de decisões expressas, note-se que enquanto o douto Acórdão a quo pugna pela proporcionalidade e não excessividade da cláusula contratual em apreço, os Acórdãos aqui reproduzidos sublinham a nulidade por desproporcionalidade de tal estipulação.

59. Efetivamente, entendeu o Tribunal da Relação do Porto no presente caso, que “Nos contratos de locação financeira, a cláusula penal que estipula o pagamento de uma quantia correspondente a 20% das rendas vincendas à data da resolução do contrato acrescida do valor residual não é desproporcionada face ao quadro objectivo dos interesses económicos envolvidos neste tipo de contrato de locação financeira de veículos pesados, destinados a serem usados na actividade rodoviária da sociedade locatária.”

60. Conclui-se, destarte, que o Acórdão de que se recorre é permissivo no que respeita a cláusulas com este conteúdo. Por sua vez, os Acórdãos citados, pelo contrário, negam a validade e rejeitam tais formulações contratuais.

61. Por fim, atente-se, quanto à oposição com reflexos no sentido da decisão tomada, que as correntes seguidas, influem diretamente no desaguar das decisões, que são manifestamente díspares.

Atento tudo quanto acima se expôs, a entender-se haver dupla conforme, deve a presente Revista Excecional ser admitida, conhecendo-se do mérito dos seus fundamentos.

III – OMISSÃO DE PRONÚNCIA

62. A decisão em crise limitou-se a conhecer das Conclusões do Recurso de Apelação até ao artigo 62.º, ignorando olimpicamente os artigos 63.º e seguintes.

63. Em bom rigor, o Tribunal a quo não conheceu dos temas e artigos 63º a 93º das Conclusões do Recurso de Apelação, designadamente e entre outras, as questões relacionadas com i) abuso de direito, ii) fraude à lei, iii) exclusão de cláusulas do contrato, iv) culpa do lesado, e v) inconstitucionalidade.

Por conseguinte,

64. deve o Acórdão ser anulado por omissão de pronúncia, o que desde já se requer para todos os efeitos legais.

Ad cautelam, sempre se atente no seguinte:

DO DIREITO

B - DA NULIDADE DA CLÁUSULA REFERENTE AO PAGAMENTO DE 20 % DAS RENDAS VINCENDAS À DATA DA RESOLUÇÃO (CLÁUSULA 10 N.º 4 C DAS CONDIÇÕES GERAIS

OU

DO ABUSO DA CLÁUSULA REFERENTE AO PAGAMENTO DE 20 % DAS RENDAS VINCENDAS À DATA DA RESOLUÇÃO (CLÁUSULA 10 N.º 4 C DAS CONDIÇÕES GERAIS

65. Muito mal andou o Tribunal a quo ao NÃO declarar a nulidade da Cláusula dos Contratos – ou que não era Abusiva - que aponta para:

v) o pagamento de 20 % das rendas vincendas à data da resolução (conforme cláusula 10.º n.º 4 c) das condições gerais;

vi) o pagamento das rendas vincendas à data de resolução;

vii) pagamento de valor residual (conforme cláusula 10 n.º 4 c) das condições gerais;

viii) a restituição do bem.

66. Interroga-se o seguinte: resolvendo o contrato de locação financeira por falta de pagamento das rendas, é lícito à locadora exigir, in casu, para além da restituição do equipamento locado, o pagamento das rendas vencidas e das rendas vincendas acrescidas dos respetivos juros e uma indemnização equivalente a 20% das rendas vincendas e ainda do valor residual?

67. Sem dúvida alguma que a ordem jurídica não poderá tolerar tal clausulado, crendo-se que ot Tribunal de primeira instância não atentou no sentido e alcance da tal norma no caso em concreto, limitando-se laconicamente a referir que a jurisprudência admite a cumulação de uma cláusula penal compulsória com a indemnização por juros de mora. Todavia, a questão importante não é essa.

Efetivamente,

741. a sobredita cláusula, de natureza evidentemente penal, é proibida, nula e abusiva por ser manifestamente desproporcionada aos danos a ressarcir.

75. Lida e relida a matéria assente, verifica-se que os Contratos foram resolvidos pela Recorrida com fundamento na falta de pagamento de rendas.

76. No caso sub judice não se trata – nesta parte – de aferir da legalidade das rendas vencidas e não pagas, mas sim a parte referente aos 20 % das rendas vincendas, bem como das respetivas rendas vincendas e do valor residual a acrescer às restantes.

77. Diga-se e repita-se: aborda-se, nesta medida, rendas vincendas, 20% das rendas vincendas e o valor residual a acrescer, pelo que uma faísca dubitativa irrompe desde logo:

Tem a Recorrida, locadora, direito a lançar mão das referidas Cláusulas?

Serão estas licitas? Não serão abusivas? Não serão nulas?

78. Veremos hic et nunc que as Cláusulas são geradores de graves desequilíbrios, acarretando soluções notoriamente injustas, estando perante Cláusulas não discutidas nem negociadas e Contratos de adesão, como até aponta o acervo fatual dado como provado – ponto 30 (referente às cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados).

79. Se num Contrato efetivamente negociado, o conteúdo deste beneficia da presunção de que corresponderá à vontade de ambas as partes, isso já não acontece, todavia, em Contratos de Adesão cujo conteúdo resulta, de facto, de uma vontade apenas dispondo esta, para o efeito, de todo um arsenal de técnicos e de meios para se impor à contraparte.

Face ao exposto,

80. e por se considerar insuficiente, para tal efeito, o recurso a certas “válvulas de segurança” do nosso sistema legislativo claramente hostis a cláusulas gerais dos contratos que se mostrem injustas e desleais, houve necessidade de lançar mão de um novo regimento que desse cabal satisfação aos fins pretendidos, tendo em conta a peculiaridade das cláusulas contratuais enfocadas (vide Almeida Costa e Menezes Cordeiro, in Cláusulas Contratuais Gerais - Preâmbulo) e esse regimento contém-se no D.L. nº446/85 de 25 de outubro.

ORA, DESCENDO AO CASO EM CONCRETO,

81. veja-se que, como doutamente asseverou o Tribunal da Relação do Porto:

“O uso dos equipamentos locados, mesmo por prazo diminuto, como aliás acontece neste caso, faz logo deflagrar o pagamento de todas as rendas vencidas e vincendas e respectivos juros, o que exorbita, desmedidamente, o preço de tais equipamentos e quaisquer possíveis danos decorrentes do incumprimento, PARA NÃO FALAR DA INJUSTIFICADA E ABERRANTE EXIGÊNCIA DE JUROS DAS RENDAS VINCENDAS.

E não se diga, em contrário, que a validade da cláusula em apreço sempre se justificaria tendo em consideração o risco assumido pela locadora, derivada do facto de ter que aceitar o bem locado se o locatário, decorrido o prazo do contrato, o não adquirir, como produtos em valor ou de reduzido valor comercial, mercê do desgaste nele verificado em consequência do uso prolongado (Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Março de 1993, in Colectânea - Acordãos do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo II, página 10 e seguintes).

É que esse risco está sempre incluído no valor das rendas e não constitui um elemento a valorar autonomamente (cfr. Maria Teresa Veiga de Faria, Leasing e Locação Financeira, in Cadernos de Ciências e Técnica Fiscal, página 480; Acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de Junho de 1992, Tomo III, página 178 e seguintes).”

(…)

“interessa agora realçar que se a lei elege como critério para a determinação da excessividade da pena a sua desproporção em face dos danos a ressarcir (artº 19, c) do D.L. 446/85) o que tem como subjacente a noção de que pretende medir pelo valor do dano o montante da pena, então, perante isto e tendo em conta as demais premissas postas, forçoso é considerar que tal desproporção se verifica neste caso, de forma particularmente CHOCANTE, inculcando a ideia de que a cláusula em apreço tem aqui uma função meramente coercitiva e não indemnizatória - que é obviamente a pensada naquele preceito - sendo, portanto, nula de acordo com as disposições combinadas do artigo enfocado e do preceituado no artº12 do mesmo diploma.”

82. O Tribunal da Relação do Porto, na decisão transcrita, não teve dúvidas em considerar uma Cláusula desta natureza como injustificada e aberrante! MAS aquilo que no Acórdão referido foi considerada como uma cláusula ABERRANTE, foi nos presentes autos tida como… NORMAL.

83. Recorrendo aos doutos ensinamentos de Pinto Monteiro, com a difusão do Contrato de Locação Financeira, tornou-se frequente, maxime em França, a inclusão de uma Cláusula em tudo idêntica à aqui tratada também vigorante para o caso da resolução do contrato por falta de pagamento de alguma mensalidade - cláusula que aquele distinto Autor não hesita em qualificar de “carácter draconiano” - tendo sido ensaiadas, desde logo, várias tentativas, ainda no âmbito do “Code”, a fim de combaterem o ABUSO E A FLAGRANTE INJUSTIÇA a que ela conduzia, umas vezes com base no abuso de direito ou na fraude à lei, e outras pondo em destaque a ideia de ser contrária à ordem pública.

84. Não vemos motivos para nos desviarmos do juízo adrede firmado pelo Tribunal da Relação do Porto e acima citado, sustentando que o que interessa aqui acentuar é o repúdio generalizado por uma cláusula como a sub judice, geradora de graves desequilíbrios e de soluções notoriamente injustas.

Destarte,

85. a cláusula em apreço, por conflituar com a norma imperativa enfocada, é nula na parte em que possibilita o pagamento das quantias referidas após a resolução do contrato, nos termos do artigo 280 n.º 1 do Código Civil.

86. Por todo o exposto, a Cláusula é nula e/ou abusiva, o que expressamente se invoca, devendo o Acórdão ser revogado.

87. Veja-se que não é único o entendimento do citado Acórdão do Tribunal da Relação. Ora veja-se:

Tribunal da Relação de Lisboa 19-05-1992 Processo n.º 0051241

IV - A cláusula contratual que, dispondo sobre a resolução por falta de pagamento da renda, concede ao locador o direito a 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual tem natureza de cláusula penal.

V - Tal cláusula, que reveste a natureza de cláusula contratual geral, na medida em que não visa um encargo indemnizatório, sendo apenas coercitiva, é nula.

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 27-02-1997 Processo n.º 0009732:

É nula, por violação dos arts. 12 e 19 al. c) do Decreto-Lei 446/85 de 25/10, a cláusula de um contrato de locação financeira que estabeleça o pagamento de uma indemnização de 20% da soma do valor das rendas vincendas com o valor residual e respectivos juros moratórios, para o caso de incumprimento das rendas por parte do locatário.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 28-10-1993 Processo n.º 084002:

É nula a cláusula de locação financeira que estabelece, para o caso de incumprimento do contrato por falta de pagamento de rendas pelo locatário, o pagamento de uma indemnização consistente na soma de 20% das rendas vincendas com o valor residual dos equipamentos locados e respectivos juros moratórios, face ao disposto nos artigos 12, 19 alínea c e 21 alínea f do Decreto-Lei 446/85, de 25/10.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 08.11.2011 Processo: 103/08.3TMDA-A.C1:

“In casu, encontramo-nos perante um contrato designado por “Contrato locação financeira

Este contrato, na sua essência e atentos os documentos juntos aos autos define-se como aquele em que o locador, mediante um valor a título de renda mensal concede ao locatário, durante um período certo de tempo, uso e fruição de um equipamento (máquina) ficando o locatário, no final do contrato e mediante o pagamento do valor residual, com a opção de compra.

Releva determinantemente no caso sub Júdice a clausula 20ª das condições gerais, que prevê os direitos do locador em caso de resolução do contrato, com o seguinte teor: quando o locador resolver o contrato nos termos do artigo anterior, terá direito (…) ao pagamento, à data da resolução, das rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos respectivos juros de mora, encargos e portes, de acordo com o preçário em vigor na Banif Leasing, S.A., do montante do capital financeiro em dívida e de uma indemnização igual a 20% deste”.

Ou seja temos uma clausula padronizada no qual se preveem, mas com possibilidade de cumulação entre si, uma série de garantias e, acima de tudo, de indemnizações, eventualmente motivadas por diversos motivos: mora e incumprimento.

Mas, perante o teor de tal clausula, temos que o locador, no caso de cessação do contrato antes do terminus do seu respectivo prazo, acabaria por conseguir uma indemnização consideravelmente superior à contrapartida que retiraria do seu normal cumprimento.

O que é tanto mais de atentar quanto é certo que o contrato cessa por sua vontade e iniciativa, e porque, como é consabido, no caso de resolução, esta apenas concede direito pelo ressarcimento do dano negativo - ie. aquele que não se teria se não fosse a realização do contrato – e não já pelo dano positivo correspondente ao benefício que poderia ser obtido com o seu cumprimento.

É evidente que toda esta plêiade de vinculações por parte do locatário – e não obstante sendo de conceder a existência de alguns riscos neste tipo de negócio por parte do locador, aos quais, muitas vezes, ele não obvia e até os assume mais ou menos conscientemente em virtude da sua vontade de querer fazer negócio – se revela demasiada e intoleravelmente pesada e onerosa para o mesmo.

No âmbito das quais sobressai, com grande relevância, a indemnização de 20% sobre o capital financeiro em dívida à data da resolução.

Valor este que - maxime se se considerara sua cumulação com outras garantias e direitos conferidas ao locador previstas nas restantes clausulas - se apresenta desproporcionado aos danos a ressarcir, visto que, repete-se, por via de regra, proporcionará ao locador maior proveito do que resultaria do cumprimento do contrato, violando nitidamente o referido equilíbrio contratual de interesses de ambas as partes e atribuindo ao contrato um cariz de negócio leonino – cfr. Acs. do STJ de 28-05-2002 e de 05-11-2002, dgsi.pt, ps. 02B274 e 02A3025.

A cláusula em causa subsume-se, pois, na previsão do citado segmento normativo – al. c) do artº 19º.

E mesmo que assim não fosse ou não se entenda - na consideração de que o mesmo apenas se reporta às clausulas penais hoc sensu -sempre seria de chamar à colação, por verificação dos seus pressupostos fácticos, os princípios da boa fé: artigo 762º, nº 2 do CC, do abuso do direito: artigo 334º nos termos supra explanados, quer a figura dos negócios usurários.

O que, tudo, poderia levar à declaração de nulidade ou anulabilidade da dita clausula, com os mesmos efeitos da posição que supra se expendeu no âmbito do artº 19º al.c) do RCCG – cfr. Ac. do STJ de 21-01-93 , dgsi.pt, p. 084138.

Importa, porém, delimitar ou reduzir o âmbito da nulidade de tal clausula.

O qual se deve restringir à parte que, inequivocamente, ultrapassa os benefícios oriundos para o proponente/recorrente do normal cumprimento do contrato, qual seja, a indemnização de 20% sobre as rendas vincendas.”

Repare-se ainda que,

88. decorre uma desproporção que é evidente e flagrante entre o montante da pena convencionada e o montante dos danos a reparar, não se tratando de uma mera superioridade ou uma pequena desproporção face aos danos pretensamente existentes ou a existir.

89. Trata-se, in casu, de permitir, com uma resolução (quase) logo no início do contrato, que a Recorrida Cofidis se pague do valor até ao final da data prevista no contrato que se perspetivava longo, acrescido de 20%, apesar da sua cessação antecipada e, naturaliter, de não realizar mais nenhuma contraprestação.

Ao mesmo tempo,

90. para além disso, vê-se paga do valor residual, apesar de ficar na posse e na propriedade do bem.

91. A cláusula que confere ao locador o direito de ser ressarcido desta forma é cristalinamente desproporcional aos danos a ressarcir, principalmente neste caso em concreto.

92. A cláusula em causa é nula e proibida nos termos do artigo 19º al. c) do Dl 446/85, porquanto são proibidas clausulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir.

93. Considerar o contrário é admitir como válida uma penalização desproporcionada aos danos a ressarcir e a uma alteração das regras respeitantes à distribuição do risco.

94. Na jurisprudência, destaque ainda para os arestos transcritos supra, que merecem o nosso acolhimento: Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 19-05-1992 - Processo n.º 0051241; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09-07-2015- Processo n.º 3175/11.0TBSTR-A.E1; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-02-1997 - Processo n.º 0009732; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de28-10-1993 - Processo n.º084002; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-07-1994 - Processo n.º 085274.

Ante tudo isto,

95. deve o Acórdão ser revogado.

Ad cautelam, se isso não proceder, o que não se concede,

96. mutatis mutandis, pelos mesmíssimos motivos, sempre se diga que tal corresponderia a um abuso de direito.

97. As cláusulas contratuais indiciadoras e até reveladoras de um certo desequilíbrio material entre as vantagens auferidas, graças ao contrato, pelas partes, são contrárias à boa-fé. Dúvidas não restam de que a Recorrida agiu abusivamente ao inserir tais cláusulas nos Contratos, em pleno abuso de direito, com o único fito de prejudicar a Recorrente, pelo que deve o Acórdão ser revogado.

Se assim não se entender, o que não se concede,

98. sempre o comportamento da Recorrida corresponderia a fraude à lei, o que aqui expressamente se invoca.

99. Como flui da jurisprudência, a fraude à lei traduz a ideia de um comportamento que, mantendo a aparência de conformidade com a lei, obtém algo que se entende ser proibido por ela e a verdade é que a utilização da Cláusula ao permitir o pagamento das quantias em causa, ignorando a excessividade e o desequilíbrio contratual, não pode ser tolerado.

100. Ao permitir esse comportamento estaremos a permitir uma aceção formal das normas jurídicas contratuais aplicáveis, contrária ao substrato fáctico ocorrido, maxime de poucos meses de Contrato, fazendo-se a Recorrida pagar não só como se o contrato tivesse chegado ao seu termo, como ficando com o bem, e ainda recebendo uma % de indemnização referente a rendas vincendas, pelo que tudo revisto e ponderado, deve também por essa razão ser o Acórdão revogado.

101. padece de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e confiança, consagrados nos arts. 2.º, 18.º n.º 2, 20.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação de que as cláusulas sob sindicância não são nulas ou abusivas, interpretação, aplicação e violações essas que ofendem, de forma grave, o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado, previsto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que hic et nunc se invoca para todos os efeitos legais.

102. Cumulando-se as rendas vincendas após a resolução com a indemnização de 20 % do valor das mesmas e com a restituição do bem, a Recorrida enriquecerá de forma ilegítima, ficando na posse, enquanto proprietária, de um bem que vale mais do que as prestações em falta e ainda é indemnizada pelas rendas vincendas e juros, bem como, pelo valor residual, bem como pelos já referidos 20%, pelo que se trada de um enorme desequilíbrio que o texto Constitucional não pode tolerar.

103. Estamos em presença de um contrato de locação e se o contrato chegasse ao seu termo sem incumprimentos ou mora, a locadora teria recebido do locatário a quantia que resulta do Contrato, correspondente ao valor das rendas durante os meses previstos no contrato acrescido do valor residual do bem, mas no fim do contrato perdia a sua propriedade.

104. Significa isto que o rendimento obtido (que não o lucro) pela Recorrida se o contrato chegasse ao seu termo seria bastante inferior ao valor que as cláusulas em causa lhe conferem, para além de que ao FICAR com a propriedade do bem, pode vendê-lo ou alugá-lo e assim realizar novos rendimentos, podendo ainda ficar na sua posse bem mais cedo do que seria suposto, duplicando os rendimentos.

105. A violação do princípio da proporcionalidade está, dessa forma, cabalmente demonstrada, por ausência de remédio para sanar o desequilíbrio contratual.

Se também assim não se entender, o que não se concede,

106. a interpretação de que as cláusulas sob sindicância não são nulas ou abusivas, violam os artigos 60.º e 99.º e) da Constituição da República Portuguesa.

107. Admitir tais cláusulas viola as normas constitucionais supra apontadas, por não proteger a parte mais fraca, leiga, profana e menos preparada tecnicamente da relação contratual que aqui é a Recorrente, pelo que a interpretação que supra se referiu coloca em causa a dignidade dos Consumidores.

Por fim,

108. enuncie-se que se algum dos argumentos supra não servir, de per si, para revogar o Acórdão proferido, pelo menos terá de ter a consequência de reduzir as cláusulas penais, o que à cautela se invoca.

D - DA EXCLUSÃO

109. Não se sufraga a solução eleita pela primeira instância e pelo Tribunal da Relação.

Cotejada a matéria de facto dada como provada, verifica-se o seguinte no ponto 30.

“30 – O teor das cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados não foram previamente discutidas e negociadas entre Autora e Ré”

110. Perante a ausência de discussão e negociação das cláusulas, devem estas ser excluídas do Contrato, o que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais, com todas as consequências daí inerentes, devendo o Acórdão ser revogado.

E - DA CLÁUSULA 19 – Ponto 16 da matéria de facto dada como provada

111. O Tribunal a quo decidiu ainda pelo seguinte:

“- Finalmente a Autora vem pedir as quantias de 34.239,52 € (contrato .....69), 20.435,07 € (contrato .....24) e 23.484,38 € (contrato .....86) a título de cláusula penal acrescida dos respectivos juros à taxa contratual, valor ao qual acrescerão os montantes devidos até à efectiva entrega do veículo locado

A invocada cláusula penal está prevista na cláusula 19º das condições gerais que confere ao locador, pelo incumprimento do dever do locatário de devolver a viatura, o direito a receber quantia igual à última renda, por cada mês ou fracção de mês que perdurar a falta de entrega. Através desta cláusula pretende-se compelir o locatário, face à resolução do contrato, a proceder à entrega do veículo.

De facto, se o locatário continuar a ter em seu poder o veículo e a usufruir do mesmo, terá de compensar o locador por esse uso com o consequente desapossamento do locador. Deverá, pois, continuar a pagar valor equivalente à renda, não já a título de renda (pois que o contrato se encontra resolvido) mas a titulo de compensação pelo uso.

A esse valor acrescerão os juros de mora vencidos apenas sobre montante de capital, à taxa anual nominal contratada acrescida de uma sobretaxa de 3%, nos termos já acima referidos para as rendas vencidas até à resolução do contrato.”

Ora.

112. releva para a presente decisão, a seguinte factualidade:

30 – O teor das cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados não foram previamente discutidas e negociadas entre Autora e Ré.

113. O que suportou a condenação da Ré corresponde à Cláusula 19.º, que resulta do ponto 17º da matéria provada, englobada – portanto – no ponto 30º em que se deu como provado que se trata de Cláusula que não foi discutida nem negociada entre Autora e Ré.

Efetivamente,

114. o teor dessa Cláusula não foi previamente discutido nem negociado. A Cláusula em apreço é proibida nos termos do artigo 19º al. c), do DL. nº 446/85, o que aqui expressamente se invoca, sendo desproporcionada aos danos a ressarcir.

Na verdade,

115. é também esse o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa, como constitui exemplo o Acórdão de 16-01-2007, ao estatuir que:

“VI – A esta luz, a cláusula dum contrato de locação financeira que estipula que, em caso de resolução do contrato, se o locatário não proceder imediatamente à restituição dos equipamentos locados, fica obrigado a pagar ao locador, a título de pena convencional, por cada mês ou fracção em mora, uma quantia igual à da última renda, é proibida, nos termos do cit. art. 19º, al. c), do DL. nº 446/85, por estipular uma pena superior aos danos que, provavelmente, em face das circunstâncias típicas e segundo o normal decurso das coisas, o locador financeiro predisponente venha a sofrer, por virtude da não restituição atempada dos equipamentos locados”.

Remetidos que somos para a seguinte conclusão:

116. também nessa parte deve o Acórdão ser revogado, o que se requer

Ad cautelam, atente-se ainda no seguinte:

117. Tal cláusula é também desproporcional atendendo que, como é sobejamente sabido, tem a Recorrida ao seu dispor a Providência Cautelar de Entrega Judicial de Bens Objeto de Locação Financeira (art. 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de junho).

118. Ao permitir-se este tipo de cláusulas, permite-se o abuso de direito e até fraude à lei de perpetuar incumprimentos e avolumar de valores em dívida quando, com uma Providência Cautelar especificamente legislada e fundada para a sua situação, poderia obter a restituição dos bens/veículos. E mais: através da Providência Cautelar de entrega judicial de bens objeto de locação financeira, a Locadora sempre poderia reaver os bens (praticamente) imediatamente, podendo logo dispor livremente deles.

119. Se não o fez, deixando perpetuar o incumprimento, isto constitui abuso de direito e /ou até fraude à lei, ou até culpa do lesado, o que aqui cautelarmente se invoca.

Como corolário do exposto,

120. resulta evidente que o Acórdão proferido violou, entre outros, os artigos 280.º e 334.º do Código Civil, artigos 607.º e 205.º do Código de Processo Civil, artigos 19.º c) e 12.º do DL 446/85, bem como os artigos 18.º, 60.º e 99 e) da Constituição da República Portuguesa”.

7. O Exmo. Senhor Desembargador proferiu despacho com o seguinte teor:

Ao abrigo do art. 672.º, n.º 3 do CPC. remeta os autos ao Supremo Tribunal de Justiça a fim de serem apreciados os pressupostos referidos no n.º 1 do citado preceito legal.

Notifique”.

*

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) se ocorreu nulidade por omissão de pronúncia;

2.ª) se a locadora pode valer-se das cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados e, em particular, da cláusula do artigo 10.º, n.º 4, al. c).


*


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - A Autora é uma sucursal de uma instituição de crédito francesa que tem por objecto social operações de financiamento por conta de terceiros, com excepção de operações de carácter puramente bancário, e a corretagem de seguros, bem como todas as operações directamente ou indirectamente ligadas às actividades acima definidas.

2 - No exercício da sua actividade comercial, a Autora celebrou com a sociedade “TRANSMORRO TRANSPORTES, UNIPESSOAL, LDA.”, cujo objecto é a actividade rodoviária, três contratos intitulados de locação financeira mobiliária com fiança (alterado pelo Tribunal da Relação).

3 - A 31-07-2018, foi celebrado um contrato com o n-º .....69 que teve por objecto um veículo da marca VOLVO, modelo FH, usado, com a matrícula ....

4 - Através desse contrato assumiu a Ré a obrigação de pagar ao Requerente 49 (quarenta e nove) rendas, mensais e sucessivas, sendo a primeira no valor de € 8.130,08 (Oito mil cento e trinta Euros e oito cêntimos) e as restantes no valor de € 879,74 (Oitocentos e setenta e nove Euros e setenta e quatro cêntimos), fixando-se o valor residual em € 900,00 (Novecentos Euros), valores aos quais acresce o IVA à taxa legal.

5 - Ficou estipulado que a taxa de juro aplicável ao contrato de locação a que vem de fazer referência era indexada à Euribor a 3 meses, sendo a Taxa Anual Nominal de 7,745% e a TAEG, à data da celebração do contrato, de 8,185%, sendo depois a TAN actualizada para 7,738%

6 - A 17-04-2017 foi celebrado um contrato com o n-º .....24 que teve por objecto um veículo da marca VOLVO, modelo FH 13 460, usado, com a matrícula ..-UJ-...

7 - Pelo contrato assumiu a Locatária, entre outras, a obrigação de pagar a Requerente 49 (quarenta e nove) rendas, mensais e sucessivas, sendo a primeira no valor de € 5.000,00 (Cinco mil Euros) e as restantes no valor de 1.075,73 (Mil e setenta e cinco Euros e setenta e três cêntimos), fixando-se o valor residual em € 1.000,00 (Mil Euros), valores aos quais acresce o IVA taxa legal.

8 - Ficou estipulado que a taxa de juro aplicável ao contrato de locação a que vem de fazer referência era indexada à Euribor a 3 meses, sendo a Taxa Anual Nominal de 7,747% e sendo a TAEG, à data da celebração do contrato, de 8,159%, mantendo-se essas condições inalteradas.

9 - A 29-09-2017, foi celebrado um contrato com o n-º .....86 que teve por objecto um veículo da marca VOLVO, modelo FH, usado, com a matrícula ....

10 - Pelo contrato assumiu a Locatária, entre outras, a obrigação de pagar ao Requerente 49 (quarenta e nove) rendas, mensais e sucessivas, sendo a primeira no valor de € 5.750,00 (Cinco mil e setecentos e cinquenta Euros) e as restantes no valor de € 1.322,50 (Mil e trezentos e vinte e dois Euros e cinquenta cêntimos), fixando-se o valor residual em € 1.150,00 (Mil cento e cinquenta Euros), valores aos quais acresce o IVA à taxa legal.

11 - Ficou estipulado que a taxa de juro aplicável ao contrato de locação a que vem de fazer referência era indexada à Euribor a 3 meses, sendo a Taxa Anual Nominal de 7,713% e a TAEG, à data da celebração do contrato, de 7,786%, o que se manteve inalterado.

12 - Para garantia do cumprimento de cada um dos três contratos, o Réu AA, na qualidade de fiador com renúncia ao benefício de excussão prévia, constituiu-se fiador e principal pagador de todas as obrigações pecuniárias que por força de cada um dos contratos viessem a resultar para a sociedade locatária.

13 - De acordo com o estipulado no art. 10.º n.º 1 das Condições Gerais do acordo, o contrato pode ser resolvido pela Locadora quando houver mora no pagamento de uma ou mais rendas.

14 - De acordo com o n.º 2 do mesmo art. 10º o incumprimento temporário torna-se definitivo se, após o envio de carta registada com aviso de recepção para o domicílio do Locatário, intimando-a ao cumprimento em prazo razoável das suas obrigações, prazo que desde já se fixa em oito dias, o Locatário não precludir o direito à resolução por parte do Locador, procedendo ao pagamento do montante em dívida, acrescido de 50% como indemnização.

15 - Acrescenta o n.º 4 que “Em qualquer dos casos referidos nos números anteriores o locatário fica obrigado a:

a) Restituir o equipamento/bem/serviço, suportando os riscos e custos inerentes à sua restituição (…)

b) Pagar o montante das rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos respectivos juros moratórios à taxa acordada e demais encargos

c) A pagar 20% do total das rendas vincendas, à data da resolução, acrescido do valor residual.

16 - Dispõe ainda a cláusula 13.º o seguinte:

“1 - Em caso de não pagamento pontual das rendas ou do valor residual ou ainda de quaisquer outras quantias devidas pelo locatário ao locador, independentemente do exercício dos direitos conferidos ao locador pelos artigos anteriores, serão devidos pelo locatário juros moratórios calculados à taxa de juro implícita à data das rendas constantes das “Condições Particulares”, acrescidas de uma sobretaxa de 3 pontos percentuais”.

17 - E dispõe a Cláusula 19.º o seguinte:

“No caso de o locatário não exercer o seu direito de aquisição e não devolver o equipamento/serviço no fim do prazo de locação, o locador terá direito a receber do locatário, a título de cláusula penal pelo incumprimento na devolução, e por cada mês ou fracção do mês por que a mesma perdura, quantia igual à ultima renda. O mesmo direito assistirá ao locador quando o equipamento/bem/serviço deva ser devolvido antes do termo do prazo de locação, nomeadamente no caso de o contrato ter sido resolvido e haja incumprimento nessa devolução, sendo esse direito acumulável, com os conferidos ao locador pelos artigos anteriores. Aos montantes desta cláusula penal acrescerão os juros à taxa convencionada contados a partir da data do vencimento respectivo, considerando-se como tal o dia do vencimento e a renda correspondente, caso o contrato se mantenha

18 - Relativamente ao contrato .....69, a Ré não pagou a totalidade da renda vencida em 25-09-2019, nem das que posteriormente se venceram, encontrando-se em débito 5,31 rendas sucessivas, em 02-10-2019.

19 - Relativamente ao contrato .....24, a Ré não pagou a totalidade das rendas vencidas em 25-08-2019 e 25-09-2019, nem das que posteriormente se venceram, encontrando-se em débito 5,30 rendas sucessivas, em 02-10-2019.

20 - Relativamente ao contrato .....86, a Ré não pagou a totalidade das rendas vencidas em 25/07/2019, 25-08-2019 e 25-09-2019, nem das que posteriormente se venceram, encontrando-se em débito 5,30 rendas sucessivas, em 02-10-2019.

21 - A Locadora remeteu aos Réus, para cada um dos contratos supra referidos, as respectivas cartas registadas com aviso de recepção, a 02 de Outubro de 2019, concedendo um prazo suplementar de 15 dias de calendário para regularização da situação de incumprimento, mediante o pagamento das ditas rendas em atraso, acrescidas dos respectivos juros.

22 - Advertindo expressamente que a consequência do não pagamento seria a resolução do contrato e, ainda, alertando para a obrigação de proceder à entrega imediata do veículo locado nas instalações da Locadora em consequência da resolução,

23 - Relativamente ao contrato .....69 foi a Ré interpelada para o pagamento de 3422,04 € de capital, 236,36, € de comissões de atraso, 107,28 € de juros de mora, 2,91 € de serviços e 2004,36 € de outros encargos num total de 5772,95 €, indicando-se como data de entrada em incumprimento 25 de maio de 2019.

24 - O valor das rendas vincendas eram, nessa data, de 28.196,59 €.

25 - Relativamente ao contrato .....24 foi a Ré interpelada para o pagamento de 4294,76 € de capital, 288,96 € de comissões de atraso, 131,31 € de juros de mora e 2336,70 € de outros encargos num total de 7051,73 €, indicando-se como data de entrada em incumprimento 25 de maio de 2019.

26 - O valor das rendas vincendas eram, nessa data, de 30.944,76 €.

27 - Relativamente ao contrato ......6 foi a Ré interpelada para o pagamento de 5167,26 € de capital, 344,88 € de comissões de atraso, 150,66 € de juros de mora e 2592,84 € de outros encargos num total de 8245,64 €, indicando-se como data de entrada em incumprimento 25 de maio de 2019.

28 - O valor das rendas vincendas eram, nessa data, de 28.389,74 €.

29 - Após as comunicações referidas nos pontos 19 e 20 dos factos provados a Ré pagou mais 17.500,00 € à Autora, não procedendo ao pagamento de qualquer outra quantia nem à entrega dos veículos locados.

30 - O teor das cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados não foram previamente discutidas e negociadas entre Autora e Ré, nem lidos e explicados (alterado pelo Tribunal da Relação).

31 - Os Réus declararam, nos referidos contratos, ter tomado conhecimento e aceite sem reservas as condições particulares e gerais estabelecidas por esses contratos (aditado pelo Tribunal da Relação).

O DIREITO

Breve nota sobre a admissibilidade do recurso por via normal

Cabe ao Relator a quem o processo é distribuído apreciar se alguma circunstância obsta ao seu conhecimento [cfr. artigo 652.º, al. b), do CPC].

Um dos impedimentos habituais à admissibilidade da revista é a ocorrência de dupla conforme, dispondo-se no artigo 671.º, n.º 3, do CPC que:

Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

Admitindo a hipótese de dupla conforme no presente caso, a recorrente pede que:

A entender-se haver dupla conforme, sempre deve a presente via recursória ser admitida como RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL”.

Com efeito, verifica-se que o Acórdão recorrido confirma na íntegra, sem voto de vencido, a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

Sucede, porém, que existe uma alteração da decisão sobre a matéria de facto que impede que se diga que não há fundamentação essencialmente diferente, podendo e devendo o recurso ser admitido por via normal.

No Acórdão recorrido não vêm assinalados de forma autónoma os pontos da factualidade provada que foram objecto de alteração, mas, confrontando, ponto a ponto, os factos considerados provados pelo Tribunal de 1.º instância com os factos considerados provados pelo Tribunal da Relação, verifica-se que este último procedeu a três alterações:

(1) aditou no ponto 2 a referência à actividade da ré Trasmorro (“cujo objecto é a actividade rodoviária):

(2) aditou no ponto 30 a referência a que o teor das cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados não foram nem lidos e explicados; e

(3) aditou o ponto 31, segundo o qual os réus declararam, nos referidos contratos, ter tomado conhecimento e aceite sem reservas as condições particulares e gerais estabelecidas por esses contratos.

Se a primeira e até a segunda não são alterações relevantes, i.e., susceptíveis de mudar o rumo dos acontecimentos no que toca ao raciocínio conducente à decisão e, portanto, de se reflectir na fundamentação do Acórdão, o mesmo não acontece de todo com a segunda. Ela altera significativamente a base factual, o conjunto de premissas de que partiu o Tribunal recorrido para a decisão e, assim sendo, a fundamentação é essencialmente diferente da do Tribunal de 1.ª instância.

Para ilustrar que o Tribunal recorrido se ocupou do novo pressuposto de facto e retirou dele consequências lógicas e que tudo isso se repercute na fundamentação de direito, veja-se o seguinte excerto da fundamentação:

No caso em apreço, a Autora não provou ter informado e explicado à contraparte as cláusulas referentes às consequências da resolução dos contratos, fundamentada no incumprimento definitivo.

Porém, tendo em consideração que os veículos, objecto dos três contratos de locação, destinaram-se à actividade rodoviária da Autora, o que pressupõe, por parte da locatária (sociedade comercial) uma análise económica prévia e uma compreensão do programa contratual decorrente da habitualidade deste tipo de negócios, e não sendo o respectivo teor literal ambíguo, conclui-se que as ditas cláusulas, no caso concreto, não careciam de explicações adicionais, não tendo, por isso, sido violado o dever de informação que incumbia à locadora.

Ademais a Ré, sociedade que se dedica à actividade rodoviária e o respectivo representante legal, na qualidade de fiador, declararam terem tomado conhecimento e aceite sem reservas as condições (gerais e particulares) dos contratos. Por outras palavras, tendo os contratos sido celebrados com uma sociedade que se dedica à actividade rodoviária cujo representante legal não suscitou qualquer dúvida à locadora, apesar de ter subscrito três contratos de locação financeira, afigura-se-nos que não carecia de informação ou esclarecimentos mais pormenorizados.

Assim, considerando o perfil dos aderentes dos contratos de locação financeira, a clareza do sentido literal das cláusulas que estipulam as consequências da resolução dos contratos e por terem declarado ter tomado conhecimento e concordado com o seu teor, concluímos, na linha argumentativa da jurisprudência dominante e sedimentada sobre a matéria em casos similares, que não se justificava, in casu, qualquer explicação adicional por parte da Autora”.

Significa isto que o Tribunal teve presente que a locadora não leu nem explicou à locatária o teor das cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados e, ainda assim, concluiu que não havia razão para excluir tais cláusulas por aquele comportamento da locadora não configurar omissão do dever de informação.

Do objecto do recurso

1. Da alegada omissão de pronúncia

A recorrente alega que o Tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia porque “não conheceu dos temas e artigos 63º a 93º das Conclusões do Recurso de Apelação, designadamente e entre outras, as questões relacionadas com i) abuso de direito, ii) fraude à lei, iii) exclusão de cláusulas do contrato, iv) culpa do lesado, e v) inconstitucionalidade (cfr., designadamente, conclusões 63 e 64 das conclusões da revista).

Deve dizer-se que esta não é a forma mais adequada de arguir a omissão de pronúncia. De facto, a recorrente limita-se aqui a uma indicação vaga e meramente exemplificativa das “questões” que entende que o Tribunal recorrido não conheceu e devia ter conhecido, remetendo para um grupo de conclusões das quais tais “questões”, ainda para mais, não aparecem bem delimitadas nem formuladas em conformidade com a qualificação que a recorrente lhes atribui (“questões”).

Haverá ainda um lapso nas conclusões indicadas: as conclusões de apelação terminam na 84. Depreende-se que as conclusões para as quais a recorrente pretende remeter são as conclusões 63 a 84 e correspondem às conclusões 102 a 119 da presente revista – correspondem ipsis verbis, tendo havido apenas uma concentração da numeração2, pelo que se considera dispensável reproduzi-las.

Desde logo, como decorre do excerto do Acórdão atrás reproduzido, considerou-se de forma expressa a possibilidade de exclusão das cláusulas nos termos do artigo 8.º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, aprovado pelo DL n.º 446/85, de 25 de Outubro (doravante RJCCG), por violação do dever de informação que decorre do artigo 6.º do RJCCG.

A abrir a fundamentação de direito, o Tribunal formula o problema que lhe cabia enfrentar assim:

O inconformismo recursivo da Apelante cinge-se essencialmente aos efeitos da resolução dos contratos, previstos nas cláusulas descritas nos pontos 13 a 17 dos factos provados concretamente por entender que, não tendo essas cláusulas sido lidas e explicadas aos contraentes, devem ser excluídas nos termos do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 466/85, de 25 de Outubro ou consideradas abusivas”.

E adiante abre-se um distinto “capítulo”, intitulado “Da desproporcionalidade das estipulações negociais que convencionam cláusulas penais”.

No tocante às restantes “questões”, deve dizer-se que elas não são verdadeiras questões mas sim, em rigor, tendo em conta os termos em que foram enunciadas pela apelante, argumentos favoráveis à sua pretensão. Veja-se, aliás, que é a própria recorrente a qualificá-los assim quando diz, de forma “englobadora”: “se algum dos argumentos supra não servir, de per si, para revogar a Sentença proferida (…)” (cfr. conclusão 69).

Como é sabido, o julgador não tem o dever de apreciar argumentos mas sim, apenas, o dever de apreciar questões.

Ora, aquilo que a apelante pretendia com o recurso de apelação – e pretende com o recurso de revista – é o reconhecimento judicial de que alguma circunstância impede a autora de fazer valer as cláusulas.

O Tribunal recorrido não acolheu a sua pretensão, mas não há dúvida de que respondeu à questão que lhe está subjacente, concluindo que nada afectava a possibilidade de a autora se valer das ditas cláusulas. Disse ele

Numa palavra, as cláusulas contratuais em apreciação, inseridas nos contratos de locação financeira, são válidas e conformes aos princípios constitucionais”.

Quanto à inconstitucionalidade, o Tribunal disse ainda mais:

Por último, a Recorrente invoca a violação do art. 18.º da CRP mais precisamente dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade.

Sobre o princípio da proporcionalidade, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, como se refere no Ac. 632/2008 de 23/12/2008, constitui uma questão suficientemente tratada.

As decisões do Tribunal Constitucional apontam, segundo o mencionado aresto, para três subprincípios em que aquele se desdobra (da adequação, da necessidade/exigibilidade e da proporcionalidade em sentido estrito).

A interpretação que tem sido feita do art. 19.º, al. c) do Dec.Lei n.º 446/85 de 25.10 pela doutrina e jurisprudência obedece a tais princípios porquanto a sanção (grave) da nulidade de uma cláusula, na medida em que determina a sua exclusão do contrato, exige do julgador um juízo sobre a desproporcionalidade que respeite a razão de ser e as finalidades da figura da cláusula penal como cláusula acessória estipulada à luz da autonomia das partes e da liberdade contratual”.

Não restam dúvidas de que a apelante obteve uma resposta – uma resposta clara – à questão que suscitou, tendo sido considerada a generalidade dos seus argumentos. Por conseguinte, não pode considerar-se que haja omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo.

2. Das cláusulas contratuais

Essencialmente, a recorrente impugna a decisão do tribunal recorrido, em primeiro lugar, na parte em que se recusou a reconhecer a nulidade da cláusula contida no artigo 10.º, n.º 4, al. c), do contrato e, em segundo lugar, na parte em que se recusou a considerar excluídas do contrato as cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados.

Impõe-se “reordenar” as conclusões.

Como a cláusula contida no artigo 10.º, n.º 4, al. c), do contrato está compreendida no grupo das cláusulas contratuais referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados e a exclusão é um maius relativamente à nulidade, a primeira pergunta que terá de se responder é se as cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados devem ser excluídas.

Esta pergunta é uma premissa lógica da segunda pois só se a resposta for negativa é que faz sentido fazer a pergunta sobre se a cláusula contida no artigo 10.º, n.º 4, al. c), do contrato é nula.

a) Da hipótese de exclusão das cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados

Nas conclusões 109 a 119 a recorrente põe em causa, esgrimindo diversos fundamentos, a força das cláusulas contratuais referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados e, em particular, da cláusula referida no ponto 17 (contida no artigo 19.º do contrato).

Defende a sua exclusão por violação do dever de informação que impedia sobre a locadora (cfr., designadamente, conclusões 109 a 116). Aduz ainda a desproporcionalidade, o abuso do direito e a fraude à lei no seu aproveitamento pela locadora tendo em conta a disponibilidade de um meio alternativo para obter a restituição da coisa locada (cfr. conclusões 117 a 119).

Relembre-se, desde já, o teor das cláusulas contratuais referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados:

13 - De acordo com o estipulado no art. 10.º n.º 1 das Condições Gerais do acordo, o contrato pode ser resolvido pela Locadora quando houver mora no pagamento de uma ou mais rendas.

14 - De acordo com o n.º 2 do mesmo art. 10.º o incumprimento temporário torna-se definitivo se, após o envio de carta registada com aviso de recepção para o domicílio do Locatário, intimando-a ao cumprimento em prazo razoável das suas obrigações, prazo que desde já se fixa em oito dias, o Locatário não precludir o direito à resolução por parte do Locador, procedendo ao pagamento do montante em dívida, acrescido de 50% como indemnização.

15 - Acrescenta o n.º 4 que “Em qualquer dos casos referidos nos números anteriores o locatário fica obrigado a:

a) Restituir o equipamento/bem/serviço, suportando os riscos e custos inerentes à sua restituição (…)

b) Pagar o montante das rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos respectivos juros moratórios à taxa acordada e demais encargos

c) A pagar 20% do total das rendas vincendas, à data da resolução, acrescido do valor residual.

16 - Dispõe ainda a cláusula 13.º o seguinte:

“1 - Em caso de não pagamento pontual das rendas ou do valor residual ou ainda de quaisquer outras quantias devidas pelo locatário ao locador, independentemente do exercício dos direitos conferidos ao locador pelos artigos anteriores, serão devidos pelo locatário juros moratórios calculados à taxa de juro implícita à data das rendas constantes das “Condições Particulares”, acrescidas de uma sobretaxa de 3 pontos percentuais”.

17 - E dispõe a Cláusula 19.º o seguinte:

“No caso de o locatário não exercer o seu direito de aquisição e não devolver o equipamento/serviço no fim do prazo de locação, o locador terá direito a receber do locatário, a título de cláusula penal pelo incumprimento na devolução, e por cada mês ou fracção do mês por que a mesma perdura, quantia igual à ultima renda. O mesmo direito assistirá ao locador quando o equipamento/bem/serviço deva ser devolvido antes do termo do prazo de locação, nomeadamente no caso de o contrato ter sido resolvido e haja incumprimento nessa devolução, sendo esse direito acumulável, com os conferidos ao locador pelos artigos anteriores. Aos montantes desta cláusula penal acrescerão os juros à taxa convencionada contados a partir da data do vencimento respectivo, considerando-se como tal o dia do vencimento e a renda correspondente, caso o contrato se mantenha

Como se vê, estão em causa, expressis verbis, as cláusulas constantes do artigo 10.º, n.ºs. 1, 2 e 4, do artigo 13.º e do artigo 19.º do contrato celebrado entre a autora e a ré, que regulam os direitos da locadora no caso de incumprimento da locatária, designadamente o direito de resolução do contrato e os seus efeitos.

Segundo a recorrente, a exclusão seria consequência da violação do dever de informação quanto às cláusulas, mais precisamente, da falta de leitura e explicação das cláusulas conforme ilustrado no facto provado 30.

Aprecie-se.

Estão em causa nos presente autos três contratos intitulados “de locação financeira mobiliária com fiança” (cfr. facto provado 3).

Os contratos de locação financeira estão sujeitos ao Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira aprovado pelo DL n.º 149/95, de 24 de Junho3 (RJCLF)4.

Explica António Menezes Cordeiro que “[o]s contratos de locação financeira são concluídos na base de cláusulas contratuais gerais, bastante circunstanciadas, aprontadas pelas sociedades locadoras5.

Como se afirma no Acórdão recorrido, “[e]m primeiro lugar, não suscita qualquer controvérsia o enquadramento dos contratos de locação mobiliária nos designados contratos de adesão por conterem cláusulas elaboradas sem prévia negociação individual, destinadas a uma pluralidade indeterminada de contraentes, o que corresponde à orientação dominante da doutrina e da jurisprudência sobre a matéria-cfr. art. 1.º do Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10. alterado pelos Dec.-Leis n.ºs 220/95 de 31.10 e 249/99 de 07.07.

O Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10 atravessa, longitudinalmente, todo o ordenamento jurídico português, pois é aplicável a todo o tipo de negócio em cujos contratos se incluam cláusulas contratuais gerais, só cedendo perante os casos previstos no seu artigo 3.º.”.

Prevê-se no artigo 6.º do RJCCG.

1 - O contratante determinado que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.

2 - Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados”.

E determina-se no artigo 8.º do RJCCG:

Consideram-se excluídas dos contratos singulares:

a) As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5.º;

b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo;

c) As cláusulas que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real;

d) As cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes”.

Há que saber, então, se impendia sobre a locadora um dever de informação quanto àquelas cláusulas e, no caso afirmativo, se ele foi violado.

Interpretando as conclusões que formula a recorrente estão em causa, no essencial, não exactamente todas as cláusulas referidas nos pontos 13 a 17 dos factos provados, isto é, não exactamente as cláusulas que regulam o direito de resolução mas os seus efeitos, portanto, as cláusulas do artigo 10.º, n.ºs 2 e 4, no artigo 13.º e no artigo 19.º, como também parece ter entendido o Tribunal recorrido, dada a formulação da questão no recurso de apelação.

De acordo com elas, a locatária constituiu-se na obrigações de:

- pagamento do montante em dívida acrescido de 50% como indemnização;

- restituição do locado;

- pagamento das rendas vencidas e não pagas com juros moratórios;

- pagamento de 20% do total das rendas vincendas, acrescido do valor residual;

- pagamento dos juros moratórios sobre todas as quantias devidas acrescidas de uma sobretaxa de 3%;

- pagamento de quantia igual à última renda pelo incumprimento da obrigação de restituição do locado, por cada mês ou fracção do mês.

Aprecie-se cláusula a cláusula e obrigação a obrigação.

De imediato se conclui, por um lado, que não há que apreciar da cláusula do artigo 10.º, n.º 2, que dispõe sobre a obrigação de pagamento do montante em dívida acrescido de 50%, de restituição do locado porque, de facto, ela não foi aplicada; a locadora concedeu um prazo suplementar de 15 dias (e não de oito dias) de calendário para regularização da situação de incumprimento, mediante o pagamento das ditas rendas em atraso, acrescidas dos respectivos juros (e não acrescido de 50% do montante em dívida, como indemnização) (cfr. facto provado 21).

Tão-pouco há que apreciar – ou se pode apreciar – da cláusula do artigo 10.º, n.º 4, al. a), que dispõe sobre a obrigação de restituição do locado, porquanto ela se limita a replicar um efeito legal da resolução do contrato de locação e do contrato de locação financeira (cfr. artigo 289.º, por remissão dos artigo 433.º, ambos do CC).

No que respeita às cláusulas do artigo 10.º, n.º 4, als. b) e c), do artigo 13.º e do artigo 19.º, que dispõem, respectivamente, sobre a obrigação de pagamento das rendas vencidas e não pagas com juros moratórios, a obrigação de pagamento de 20% do total das rendas vincendas, acrescido do valor residual, a obrigação de pagamento dos juros moratórios sobre todas as quantias devidas acrescidas de uma sobretaxa de 3% e a obrigação de pagamento de quantia igual à última renda pelo incumprimento da obrigação de restituição do locado, por cada mês ou fracção do mês6, propende-se para acompanhar o entendimento do Tribunal a quo.

O Tribunal a quo resolveu a questão, considerando, desde logo, que a locatária não estava sujeita a um dever de informação que tivesse por objecto tais cláusulas, com a seguinte fundamentação, no essencial:

A intensidade deste dever de informação e de esclarecimento depende naturalmente das especificidades e das circunstâncias do caso concreto, nas quais se inclui o perfil do contraente/aderente (…).

Se não for cumprido este dever, ou seja, se as cláusulas não forem comunicadas nos termos do referido art. 5.º, consideram-se excluídas dos contratos singulares-cfr. art. 8.º O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva, nos termos do n.º 3 do artigo 5.º, cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.

No caso em apreço, a Autora não provou ter informado e explicado à contraparte as cláusulas referentes às consequências da resolução dos contratos, fundamentada no incumprimento definitivo.

Porém, tendo em consideração que os veículos, objecto dos três contratos de locação, destinaram-se à actividade rodoviária da Autora, o que pressupõe, por parte da locatária (sociedade comercial) uma análise económica prévia e uma compreensão do programa contratual decorrente da habitualidade deste tipo de negócios, e não sendo o respectivo teor literal ambíguo, conclui-se que as ditas cláusulas, no caso concreto, não careciam de explicações adicionais, não tendo, por isso, sido violado o dever de informação que incumbia à locadora.

Ademais a Ré, sociedade que se dedica à actividade rodoviária e o respectivo representante legal, na qualidade de fiador, declararam terem tomado conhecimento e aceite sem reservas as condições (gerais e particulares) dos contratos.

Por outras palavras, tendo os contratos sido celebrados com uma sociedade que se dedica à actividade rodoviária cujo representante legal não suscitou qualquer dúvida à locadora, apesar de ter subscrito três contratos de locação financeira, afigura-se-nos que não carecia de informação ou esclarecimentos mais pormenorizados.

Assim, considerando o perfil dos aderentes dos contratos de locação financeira, a clareza do sentido literal das cláusulas que estipulam as consequências da resolução dos contratos e por terem declarado ter tomado conhecimento e concordado com o seu teor, concluímos, na linha argumentativa da jurisprudência dominante e sedimentada sobre a matéria em casos similares, que não se justificava, in casu, qualquer explicação adicional por parte da Autora”.

Pouco havendo a acrescentar aos argumentos aduzidos pelo Tribunal da Relação, sublinha-se apenas que seria difícil sustentar, de facto, que fosse necessário o esclarecimento da locadora para a locatária ter consciência e compreender o teor das cláusulas, que fosse exigível a leitura e a explicação das cláusulas para que a ré se inteirasse do respectivo teor.

As cláusulas estão formuladas em português claro. Além disso, a ré / locatária é uma sociedade comercial que, pela sua natureza, é susceptível de recorrer, com frequência, a contratos do tipo do celebrado com a autora e sendo expectável que haja, da sua parte, um adequado planeamento e um algum grau de profissionalismo neste tipo de operações.

Em síntese, e usando os termos legais: não se trata de cláusulas cuja aclaração se justificasse, isto é, fosse necessária para que a locatária adquirisse o seu conhecimento efectivo.

Não há, assim, dever de informação específico sobre estas cláusulas e, não havendo dever de informação específico sobre estas cláusulas, não se verifica a situação prevista no artigo 8.º, al. b), do RJCCG.

Relativamente ao argumento da desproporcionalidade da generalidade das cláusulas e do abuso do direito e da fraude à lei, pode dizer-se que, globalmente, e sem prejuízo do que se dirá de seguida sobre a cláusula constante do artigo 10.º, n.º 4, al. c), não se entende que elas sejam desproporcionadas ou que, ao fazer-se uso delas, a recorrida / locatária tenha incorrido em abuso do direito ou em fraude à lei.

Cláusulas com este teor são naturais ou típicas em contratos desta natureza, como a recorrente reconhece, ao defender a relevância jurídica da sua análise. Diz ela: “É uma prática instituída no mundo hodierno, em várias áreas de negócio” (cfr. conclusões 12 e 13)

Resta, pois, analisar a cláusula constante do artigo 10.º, n.º 4, al. c), sobre a obrigação de pagamento de 20% do total das rendas vincendas, acrescido do valor residual, a possibilidade de ela ser inaplicável com fundamento noutras causas.

b) Da hipótese de nulidade da cláusula constante do artigo 10.º, n.º 4, al. c), do contrato, segundo a qual a locatária tem a obrigação de pagamento de 20% das rendas vincendas à data da resolução, acrescido do valor residual

Nas conclusões 65 a 108, a recorrente defende que a cláusula constante do artigo 10.º, n.º 4, al. c), do contrato é nula, invocando, sobretudo, a sua desproporcionalidade. Na tentativa de inviabilizar a aplicação da cláusula na parte relevante, a recorrente invoca ainda, novamente, o abuso do direito, a fraude à lei e a inconstitucionalidade (cfr. conclusões 96 a 107).

Note-se, antes de mais, que a recorrente não contesta a cláusula do artigo 10.º in totum e nem sequer o seu n.º 4, mas apenas a al. c), restrita à obrigação de pagamento de 20% do total das rendas vincendas à data da resolução e do valor residual (cfr. B e conclusões 76 e 77).

Contrariando as expectativas da recorrente, o Tribunal recorrido decidiu que não havia nulidade, com apoio, no essencial, no seguinte:

Após a resolução dos contratos de locação financeira, a Ré ficou obrigada a devolver à Autora os veículos, a pagar as rendas vencidas até essa data e a quantia correspondente a 20% do total das rendas vincendas, à data da resolução, acrescida do valor residual.

O pagamento desta percentagem do total das rendas vincendas acrescido do valor residual configura uma cláusula penal de cariz indemnizatória.

A cláusula 19.º respeitante à mora na devolução dos veículos visa alcançar duas finalidades: a reparação dos danos causados à locadora decorrentes da privação do gozo em termos económicos desses bens e compulsória como forma de obter, quanto antes, aquele desiderato de obtenção da posse dos mesmos (…)

No caso concreto, a cláusula penal de cariz indemnizatório não demanda a exigência de um montante equivalente a todas as rendas devidas até ao termo do contrato e valor residual, que, em princípio, seria nula por revelar um desequilíbrio acentuado entre os interesses de ambas as partes.

Diferentemente a Autora pretende obter o pagamento de uma quantia correspondente a 20% das rendas vincendas à data da resolução e ainda o valor residual como forma de ser indemnizada pelo não cumprimento do contrato.

Por conseguinte, no plano objectivo dos interesses económicos envolvidos para ambos os contraentes neste tipo de contrato de locação financeira de veículos pesados, esta cláusula não tem sido considerada desproporcionada aos danos a ressarcir.

Acresce que as condições particulares do caso concreto também apontam nesse sentido uma vez que, face ao investimento financeiro que a Autora teve de suportar na aquisição dos veículos para os ceder à Ré, a cláusula de índole indemnizatória respeita, à luz da liberdade contratual, o equilíbrio entre o investidor/locador e a locatária (cujo interesse incide sobre a utilização de veículos pesados na sua actividade societária) que não necessita de pagar o preço (elevado) como contrapartida da aquisição dos veículos (…)”.

Aprecie-se.

Observando a classificação de António Pinto Monteiro7, o Tribunal recorrido começa por qualificar a cláusula penal como uma cláusula penal indemnizatória.

Seguindo aquele autor, Nuno Manuel Pinto Oliveira8 explica, sinteticamente, que:

O conceito amplo de cláusula penal engloba cláusulas penais indemnizatórias e cláusulas penais compulsórias: nas primeiras (cláusulas penais indemnizatórias), o acordo das partes tem por finalidade liquidar a indemnização devida em caso de não cumprimento definitivo, de mora ou de cumprimento defeituoso; nas segundas (cláusulas penais compulsórias), o acordo das partes tem por finalidade compelir o devedor ao cumprimento e/ou sancionar o não cumprimento”.

A classificação da cláusula dos autos como cláusulas penal indemnizatória ou “cláusula de fixação antecipada do montante da indemnização”9 é, tanto quanto se pensa, a classificação correcta.

Tendo em vista o contrato em causa, o interesse da locadora no cumprimento do contrato é, à partida, moderado. Isso acentua-se pelo facto de o incumprimento da locatária ser, na prática, uma hipótese frequente e com que a locadora deve contar. A preocupação da locadora será, pois, a de acautelar os seus interesses nessa hipótese provável através da cláusula penal, não a de compelir ao cumprimento.

Como alguma doutrina vem afirmando, a cláusula penal predisposta nos contratos de locação financeira para o caso de não cumprimento da obrigação do locatário é, em princípio, uma cláusula penal indemnizatória, sendo que “[n]ão se vê aqui um interesse tão relevante do locador no pontual cumprimento do contrato que o leve a criar uma verdadeira cláusula penal (…) o cálculo do dano em caso de incumprimento, dada a necessidade de se entrar em conta com diversos factores, é complexo. Por isso, se recorre à sua fixação prévia da indemnização. É esse o sentido da cláusula10.

Será que esta cláusula penal dirigida a fixar antecipadamente a indemnização pelo incumprimento é desproporcionada na medida em que obriga ao pagamento de uma quantia correspondente a 20% das rendas vincendas à data da resolução e ainda o valor residual?

Se se entender que ela consagra uma pena desproporcionada aos danos a ressarcir ela deve ser considerada desproporcionada e, contrariando uma proibição legal, é nula.

Dispondo sobre cláusulas relativamente proibidas, o artigo 19.º do RJCCG estatui:

São proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que: (…)

c) Consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir (…)”.

E o artigo 12.º do RJCCG determina:

“As cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição deste diploma são nulas nos termos nele previstos”.

Diz António Menezes Cordeiro que “[o] artigo 19.º da LCCG reporta-se a proibições relativas no quadro das relações entre empresários (…) apenas um juízo de valor, feito dentro da lógica de cada tipo negocial em jogo, permitirá reestabelecer a justiça dentro do contrato11.

Ainda propósito desta primeira norma afirmam Mário Júlio de Almeida Costa e António Menezes Cordeiro que:

(…) a qualificação ‘desproporcionada’ não aponta para uma pura e simples superioridade das penas preestabelecidas em relação ao montante dos danos. Pelo contrário, deve entender-se, de harmonia com as exigências do tráfego e segundo um juízo de razoabilidade, que a hipótese em análise só ficará preenchida quando se detectar uma desproporção sensível12.

A propósito da segunda norma, dizem os mesmos autores que:

As cláusulas contratuais gerais proibidas por lei e que, não obstante isso, sejam utilizadas na celebração de contratos singulares encontram-se feridas de nulidade. A solução imposta corresponde ao direito comum (arts. 280.º, n.º 1, e 294.º do Código Civil)13.

Chegados aqui, há que deixar claro o sentido a atribuir ao artigo 19.º, al. c): quando se refere à desproporcionalidade entre a pena e aos danos a ressarcir, deve entender-se que o preceito se refere à desproporcionalidade entre a pena e os danos previsíveis e não propriamente à desproporcionalidade entre a pena e os danos efectivos.

Sobre isto explica Nuno Manuel Pinto Oliveira:

“Face à dificuldade de conciliar o critério da desproporção entre a pena e o prejuízo ressarcível com o conceito de invalidade como consequência de um defeito genético do negócio jurídico, o aplicador do direito há-de optar ou por uma interpretação declarativa ou por uma interpretação restritiva da al. c) do art. 19.º da LCCG: a interpretação declarativa conduzirá à invalidade de todas as cláusulas penais desproporcionadas aos prejuízos provocados pelo incumprimento, a interpretação restritiva só conduzirá à invalidade das cláusulas penais desproporcionadas aos prejuízos previsíveis pelos contraentes, pelas partes, no momento em que a declaração negocial “sai da esfera de poder do declarante com a vontade deste”. Existindo desproporção entre a pena e os prejuízos previsíveis no momento em que a declaração negocial é emitida, aplicar-se-iam os arts. 12.º e 19.º, al. c), da LCCG, pelo que a cláusula seria inválida; existindo desproporção entre a pena e os prejuízos provocados pelo incumprimento, aplicar-se-ia o art. 812.º do Código Civil: a cláusula penal seria válida, a pena seria reduzida.

A interpretação restritiva da al. c) do art. 19.º da LCCG assegura a coerência dogmática da disposição com categorias fundamentais do direito civil e a composição equilibrada dos interesses em conflito: enquanto a interpretação declarativa conduz à eliminação da cláusula penal – de uma cláusula penal adequada aos prejuízos previsíveis, inadequada aos prejuízos verificados (‘aos danos a ressarcir’) – , a interpretação restritiva da al. c) do art. 19.º da LCCG concede ao aplicador do direito a oportunidade de apreciar globalmente as circunstâncias do caso concreto para estabelecer se a pena é, ou não excessiva e de empregar o critério – mais inseguro, mas também mais flexível – da equidade (…).

O juízo sobre a desproporção entre a pena e os prejuízos “que são de prever de acordo com o normal decurso das coisas” pode ser emitido em abstracto, o juízo sobre a desproporção entre a pena e os prejuízos “a ressarcir” – i.e., o juízo sobre a desproporção entre a pena e os prejuízos provocados pelo concreto incumprimento de um concreto contrato – não pode sê-lo. Interpretar restritivamente a al. c) do art. 19.º da LCCG – atribuindo à expressão ‘danos a ressarcir’ o sentido de ‘prejuízos que são de prever de acordo o normal decurso das coisas” – constitui a decisão coerente – a única decisão coerente – com o critério hermenêutico segundo o qual ‘entre várias interpretações possíveis segundo o sentido literal deve […] ter prevalência aquela que possibilita […] a concordância material com outra disposição14.

Assente que está que o artigo 19.º, al. c). do RJCCG proíbe as cláusulas relativamente às quais, de harmonia com o “quadro negocial padronizado”, ou seja. com as exigências do tráfego e segundo um juízo de razoabilidade, se detecte uma desproporção sensível entre a pena e os danos previsíveis, passe-se ao conreto juízo de proporcionalidade.

Diga-se, desde já, que não se estranha esta previsão da obrigação de pagar uma quantia correspondente a 20% das rendas vincendas à data da resolução e ainda o valor residual a par da obrigação de restituir o bem e da obrigação de pagar as obrigações vencidas e não pagas.

Como diz Rui Pinto Duarte, “[p]rimacialmente, os locadores financeiros não estão interessados em reaver os bens locados. A sua lógica é financeira (como se reflecte na natureza das empresas em causa). O que os locadores financeiros pretendem é ser reembolsados dos valores que investem nos bens e ser retribuídos pelos serviços que prestam.

É claro que, perante o incumprimento do locatário (incumprimento no sentido estrito, no sentido de incumprimento definitivo), se o locatário não tiver meios para pagar, é preferível ao locador reaver o bom do que ficar sem nada. Por isso mesmo, os contratos de locação financeira prevêem (tendencialmente sempre) a hipótese de resolução pelo locador com base em incumprimento pelo locatário e, para essa hipótese, atribuem ao locador direito a exigir do locatário:

a) As rendas vencidas e não pagas (e respectivos juros);

b) O bem locado;

c) Uma indemnização pelos prejuízos sofridos, com a natureza de cláusula penal15.

No que toca ao juízo de proporcionalidade, propende-se para acompanhar o Tribunal a quo.

O critério que deve presidir à formulação deste juízo é bem explicado por António Pinto Monteiro:

Tratando-se de uma cláusula penal que faça parte de um contrato de adesão, o pre­ceito que, à partida, se deve convocar é, pois, sem dúvida, a ai. c) do art. 19.° do referido Decreto-Lei n.° 446/85. Haverá que apurar, por conseguinte, se a pena é ou não despro­porcionada aos danos a ressarcir.

A este respeito, a jurisprudência revela que se tem decidido, e bem, que é um juízo ob­jectivo e abstracto que se deve fazer, pois é em face do "quadro negocial padronizado" que há que decidir. Não há aqui que ter em conta as circunstâncias concretas, antes os interesses típicos do círculo de contraentes que habitual­mente participam na espécie de negócio em causa, naquele especial sector de actividade negocialt31).

E é assim que os tribunais vêm decidindo, repito, nos muitos casos que têm estado sob a sua apreciação e nòs mais variados domí­nios: registo, entre outros, os contratos de ma­nutenção e assistência de ascensores (Acórdãos do STJ de 14 de Dezembro de 2016: Fonseca Ramos; de 5 de Maio de 2016: Salazar Ca­sanova; de 9 de Dezembro de 2014: Mar­tins de Sousa (…)16.

Aos arestos citados pelo autor pode acrescentar-se o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2020 (Proc. 127735/16.7YPRT.L1.S1), em sujo sumário se diz:

O art. 19º, alínea c) do DL nº 446/85 proíbe a cláusula penal desproporcionada aos danos a ressarcir, aferindo-se a desproporção não por um critério casuístico mas na sua compatibilidade e adequação ao ramo ou sector de actividade negocial a que pertencem”.

Volta a referir-se mais desenvolvidamente o critério no sumário de 18.01.2022 (Proc. 889/18.7T8EPS.P1.S1):

Sendo indeterminado, o conceito de desproporcionalidade de uma cláusula penal, consagrado no 2º. daqueles normativos legais, deve ser concretizado e aferido, pelo julgador, com base num juízo objetivo e abstrato, e não casuístico, ou seja, independentemente das circunstâncias do caso concreto, tomando em conta o quadro negocial padronizado e específico do setor de atividade em que ocorreu o contrato no qual a cláusula penal foi estipulada, reportando ainda esse juízo ao momento em que a mesma foi estabelecida, devendo, e nessa medida, considerar-se para o efeito a desproporção entre a pena estipulada e os danos então previsíveis (e não os danos concretos/efetivos), não bastando, por fim, na formulação desse juízo que o valor dessa desproporção seja superior, antes se exigindo que ele seja sensível”.

Da aplicação deste critério ao caso dos autos não resulta – repete-se – desproporção sensível entre a pena e os danos previsíveis.

No contexto dos contratos de locação financeira e de contratos de locação financeira mobiliária, em particular, não obstante o locador se manter proprietário dos bens locados, podendo dispor deles como lhe aprouver, o incumprimento do locatário não deixa de lhe causar consideráveis transtornos: “sendo uma instituição de crédito, ele pouco proveito poderá tirar do objeto locado; além disso, haverá dificuldades em colocá-lo no mercado, visto tratar-se de um bem usado e, normalmente, em mau estado de conservação17.

Deve notar-se ainda que “a mera restituição do bem não é ressarcitória, como tem sido reconhecido pela jurisprudência, o locador suporta múltiplos investimentos, que devem ser compensados. A sua atividade é puramente financeira; ele não colhe as vantagens reais, quando receba, de volta, o bem locado. A solução do pagamento de uma percentagem das rendas e do valor residual parece razoável18.

De tudo isto resulta que, na perspectiva dos interesses típicos das partes em contratos da espécie em causa, aquela pena, incluída no contrato ao abrigo da autonomia contratual, não conduz a um desequilíbrio significativo da posição das partes. Não se pode dizer, de facto, que ela represente uma excessiva protecção de uma das partes considerando a obrigação que de outro modo impenderia, ex vi legis, sobre a outra parte, de ressarcir os danos.

Observe-se ainda que a cláusula penal segundo a qual o locatário inadimplente, além de pagar as prestações vencidas, tem de pagar 20% das prestações vincendas à data da resolução e o valor residual, na jurisprudência, é hoje relativamente comum e a jurisprudência tem vindo a admiti-lo, ou seja, a considerar-se que esta cláusula não é desproporcionada19.

Veja-se, só para dois exemplos, os Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 11.01.2001 (Proc. 3622/00) e de 3.06.2003 (Proc. 02A273).

Diz-se, no sumário do primeiro:

Não pode abstractamente considerar-se nula, por desproporcionada ao dano a ressarcir, a cláusula inserta em contrato de locação financeira, que estabelece que, resolvido o contrato, o locatário se constitui na obrigação de pagar indemnização igual a 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual”.

E diz-se no segundo, em que, por sinal, um dos contratos de locação financeira que estavam em causa respeitava, também, a um veículo pesado:

Em concreto está em causa a cláusula mencionada, que fixa a título de indemnização o valor de 20% da soma das rendas vincendas e do valor residual (…).

Tendo em conta essas especificidades do contrato e o necessário juízo de razoabilidade, afigura-se-nos que a cláusula não demonstra uma desproporção sensível, não sendo, por isso, nula, não obstante se reconhecer os elevados encargos que impendem sobre o devedor. Embora sem uma afirmada unanimidade, é neste sentido a jurisprudência dominante - Assim Ac. STJ de 09.03.1993 CJ II, pág. 8; Ac. STJ de 21.05.98, BMJ nº 477, pág. 490; Ac. STJ de 10.02.2000 CJ I, pág. 76; Ac. de 08.05.2001, Revista nº 543/01-1 (com o mesmo relator)”.

Em síntese, a cláusula é válida e a locadora pode valer-se dela.

Relativamente ao abuso do direito, à fraude à lei e à culpa do lesado, convocados ainda para inviabilizar (cfr., designadamente, conclusão 119), repete-se aquilo que se disse atrás a propósito da alegada omissão de pronúncia do Tribunal recorrido: tal como são enunciados, eles constituem fundamentos que a recorrente aduz em apoio da resposta que pretende à mesma questão.

De todo o modo, deve recordar-se que, não obstante de conhecimento oficioso, o abuso do direito e os restantes fundamentos só podem ser conhecidos pelo tribunal quando existam, na decisão sobre a matéria de facto, elementos que apontem inequivocamente nesse sentido, o que aqui não acontece. É possível dizer, aproveitando a fórmula usada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.11. 2013 (Proc. 161/09.3TBGDM.P2.S1), que o tribunal não pode dar por preenchidos os pressupostos do abuso do direito “à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos”. Veja-se ainda, no mesmo sentido, os Acórdãos deste Suprem Tribunal de 23.10.2014 (Proc. 5567/06.7TVLSB.L2.S1), dizendo que “o conhecimento oficioso [do abuso do direito] não prescinde da alegação e prova da factualidade que se integre em tal conceito jurídico, pelo que, para esse [e]feito, é necessário que o tribunal disponha da factualidade pertinente, alegada pelas partes nos respectivos articulados” ou de 17.11.2020 (Proc. 306/15.4T8AVR-A.P1.S2), dizendo que “[e]mbora o abuso de direito seja de conhecimento oficioso, o tribunal apenas dele deve conhecer quando o mesmo se afigure manifesto, ou seja, quando as circunstâncias do caso apontem claramente no sentido da sua verificação”.

Por fim, a propósito da alegação de inconstitucionalidade, resta reiterar as considerações tecidas pelo Tribunal recorrido: a interpretação das normas relevantes, designadamente dos artigos 12.º e 19.º, al. c), do RJCCG, no sentido de que as cláusulas sob sindicância não são nulas não viola os artigos 18.º, 60.º e 99.º, al. e), da CRP nem qualquer outra norma ou princípio constitucional.

Considerando o princípio da proporcionalidade e os seus três subprincípios (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito), logo se vê que a interpretação normativa adoptada aqui não é desadequada, excessiva ou desproporcionada. As exigências para que uma cláusula em concreto seja considerada desproporcionada e, portanto, nula são – e não podem deixar de ser – elevadas, atendendo que isso importa uma limitação ou uma amputação da liberdade contratual.

Quanto ao artigo 60.º da CRP versa sobre os direitos dos consumidores pelo que não se vê de que forma é que a sua interpretação poderia relevar num caso em que estão em causa empresas sob a forma jurídica de sociedades comerciais actuando no quadro da sua actividade estatutária. E o mesmo se diga, mutatis mutandis, quanto ao artigo 99.º, al. e), da CRP, que determina que são objectivos da política comercial “[a] protecção dos consumidores”.

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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente.

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Lisboa, 11 de Janeiro de 2024

Catarina Serra (relatora)

Ana Paula Lobo

Emídio Santos

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1. A passagem da conclusão 67 para a conclusão 74 não é lapso nosso. Há ainda outros lapsos no que toca à ordenação dos temas / argumentos por números romanos e por letras que tornaram a leitura e a compreensão das conclusões uma tarefa mais exigente do que é habitual.

2. Quatro das conclusões de apelação, que antes eram autónomas, foram integradas noutras conclusões.

3. O DL n.º 149/95 foi alterado, entre outros, pelo DL n.º 285/2001, de 3 de Novembro. Segundo António Menezes Cordeiro [Direito bancário, Coimbra, Almedina, 2014 (5.ª edição) p. 721], com a intenção de, “no essencial, e reforçar a autonomia privada , pondo termo a algumas regras restritivas”. A alteração mais recente é a do DL n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro.

4. Sobre o contrato de locação financeira, há que ter em conta, como obra de referência, os trabalhos Rui Pinto Duarte, Escritos sobre leasing e factoring, Cascais, Principia, 2001, e ainda “O contrato de locação financeira – Uma síntese”, in: Escritos Jurídicos Vários 2000-2015, Coimbra, Almedina, 2015, pp. 453 e s.

5. Cfr. António Menezes Cordeiro, Direito bancário, cit., p. 721.

6. Segundo Rui Pinto Duarte (“O contrato de locação financeira – Uma síntese”, cit. p. 488), cláusulas deste último tipo são “vulgares” nos contratos de locação financeira.

7. Cfr. António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e indemnização, Coimbra, Almedina, 1990, p. 602.

8. Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Cláusulas acessórias ao contrato – Cláusulas de exclusão e limitação do dever de indemnizar e cláusulas penais, Coimbra, Almedina, 2008 (3.ª edição), pp. 72-73.

9. Cfr. António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e indemnização, cit., p. 602. Observa o autor, mais recentemente (“O duplo controlo de penas manifestamente excessivas em contratos de adesão – Diálogos com a jurisprudência”, in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, 2017, n.º 4004, p. 308 “o Código Ci­vil dá uma noção acanhada de cláusula penal, restringindo-a à fixação antecipada do mon­tante da indemnização: art. 810.°, n.° 1. Trata-se, a meu ver (na tese que defendi já em 1990), de uma das possíveis espécies de cláu­sulas penais, da cláusula de fixação antecipada da indemnização, que não impede que as par­tes, ao abrigo do princípio da liberdade contratual (art. 405.°), estipulem outras espécies, designadamente uma cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dita e uma cláusula pe­nal puramente compulsória”.

10. Cfr. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “As cláusulas penais nos contratos de locação financeira”, in: Revista da Ordem dos Advogados, 2016, pp. 67-68.

11. Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral, Negócio jurídico, Coimbra, Almedina, 2014 (4.ª edição), p. 458.

12. Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa / António Menezes Cordeiro, Cláusulas contratuais gerais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro. Coimbra, Almedina, 1987, p. 47.

13. Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa / António Menezes Cordeiro, Cláusulas contratuais gerais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, cit., p. 33.

14. Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Cláusulas acessórias ao contrato – Cláusulas de exclusão e limitação do dever de indemnizar e cláusulas penais, cit., pp. 176-177 e 178-179.

15. Cfr. Rui Pinto Duarte, “O contrato de locação financeira – Uma síntese”, cit., pp. 483-484.

16. Cfr. António Pinto Monteiro, “O duplo controlo de penas manifestamente excessivas em contratos de adesão – Diálogos com a jurisprudência”, cit. p. 311.

17. Cfr. António Menezes Cordeiro, Direito bancário, cit., p. 724.

18. Cfr. António Menezes Cordeiro, Direito bancário, cit., p. 723.

19. Como salienta António Pinto Monteiro (“O duplo controlo de penas manifestamente excessivas em contratos de adesão – Diálogos com a jurisprudência”, cit., p. 312),“[a] cláusula que os tribunais têm declarado nula, por se entender que é desproporcionada aos danos a ressarcir, é a cláusula que, em caso de resolução do contrato por incumprimento, obriga o locatário, num contrato de locação financeira, a restituir o bem locado e a pagar todas as rendas, vencidas e vincendas, e ainda o valor residual”.